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LITERATURA, MEMÓRIA E IDENTIDADE NOS PAÍSES DO CONE SUL

Neiva Fernandes [1]

UNIJUÍ

No Brasil costuma-se tratar a literatura latino-americana como um caso a parte, diferenciando-a da literatura brasileira e referindo-se a ela como especificamente produzida nos países de fala espanhola. Talvez por isso, explique-se o distanciamento e quase total desconhecimento por nossa parte de sua rica e vasta coletânea de autores já consagrados há muito, tanto na Europa como nos Estados Unidos, afora os mais conhecidos como García Márquez, Vargas Llosa, Cortázar e Borges, por exemplo.

O termo, latino-americano, embora imposto pelo europeu, e mais tarde reforçado pelos norte-americanos, calou fundo enquanto conceito discriminador e negativo da nossa própria condição humana quando confrontada com outros povos. No entanto, o olhar do estrangeiro se por um lado nos discrimina, por outro, nos coloca no mesmo patamar de subdesenvolvimento. Nesse caso, somos todos então, latino-americanos, quer queiramos ou não.

Se somos vistos e classificados homogeneamente, em nosso país costumamos diferenciar o que é latino-americano do que é brasileiro, dando as costas aos países de fala hispânica e deliberadamente ignorando seus problemas e misérias que, afinal de contas, são as nossas também; apenas mudam-se os atores e os idiomas, mas as causas são as mesmas.

A explicação para este distanciamento encontra-se numa data significativa para nós todos, latino-americanos: 12 de outubro. Nesse dia, em 1492, Cristóvão Colombo chegou ao que hoje é a República Dominicana, desencadeando no mundo ocidental daquela época, o maior acontecimento social, político e econômico que viria mudar radicalmente a própria História Moderna. E os hispano-americanos (não apenas os da alta cultura, por assim dizer, mas inclusive os remanescentes de tribos indígenas dizimadas por Hernán Cortez na época da Conquista), trazem, em si, uma consciência muito forte do que tal fato significa. Nós, não; à exceção daqueles que transitam na academia, o povo brasileiro desconhece suas origens e a causa primeira de seus problemas. No Brasil, nesse dia, homenageia-se nossa santa padroeira e nossas crianças, sem nenhuma menção ao descobrimento da América. Nos países hispano-americanos e, inclusive na Espanha, do outro lado do Atlântico, essa data é lembrada com um feriado como "El día de América" numa clara alusão não só aos benefícios decorrentes do descobrimento, mas principalmente aos eventos violentos e traumáticos que acompanharam esta façanha e suas permanentes conseqüências. Tais comemorações colocam em evidência uma aguda consciência social do que realmente significa ser latino-americano e serve para a reflexão e o questionamento, sobretudo, para manter viva a memória de um feito histórico que deu origem não apenas ao progresso, mas que também perpetuou a espoliação, a dependência e o subdesenvolvimento impostos pelos regimes autoritários vigentes até metade dos anos 80.

Infelizmente, muita coisa nos separa, irmãos de um mesmo mundo; inclusive a classificação que damos às literaturas hispano-americanas. Nesses termos, as vemos como fantásticas e mágicas e na maioria das vezes as analisamos somente com este olhar, esquecendo-nos que muitas de nossas obras também fazem parte desse universo maravilhoso que compõe a América Latina. De fato, é indiscutível que toda a produção literária de nosso continente, "neste mundo em que tudo pode acontecer", [2] dada a diversidade temática, o exotismo inegável de nossa natureza e a nossa própria origem, suscite o desejo de entender o inexplicável e o sentimento de hesitação, decorrentes de leituras tais como as de Grande sertão: veredas, El reino de este mundo ou ainda, Cien años de soledad.

Embora saibamos que esta foi uma escolha e um recurso utilizado pelos autores para denunciar a sua realidade, até mesmo porque é inquestionável a presença do fantástico e do maravilhoso nesta literatura, devido à nossa histórica formação continental e que em muitos casos, também serviu para enganar a censura (e todo o censor é burro); não se pode ignorar que, além dessas características, uma gama de abordagens que nem sempre se apóiam nestes aspectos se nos apresenta como uma das alternativas para entendermos um continente cuja existência sempre esteve atrelado às verdades convencionais.

A exemplo disso, uma parcela significativa da literatura foge a esta  classificação por entender que nem o fantástico e tampouco o realismo mágico dariam conta de uma posição explicitamente denunciatória e engajada, embora também estes possam servir ao mesmo propósito.

Deve-se à literatura comprometida, o trato de questões relacionadas ao autoritarismo, a memória de fatos pertinentes a ele, tais como a violência aceita e silenciada por uma parcela da população, "os não torturáveis das classes altas" e a ação de grupos revolucionários ou manifestações livres de repúdio às ditaduras, "os torturáveis das classes baixas" segundo Hobsbawm. [3] Destacando-o, na maioria das vezes, como o tema central das obras literárias em cujo espaço discursivo constrói-se a memória e repensa-se o mundo continental a partir de seu particular mal-estar; como um elo entre o presente  e o passado e buscando neste as lições que possam nos servir daí por diante. Segundo Todorov, no seu livro Memória do mal, tentação do bem [4] , "a memória do passado pode ser-nos útil se permitir o advento da justiça" e, mais adiante ele conclui: "(...) o passado poderá contribuir tanto para a constituição da identidade individual ou coletiva, quanto para a formação de nossos valores, ideais, princípios."

Naturalmente, estes valores são indiscutíveis no próprio sentido da humanidade, mas se revestem de uma conotação mais atroz quando se trata da América Latina. Portanto, é aceitável que vejamos esta literatura com um enfoque muito particular que se aproxime mais da realidade do que o próprio realismo, seja mágico ou não, embora muitos entendam esta visão como ultrapassada ou até mesmo, paranóica. O que, de certa forma, confirma o esquecimento a que foram relegadas as obras a respeito da nossa recente ditadura dentro da literatura brasileira, posto que reconhecidamente não faz parte de nossa natureza a manutenção da memória.

Mas, a despeito da indiferença, a narrativa produzida nos países hispano-americanos, e, em especial a dos que compõem o Cone Sul, não proporciona nenhuma chance ao esquecimento do que passou, pondo por terra qualquer iniciativa del olvido. Segundo Dalcastagné, [5] a leitura de obras que tratam dessa temática "pode ser, no mínimo, um bom exercício para a memória - mesmo para aqueles que não estiveram lá, aqueles que só vieram depois, herdeiros da dor." Em vista disso, a perpetuação da memória associa-se à realidade da América Latina por esta apresentar uma história que se assenta na violência constante desde a sua conquista. Ela é a base de uma representação literária cujo enfoque tem sido ao longo dos anos, o mapeamento do passado, nem tão distante assim, e a análise do presente vinculado ao mesmo. Considerando-se que a segunda metade do século que passou nos revela um balanço "trágico, pesimista y entristecedor", segundo Juan Carlos Onetti, que não se refere apenas aos próprios fatos históricos, mas também à produção literária. Esta acolheu para si, a maior parte dos conflitos sócio políticos que afetam a todos, inclusive os escritores latino-americanos. O discurso literário, a partir de então, passa a tratar a realidade como algo concreto. Deveras, não é mais possível deixá-la somente na ficção do realismo tal como o conhecemos, mas aproxima-se mais do que se entende como realismo social, herdado da escola marxista, e que transposto para nosso continente, atua como desorganizador da autoridade e na liberação das vozes alternativas das personagens comuns que vivem e sofrem as conseqüências de um momento de extrema convulsão social, recorrendo a uma literatura que é ao mesmo tempo de resistência ao autoritarismo e de comprometimento, como resultado das mudanças radicais ocorridas na América Hispânica. As obras "se hacen en muchos casos, portavoces de un discurso reivindicativo, documentalista, 'artesanal', a través del cual se identifica un determinado agente social, se exhibe una problemática específica, se canalizan reclamos, frustraciones y expectativas, articulando de una manera nueva, ficción e historia, imaginación y verdad" [6] .

Neste sentido, problematizar a realidade dos países do Cone Sul por intermédio da palavra escrita tem sido uma das tarefas dos escritores; pelo menos a partir da segunda metade do século XX, esta iniciativa vem crescendo, numa tentativa de produzir sentido em meio ao caos instalado pelos regimes autoritários. Levando-se em conta que América Latina nunca vivenciou um ideal de bem-estar, sua literatura, de um modo geral, tem registrado a idéia de que não houve nenhuma trégua desde Colombo até a contemporaneidade, entre o homem e a possibilidade de constituir-se como sujeito e de agir segundo a sua ética. A reflexão de Adorno [7] enfatiza que a condição humana encontra-se vinculada ao comprometimento com a realidade, pois toma para si, uma parte da responsabilidade de chamar a atenção para um estado permanente de destituição do homem enquanto sujeito: "Ni somos meros espectadores de la historia mundial  que pueden moverse más o menos impunemente dentro de sus grandes espacios, ni la propia historia del mundo, cuyo ritmo se parece cada vez más al de la catástrofe, parece otorgar a sus sujetos una época en la que las cosas pudieran ir mejor por si mismas."  Nesses termos, comprometimento e representação da memória originada em uma experiência vital e traumática, agrega-se ao resgate do passado através da ficção, elaborando um discurso subversivo à ordem vigente e uma crítica contundente às estruturas do poder. É nessa literatura engajada que se realiza o ato de resistência ao autoritarismo, pois o exercício da escrita é, em si mesmo, um ato político.

O tratamento dado pelos escritores à ditadura como tema central de seus trabalhos revela um mundo de personagens com experiências emocionais internas decorrentes de um momento histórico cujas marcas permanecem na contemporaneidade. O fato das ditaduras acabarem, não implica necessariamente em criar-se um pacto de silencio entre o passado recente e o presente pós-moderno. Autores como Mario Benedetti, Eduardo Galeano, Mauricio Rosencof e Juan Gelmán, só para citar alguns dos mais conhecidos nesta esfera, constroem, a partir de suas experiências pessoais, o espaço ideal para a narrativa de testemunho e de denúncia, aproximando-se do realismo social. Personagens que se confundem com a vida e o discurso do autor e do leitor, e que se organizam fragmentariamente no espaço ficcional, são, antes de tudo, resultantes de um mundo que em determinado momento voltou-se contra eles.

A leitura, por exemplo, de Memorias del calabozo de Mauricio Rosencof, de Andamios, de Mario Benedetti e de La canción de nosotros, de Eduardo Galeano, todos os três, uruguaios, configura-se como um ato social pois não podem serem lidos senão como uma reflexão discursiva que estabelece uma problemática entre o indivíduo e a sociedade. Para Benedetti [8] e junto com ele podemos inscrever os demais autores, o realismo social parte da convivência em uma dada realidade e reitera a responsabilidade do autor em vigiar constantemente a sociedade na qual vive: "(...) el destino del escritor latinoamericano está hoy asimilado al de su pueblo. No hay ningún campo específico que esté ajeno a lo político, a lo social, a lo económico. En términos de dasein existencialista, el ser humano pregunta por el sentido de ser... en América Latina la fuente etimológica de existencia significa 'lo que está ahí' y lo que está ahí, son los miles de desaparecidos en el Cono Sur."

A exemplo de Benedetti, Galeano impõe-se a uma estrutura sócio política que impede de levar-se a cabo o projeto de uma América para todos idealizado por José Martí. Ao receber o título de Doctor Honoris Causa por parte da Universidad de Comahue, em Neuquén, Argentina, o escritor uruguaio agradeceu a homenagem com estas palavras: "(...) decídase señor escritor, y una vez, al menos, sea usted la flor que huele en vez de ser el cronista del aroma. Poca gracia tiene escribir lo que se vive. El desafío está en vivir lo que se escribe." E mais adiante ele complementa seu discurso nesses termos: "(...) pienso que todo esto lleva a valorar el sentido que tiene la aventura de escribir, devolverles a las palabras el sentido que han perdido, manipuladas como están por un sistema que las usa para negarlas." 

Por conseguinte, a narrativa desses autores, é, antes de tudo, instigante e aponta para a necessidade de resolver por meio da palavra escrita, uma dívida com a memória da América Latina. Se a atual literatura brasileira varreu para debaixo do tapete as lembranças de um passado recente, e isto só serve para destacar que é mais uma questão de identidades que ressalta o fato de que ainda continuamos a olhar para o próprio umbigo, o mesmo não aconteceu com as demais literaturas do Cone Sul. O processo de esquecimento ainda não se instalou por completo, posto que esta palavra escrita não enterrou seus mortos e nem faz questão de enterrá-los, alimentando um luto interior que não cessa nunca de doer e nem permite a substituição do objeto amado, neste caso a liberdade e a vida, já que isso significaria a perda de uma memória que é basilar para a especificidade do continente e sua inserção no Primeiro Mundo.

Portanto, a literatura comprometida desses países não pode ser menosprezada. Embora a ditadura seja um tema que constranja a todos, é imprescindível que o debatamos, pelo menos de vez em quando. Isto por certo, contribuirá para a compreensão de nossa cidadania e para a formação de nossa consciência social.

Finalizo este texto com um fragmento do Canto 33 do Inferno, de Dante, cujo sentido chega até nós como um eco de um passado de apenas 29 anos: "O próprio choro que choras não deixa e a dor que encontra os olhos repletos se volta para dentro e faz crescer a angústia”.



[1] Professora de literaturas hispânicas do curso de Espanhol da UNIJUÍ.
[2] Cf. Érico Veríssimo na apresentação do livro de Flávio Loureiro Chaves, Ficção latino-americana. Porto Alegre: Universidade Federal do rio Grande do Sul, 1973.
[3] HOBSBAWM, Eric. Tempos interessantes: uma visão do século XX. Tradução de S. Duarte.- São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
[4] TODOROV, Tzvetan. Memória do mal, tentação do bem. Indagações sobre o século XX. Tradução de Joana Angélica D'Avila  Melo. - São Paulo: Arx, 2002.
[5] DALCASTAGNÉ, Regina. O espaço da dor. O regime de 64 no romance brasileiro. Brasília: Ed. UNB, 1996.
[6] MORAÑA, Mabel. Documentalismo y ficción: testimonio y narrativa testimonial hispanoamericana en el siglo XX. In: PIZARRO, Ana (Org.). América Latina: palavra, literatura e cultura. - São Paulo: memorial; Campinas: UNICAMP, 1995.  
[7] ADORNO, Theodor. Educación para la emancipación. Traducción de Jacobo Muñoz. - Madrid: Ediciones Morata, 1998.
[8] BENEDETTI, Mario. Subdesarrollo y letras de osadía. Madrid: Alianza Editorial, 1987.

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