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MACHADO DE ASSIS E
O COTIDIANO DA VIOLÊNCIA
REVISITANDO DUAS CENAS DE BRÁS CUBAS E AIRES
Regina Zilberman
PUCRS
1.
Lendo Machado de Assis à moda de Walter Benjamin
Provavelmente
um dos capítulos mais célebres de Memórias póstumas de Brás Cubas é aquele
em que, depois de "arranjar"
a casinha na Gamboa, em que ele e Virgília desfrutarão, sem recriminações,
seus amores, sob o olhar da fiel guardiã D. Plácida, o narrador
segue pelo Valongo e se depara com um ajuntamento de pessoas.
Trata-se do capítulo LXVIII, "O vergalho", que conta
a sova aplicada por Prudêncio, ex-escravo de Brás Cubas e agora
homem livre, num preto de sua propriedade.
Conhecendo o açoitador, Brás intercede em prol da vítima, e Prudêncio,
embora se achando cheio de razão, perdoa o escravo que considera
"vadio" e
"bêbado". A cena, narrada por Brás
Cubas, ata duas pontas de seu passado: Prudêncio tinha sido o
moleque com quem o narrador brincara em criança, e, na época,
o menino "punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem
compaixão; ele gemia e sofria." Depois fora libertado por seu pai, assunto
mencionado quando os herdeiros de Bento Cubas discutem o espólio
e a partilha – o próprio Brás, a irmã, Sabina, e o cunhado Cotrim,
escandalizado com a prodigalidade do sogro. Prudêncio, livre,
age como seus ex-patrões, conforme lembra o defunto autor das
Memórias: "desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou
um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de
mim recebera."
A cena é recordada por Brás, alinhavando-se às suas outras lembranças,
todas associadas ao ajuste da casa onde se reuniria com Virgília
longe da opinião pública. Esta, por sua vez, manifesta-se passivamente
no episódio do vergalho: freqüentadores do mercado de escravos
ou passantes de ocasião, como o próprio Cubas, aparecem na condição
de "ajuntamento" que chama a atenção do
caminhante, até então fechado em suas reflexões sobre o novo arranjo
de sua vida sentimental. O grupo não reage à violência com que
Prudêncio pune o preto, e, não fosse o fato de Brás conhecer o
ex-escravo, talvez ele também se mantivesse calado ou seguisse
adiante. O grupo, contudo, comenta o que acontece: como se fosse
uma entidade única, ele, nas palavras do narrador, "me
olhava espantado e cochichava as suas conjeturas", estas,
porém, não comunicadas ao leitor. Em vez delas, aparece a opinião
de Brás: "Exteriormente,
era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que
meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato,
fino, e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se
desfazer das pancadas recebidas, – transmitindo-as a outro."
A narração
deste acontecimento é possibilitada pelo fato de Brás Cubas ser,
nesse momento, um caminhante. Que ele constitui um flâneur, pelo menos de vez em quando, sugere-o
outro episódio páginas antes: o narrador e Virgília estão apaixonados,
passam juntos boa parte do tempo e provocam comentários. No capítulo
LXV, "Olheiros e escutas", Brás inventaria quantas pessoas
podiam estar cientes do que acontecia entre os dois amantes, comprometendo
a situação de ambos, especialmente a de Virgília, esposa de destacado
político carioca, Damião Lobo Neves. Enquanto reflete, a personagem
caminha, aparentemente sem rumo, só depois dando-se conta do que
inconscientemente faz:
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Ora,
enquanto eu pensava naquela gente, iam-me as pernas levando,
ruas abaixo, de modo que insensivelmente me achei à porta
do hotel Pharoux. De costume jantava aí; mas, não tendo deliberadamente
andado, nenhum merecimento da ação me cabe, e sim às pernas,
que a fizeram. Abençoadas pernas! E há quem vos trate com
desdém ou indiferença. Eu mesmo, até então, tinha-vos em má
conta, zangava-me quando vos fatigáveis, quando não podíeis
ir além de certo ponto, e me deixáveis com o desejo a avoaçar,
à semelhança de galinha atada pelos pés.Aquele
caso, porém, foi um raio de luz. Sim, pernas amigas, vós deixastes
à minha cabeça o trabalho de pensar em Virgília, e dissestes
uma à outra: – Ele precisa comer, são horas de jantar, vamos
levá-lo ao Pharoux; dividamos a consciência dele, uma parte
fique lá com a dama, tomemos nós a outra, para que ele vá
direito, não abalroe as gentes e as carroças, tire o chapéu
aos conhecidos, e finalmente chegue são e salvo ao hotel.
E cumpristes à risca o vosso propósito, amáveis pernas, o
que me obriga a imortalizar-vos nesta página. |
Similar movimento involuntário – e similar alheamento diante dos
fatos externos – colocam, logo depois, o narrador perante o passado
(quando Prudêncio fora seu escravo e vítima predileta) e o presente:
a ação do vergalho em pleno Valongo. O enredo do romance, nesse
ponto da narrativa, desenvolve-se em meados da década de 40 do século
XIX, quando as iniciativas visando à extinção do regime servil careciam
de contundência política. A Inglaterra pressiona então o governo
monárquico a suspender o comércio de africanos, ação que, de certo
modo, reforça o partido escravocrata, pois oferece-lhe uma bandeira
nacionalista, conforme o mesmo Memórias póstumas retrata por intermédio do Damasceno, personagem
secundária que, em incidente colocado pouco adiante, no capítulo
XCII, perora contra a interferência britânica sobre os negócios
do país. Mas que, como se pode verificar, não se mobiliza com a
mesma paixão contra os maus tratos dados aos escravos. Aliás, em
sua fala, evidencia-se a mistura do assunto, vital, na ocasião,
para o funcionamento da sociedade e política brasileira, a frivolidades
do cotidiano carioca:
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Opinava
por várias coisas, entre outras, o desenvolvimento do tráfico
dos africanos e a expulsão dos ingleses. Gostava muito de
teatro; logo que chegou foi ao teatro de S. Pedro, onde viu
um drama soberbo, a Maria
Joana, e uma comédia muito interessante, Kettly, ou a volta à Suíça.
....................................................................................................
Ah! ele estava ansioso por voltar ao Rio de Janeiro. Já havia
corrido a cidade toda, com umas saudades... Palavra! em alguns
lugares teve vontade de chorar. Mas não embarcaria mais. Enjoara
muito a bordo, como todos os outros passageiros, exceto um
inglês... Que os levasse o diabo os ingleses! Isto não ficava
direito sem irem todos eles barra fora. Que é que a Inglaterra
podia fazer-nos? Se ele encontrasse algumas pessoas de boa
vontade, era obra de uma noite a expulsão dos tais godemes... Graças a Deus, tinha patriotismo, – e batia no peito, –
o que não admirava porque era de família; descendia de um
antigo capitão-mor muito patriota. |
Memórias póstumas de Brás Cubas, cuja primeira edição, em
folhetim, data de 1880, foi publicado em livro em 1881, portanto,
à época em que vigorava o escravismo, embora os movimentos abolicionistas,
desde a década anterior, viessem crescendo em importância e abrangência.
O herói do romance, membro da elite fluminense, de passado ilustre
e pessoa de posses, pode-se dar ao luxo de refletir sobre o modo
como funciona a dialética do senhor e do servo, tanto por tê-la
praticado, quanto por verificar suas conseqüências sobre as pessoas,
uma delas sendo o Prudêncio. Por sua vez, como não precisa trabalhar,
em decorrência de sua fortuna de origem, ocupa seu tempo – anos
"tão vadios e tão vazios", segundo sua própria avaliação – com
o amor de Virgilia, não deixando de flanar pela cidade do Rio
de Janeiro, sozinho ou na companhia da amada.
Vê-se, pelo episódio em que assiste a seu ex-escravo surrar um
negro como ele mesmo, que a paisagem carioca que transparece não
é física, e sim moral. O Valongo, onde se localizava o mercado
de escravos, está marcado pela degradação, e é onde Brás tem um
insight sobre a torpeza
humana. Quando o cenário não lhe manda recados, ele deambula inconseqüentemente,
deixando-se tão-somente levar pelas pernas.
Flâneur pela metade, Brás não deixa, porém, de interpretar
o que vê, extraindo lições do cotidiano congelado em eventos significativos
da violência aplicada aos seres considerados inferiores; ou corporificado
em indivíduos representativos da indiferença perante uma sociedade
desigual, mesmo quando aparentemente comprometidos com causas
políticas de dimensão nacional, como o fútil Damasceno.
O flâneur por excelência
é, contudo, Aires, personagem e um dos narradores de Esaú e Jacó, romance de 1904. A composição
dessa figura importa alguns traços peculiares a Brás Cubas, como,
de um lado, o gosto por andar pela cidade e refletir. De outro,
a atração pela mulher do próximo, no caso, Natividade, esposa
do banqueiro Santos e mãe dos gêmeos Pedro e Paulo, que Aires
educa como se fossem seus filhos. A retidão moral diferencia-o,
porém, do protagonista das Memórias póstumas, talvez porque lhe falte a audácia de Brás Cubas.
Por isso, encanta Natividade, intromete-se no cotidiano da família
Santos, mas não avança até o adultério, nem ousa confessar a si
mesmo suas pretensões eróticas.
Vetada a aventura amorosa, Aires tem mais tempo para perambular
pela cidade, que examina com olhar de estrangeiro, depois de ter
vivido fora do país, em decorrência de sua atividade diplomática.
O narrador principal do romance comenta a propósito dessa personagem:
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[Aires] tinha sede de gente viva, estranha, qualquer
que fosse, alegre ou triste. Metia-se por bairros excêntricos,
trepava aos morros, ia às igrejas velhas, às ruas novas, à
Copacabana e à Tijuca. |
Dois episódios,
colocados muito perto um do outro na continuidade do romance,
indicam seu comportamento e sua atenção para os fatos do cotidiano,
ressaltando a violência contida neles, apesar de sua aparente
vulgaridade.
O primeiro ocorre logo após encontro fortuito entre Natividade
e o Conselheiro, na seqüência da emancipação dos escravos, em
maio de 1888. A mãe dos gêmeos está preocupada com o filho Paulo,
que, estudando em São Paulo, redigiu vigoroso artigo a favor da
libertação dos negros e contra o regime monárquico. No capítulo
XXXVIII, ela toma um bonde na direção da rua do Ouvidor e, ensimesmada,
nada percebe – "a vista da enseada não a distraiu, nem a gente que passava, nem os incidentes
da rua, nada" – a não ser, na altura do Catete, a
entrada de Aires no mesmo veículo. Os dois conversam sobre a atitude
do jovem republicano e, ao chegarem no largo da Carioca, despedem-se
e separam-se.
Agora desacompanhado, o Conselheiro depara-se com "um magote de gente parada". Sem se envolver, observa o que se passa:
dois policiais conduzem à prisão um homem acusado de roubar uma
carteira; o suposto ladrão protesta inocência, e a multidão o
apóia, com gritos. Os policiais reagem, um deles puxa a espada,
o grupo recua, e os dois homens da lei levam o prisioneiro. Aires
presencia o ocorrido e, a seguir, afasta-se; mais tarde, volta
a encontrar o grupo, que, agora, se refere ao "gatuno",
qualificação que sugere a aceitação, mesmo indiretamente, de sua
culpa.
A reação popular lembra-lhe fato ocorrido em Caracas, quando o
diplomata Aires, em casa de uma atriz, ouve "um clamor grande, vozes tumultuosas, vibrantes, crescentes...".
A companheira explica-lhe que deve ser o governo que caiu ou então
"o governo que sobe".
Em ambos os casos, Aires à distância assiste ao que se passa,
preferindo, como Brás Cubas, refletir a participar, embora o memorialista
póstumo ainda tenha tomado a iniciativa de sustar a punição que
Prudêncio infligia ao escravo. Mas a primeira reflexão de Aires
é menos cruel que a de Brás, pois, ao tentar entender a atitude
da multidão, primeiramente, tomando o partido do acusado contra
os policiais, depois julgando-o gatuno – comportamento, pois,
incoerente e oscilante –, atribui a mudança de opinião ao inconformismo
perante a autoridade:
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Ao cabo havia um fundo de justiça naquela manifestação
dupla e contraditória; foi o que ele pensou. Depois, imaginou
que a grita da multidão protestante era filha de um velho
instinto de resistência à autoridade. Advertiu que o homem,
uma vez criado, desobedeceu logo ao Criador, que aliás lhe
dera um paraíso para viver; mas não há paraíso que valha o
gosto da oposição. Que o homem se acostume às leis, vá; que
incline o colo à força e ao bel-prazer, vá também; é o que
se dá com a planta, quando sopra o vento. Mas que abençoe
a força e cumpra as leis sempre, sempre, sempre, é violar
a liberdade primitiva, a liberdade do velho Adão. |
A
associação, contudo, colocada logo a seguir, confere outra sentido
à reflexão: Aires lembra-se de outro tipo de clamor e aclamação
pública – a do povo diante da mudança de regime, lamentando a
queda de um ou celebrando a ascensão de outro. O fato político
é diferente, mas a reação, similar. O passante, que vê a paisagem
e contempla o comportamento do grupo, não se ilude com as atitudes
humanas: elas são reveladoras de suas fraquezas e vaidades, que
ele, distante, não compartilha. Assim, tal como cruza pelo cenário,
anônimo como o grupo, mas inteiramente individualista em seu ser
e pensar, ele atravessa os acontecimentos e não se ilude com seus
efeitos.
É conforme esse procedimento que ele avalia o fato histórico mais
importante retratado pelo livro, a saber, a passagem da monarquia
à república. A véspera do 15 de novembro, Aires expende-a na casa
dos amigos Santos, estando em questão o destino dos gêmeos, filhos
do casal, e de sua relação com Flora, "uma
inexplicável, conforme o Conselheiro. Retornando à
casa, Aires tem dificuldade para dormir, lê Cervantes e Erasmo,
adormece, mas acorda cedo, "às cinco horas e quarenta minutos", esclarece o narrador.
Como é hábito seu, sai a caminhar pela cidade, e faz o percurso
provavelmente mais longo do livro, conforme trajeto que o leva
ao Passeio Público, quando escuta menções à ação de Deodoro, depois
ao largo da Carioca e à rua do Ouvidor, onde fica sabendo da "revolução", e retornando enfim ao Catete, sua casa,
já de posse das informações principais. De novo, são as vozes
da rua que o colocam a par dos acontecimentos, comentando a substituição
de um regime político por outro, sem que qualquer uma das alternativas
o atraia em particular. Aires, conforme seu nome sugere, transita
pela cidade, registra sua linguagem física e moral; não constitui,
porém, seu porta-voz, nem seu juiz, sobretudo porque deseja chegar
a um sentido situado para além de sua epiderme, como aponta o
episódio subseqüente ao da prisão do suposto gatuno do largo da
Carioca.
Este ocorre na continuação da caminhada de Aires, iniciada após
despedir-se de Natividade, no bonde. Chegando à travessa de S.
Francisco, ele vê uma carroça parada, impedindo a passagem de
um carro. Junto com ele, outras pessoas assistem ao dono da carroça
bater no asno que a puxa, para fazê-lo sair dali. O animal apanha,
mas não se mexe, até que, enfim, "o burro preferiu a marcha à pancada, tirou
a carroça do lugar e foi andando."
Tal como
antes, Aires não se contenta em presenciar o fato, aliás costumeiro
na vida de uma cidade que começava a crescer e a lidar com a variedade
de meios de transporte. Ele, vendo "nos olhos redondos do animal [...] uma expressão profunda de ironia e paciência", supõe, no burro,
o seguinte pensamento:
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"Anda, patrão, atulha a carroça de carga para
ganhar o capim de que me alimentas. Vive de pé no chão para
comprar as minhas ferraduras. Nem por isso me impedirás que
te chame um nome feio, mas eu não te chamo nada; ficas sendo
sempre o meu querido patrão. Enquanto te esfalfas em ganhar
a vida, eu vou pensando que o teu domínio não vale muito,
uma vez que me não tiras a liberdade de teimar..." |
Aires interroga-se
sobre sua própria atitude, cogitando se tinha inventado o "monólogo
do burro", uma vez que só tinha observado os olhos do
animal. Acaba inferindo que a retina do bicho, ao exprimir ironia
e paciência, correspondia a seu discurso, e conclui com uma máxima
notável, que explica seu próprio procedimento: "O olho do homem serve de fotografia ao invisível,
como o ouvido serve de eco ao silêncio."
Esse episódio repete, de certo modo, o anterior, pois se verifica,
também aqui, o conflito entre acatar ou resistir à autoridade.
O burro faz, nesse caso, o papel da multidão, embora, dada sua
condição animal, não possa verbalizar sua posição. É mais evidente,
porém, a reprodução de outra cena, a de Prudêncio açoitando o
escravo, sob o olhar admirado de uma platéia. O burro corresponde
ao preto, tido, pelo dono, por vadio e bêbado, sendo, contudo,
dotado de um pensamento, o da resistência que, antes, em 1881,
talvez Machado não pudesse manifestar.
Em qualquer um dos casos, o pior papel é o de quem detém o poder
e a força – a autoridade. Ao olhar de qualquer um dos sujeitos
– o passante menos ou mais passivo, como Brás e, depois, Aires;
o grupo, que zomba dos policiais; a força de trabalho, seja esta
representada pelo escravo ou pelo animal de carga – a autoridade
é matéria de rejeição. O flâneur não confia nela, o povo a desacredita publicamente, a força
de trabalho, por mais reificada que apareça ao olhar de quem a
representa, não se submete inteiramente, guardando, mesmo que
seja para depois, a hora de se rebelar.
O passante, no relato machadiano, não é o homem da rebeldia, mesmo
porque, representado sobretudo por Brás Cubas e Aires, pertence
aos grupos dominantes. Contudo, mesmo comprometido com o status quo, é de Aires o olhar que fotografa o invisível, assim como
em seu ouvido ecoa o silêncio do que não é manifestado. Por essa
razão, pode devassar os eventos, conferir-lhes força de expressão
e traduzir suas contradições.
2. DA HUMANIDADE DE BRÁS
Brás Cubas e Aires testemunham
atos violentos cometidos pela autoridade, constituída esta de
modo legal – a polícia, por exemplo, que prende o gatuno atuando
no Largo da Carioca – ou legítimo. Este último é o caso dos proprietários,
pois tanto Prudêncio, senhor de um escravo que considera vadio
e alcoólatra, quanto o carroceiro, dono de um burro empacado,
julgam válidas suas ações e não são contestados pela multidão
que assiste a eles.
A aproximação dos episódios denuncia, desde logo, a reificação
do servo por seu amo, segundo a lógica do escravismo e de todas
as formas de opressão, resumidas no título de um dos primeiros
livros do italiano Primo Levi, É
isto um homem?
Somente a resposta negativa pode garantir a legitimidade do ato
de Prudêncio: seu escravo carece de humanidade, tanto quanto os
prisioneiros do campo de Auschwitz com que conviveu o jovem Primo
Levi, judeu e cativo dos nazistas até a libertação, em 1945. Por
isso, ambos se eqüivalem ao burro, só que esse até vai mais longe:
pelo menos interna ou imaginariamente, ele se rebela e resiste
à agressão de seu dono.
A conquista da humanidade, por sua vez, não resulta da sensibilização
dos indivíduos comprometidos com as duas cenas apresentadas por
Machado de Assis nos romances Memórias
póstumas de Brás Cubas e Esaú
e Jacó. Consiste, isso sim, na passagem da condição de servo
à de amo ou proprietário.
Note-se que, conforme a lógica exposta por Machado de Assis, mudar
de campo – migrando da situação de objeto de posse para a de sujeito
possuidor – significa igualmente conquistar o direito de exercer
o poder, o mando e a força. Ninguém contesta Prudêncio ou o carroceiro,
nem mesmo o populacho que tomou, por alguns momentos, o partido
do gatuno mal sucedido. Aires, o homem culto e viajado, também
não se destacou da multidão, contentando-se em manter-se na posição
de observador anônimo e repórter dos fatos. Brás Cubas, que segurou
o relho de Prudêncio, fê-lo por reconhecer o agressor e, com isso,
sustar seu ato, não por se revoltar contra a cena, já que, desde
a infância, fora educado na agressão à mesma pessoa.
A diferença entre eles é, pois, de origem, não de comportamento:
Brás nasceu de posse de sua humanidade, por isso, pôde fazer do
pequeno Prudêncio animal de montaria; o negro, da sua parte, teve
de conquistar o status
de humano, provavelmente a custa de ceder muito e mostrar-se leal
e submisso, razões de levaram o velho Cubas a alforriá-lo, ainda
que sob protestos de alguns de seus herdeiros. É o que o autoriza
a empregar a violência contra o outro, ainda não alçado à situação
de que agora goza; diante de seu ex-dono, porém, Prudêncio é de
novo servil, condescendendo em perdoar o acusado.Inserido, por
direito, desde o nascimento, à categoria dos humanos, Brás Cubas
pode, agora, dar-se ao luxo de pertencer a um terceiro grupo,
o mesmo onde se encontra Aires: o de testemunha contemplativa,
capaz de refletir e extrair conclusões sobre os episódios presenciados,
mas incapaz de agir ou tentar alterar a situação. Ocupam o papel
da consciência, mas trata-se de uma consciência muda, ainda que
não indiferente.
Esses traços talvez decorram do fato de pertencerem aos grupos
dominantes, Brás mais que Aires, pois o Conselheiro chegou à posição
que ocupa em parte por decorrência de sua educação e atuação junto
ao corpo diplomático brasileiro no Exterior. Brás, nem isso: a
passagem pela Europa, primeiramente como estudante em Coimbra,
depois como viajante pela Itália, não deixou rastros em sua personalidade,
porque nem ao menos registrou-as em sua memória, limitando-se
à narrativa dos fatos em relato póstumo. E Brás pertence à elite
brasileira mais tradicional, já que a família, ainda que de passado
não tão ilustre como desejaria, remonta ao período colonial, quando
enriqueceu e aproximou-se do poder metropolitano.
Os Cubas podem ter-se apartado aos poucos dos centros de poder,
afastamento de que é sintomático o gesto de Bento Cubas, pai do
narrador das Memórias póstumas,
gratificado porque recebeu, quando do falecimento da mãe do herói,
manifestação de pesar, enviado pelo Regente na ocasião encarregado
de governar a jovem nação brasileira. Como se verifica, seus contatos
ficaram limitados a telegramas de pêsames quando da morte de entes
queridos. Mas Bento Cubas sonha em retomar essa posição, incitando
o filho a dedicar-se à política, o que o protagonista faz, após
o término da relação adúltera com Virgília e a dissipação de seus
sonhos matrimoniais.
Brás Cubas corresponde, pois, ao modo como Machado entende e desenha
a classe dominante brasileira, hegemônica desde os tempos da colonização.
Nenhuma outra personagem de sua galeria de seres ficcionais –
nem mesmo os Santos, de Esaú
e Jacó, arrivistas graças à febre de ações dos anos 50 do
século XIX, ou os Santiagos, de onde provém Bentinho, o narrador
de Dom Casmurro – tem
tamanha identificação com a elite. E Brás é incapaz de agir, limitando-se
à contemplação do comportamento autoritário, interrompendo-o apenas
temporariamente, porque foi um praticante de atos similares na
infância, em decorrência de sua humanidade original.
Note-se que é essa humanidade que está sendo posta em questão
por Machado de Assis, nas cenas escolhidas. Contudo, o escritor
não reflete sobre ela de modo genérico, nem universaliza seu conceito.
Pelo contrário, radica-o no contexto
-
de uma classe social, alargada com a introdução de figuras como
Aires a esse grupo;
-
de uma história, a da colonização do território brasileiro, já
que os Cubas, se não descendem de um combatente da batalha de
Alcácer Quibir, como gostaria o velho Cubas, tem entre seus ancestrais
figuras atuantes nos séculos XVII e XVIII;
-
de um processo, o de reificar o sujeito sobre o qual o indivíduo
deseja exercer o poder de modo violento.
Por sua vez, não esconde que essa testemunha pode continuar praticando
ações torpes, como qualifica o narrador a propósito da cena com
Prudêncio, embora modere seus gestos e limite seu alcance. Episódio
representativo desse processo ocorre em outra curta, porém bastante
conhecida, cena de Memórias póstumas, aquela em que o protagonista
se depara com uma borboleta preta.
A cena acontece durante o período em que Brás está isolado na
Tijuca, de luto e melancólico em decorrência da morte de sua mãe.
Retornado da Europa ao ser informado pelo pai que a senhora Cubas
encontrava-se em estado terminal, o rapaz ainda tem tempo de revê-la
antes da agonia final. Depois, recolhe-se numa propriedade da
família, localizada num dos subúrbios da cidade.
Nesse curto período, Brás entrega-se à melancolia, identificando,
nas memórias, ser então que "começou a desabotoar em mim a hipocondria, essa flor amarela, solitária
e mórbida, de um cheiro inebriante e sutil." Mas não modifica seu modo de vida,
cultivando a ociosidade que já o caracterizava. Por isso, compara-se,
logo a seguir, a "uma borboleta vadia ou faminta", até descobrir que era vizinho de D.
Eusébia, senhora que conhecera na infância e que o convidava para
visitá-lo. Lá, é apresentado a Eugênia, filha de D. Eusébia, com
quem entretém curto namoro.
Durante essa primeira visita, a conversa é interrompida, quando
entra na varanda, onde estavam as personagens, uma borboleta preta.
D. Eugênia assusta-se, e Brás, com autoridade, espanta o inseto.
No outro dia, agora em seu quarto, encontra outra borboleta, que
a princípio ignora e que, depois, o incomoda; em razão disso,
busca uma toalha e mata o pequeno animal. Depois reflete a propósito
de seu ato:
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Deixei-me
estar a contemplar o cadáver, com alguma simpatia, confesso.
Imaginei que ela saíra do mato, almoçada e feliz. A manhã
era linda. Veio por ali fora, modesta e negra, espairecendo
as suas borboletices, sob a vasta cúpula de um céu azul, que
é sempre azul, para todas as asas. Passa pela minha janela,
entra e dá comigo. Suponho que nunca teria visto um homem;
não sabia, portanto, o que era o homem; descreveu infinitas
voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha
olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal.
Então disse consigo: "Este é provavelmente o inventor
das borboletas." A idéia subjugou-a, aterrou-a; mas o
medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo
de agradar ao seu criador era beijá-lo na testa, e beijou-me
na testa. Quando enxotada por mim, foi pousar na vidraça,
viu dali o retrato de meu pai, e não é impossível que descobrisse
meia verdade, a saber, que estava ali o pai do inventor das
borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia.
Pois um golpe de toalha rematou a aventura. Não lhe valeu
a imensidade azul, nem a alegria das flores, nem a pompa das
folhas verdes, contra uma toalha de rosto, dois palmos de
linho cru. Vejam como é bom ser superior às borboletas! Porque,
é justo dizê-lo, se ela fosse azul, ou cor de laranja, não
teria mais segura a vida; não era impossível que eu a atravessasse
com um alfinete, para recreio dos olhos. Não era. Esta última
idéia restituiu-me a consolação; uni o dedo grande ao polegar,
despedi um piparote e o cadáver caiu no jardim. |
A reflexão
de Brás parece falar por si só relativamente à humanidade do protagonista:
reside na superioridade reconhecida pelos que estão submetidos
a ele e na insensibilidade com que os trata. Se, aqui, o ser inferior
está corporificado pela borboleta, ente que facilmente pode simbolizar
fragilidade e frivolidade, em outras ocasiões, ele será representado
por pessoas, de preferência escravos e mulheres. Afinal, a cena
em que Brás sacrifica o inseto ocorre durante a estada na Tijuca,
quando seduz e abandona Eugênia, a "flor
da moita", por ser resultado da relação ilegítima de
D. Eusébia com o Vilaça, e "Vênus Manca", sobre a qual se pergunta
o narrador: "Por que
bonita, se coxa? por que coxa, se bonita?"
Nenhuma das situações retratadas nesse último episódio
foge ao cotidiano da classe dominante brasileira em pleno século
XIX: o refúgio na Tijuca por causa do luto, um curto namoro para
ajudar o tempo a passar, as conversas fúteis, um gesto de cavalheirismo
diante de suas senhoras aflitas. No fundo, porém, Machado está
revelando atos de desumanidade e manifestações de prepotência:
Brás pode conquistar a jovem bastarda e deixá-la, porque ambos
estão conscientes que a diferença de classes e de educação separa-os;
o narrador pode esmagar dois seres vivos – Eugênia e a alegoria
que a traduz, a inocente borboleta negra – porque sabe que eles
não terão meios de reagir ou protestar, sendo sacrificados, aliás,
quando apenas desejavam homenagear o poderoso macho, "inventor
das borboletas". Brás está ciente de seu poder incontestável,
que confirma a cada passo de sua trajetória, mesmo quando a melancolia
e a hipocondria o acometem e revelam suas fraquezas interiores.
O reconhecimento da humanidade de Brás reside na execução de atos
desumanos, tidos, porém, como corriqueiros e banais, tal como
procedem vários de seus parceiros e que ele testemunha, assim
como ocorrera a Aires, no transcurso de Esaú
e Jacó. Graças à apreensão da dialética entre o exercício
da força bruta e o hábito, Machado pôde expor seu funcionamento
e compreender como a aceitamos. Resta esperar que seu leitor,
isto é, cada um de nós, compreendamos como o processo funciona
e que lugar ocupamos, enquanto sujeitos, nessa série de atitudes
e encadeamentos.
ASSIS, Machado de. Memórias
póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Mérito, 1959. p. 218.
ASSIS, Machado de. Esaú
e Jacó. São Paulo: Mérito, 1959. p. 132.
Cf. LEVI, Primo. É
isto um homem? São Paulo: Rocco, 1997.
ASSIS, Machado de. Memórias
póstumas de Brás Cubas, p. 104.
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