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LITERATURA, TESTEMUNHO E POTÊNCIA DE CRIAÇÃO


Profª. Dra. Cláudia Perrone (UFSM)


As grandes catástrofes históricas podem gerar ou o silêncio ou a falsificação ou o testemunho. Essa terceira possibilidade é duplamente valorizada. Ela oferece um testemunho público que permite a irrupção na cena social de uma verdade indecidível ou interdita e, portanto, tem uma função catártica. O autor do testemunho  liberta-se do peso do horror.

Para o sujeito capaz de escrever a via da escrita, no entanto, torna-se perigosa. Ele pode morrer por certas coisas que jamais foram ditas. Mas pode morrer também pelas coisas ditas, pelo mal dito, mal ouvido. Talvez existam bons e maus encontros, bons e maus modos de dizer, bons e maus interlocutores, escritas salvadoras e escritas fatais. Existem escritas que tornam possível tolerar o intolerável e o pensar para não morrer. Mas sendo assim,  poderíamos pensar que a palavra não salva ?

É possível morrer por dizer a catástrofe ? O retorno dos afetos pode ser fatal ? A relação entre morte e escrita é um problema para os autores-sobreviventes. Sarah Kofman e Primo Levi se suicidaram. Robert Antelme e Jorge Semprun não. Outra modo de colocar o problema pode ser o seguinte: como dizer a catástrofe sem morrer ? Em outras palavras: estamos diante de questão de como manter uma elaboração face ao horror.

Primo Levi  jogou-se da escada em Turim no dia 11 de abril de 1987, exatamente no aniversário da sua elaboração. Não foi em uma data qualquer. E o seu suicídio foi a culminância de uma vida ativa e de criatividade intensa. A escrita de Primo Levi sem pre foi entendida como bem sucedida por não sucumbir a fascinação mortífera da experiência do horror. E, com lucidez, ele sempre enfatizou a dimensão terapêutica de seu trabalho literário. Como entender o seu suicídio ? Se ele sobreviveu graças ao poder de escrever, terá sido vítima em sua vida desse mesmo poder ? Poderíamos entender a sua obra como uma transversalidade de escritos, como uma viagem iniciática de retorno ao campo de concentração, depois de ser desviado, depois de ter se afastado.  Ele foi por certo tempo escritor de ficção científica.

Primo Levi também foi o defensor de uma estética racionalista . Ele era absolutamente contra  as formas que cultivassem a obscuridade. Rejeitava as obras puramente expressivas. Afirmava Ter ambições pedagógicas: a escrita serve para dissipar as ambigüidades. Ainda que a história contada seja terrível, ela deve ser apresentada de modo claro, analítico, em estilo quase clínico, privada de qualquer paixão. Privada de paixão, o que resta de verídico em uma história ?

Podemos pensar que essa foi uma estratégia protetora, uma censura ditada pela angústia, um modo de colocar a distância o horror, um modo retrospectivo de justificar sua morte. Certamente foi uma estratégia de  manter a distância um afeto insuportável que, ao mesmo tempo, anuncia o retorno de uma experiência atroz. Retorno esse que atravessa a obra de Primo Levi como um fio vermelho, que ele retarda, mas sabe que é prisioneiro dessa experiência que se faz especialmente nos seus últimos escritos.

A captura por essa experiência não se faz sem conseqüências. Levi diz o seguinte sobre sua condição de sobrevivente: fomos favorecidos pela sorte, temos que contar não o nosso destino, mas o dos outros. É um discurso por conta dos terceiros. Falamos de um lugar de delegação. Levi tenta desvalorizar a palavra de testemunho do qual faz parte. Seus escrúpulos  são excessivos. Nenhum vivo poderia contar o momento da morte. A única narrativa possível é a sua, a de sobrevivente. No fundo, Levi coloca-se como um autor de uma narrativa superficial, uma narrativa exterior ao verdadeiro sofrimento e a morte de seus companheiros inscrito nele. O encontro com Kafka , nesse sentido, foi revelador.

Levi foi o  tradutor de O Castelo de Kafka em 1983. Ele compreendeu a sedução que existe no alemão analítico e conciso de Kafka. O rigor da escrita de Kafka está a serviço de um discurso equívoco, de um universo carregado de solicitações obscuras. Primo Levi coloca-se em uma situação de perigo ao traduzir Kafka.  Levi diz que conscientemente ou não tentou passar em seus escritos da obscuridade para a clareza.  Tornou-se uma espécie de filtro, uma bomba que aspirou impurezas, purificou e tornou estéril. Kafka fez uma química ao inverso. Ele desapareceu nas profundezas, não filtrou jamais. O leitor sente-se poluído. Seus escritos são cheios de germes. Levi debate-se. Abandona a linguagem de químico para a de um biólogo. A escrita de Kafka permite detalhar os miasmas, o poder contaminante e doloroso que se infiltra e termina com as defesas. Ele se revela monstruoso, isto é, impróprio para a companhia de outros homens.

A escrita de Kafka revelou-se como o instrumento para uma pedagogia da culpabilidade. Assim resumido, o percurso de Primo Levi pode ser apresentado como o o de uma escrita analítica que torna-se uma escrita de riscos. A primeira baliza de Primo Levi foi a história do passado a partir do narrador de um desastre, a partir da situação paradigmática de um narrador sobrevivente implorando por uma escuta e um público desinteressado nessa narrativa dolorosa. Mas está é a evocação ainda distante da experiência terrível. O segundo momento , a partir do Processo de Kafka, há a radicalização do tema da culpabilidade sem origem. O sr. K é culpado, mas jamais saberá do que.

Sarah Kofman também é uma sobrevivente. Ela entra em grave depressão e se suicida após finalizar uma narrativa autobiográfica. Novamente temos a ligação entre o dito  e a morte. Mas a seqüência pode ser inversa: a depressâo determinou que ela escrevesse a autobiografia.

Sarah Kofman  escreveu sobre filosofia, trbalhou com a estética, com análises de obras figurativas onde a angústia se exprime. Também se consagrou pelas biografias intelectuais (Hoffman, Oscar Wilde, Nietzsche). Ela criou a estratégia de escrever “heterobiografias”, de escrever com o corpo textual do outro. E também fez o registro brutal e direto de fragmentos autobiográficos, de acontecimentos isolados, como se procurasse sempre diferir nos seus escritos. Ela levou quase trinta anos para chegar nos seus fragmentos biográficos.

O itinerário de Sarah Kofman pode ser dividido em quatro grandes períodos. Entre 1963 e 1976 ela escreve A infância da arte, uma reflexão sobre a posteriori freudiano, sobre a figuração e suas estratégias para tornar tolerável o intolerável. Nos anos 70/80, ela se interroga com questões como: podemos dizer certas experiências ? Poderíamos dizer sem falsificar ? Quais as modalidades de recepção de tal dizer ? Como Primo Levi, Kofman ressurge como representante dos afetos reduzidos ao silêncio e a culpabilidade. O retorno da culpabilidade, que remonta ao reprimido, ao negado são, para ela, o dito pleno. Sarah conta a experiência de sua análise, que realmente começou, no seu entender, quando a palavra “eu” já não podia mais ser dita, quando o interdito e o discurso censurado se instalaram. Mas o silêncio do analista é insuportável. Temos aqui o mesmo tema de Primo Levi: a resposta ausente, o silêncio insuportável, a catarse que não resolve nada. Em 1983 Sarah Kofman escreve uma narrativa  autobiográfica que se apresenta como uma longa reflexão sobre as formas medievais da “mala hora”, discorre sobre a raiva e a angústia. Entre 1984 e 1994,  ela decide trabalhar na sua autobiografia. Conta suas dificuldades num pequeno diário, Palavras Sufocadas. Ela está em posição de falar , sem poder falar e ser entendida. Esse é o dilema.

Encerrado a pequena viagem na biografia destes dois escritores é possível apontar alguns elementos comuns:

1.      a questão da distância ou proximidade que permite os registros da escrita adotada;

2.      estratégias que permitem um dizer indireto, apoiado no comentário ou na citação e que apontam para o perigo da exposição ao testemunho direto e o retorno da culpabilidade;

3.      manifestação de uma vergonha obtusa, lancinante.

Fica a questão: existe um modo de se esquivar ou atenuar tais perigos ? Eles são os mesmos para todos ?

             
Os dois autores fizeram a passagem da distância à proximidade, do comentário, da citação, da tradução com certos guias para falar do horror ou da culpabilidade. São textos ambíguos, porque praticam a comunicação indireta própria do registro visual. São textos que convidam ao deciframento do enigma. Sarah Kofman e Primo Levi falam de uma culpa sem origem.
              

A passagem pelo texto-tutor permitiu a passagem para um dizer indireto, ofereu um intervalo protetor. Mas como a experiência da catástrofe pode ser abordada frontalmente ? Esta é a questão do testemunho.
               

Trata-se não somente de “fazer saber” (como um publicitário), também não é apenas uma reconstituição dos fatos (como um historiador), mas de trazer para o espaço público a primeira pessoa. Não é um discurso meramente testemunhal (Eu vi), mas um discurso de engajamento ao evento. O retorno da memória na escrita em primeira pessoa  é acompanhado de um retorno da culpabilidade, de um permanecer vivo (o que eu cedi para permanecer vivo, terei me tornado igual?), quais foram as escolhas para permanecer vivo ? É possível retornar a inocência diante de tal desumanização ? É possível negociar com a vergonha ? O sobrevivente é exposto a um duplo perigo: ele revive sua culpabilidade em relação as vítimas e se expõe ao julgamento dos destinatários da escrita. A imensa simpatia do público não impede que eles sejam vistos como juízes potenciais. E o escritor-testemunha se descobre absorvido pelo monstruoso que ele carrega.


O discurso da testemunha não é o mesmo de uma garrafa jogada ao mar, ele implica interlocutores muito precisos. Ele pede um interlocutor capaz de conceder o perdão, capaz de receber a  narrativa em nome dos que foram mortos. O discurso da vergonha pressupõe um interlocutor privilegiado que pode reconhecer  a situação humilhante em face da qual é possível restabelecer a dignidade. Mas será que tal interlocutor existe ? Talvez precise advir, precise ser inventado. O discurso psicanalítico, segundo Sarah Kofman, a deixou doente com sua neutralidade distante. O discurso filosófico é capz de ouvir, mas nada pode fazer com o silêncio.
                

“A literatura aparece, então, como empreendimento de saúde: não que o escritor tenha forçosamente uma saúde de ferro, mas ele goza de frágil saúde irresistível, que provém do fato de ter visto e ouvido coisas demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja passagem o esgota, dando-lhe , contudo, devires que uma gorda saúde dominante tornaria impossíveis. Do que viu e ouviu, o escritor regressa com os olhos vermelhos, com os tímpanos perfurados. Qual saúde bastaria para libertar a vida em toda a parte onde esteja aprisionada pelo homem e no homem, pelos organismos e gêneros e no interior deles ? A saúde como a literatura, como a escrita, consiste em incventar um povo que falta. Compete à função fabuladora inventar um povo.” Gilles Deleuze Crítica e clínica
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