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MACHADO DE ASSIS E O COTIDIANO DA VIOLÊNCIA

REVISITANDO DUAS CENAS DE BRÁS CUBAS E AIRES

Regina Zilberman

PUCRS

1. Lendo Machado de Assis à moda de Walter Benjamin

Provavelmente um dos capítulos mais célebres de Memórias póstumas de Brás Cubas é aquele em que, depois de "arranjar" a casinha na Gamboa, em que ele e Virgília desfrutarão, sem recriminações, seus amores, sob o olhar da fiel guardiã D. Plácida, o narrador segue pelo Valongo e se depara com um ajuntamento de pessoas. Trata-se do capítulo LXVIII, "O vergalho", que conta a sova aplicada por Prudêncio, ex-escravo de Brás Cubas e agora homem livre, num preto de sua propriedade.

Conhecendo o açoitador, Brás intercede em prol da vítima, e Prudêncio, embora se achando cheio de razão, perdoa o escravo que considera "vadio" e "bêbado". A cena, narrada por Brás Cubas, ata duas pontas de seu passado: Prudêncio tinha sido o moleque com quem o narrador brincara em criança, e, na época, o menino "punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria." [1] Depois fora libertado por seu pai, assunto mencionado quando os herdeiros de Bento Cubas discutem o espólio e a partilha – o próprio Brás, a irmã, Sabina, e o cunhado Cotrim, escandalizado com a prodigalidade do sogro. Prudêncio, livre, age como seus ex-patrões, conforme lembra o defunto autor das Memórias: "desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera." [2]

A cena é recordada por Brás, alinhavando-se às suas outras lembranças, todas associadas ao ajuste da casa onde se reuniria com Virgília longe da opinião pública. Esta, por sua vez, manifesta-se passivamente no episódio do vergalho: freqüentadores do mercado de escravos ou passantes de ocasião, como o próprio Cubas, aparecem na condição de "ajuntamento" que chama a atenção do caminhante, até então fechado em suas reflexões sobre o novo arranjo de sua vida sentimental. O grupo não reage à violência com que Prudêncio pune o preto, e, não fosse o fato de Brás conhecer o ex-escravo, talvez ele também se mantivesse calado ou seguisse adiante. O grupo, contudo, comenta o que acontece: como se fosse uma entidade única, ele, nas palavras do narrador, "me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas", estas, porém, não comunicadas ao leitor. Em vez delas, aparece a opinião de Brás: "Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, – transmitindo-as a outro." [3]

A narração deste acontecimento é possibilitada pelo fato de Brás Cubas ser, nesse momento, um caminhante. Que ele constitui um flâneur, pelo menos de vez em quando, sugere-o outro episódio páginas antes: o narrador e Virgília estão apaixonados, passam juntos boa parte do tempo e provocam comentários. No capítulo LXV, "Olheiros e escutas", Brás inventaria quantas pessoas podiam estar cientes do que acontecia entre os dois amantes, comprometendo a situação de ambos, especialmente a de Virgília, esposa de destacado político carioca, Damião Lobo Neves. Enquanto reflete, a personagem caminha, aparentemente sem rumo, só depois dando-se conta do que inconscientemente faz:

  Ora, enquanto eu pensava naquela gente, iam-me as pernas levando, ruas abaixo, de modo que insensivelmente me achei à porta do hotel Pharoux. De costume jantava aí; mas, não tendo deliberadamente andado, nenhum merecimento da ação me cabe, e sim às pernas, que a fizeram. Abençoadas pernas! E há quem vos trate com desdém ou indiferença. Eu mesmo, até então, tinha-vos em má conta, zangava-me quando vos fatigáveis, quando não podíeis ir além de certo ponto, e me deixáveis com o desejo a avoaçar, à semelhança de galinha atada pelos pés.Aquele caso, porém, foi um raio de luz. Sim, pernas amigas, vós deixastes à minha cabeça o trabalho de pensar em Virgília, e dissestes uma à outra: – Ele precisa comer, são horas de jantar, vamos levá-lo ao Pharoux; dividamos a consciência dele, uma parte fique lá com a dama, tomemos nós a outra, para que ele vá direito, não abalroe as gentes e as carroças, tire o chapéu aos conhecidos, e finalmente chegue são e salvo ao hotel. E cumpristes à risca o vosso propósito, amáveis pernas, o que me obriga a imortalizar-vos nesta página. [4]

Similar movimento involuntário – e similar alheamento diante dos fatos externos – colocam, logo depois, o narrador perante o passado (quando Prudêncio fora seu escravo e vítima predileta) e o presente: a ação do vergalho em pleno Valongo. O enredo do romance, nesse ponto da narrativa, desenvolve-se em meados da década de 40 do século XIX, quando as iniciativas visando à extinção do regime servil careciam de contundência política. A Inglaterra pressiona então o governo monárquico a suspender o comércio de africanos, ação que, de certo modo, reforça o partido escravocrata, pois oferece-lhe uma bandeira nacionalista, conforme o mesmo Memórias póstumas retrata por intermédio do Damasceno, personagem secundária que, em incidente colocado pouco adiante, no capítulo XCII, perora contra a interferência britânica sobre os negócios do país. Mas que, como se pode verificar, não se mobiliza com a mesma paixão contra os maus tratos dados aos escravos. Aliás, em sua fala, evidencia-se a mistura do assunto, vital, na ocasião, para o funcionamento da sociedade e política brasileira, a frivolidades do cotidiano carioca:

  Opinava por várias coisas, entre outras, o desenvolvimento do tráfico dos africanos e a expulsão dos ingleses. Gostava muito de teatro; logo que chegou foi ao teatro de S. Pedro, onde viu um drama soberbo, a Maria Joana, e uma comédia muito interessante, Kettly, ou a volta à Suíça.
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Ah! ele estava ansioso por voltar ao Rio de Janeiro. Já havia corrido a cidade toda, com umas saudades... Palavra! em alguns lugares teve vontade de chorar. Mas não embarcaria mais. Enjoara muito a bordo, como todos os outros passageiros, exceto um inglês... Que os levasse o diabo os ingleses! Isto não ficava direito sem irem todos eles barra fora. Que é que a Inglaterra podia fazer-nos? Se ele encontrasse algumas pessoas de boa vontade, era obra de uma noite a expulsão dos tais godemes... Graças a Deus, tinha patriotismo, – e batia no peito, – o que não admirava porque era de família; descendia de um antigo capitão-mor muito patriota. [5]


Memórias póstumas de Brás Cubas
, cuja primeira edição, em folhetim, data de 1880, foi publicado em livro em 1881, portanto, à época em que vigorava o escravismo, embora os movimentos abolicionistas, desde a década anterior, viessem crescendo em importância e abrangência. O herói do romance, membro da elite fluminense, de passado ilustre e pessoa de posses, pode-se dar ao luxo de refletir sobre o modo como funciona a dialética do senhor e do servo, tanto por tê-la praticado, quanto por verificar suas conseqüências sobre as pessoas, uma delas sendo o Prudêncio. Por sua vez, como não precisa trabalhar, em decorrência de sua fortuna de origem, ocupa seu tempo – anos "tão vadios e tão vazios", [6] segundo sua própria avaliação – com o amor de Virgilia, não deixando de flanar pela cidade do Rio de Janeiro, sozinho ou na companhia da amada.

Vê-se, pelo episódio em que assiste a seu ex-escravo surrar um negro como ele mesmo, que a paisagem carioca que transparece não é física, e sim moral. O Valongo, onde se localizava o mercado de escravos, está marcado pela degradação, e é onde Brás tem um insight sobre a torpeza humana. Quando o cenário não lhe manda recados, ele deambula inconseqüentemente, deixando-se tão-somente levar pelas pernas.

Flâneur
pela metade, Brás não deixa, porém, de interpretar o que vê, extraindo lições do cotidiano congelado em eventos significativos da violência aplicada aos seres considerados inferiores; ou corporificado em indivíduos representativos da indiferença perante uma sociedade desigual, mesmo quando aparentemente comprometidos com causas políticas de dimensão nacional, como o fútil Damasceno.

O flâneur por excelência é, contudo, Aires, personagem e um dos narradores de Esaú e Jacó, romance de 1904. A composição dessa figura importa alguns traços peculiares a Brás Cubas, como, de um lado, o gosto por andar pela cidade e refletir. De outro, a atração pela mulher do próximo, no caso, Natividade, esposa do banqueiro Santos e mãe dos gêmeos Pedro e Paulo, que Aires educa como se fossem seus filhos. A retidão moral diferencia-o, porém, do protagonista das Memórias póstumas, talvez porque lhe falte a audácia de Brás Cubas. Por isso, encanta Natividade, intromete-se no cotidiano da família Santos, mas não avança até o adultério, nem ousa confessar a si mesmo suas pretensões eróticas.

Vetada a aventura amorosa, Aires tem mais tempo para perambular pela cidade, que examina com olhar de estrangeiro, depois de ter vivido fora do país, em decorrência de sua atividade diplomática. O narrador principal do romance comenta a propósito dessa personagem:

  [Aires] tinha sede de gente viva, estranha, qualquer que fosse, alegre ou triste. Metia-se por bairros excêntricos, trepava aos morros, ia às igrejas velhas, às ruas novas, à Copacabana e à Tijuca. [7]

Dois episódios, colocados muito perto um do outro na continuidade do romance, indicam seu comportamento e sua atenção para os fatos do cotidiano, ressaltando a violência contida neles, apesar de sua aparente vulgaridade.
O primeiro ocorre logo após encontro fortuito entre Natividade e o Conselheiro, na seqüência da emancipação dos escravos, em maio de 1888. A mãe dos gêmeos está preocupada com o filho Paulo, que, estudando em São Paulo, redigiu vigoroso artigo a favor da libertação dos negros e contra o regime monárquico. No capítulo XXXVIII, ela toma um bonde na direção da rua do Ouvidor e, ensimesmada, nada percebe – "a vista da enseada não a distraiu, nem a gente que passava, nem os incidentes da rua, nada" [8] – a não ser, na altura do Catete, a entrada de Aires no mesmo veículo. Os dois conversam sobre a atitude do jovem republicano e, ao chegarem no largo da Carioca, despedem-se e separam-se.

Agora desacompanhado, o Conselheiro depara-se com "um magote de gente parada". [9] Sem se envolver, observa o que se passa: dois policiais conduzem à prisão um homem acusado de roubar uma carteira; o suposto ladrão protesta inocência, e a multidão o apóia, com gritos. Os policiais reagem, um deles puxa a espada, o grupo recua, e os dois homens da lei levam o prisioneiro. Aires presencia o ocorrido e, a seguir, afasta-se; mais tarde, volta a encontrar o grupo, que, agora, se refere ao "gatuno", qualificação que sugere a aceitação, mesmo indiretamente, de sua culpa.

A reação popular lembra-lhe fato ocorrido em Caracas, quando o diplomata Aires, em casa de uma atriz, ouve "um clamor grande, vozes tumultuosas, vibrantes, crescentes...". A companheira explica-lhe que deve ser o governo que caiu ou então "o governo que sobe". [10]

Em ambos os casos, Aires à distância assiste ao que se passa, preferindo, como Brás Cubas, refletir a participar, embora o memorialista póstumo ainda tenha tomado a iniciativa de sustar a punição que Prudêncio infligia ao escravo. Mas a primeira reflexão de Aires é menos cruel que a de Brás, pois, ao tentar entender a atitude da multidão, primeiramente, tomando o partido do acusado contra os policiais, depois julgando-o gatuno – comportamento, pois, incoerente e oscilante –, atribui a mudança de opinião ao inconformismo perante a autoridade:

  Ao cabo havia um fundo de justiça naquela manifestação dupla e contraditória; foi o que ele pensou. Depois, imaginou que a grita da multidão protestante era filha de um velho instinto de resistência à autoridade. Advertiu que o homem, uma vez criado, desobedeceu logo ao Criador, que aliás lhe dera um paraíso para viver; mas não há paraíso que valha o gosto da oposição. Que o homem se acostume às leis, vá; que incline o colo à força e ao bel-prazer, vá também; é o que se dá com a planta, quando sopra o vento. Mas que abençoe a força e cumpra as leis sempre, sempre, sempre, é violar a liberdade primitiva, a liberdade do velho Adão. [11]

 A associação, contudo, colocada logo a seguir, confere outra sentido à reflexão: Aires lembra-se de outro tipo de clamor e aclamação pública – a do povo diante da mudança de regime, lamentando a queda de um ou celebrando a ascensão de outro. O fato político é diferente, mas a reação, similar. O passante, que vê a paisagem e contempla o comportamento do grupo, não se ilude com as atitudes humanas: elas são reveladoras de suas fraquezas e vaidades, que ele, distante, não compartilha. Assim, tal como cruza pelo cenário, anônimo como o grupo, mas inteiramente individualista em seu ser e pensar, ele atravessa os acontecimentos e não se ilude com seus efeitos.

É conforme esse procedimento que ele avalia o fato histórico mais importante retratado pelo livro, a saber, a passagem da monarquia à república. A véspera do 15 de novembro, Aires expende-a na casa dos amigos Santos, estando em questão o destino dos gêmeos, filhos do casal, e de sua relação com Flora, "uma inexplicável, [12] conforme o Conselheiro. Retornando à casa, Aires tem dificuldade para dormir, lê Cervantes e Erasmo, adormece, mas acorda cedo, "às cinco horas e quarenta minutos", esclarece o narrador.

Como é hábito seu, sai a caminhar pela cidade, e faz o percurso provavelmente mais longo do livro, conforme trajeto que o leva ao Passeio Público, quando escuta menções à ação de Deodoro, depois ao largo da Carioca e à rua do Ouvidor, onde fica sabendo da "revolução", [13] e retornando enfim ao Catete, sua casa, já de posse das informações principais. De novo, são as vozes da rua que o colocam a par dos acontecimentos, comentando a substituição de um regime político por outro, sem que qualquer uma das alternativas o atraia em particular. Aires, conforme seu nome sugere, transita pela cidade, registra sua linguagem física e moral; não constitui, porém, seu porta-voz, nem seu juiz, sobretudo porque deseja chegar a um sentido situado para além de sua epiderme, como aponta o episódio subseqüente ao da prisão do suposto gatuno do largo da Carioca.

Este ocorre na continuação da caminhada de Aires, iniciada após despedir-se de Natividade, no bonde. Chegando à travessa de S. Francisco, ele vê uma carroça parada, impedindo a passagem de um carro. Junto com ele, outras pessoas assistem ao dono da carroça bater no asno que a puxa, para fazê-lo sair dali. O animal apanha, mas não se mexe, até que, enfim, "o burro preferiu a marcha à pancada, tirou a carroça do lugar e foi andando." [14]

Tal como antes, Aires não se contenta em presenciar o fato, aliás costumeiro na vida de uma cidade que começava a crescer e a lidar com a variedade de meios de transporte. Ele, vendo "nos olhos redondos do animal [...] uma expressão profunda de ironia e paciência", supõe, no burro, o seguinte pensamento:

  "Anda, patrão, atulha a carroça de carga para ganhar o capim de que me alimentas. Vive de pé no chão para comprar as minhas ferraduras. Nem por isso me impedirás que te chame um nome feio, mas eu não te chamo nada; ficas sendo sempre o meu querido patrão. Enquanto te esfalfas em ganhar a vida, eu vou pensando que o teu domínio não vale muito, uma vez que me não tiras a liberdade de teimar..." [15]

Aires interroga-se sobre sua própria atitude, cogitando se tinha inventado o "monólogo do burro", uma vez que só tinha observado os olhos do animal. Acaba inferindo que a retina do bicho, ao exprimir ironia e paciência, correspondia a seu discurso, e conclui com uma máxima notável, que explica seu próprio procedimento: "O olho do homem serve de fotografia ao invisível, como o ouvido serve de eco ao silêncio." [16]

Esse episódio repete, de certo modo, o anterior, pois se verifica, também aqui, o conflito entre acatar ou resistir à autoridade. O burro faz, nesse caso, o papel da multidão, embora, dada sua condição animal, não possa verbalizar sua posição. É mais evidente, porém, a reprodução de outra cena, a de Prudêncio açoitando o escravo, sob o olhar admirado de uma platéia. O burro corresponde ao preto, tido, pelo dono, por vadio e bêbado, sendo, contudo, dotado de um pensamento, o da resistência que, antes, em 1881, talvez Machado não pudesse manifestar.

Em qualquer um dos casos, o pior papel é o de quem detém o poder e a força – a autoridade. Ao olhar de qualquer um dos sujeitos – o passante menos ou mais passivo, como Brás e, depois, Aires; o grupo, que zomba dos policiais; a força de trabalho, seja esta representada pelo escravo ou pelo animal de carga – a autoridade é matéria de rejeição. O flâneur não confia nela, o povo a desacredita publicamente, a força de trabalho, por mais reificada que apareça ao olhar de quem a representa, não se submete inteiramente, guardando, mesmo que seja para depois, a hora de se rebelar.

O passante, no relato machadiano, não é o homem da rebeldia, mesmo porque, representado sobretudo por Brás Cubas e Aires, pertence aos grupos dominantes. Contudo, mesmo comprometido com o status quo, é de Aires o olhar que fotografa o invisível, assim como em seu ouvido ecoa o silêncio do que não é manifestado. Por essa razão, pode devassar os eventos, conferir-lhes força de expressão e traduzir suas contradições.  

2. DA HUMANIDADE DE BRÁS
Brás Cubas e Aires testemunham atos violentos cometidos pela autoridade, constituída esta de modo legal – a polícia, por exemplo, que prende o gatuno atuando no Largo da Carioca – ou legítimo. Este último é o caso dos proprietários, pois tanto Prudêncio, senhor de um escravo que considera vadio e alcoólatra, quanto o carroceiro, dono de um burro empacado, julgam válidas suas ações e não são contestados pela multidão que assiste a eles.

A aproximação dos episódios denuncia, desde logo, a reificação do servo por seu amo, segundo a lógica do escravismo e de todas as formas de opressão, resumidas no título de um dos primeiros livros do italiano Primo Levi, É isto um homem? [17]

Somente a resposta negativa pode garantir a legitimidade do ato de Prudêncio: seu escravo carece de humanidade, tanto quanto os prisioneiros do campo de Auschwitz com que conviveu o jovem Primo Levi, judeu e cativo dos nazistas até a libertação, em 1945. Por isso, ambos se eqüivalem ao burro, só que esse até vai mais longe: pelo menos interna ou imaginariamente, ele se rebela e resiste à agressão de seu dono.

A conquista da humanidade, por sua vez, não resulta da sensibilização dos indivíduos comprometidos com as duas cenas apresentadas por Machado de Assis nos romances Memórias póstumas de Brás Cubas e Esaú e Jacó. Consiste, isso sim, na passagem da condição de servo à de amo ou proprietário.

Note-se que, conforme a lógica exposta por Machado de Assis, mudar de campo – migrando da situação de objeto de posse para a de sujeito possuidor – significa igualmente conquistar o direito de exercer o poder, o mando e a força. Ninguém contesta Prudêncio ou o carroceiro, nem mesmo o populacho que tomou, por alguns momentos, o partido do gatuno mal sucedido. Aires, o homem culto e viajado, também não se destacou da multidão, contentando-se em manter-se na posição de observador anônimo e repórter dos fatos. Brás Cubas, que segurou o relho de Prudêncio, fê-lo por reconhecer o agressor e, com isso, sustar seu ato, não por se revoltar contra a cena, já que, desde a infância, fora educado na agressão à mesma pessoa.

A diferença entre eles é, pois, de origem, não de comportamento: Brás nasceu de posse de sua humanidade, por isso, pôde fazer do pequeno Prudêncio animal de montaria; o negro, da sua parte, teve de conquistar o status de humano, provavelmente a custa de ceder muito e mostrar-se leal e submisso, razões de levaram o velho Cubas a alforriá-lo, ainda que sob protestos de alguns de seus herdeiros. É o que o autoriza a empregar a violência contra o outro, ainda não alçado à situação de que agora goza; diante de seu ex-dono, porém, Prudêncio é de novo servil, condescendendo em perdoar o acusado.Inserido, por direito, desde o nascimento, à categoria dos humanos, Brás Cubas pode, agora, dar-se ao luxo de pertencer a um terceiro grupo, o mesmo onde se encontra Aires: o de testemunha contemplativa, capaz de refletir e extrair conclusões sobre os episódios presenciados, mas incapaz de agir ou tentar alterar a situação. Ocupam o papel da consciência, mas trata-se de uma consciência muda, ainda que não indiferente.

Esses traços talvez decorram do fato de pertencerem aos grupos dominantes, Brás mais que Aires, pois o Conselheiro chegou à posição que ocupa em parte por decorrência de sua educação e atuação junto ao corpo diplomático brasileiro no Exterior. Brás, nem isso: a passagem pela Europa, primeiramente como estudante em Coimbra, depois como viajante pela Itália, não deixou rastros em sua personalidade, porque nem ao menos registrou-as em sua memória, limitando-se à narrativa dos fatos em relato póstumo. E Brás pertence à elite brasileira mais tradicional, já que a família, ainda que de passado não tão ilustre como desejaria, remonta ao período colonial, quando enriqueceu e aproximou-se do poder metropolitano.

Os Cubas podem ter-se apartado aos poucos dos centros de poder, afastamento de que é sintomático o gesto de Bento Cubas, pai do narrador das Memórias póstumas, gratificado porque recebeu, quando do falecimento da mãe do herói, manifestação de pesar, enviado pelo Regente na ocasião encarregado de governar a jovem nação brasileira. Como se verifica, seus contatos ficaram limitados a telegramas de pêsames quando da morte de entes queridos. Mas Bento Cubas sonha em retomar essa posição, incitando o filho a dedicar-se à política, o que o protagonista faz, após o término da relação adúltera com Virgília e a dissipação de seus sonhos matrimoniais.

Brás Cubas corresponde, pois, ao modo como Machado entende e desenha a classe dominante brasileira, hegemônica desde os tempos da colonização. Nenhuma outra personagem de sua galeria de seres ficcionais – nem mesmo os Santos, de Esaú e Jacó, arrivistas graças à febre de ações dos anos 50 do século XIX, ou os Santiagos, de onde provém Bentinho, o narrador de Dom Casmurro – tem tamanha identificação com a elite. E Brás é incapaz de agir, limitando-se à contemplação do comportamento autoritário, interrompendo-o apenas temporariamente, porque foi um praticante de atos similares na infância, em decorrência de sua humanidade original.

Note-se que é essa humanidade que está sendo posta em questão por Machado de Assis, nas cenas escolhidas. Contudo, o escritor não reflete sobre ela de modo genérico, nem universaliza seu conceito. Pelo contrário, radica-o no contexto
-      de uma classe social, alargada com a introdução de figuras como Aires a esse grupo;
-      de uma história, a da colonização do território brasileiro, já que os Cubas, se não descendem de um combatente da batalha de Alcácer Quibir, como gostaria o velho Cubas, tem entre seus ancestrais figuras atuantes nos séculos XVII e XVIII;
-      de um processo, o de reificar o sujeito sobre o qual o indivíduo deseja exercer o poder de modo violento.

Por sua vez, não esconde que essa testemunha pode continuar praticando ações torpes, como qualifica o narrador a propósito da cena com Prudêncio, embora modere seus gestos e limite seu alcance. Episódio representativo desse processo ocorre em outra curta, porém bastante conhecida, cena de Memórias póstumas, aquela em que o protagonista se depara com uma borboleta preta.

A cena acontece durante o período em que Brás está isolado na Tijuca, de luto e melancólico em decorrência da morte de sua mãe. Retornado da Europa ao ser informado pelo pai que a senhora Cubas encontrava-se em estado terminal, o rapaz ainda tem tempo de revê-la antes da agonia final. Depois, recolhe-se numa propriedade da família, localizada num dos subúrbios da cidade.

Nesse curto período, Brás entrega-se à melancolia, identificando, nas memórias, ser então que "começou a desabotoar em mim a hipocondria, essa flor amarela, solitária e mórbida, de um cheiro inebriante e sutil." [18]  Mas não modifica seu modo de vida, cultivando a ociosidade que já o caracterizava. Por isso, compara-se, logo a seguir, a "uma borboleta vadia ou faminta", [19] até descobrir que era vizinho de D. Eusébia, senhora que conhecera na infância e que o convidava para visitá-lo. Lá, é apresentado a Eugênia, filha de D. Eusébia, com quem entretém curto namoro.

Durante essa primeira visita, a conversa é interrompida, quando entra na varanda, onde estavam as personagens, uma borboleta preta. D. Eugênia assusta-se, e Brás, com autoridade, espanta o inseto. No outro dia, agora em seu quarto, encontra outra borboleta, que a princípio ignora e que, depois, o incomoda; em razão disso, busca uma toalha e mata o pequeno animal. Depois reflete a propósito de seu ato:

  Deixei-me estar a contemplar o cadáver, com alguma simpatia, confesso. Imaginei que ela saíra do mato, almoçada e feliz. A manhã era linda. Veio por ali fora, modesta e negra, espairecendo as suas borboletices, sob a vasta cúpula de um céu azul, que é sempre azul, para todas as asas. Passa pela minha janela, entra e dá comigo. Suponho que nunca teria visto um homem; não sabia, portanto, o que era o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então disse consigo: "Este é provavelmente o inventor das borboletas." A idéia subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu criador era beijá-lo na testa, e beijou-me na testa. Quando enxotada por mim, foi pousar na vidraça, viu dali o retrato de meu pai, e não é impossível que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o pai do inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia.

Pois um golpe de toalha rematou a aventura. Não lhe valeu a imensidade azul, nem a alegria das flores, nem a pompa das folhas verdes, contra uma toalha de rosto, dois palmos de linho cru. Vejam como é bom ser superior às borboletas! Porque, é justo dizê-lo, se ela fosse azul, ou cor de laranja, não teria mais segura a vida; não era impossível que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio dos olhos. Não era. Esta última idéia restituiu-me a consolação; uni o dedo grande ao polegar, despedi um piparote e o cadáver caiu no jardim. [20]

A reflexão de Brás parece falar por si só relativamente à humanidade do protagonista: reside na superioridade reconhecida pelos que estão submetidos a ele e na insensibilidade com que os trata. Se, aqui, o ser inferior está corporificado pela borboleta, ente que facilmente pode simbolizar fragilidade e frivolidade, em outras ocasiões, ele será representado por pessoas, de preferência escravos e mulheres. Afinal, a cena em que Brás sacrifica o inseto ocorre durante a estada na Tijuca, quando seduz e abandona Eugênia, a "flor da moita", por ser resultado da relação ilegítima de D. Eusébia com o Vilaça, e "Vênus Manca", sobre a qual se pergunta o narrador: "Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita?" [21]    

Nenhuma das situações retratadas nesse último episódio foge ao cotidiano da classe dominante brasileira em pleno século XIX: o refúgio na Tijuca por causa do luto, um curto namoro para ajudar o tempo a passar, as conversas fúteis, um gesto de cavalheirismo diante de suas senhoras aflitas. No fundo, porém, Machado está revelando atos de desumanidade e manifestações de prepotência: Brás pode conquistar a jovem bastarda e deixá-la, porque ambos estão conscientes que a diferença de classes e de educação separa-os; o narrador pode esmagar dois seres vivos – Eugênia e a alegoria que a traduz, a inocente borboleta negra – porque sabe que eles não terão meios de reagir ou protestar, sendo sacrificados, aliás, quando apenas desejavam homenagear o poderoso macho, "inventor das borboletas". Brás está ciente de seu poder incontestável, que confirma a cada passo de sua trajetória, mesmo quando a melancolia e a hipocondria o acometem e revelam suas fraquezas interiores.

O reconhecimento da humanidade de Brás reside na execução de atos desumanos, tidos, porém, como corriqueiros e banais, tal como procedem vários de seus parceiros e que ele testemunha, assim como ocorrera a Aires, no transcurso de Esaú e Jacó. Graças à apreensão da dialética entre o exercício da força bruta e o hábito, Machado pôde expor seu funcionamento e compreender como a aceitamos. Resta esperar que seu leitor, isto é, cada um de nós, compreendamos como o processo funciona e que lugar ocupamos, enquanto sujeitos, nessa série de atitudes e encadeamentos.



[1] ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Mérito, 1959. p. 218.
[2] Id. ibid.
[3] Id. ibid.
[4] Id. p. 212-213.
[5] Id. p. 279-280.
[6] Id. p. 327.
[7] ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. São Paulo: Mérito, 1959. p. 132.
[8] Id. p. 147.
[9] Id. p. 155.
[10] Id. p. 159.
[11] Id. p. 157.
[12] Id. p. 237.
[13] p. 243.
[14] Id. p. 163.
[15] Id. p. 163.
[16] Id. p. 163-164.
[17] Cf. LEVI, Primo. É isto um homem? São Paulo: Rocco, 1997.
[18] ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 104.
[19] Idem.
[20] p. 121-122.
[21] p.  126.


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