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O AUTORITARISMO EM DUAS IGUAIS  

Cíntia Schwantes

UFPEL  

Neste trabalho pretende investigar a função desempenhada dentro da economia narrativa do romance Duas iguais, de Cíntia Moscovich, pelas referências a dois momentos determinados em que ditaduras inflingiram a populações diversas não apenas a violação da lei, mas a ameaça à própria sobrevivência de alguns segmentos da população. São eles o Holocausto, presente nas memórias que a protagonista, Clara, ouve dos sobreviventes, e a ditadura militar brasileira, que ela testemunha sem ter, no entanto, muita clareza do que está vivendo. Em uma primeira leitura, esses elementos servem para caracterizar a protagonista como membro da comunidade judaica e de uma geração, a que alcançou a adolescência nos anos finais da ditadura militar.

Minha proposta de leitura é a de que, embora essa função seja de fato cumprida ao longo da narrativa, tais elementos desempenham ainda uma outra função, a de colocar indiretamente as dificuldades inerentes ao processo de formação de uma protagonista feminina em um romance de aprendizagem, e notadamente se essa protagonista é pouco convencional.

Primeiramente, será necessário conceituar o romance de formação. Esse gênero passou por sucessivas tentativas de definição dentro da academia. Retomado na Alemanha à época do Romantismo e estudado por Karl von Morgenstern, que cunhou o termo Bildungsroman, ele é definido então a partir do tema – o processo de formação de um protagonista, do nascimento ao final da adolescência – e mais exemplificado que debatido. Posteriormente, Dilthey tenta definir o gênero através das sequências narrativas que seriam não apenas típicas do Bildungsroman mas também necessárias para construi-lo: o nascimento do protagonista, o conflito de gerações, a viagem para uma grande cidade, dois casos de amor, um bem e outro mal sucedido, o encontro com um mentor, o retorno à cidade natal. Um problema se coloca: é muito difícil encontrar romances que sigam esses passos ao pé da letra. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, considerado (agora) um Bildungsroman paradigmático, não inicia com o nascimento do protagonista, mas in media res, quando ele está tendo sua primeira, e fadada ao fracasso, experimentação sentimental (vale lembrar que o romance tampouco foi incluído na lista de romances de formação elaborada por Morgenstern).

Mais recentemente, Bakthin definiu o Bildungsroman em contraste com outros gêneros: enquanto no romance de viagem, por exemplo, o protagonista é uma grandeza estável e o espaço é uma grandeza variável, no romance de formação o protagonista é uma grandeza variável: são as mudanças ocorridas nele, em consequência das experiências pelas quais ele passa, e de sua tentativa de elaborar uma visão de mundo, e uma moralidade que, contemplando ao mesmo tempo os valores que são fundamentais para ele e as necessárias negociações com seu meio, que impulsionam o enredo. Essa é talvez a definição mais funcional do Bildungsroman, pois contempla, simultaneamente, seu tema, e sua construção narrativa, sem entretanto prendê-la em uma camisa de força. James Hardin, outro estudioso do gênero, afirma que o que caracteriza o Bildungsroman é a existência de uma Bildung, de um processo através do qual o protagonista alcança o autoconhecimento e consegue estabelecer relações satisfatórias com seu meio, por meio de experiências e das reflexões que elas suscitam, que possibilitam a ele o estabelecimento de uma Weltanschauung. Por fim, Fredric Jameson aponta para um dos motivos da retomada do gênero durante o Romantismo: o Bildungsroman, com seu protagonista paradigmático, configura-se como um espaço privilegiado para o estabelecimento da identidade de um grupo social minoritário (no caso, a burguesia ascendente). Pelo mesmo motivo, acrescentamos, as escritoras mulheres tem insistentemente escolhido o gênero: como forma de reconfigurar a identidade feminina, uma vez que o Bildungsroman tem a função de servir de exemplo, de paradigma: é por esse viés que o romance de formação encontra sua função social. Ele deve propiciar a Bildung de seu/sua leitor/a embora, portanto, o Bildungsroman não seja necessariamente uma narrativa linear rumo ao autoconhecimento e à integração do protagonista em seu meio – vários perigos espreitam essa trajetória, como pode comprovar o romance de formação do século 19, no qual o protagonista precisa adquirir uma certa dose de cinismo para bem se desembaraçar em sociedade e cujo tom geral é de desencanto – a trajetória da formação sem dúvida se complica quando a protagonista é uma jovem ou menina: os percursos da formação feminina em uma sociedade patriarcal são muito mais tortuosos.

Se a “tarefa” do protagonista de um Bildungsroman é atingir a maioridade através da reflexão sobre os acontecimentos de sua vida e da elaboração de uma moralidade que, permitindo sua inserção em um grupo social, seja ao mesmo tempo pessoal, uma protagonista feminina parte em desvantagem.  Um protagonista de romance de formação deve aprender a pensar com independência e a rejeitar algumas das convenções de seu grupo social, se elas lhe perecerem injustas. De uma protagonista feminina não se espera nem uma coisa nem outra. Mesmo não sendo linear, mesmo sendo em certa medida deceptiva, a narrativa de formação de um protagonista masculino é uma narrativa de crescimento. As protagonistas femininas, por outro lado, são adestradas em submissão, segundo Annis Pratt: elas devem aprender a ser submissas, a não contestar as regras do grupo a que pertencem sob risco de perder sua reputação, a permanecer puras (leia-se, a não ter experiências de qualquer ordem, sexuais sobretudo). São, enfim, educadas para decrescer.  Se a protagonista de um romance de formação deve servir de paradigma, certamente que uma mulher perdida não pode cumprir esse papel.

A narrativização do processo de formação de uma protagonista feminina será, portanto, muito mais tortuosa que a de um protagonista masculino. As formas como as escritoras irão enfrentar os problemas colocados pelo romance de formação com protagonista feminina serão várias: a inclusão de elementos gótico, ou de personagens, geralmente secundários, loucos ou aleijados, respondem pelos numerosos percalços que a tentativa de alcançar independência de uma protagonista feminina encontrará. Igualmente, com muita frequência, essas dificuldades forçarão a narrativa a alongar-se além dos anos da adolescência, de modos a poder cobrir um processo de formação sujeito a uma quantidade maior de problemas. Dessa forma, os percalços alocados na trajetória de formação de uma protagonista feminina determinarão a adoção de modelos narrativos diferenciados daqueles do Bildungsroman com protagonista masculino.

Se a entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho possibilitou às personagens femininas o acesso a várias experiências, como a formação intelectual, a possibilidade de especulações filosóficas e a experimentação sexual, e até mesmo à criação artística e à participação política, terrenos masculinos por excelência, outras possibilidades continuarão interditas. Assim, se o casamento, no Bildungsroman com protagonista masculino é secundário e geralmente nem é contemplado, ele é central no Bildungsroman com protagonista feminina. Não importa quais sejam as novas atribuições que uma personagem feminina possa conquistar, a divisão de tarefas por gênero operante nas sociedades patriarcais continua inalterada no que toca à vida familiar: é função feminina zelar pelo bem estar físico e emocional dos membros de sua família. Casar e constituir família continua sendo central no estabelecimento de uma identidade feminina “saudável”.

Isso posto, e sem desconsiderar que uma opção sexual não convencional em um protagonista masculino de romance de formação também obriga a diversas manobras narrativas, quando a protagonista de um Bildungsroman faz uma opção pela homossexualidade, algumas dificuldades adicionais são acrescentadas a seu processo de formação.

Duas iguais
é um romance de formação feminina, e, como tal, contempla os anos de formação, escolar inclusive, de sua protagonista. Clara, membro da comunidade judaica de Porto Alegre, vive sua adolescência na década de 70. Como não poderia deixar de ser, ela está inserida em uma comunidade que sofreu em um passado recente o peso de uma ação genocida, e as lembranças do Holocausto chegam até ela, nos “testemunhos encharcados de dor e carregados de sotaque dos parentes mais velhos” [1] , e esse conhecimento permeia a vida dos então adolescentes, mesmo que eles não saibam fazer sentido dele. A narradora só aprenderá mais tarde, quando a vida a colocar diante de seus próprios sofrimentos.

O Holocausto assim, é parte de uma referência que constrói a identidade do grupo ao qual a protagonista pertence, parte importante do processo de formação de um protagonista de romance de formação. Seu background precisa ser colocado, porque a tarefa da protagonista é, ao mesmo tempo, assimilar e transcender seu ponto de origem. O Holocausto não é a única, e nem a principal referência do grupo ao qual a protagonista pertence, mas faz parte de um processo maior, do qual ele é talvez o episódio mais recente e mais visível. O que diferenciava a comunidade judaica, Clara nos esclarece, “ era uma espécie de imensa cicatriz na alma” (p. 19).

O regime militar, por sua vez, pertence à história vivida, mas nem sempre percebida; como Clara afirma: “Meu pai falava da revolução que eu não pude presenciar porque ainda era pequena, o professor de História falava em golpe de estado que nós não presenciamos porque éramos muito pequenos, todos falavam do regime de excesção em que vivíamos”. (p. 21). É exatamente na casa de sua nova amiga, Ana, que Clara começa a tomar contato com “outras versões” da história recente.

O assassinato do jornalista Vladimir Herzog dentro das dependências do DOI-CODI de São Paulo, em 1975, que foi um dos marcos do final da ditadura militar, dentro da economia da narrativa, opera uma confluência: Herzog, preso político, era judeu. “ As autoridades que cuidavam do caso – diz a narradora – falaram em suicídio”. E acrescenta:

...ele era um dos nossos. E, por ser um dos nossos, não entendemos porque não foi enterrado no lugar destinado aos suicidas. A lógica, fosse um suicida, era que ele deveria amargar os sete palmos de terra que lhe cabiam no indigno isolamento do terreno junto ao muro do cemitério, agregado aos demais seres que, contrariando tudo em que acreditávamos, haviam decidido por colocar termo à própria vida. ... Em pouco tempo, todo o bairro comentava o caso. ... Aninha sentenciou, com a autoridade de quem está ao corrente de tudo, que preso político não se matava, preso político era morrido. ... (p. 21/22)    

Nesse momento, o conhecimento travado, através de Ana, filha de militantes de esquerda, com a realidade política do país, entra em intersecção com o contexto de sua comunidade judaica.E logo a seguir a versão nativa do autoritarismo entra na vida de Clara:  

... o professor de Física foi dado como desaparecido. Foi na saída das aulas, nós todos vimos aquele bando de homens vestidos com ternos escuros que o esperava. Ele entrou num carro também escuro e nunca mais voltou. Contamos o que vimos para todo o mundo, da direção da escola à polícia. Tentamos de tudo para localizá-lo, chegamos a mobilizar toda a comunidade do bairro, e nada. Aconteceu debaixo de nossos narizes e nós sabíamos que ele estava indo para não voltar. (p. 22)  

Essa passagem é importante porque a partir dela Clara vai articular suas duas transgressões: ela começa a participar do jornal da escola com Ana, de onde lhe vem a escolha pelo jornalismo e conseqüente abandono do negócio de família. E, mais importante, Clara apaixona-se por Ana. E é correspondida.

O pai de Clara aceita a contragosto a primeira transgressão, mas age com decisão no sentido de inviabilizar a segunda: matricula Clara em outra classe e veladamente aconselha-a a esquecer sua paixão. A ação do pai é tanto mais decisiva quanto Clara respeita e acata a sua opinião, e acima de tudo, o ama. Alia-se a isso o preconceito de alguns colegas, a discriminação que começa a pesar sobre elas. Ana e Clara decidem se separar. Algum tempo depois, Ana parte para Paris, e a narradora tem certeza de que trata-se de uma tentativa de interpor uma distância geográfica entre ambas, de alcançar o esquecimento. Clara, igualmente, segue sua vida: termina o curso de jornalismo, seu pai morre, ela começa a trabalhar em um jornal e casa-se com um dos arquitetos da firma da família, um rapaz de boa família judaica.

Embora o Holocausto seja referido para ter sua importância na vida da protagonista freudianamente negada, várias são as referências à cultura judaica que permeiam a narrativa: uma das disciplinas da escola é Cultura Judaica, o médico amigo da família é judeu, hábitos, costumes, pratos típicos são constante apresentados, a narradora fala iídiche. Seu casamento é uma forma de afirmar seu pertencimento a sua comunidade, tanto quanto é uma forma de afirmar sua “normalidade”.

C
omo costuma acontecer em romances de formação feminina, o processo de Clara alonga-se além dos anos da adolescência, embora não pelos mesmos motivos. A maior parte dos entraves à formação feminina, ao menos aparentemente, foram removidos. Clara ingressa em um curso superior de sua escolha, o jornalismo, vencido sem muita dificuldade o costume judaico segundo o qual o primogênito, ou primogênita, deve assumir o negócio da família (até porque o pai de Clara tampouco assumira o comércio de seu pai, preferindo dedicar-se à construção civil, aliás com apreciável sucesso). A narrativa não nos dá elementos sobre a experimentação sentimental e sexual pelas quais Clara terá passado: o rompimento com Ana, depreende-se, foi tão doloroso que deixou pouco espaço para a experimentação. Igualmente, o fato de que Clara não poderia experimentar sentimentalmente dentro de sua opção sexual – o rompimento com Ana significou a internalização do interdito – deve ter pesado. No entanto, sua primeira noite com Vítor, que não é sua primeira experiência sexual, ocorrida anos antes com Ana, tampouco é um desvirginamento, de onde se depreende que Clara passou por alguma experiência com o sexo oposto.

Significativamente, Clara só assume sua paixão por Ana após a morte do pai. Como uma protagonista de uma novel of awakening [2] ela precisa passar por um destino de mulher, que prevê um casamento (heterossexual) como ápice de sua história pessoal. Clara não apenas se casa, ela também casa bem, com um bom partido, um homem bonito, jovem, bem situado profissionalmente, aprovado por sua família. O casamento, no entanto, não a realiza sentimentalmente, tanto que, quando Ana passa uma curta estadia no Brasil e telefona, Clara vai a seu encontro e ambas fazem amor, e só mais tarde Clara percebe que cometeu adultério. Mas escolhe mentir e preservar seu casamento: Clara só assume sua paixão por Ana premida pelo risco de vida em que se encontra a amiga.

O processo de formação de Clara envolve, como todos os Bildungsromane, o autoconhecimento, o que implica igualmente autoaceitação. E ele envolve também uma ação sobre o mundo exterior: a formação do protagonista implica em sua ação transformadora sobre seu meio. Assim, o processo só se completa quando ela declara publicamente seu amor por Ana, pois “o amor precisa ser cantado”, e se dispõe a sofrer as conseqüências, a primeira das quais será o fim de seu casamento. Essa decisão é, no entanto, de certa forma, tardia: ela ocorre na véspera da operação que poderia salvar a vida de Ana, mas também poderia custar-lhe a vida. Ana morre, colocando Clara diante de um inevitável que, por outro lado, barra-lhe o caminho de volta ao convencional. A experiência da perda ensina a ela que o amor é precioso demais para ser desperdiçado.
A narrativa de Duas iguais articula-se em dois eixos opostos e complementares, um organizado ao redor de uma símile, a que apresenta Clara e Ana como iguais, e outro organizado ao redor de uma antítese, a que apresenta Ana e Clara como distintas, diferentes.A similaridade, afirmada desde o título, encontra-se explicitada no texto:

Olhei: os nosso pés, os dois, do mesmo tamanho, Ana, e me dizias que sempre havia sido assim, e que nós sempre havíamos sido tão iguais, eu olhasse só, tínhamos as duas um par de seios, as mãos também quase do mesmo tamanho, e colocamos palma contra palma – já havíamos feito isso uma vez antes, no passado – e rimos que osdedos terminavam à mesma altura, as polpas se encontrando no mesmo lugar, as impressões se encaixandocomo um quebra-cabeça que cansamos de montar. (p. 105/6)  

A diferença não assume qualquer traço pejorativo porque não é enfocada nos termos da opção sexual de ambas: elas são diferentes cada uma a sua maneira. Clara é judia, reiteradamente apresentada como membro da comunidade judaica, e o Holocausto faz parte dessa caracterização. Ana, no entanto, não é apresentada como diferente por ser filha de militantes de esquerda – esse é apenas seu ponto inicial de diferenciação, que a caracteriza como diferente de Clara e de seus colegas, e será vencido até porque Clara, ao menos durante um período de sua vida, partilha o repúdio à ditadura que Ana expressa. A diferença de Ana consiste em ser estrangeira em Paris, incapaz de fazer-se em casa naquela cidade de expatriados. O exílio de Ana não é, porém, um exílio político, é sua cruzada pessoal para longe de Clara e de seu amor proibido. Ana, em um ato de coragem, picha o muro da escola em protesto ao desaparecimento do professor. Ana, em um ato de coragem, assume publicamente seu amor por Clara. Ambas, porém, são vencidas pelo preconceito, pelas pressões familiares.

As ações criminosas da ditadura militar tem, como vimos, uma função importante dentro da economia narrativa: é a partir do desaparecimento de um dos seus professores que Ana e Clara passam a participar do jornal da escola, apaixonam-se e vivem o caso de amor que está no centro do processo de formação de Clara. As menções à ditadura e ao Holocausto tem, além dessa, a função de caracterizar as duas personagens principais do romance, a narradora autodiegética, Clara, e sua amiga Ana. Elas colocam a ambas como membros da geração que nasceu no final da década de 50 e no início da década de 60, e que alcançou a adolescência no final da década de 70 e início da década de 80.

Porém, mais do que apenas recurso para situar e caracterizar as personagens – Clara judia, Ana filha de militantes de esquerda, ambas vivendo sua adolescência e seu caso de amor nos anos finais da ditadura militar – a menção ao Holocausto e aos crimes da ditadura apontam para algo mais: para uma sociedade autoritária e restritiva onde o amor de ambas não encontra lugar. Uma sociedade capaz de gerar os crimes da ditadura e o Holocausto é necessariamente uma sociedade repressora da diferença e negadora do amor e da vida. O amor de Clara e Ana está, portanto, condenado desde o início. Dentro dessa lógica narrativa, Ana precisa morrer no final do romance: não há lugar para ela, sua diferença e seu amor.
É significativo que o romance sequer mencione o processo de redemocratização do país, embora sua duração abranja, também, esse período. Pode-se dizer que a abertura política deixou intocados os costumes e, dessa forma, o autoritarismo continuou permeando as relações sociais. O amor de Ana e Clara não encontra mais espaço no Brasil da abertura do que durante a ditadura. Como afirma Maria Helena Moreira Alves,

Enquanto as oposições se mantiverem presas ao círculo da relação dialética do Estado e da Oposição, negociando medidas liberalizantes mas não promovendo rupturas nas estruturas fundamentais de poder não haverá maiores transformações no contexto político brasileiro. Neste sentido, a partir da campanha pelas eleições diretas para presidente da República, cabe às oposições compreender que o ciclo de abertura tem de encerrar-se para que, ao invés de uma instucionalização liberalizada do Estado de Segurança Nacional, se consiga na realidade uma sociedade aberta e democrática, com ampla participação popular. Não bastam as eleições diretas. Para reorganizar a sociedade no sentido de uma real transição democrática é necessário romper com as estruturas do Estado e terminar com os ciclos característicos do período formado sob a luz da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento. (p. 328) [3]  

O romance, no entanto, estende-se ainda além do momento da abertura, e seu final não deixa de ter uma nota positiva: Clara aprende que o amor precisa ser louvado, e propõe-se a fazê-lo, não importando quais sejam as conseqüências. Isso nos indica a maturidade da narradora autodiegética de Duas iguais. Pode indicar também uma maturidade do próprio país, tornado capaz de tolerar a diferença, em um processo que, se transcende o processo de redemocratização, parte dele, é um desdobramento dele. As palavras finais do romance, que nos indicam que o processo de formação de Clara está completo, indicam indiretamente um meio social mais aberto, capaz de permitir a expressão de um amor que não cabe nas convenções; o “amor que não ousa dizer seu nome” sai das sombras e apresenta-se em plena luz, como nos comprova a epígrafe que circularmente fecha o texto:

Eu soube: o amor exige expressão. Ele não pode permanecer quieto, não pode permanecer calado, ser bom e modesto; não pode, jamais, ser visto sem ser ouvido. O amor deve ecoar em bocas de prece, deve ser a nota mais alta, aquela que estilhaça o cristal e que entorna todos os líquidos. (p. 165)

Por fim, a trajetória de formação de Clara perfaz um círculo, da escuridão à luz, do segredo e do exílio para a possibilidade de expressão. Segundo Mariane Hirsch [4] , a trajetória de formação feminina não segue um traçado linear, como a masculina, mas ocorre de maneira circular, e seus movimentos se dão por um choque que provoca a mudança de nível. A morte de Ana, assim, é o evento traumático que tira Clara da imobilidade, do conformismo com um destino insatisfatório e a joga novamente nas tumultuadas águas da experimentação e do amor. Afinal, o romance termina em aberto. Um final em aberto é também um meio de apontar,formalmente, para a “abertura” que sucedeu o período da ditadura, e que permitiu as mudanças nas relações sociais que tornaram possível a Clara não renunciar ao amor.

Bibliografia

ABEL, Elizabeth, HIRSCH, Mariane and LONGLAND, Elizabeth (eds). The voyage in. Fictions of female development. London: University Press of New England, 1983.

AMRINE, Frederich. Rethinking the Bildunsroman.  Michigan Germanic Studies. vol. 13 Iss 2 1987.


BAKTHIN, Mikhail Mikhailovitch.
Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.


FRAIMAN, Susan. The mill on the Floss, the critics and the Bildunsroman. PMLAA. Vol 108 Iss 1, Jan 1993.
______. Unbecoming women. British women writers and the novel of development. New York: Columbia University Press, 1993.

HARDIN, James (ed). Reflection and action: Essays on the Bildungsroman. University of South Carolina Press, 1991.


JAMESON, Fredric. As marcas do visível. Rio de Janeiro: Graal, 1995.


LABOVITZ, Esther K. The myth of the heroine: the female Bildungsroman in the twentieth century. New York: Peter Lang, 1986.


MOREIRA ALVES, Maria Helena. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). São Paulo: Vozes, 1984

MOSCOVITCH, Cíntia. Duas iguais. Porto Alegre, L&PM, 1998.

 PRATT, Annis. Woman and nature in modern fiction. Contemporary literature. Vol 13   n. 4 Autumn 1974.______. Archetipal patterns in women’s fiction. Bloomington: Indiana University Press, 1981.

SMITH, John H. Cultivating gender: sexual difference, Bildung and the Bildungsroman. Michigan germanic studies. Vol 13 Iss 2 1987.


[1] Todas as citações serão retiradas da primeira edição de Duas Iguais, cuja referência bibliogrráfica encontra-se na bibliografia, ao final desse trabalho.
[2] A novel of awakening, conceituada por Susan Rosowski em artigo constante em The voyage In, é um tipo de romance de formação no qual a protagonista cumpre um destino feminino convencional, casa-se, tem filhos, e a certa altura da vida descobre-se insatisfeita e parte em busca de realização pessoal.
[3] MOREIRA ALVES, Maria Helena. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). São Paulo: Vozes, 1984.
[4] HIRSCH, Mariane. Spiritual Bildung: The Beutiful Soul as Paradigm. In ABEL, Elizabeth, HIRSCH, Mariane and LONGLAND, Elizabeth (eds). The voyage in. Fictions of female development. London: University Press of New England, 1983.

 

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