AS
NAUS, DE
ANTÓNIO LOBO ANTUNES, E O PERCURSO ANTI-ÉPICO DA HISTÓRIA PORTUGUESA
Inara
de Oliveira Rodrigues [1]
I
António Lobo Antunes
lançou seus dois primeiros romances, Memória de elefante
e Os cus de Judas, simultaneamente em 1979, com poucos
meses de intervalo. A eles seguiu-se Conhecimento do Inferno
(1980), obra que fecha um primeiro ciclo, que seria o de aprendizagem,
segundo o autor. Começando por Explicação dos Pássaros (1981)
e encerrando-se com as Naus, de 1988, seu sétimo romance, estabelece-se
o ciclo seguinte que, de acordo com Lobo Antunes, é o das epopéias,
"no qual o país é a personagem principal"
[2] .
Para
boa parte da crítica, no entanto, a protagonista recorrente
nas obras desse escritor seria mesmo a linguagem, com parágrafos
que se concentram em vários planos temporais, de pontuação rarefeita
e diálogos sobrepostos. A narração, via de regra, dilui-se em
acordes polifônicos, repletos de uma ironia muitas vezes corrosiva,
sempre acompanhada de uma certa veia humorística e de uma desconcertante
criação de imagens [3] .
Tal
densidade estilística estaria associada, para alguns, ao próprio
novo momento histórico em que se insere a escrita de Lobo Antunes,
considerando-se o autor, indiscutivelmente, um dos maiores nomes
da "Geração de Abril". Essa designação que se pode
bem aceitar, ainda que apenas para fins de operacionalização
analítica, é defendida por Maria de Lourdes Netto Simões, para
indicar o grupo "de ficcionistas que vivenciaram o período
revolucionário (antes, durante e depois) e que literariamente
nasceram entre os anos sessenta e oitenta" [4] . Quer isso significar, principalmente, que
esses escritores se voltaram para uma criação literária mais
agudamente consciente de sua configuração como arte(-)fato,
evidenciando-se o estímulo à própria elaboração do fazer literário,
correspondendo, inevitavelmente, a um maior exercício de construção
da própria leitura.
Não quer isso dizer que,
tanto quanto os ficcionistas precedentes, os da Geração de Abril
não tenham passado por períodos iniciais do que
se
poderia considerar como um exorcismo dos horrores da ditadura,
mas ainda assim o fizeram com uma postura mais "imediatamente"
desencantada frente aos descaminhos da Revolução: um recrudescimento
da violência revolucionária mantendo vivos os fantasmas do autoritarismo,
o processo de descolonização tão dramaticamente vivido pelos
africanos e pelos próprios colonos portugueses, os retornados,
entre outros sérios problemas que se apresentavam.
Mencionem-se, ainda,
os desencontros de expectativa e informação do processo revolucionário
tal como foi recebido pelos diversos setores da sociedade portuguesa
(questão colocada de forma exemplar por Lídia Jorge, em seu
O dia dos prodígios) e mais uma vez ganha coerência a
preocupação com uma prática literária desafiadora de seus próprios
sentidos.
Os romances de António
Lobo Antunes são também exemplares de todo esse contexto, que
acaba desembocando na problemática da própria busca de identidade
de um Portugal que agora precisa novamente voltar-se para si
mesmo. Nesse sentido se efetivará a presente proposta de análise
d'As Naus: diante de uma História por fazer-se, o futuro
implica uma releitura do passado, mas uma releitura tão crítica
quanto possa ser toda a sua desmitificação.
II
O
"Regresso das caravelas" foi o título originalmente
pensado para esse sétimo romance de Lobo Antunes, e só não se
confirmou por problemas de registro autoral [5] . Embora não se tenha perdido
nada, com certeza a denominação inicialmente desejada pelo autor
apontava mais diretamente para a temática geral visada na obra,
tal qual define João Medina:
o irônico confronto entre
as naus pioneiras, henriquianas, e as traineiras que trouxeram,
à matroca e no meio de um excruciante salve-se-quem-puder, os
restos de uma colonização em fuga após a independência das antigas
colónias africanas de Portugal -, retrato engenhosamente globalizante
de toda a nossa aventura marítima colonial e do colapso da
mesma após o fim das guerras coloniais posterior à revolução
de 1974, verdadeira mise en abîme de toda a gesta e
contra-gesta da nossa experiência ultramarina [6] .
Ao
contrário, no entanto, da conclusão de Medina, que considera
As Naus uma obra "pessimista e fúnebre", procurar-se-á
demonstrar o quanto essa paródia irônica veicula uma chamada
positiva e irrevogável à construção do futuro.
Tratando-se de uma verdadeira
anti-epopéia como resposta e continuação ao Canto X d'Os
Lusíadas, sentido reiteradamente apontado pela crítica,
o romance está estruturado em 18 capítulos, não numerados, apenas
divididos pelo espaçamento de quebra de páginas.
O
romance abre com um narrador onisciente lembrando que Pedro
Álvares Cabral "passara por Lixboa há dezoito ou vinte
anos a caminho de Angola", quando então, junto aos pais,
passando por uma placa
que designava o edifício incompleto e que dizia Jerónimos esbarrámos
com a Torre ao fundo, a meio do rio, cercada de petroleiros
iraquianos, defendendo a pátria das invasões castelhanas, e
mais próximo, nas ondas frisadas da margem, a aguardar os colonos,
presa aos limos da água por raízes de ferro, com almirantes
de punhos de renda apoiados na amurada do convés e grumetes
encarrapitados nos mastros do aparelhando as velas para o desamparo
do mar que cheirava a pesadelo e a gardénia, achámos à espera,
entre barcos e remos e uma agitação de canoas, a nau das descobertas [7] .
A citação é ilustrativa
do procedimento básico do autor durante toda a obra: confluência
de narração onisciente com narração em primeira pessoa; interpenetração
do passado no presente sem maior definição temporal e, de certo
modo, é o próprio resumo temático da obra: o fechamento, do
processo de expansão portuguesa. Cabral, um dos grandes nomes
do expansionismo, responsável pelo "achamento" oficial
das terras brasileiras, é agora um dos retornados de África,
derradeiro momento da colonização empreendida por Portugal.
Empobrecido, contudo,
o descobridor do Brasil chega à Lis(x)boa acompanhado de sua
mulher, mulata, e de seu filho (que permanecem anônimos durante
toda a narrativa), afirmando ao funcionário da alfândega não
possuir parentes na capital do "reyno": "Quase
que aposto que morreram todos há séculos (...)" (p. 15).
Seu destino, é então, a "Residencial Apóstolo das Índias",
cujo proprietário é o próprio apóstolo, no caso, "o senhor"
Francisco Xavier.
Também referenciado como
"padroeiro de Setúbal"
[8] o Santo Francisco Xavier é descrito, no romance, como
um "indiano gordo de sandálias (...) cercado de uma dúzia
de indianozinhos todos parecidos com ele (...)", dono de
uma pensão decadente em uma área não menos degradada da cidade.
Também ele um retornado, de Moçambique, sem escrúpulos, seu
negócio é explorar os pobres recém-chegados: como Cabral não
tem dinheiro para pagar a pensão antecipadamente, o padre não
terá dúvidas em prostituir a mulher do navegador, alargando
o seu exército de "tágides" [9] .
Impotente, Cabral inicialmente
resigna-se. No residencial, faz amizade com Diogo Cão - o qual
revelava que "há trezentos, quatrocentos ou quinhentos
anos comandara as naus do Infante pela Costa de África abaixo"
(...) "e de como era difícil viver nesse árduo tempo de
oitavas épicas e de deuses zangados (...)" (p. 65). É
interessante assinalar a continuação dessa passagem: "(...)
e eu [Cabral] fingia acreditá-lo" (p. 65). A duplicação
das personagens "históricas" é, portanto, outro recurso
muito presente na narrativa - paralelamente, como espelhos disformes,
convivem os ilustres antepassados com os miseráveis portugueses
de uma época conturbada entre a realidade e o sonho, como foi
o período mais imediato da Revolução dos Cravos. De certo modo,
a confluência entre o real e o onírico tangenciou sempre a "gloriosa"
história portuguesa [10] . Como se pode ver na passagem em que o Infante acaba por
desfazer-se do Brasil, mais uma "chatice" para administrar
(p. 69), "esse monstro esquisito de carnavais, papagaios
e cangaço" (p. 68), e "quem viesse depois que tramasse
com aquilo" (p. 69), dando a entender que, ao fim e ao
cabo, o Brasil nunca "pertencera" ao Império português,
acabando apenas por restar dessa descoberta "um papagaio
morto a ressequir-se na almofada"(p. 71), onde dormitava
o ébrio descobridor do Congo.
Depois de não mais agüentar
a exploração de Francisco Xavier, Cabral decide imigrar para
Paris, como havia sugerido Diogo Cão, tanto mais que a sua mulher
o abandonara para ser amante de luxo do dono da discoteca onde
trabalhava: o não pouco ilustre Manoel de Souza de Sepúlveda.
Sem dinheiro, vivendo da caridade dos salões paroquiais (onde
serviam-se "refeições de batatas cozidas contra a promessa
solene de conversões imediatas" - p. 171), Cabral fica
conhecendo os "ciganos" Garcia Lorca e Luis Buñuel,
com quem acerta o valor da passagem para fora do país. O dinheiro,
vai buscá-lo junto à mulher, e segue viagem com os dois intermediários
espanhóis.
Na fronteira, depararam-se
com um grande destacamento militar e foram informados de que
"o rei Filipe se reunira com os seus marechais na rulote
do Estado-Maior a combinar a invasão de Portugal, porque D.
Sebastião, aquele pateta inútil de sandálias e brinco na orelha,
sempre a lamber uma mortalha de haxixe, tinha sido esfaqueado
num bairro de droga de Marrocos por roubar a um maricas inglês,
chamado Oscar Wilde, um saquinho de liamba" (p. 179).
O tom explicitamente
surrealista dessas últimas passagens, até pela participação
de Lorca e Buñuel na trama, reforça a idéia de uma realidade
de dimensão onírica, de viés mais psicalanítico, na qual os
sonhos ganham as ruas, expondo toda repressão ao desejo de se
viver plenamente o agora da vida. Da última citação acima,
ainda, comente-se que não pode ser mais explícita a intenção
de rebaixamento da mítica figura do "Encoberto", Rei
D. Sebastião. Transformado em um adolescente hippie,
inconseqüente e irresponsável, a própria morte lhe é motivo
de desonra, não restando pedra sobre pedra para facultar qualquer
caráter messiânico à tão pobre figura.
Para além disso, os episódios
nos quais Cabral situa-se como personagem central suscitam algumas
questões: o fato de ele "hospedar-se" na "Residencial
Apóstolo" não é uma forma de reconhecimento de que as Índias
foram mais importantes do que o Ocidente para Portugal? Pense-se
que a pensão decadente de Francisco Xavier abriga os dois navegadores
das rotas ocidentais - Cabral e Diogo Cão (Brasil e África,
respectivamente).
Além disso, o sentido
da mulher de Cabral ter sido prostituída por Xavier não poderá
indicar o quanto, em nome da religião católica, mas principalmente
da "vã cobiça", descobriu-se o Brasil, escravizaram-se
africanos, ficando sempre o Ocidente "a serviço" do
Oriente português? Esses questionamentos apenas ilustram a complexidade
da proposta de releitura histórica presente em As Naus.
A possibilidade de responder-se positivamente às perguntas é,
no entanto, bastante tentadora por estabelecer um sentido crítico
em relação à falta de percepção histórica dos governos lusitanos
- justamente o fim do "Império" se dará naquelas terras
que sempre foram "usadas" de forma mais violentamente
exploratória, pensando-se, claro está, no continente africano.
Talvez seja esse um dos
possíveis motivos para que Francisco Xavier protagonize mais
de um capítulo na narrativa. Morando com a mãe e os filhos na
pensão decadente que gerencia, transformou-se em um gigolô que
não perde a oportunidade de também explorar sexualmente as prostitutas.
No entanto, apesar da razoável prosperidade nos negócios, o
desgosto de Francisco Xavier foi ter trocado, com o seu compadre
de oitenta anos, a mulher, branca, loira e trinta e um anos
mais moça, que lhe servia como verdadeira escrava, por uma passagem
de avião para Lisboa.
Sendo poucas as referências
ao personagem histórico propriamente [11] , sua relação com Fernão Mendes
Pinto, porém, está bem presente no romance. Presença totalmente
ficcionalizada, pois, na narrativa de Lobo Antunes, foi em Moçambique
(Lourenço Marques = Maputo) que as personagens se conheceram,
onde Pinto era o único branco do bairro, que "vendia bíblias,
postais eróticos e gira-discos" (p. 100) e que fez Xavier
de sócio no comércio dos evangelhos, além de permitir seu casamento
com a filha adolescente.
Depois
de seu retorno, será em Campolide, Lisboa, que o frade reencontra
Fernão Mendes Pinto, o qual vive agora de uma "constelação
de residenciais e pensões para fidalgos africanistas em desgraça
(...) (p. 103). Nessa altura, o aventureiro Fernão mostra-lhe
"o maço, já batido à máquina, das suas viagens caudalosas
(Qualquer dia entrego esta bodega toda a um editor) (p. 104),
e convida o padroeiro de Setúbal para administrar uma de suas
sucursais - daí a Residencial Apóstolo das Índias. O negócio
para ser lucrativo, dependeria, porém, de um "bom rebanho
de tágides" (p. 105). O que facilmente conseguiu o "fradinho":
Se fossem necessárias
provas, a certeza acabada de que Deus está comigo é que mandei
segunda-feira, embelezadas de lantejoilas e de xailes, trinta
e oito africanas para discotecas da Avenida Almirante Reis e
do Martim Moniz, sem falar, ó servos do Senhor, nas que espalharam
as ancas demoradas pelos jardins e pátios da cidade (...). Em
pouco tempo, e graças à benção do Pai, um desmesurado rebanho
de convertidas à Fé ocupava os bairros de Lixboa até às docas
de Alcântara onde o ar era de celofane em julho (...). (p. 106).
Do trecho destaca-se,
claramente, o caráter absolutamente profanador, a severa denúncia
de toda a hipocrisia de grande parte do discurso catequizador
da Igreja. Em nome dos mais santos princípios, essa instituição
permitiu a escravização e mesmo a prostituição "espiritual"
de muitos de seus súditos brancos e civilizados em nome da conquista,
do lucro e do poder. Isso sem se levar em conta a própria situação
de exploração das mulheres, tanto patrícias quanto nativas nesse
processo de ambição colonialista. Além disso, é bastante elementar
o que daí se pode concluir como crítica do posicionamento da
Igreja frente à própria guerra colonial.
Assim,
levando com determinação sua "missão", os negócios
de Francisco Xavier iam muito bem, mas continuava saudoso da
mulher, muito mais por seu orgulho ferido, quando ela se decidiu
a ficar ao lado do velho e não aceitou reverter o acordo como
o indiano chegou a propor. Com a determinação de buscá-la, de
volta a Moçambique o que encontra é uma pessoa profundamente
envelhecida, quase irreconhecível. O decepcionado apóstolo não
titubeia no cumprimento de seu dever, levando a mulher para
"trabalhar de puta em Lixboa" (p. 110).
Já
a situação dos colonos portugueses em África, quem realmente
"encarna", sentindo toda repercussão do processo,
confuso e mesmo injusto, das independências africanas, é o casal
anônimo que protagoniza dois capítulos do romance - o quinto
e o décimo-segundo. Para António Quadros, a crítica situação
dos retornados decorreu de uma
descolonização sem referendo,
sem garantia dos interesses portugueses e sem quaisquer concessões
aos nossos colonos e assimilados, esses que mais tarde foram
compelidos a fugir em massa das terras que desbravaram, das
plantações que semearam e das cidades que edificaram, num dos
êxodos mais pungentes e aviltantes da história contemporânea [12] .
Essa é a situação protagonizada
pelo casal já idoso, que escuta, por acaso, na telefonia, em
meio a um vendaval de ruídos, sobre a revolução em Lisboa (p.
51): aí, mais uma vez a temática sempre recorrente de que o
conhecimento da Revolução era recebido com surpresa. Isso indica
o quanto o processo revolucionário não foi efetivamente representativo
[13] e daí o casal protagonizar uma das críticas mais fortes
ao processo revolucionário e, sobretudo, ao processo de independências
das colônias africanas:
(...) um coronel de artilharia,
com uma tripla fita de condecorações na clavícula, lhes ofereceu
de mão beijada, numa generosidade inexplicável, a possibilidade
gratuita de tornar a Portugal. (...) Os oficiais de tripas puídas,
debandaram do andar de baixo e tomaram o avião para a Europa.
Batalhões completos, convulsos de amibas e lombrigas, com os
furréis a cabecearem de doença do sono logo após a charanga
e a bandeira, alçavam-se para navios ferrugentos carregando
as suas armas e os seus mortos. Guerrilheiros descalços, de
camuflado, colares ao pescoço e bafo canibal de gato selvagem,
passeavam-se nas escadinhas da cidade chacinando mulatos à baioneta
(p. 52).
............................
As naus aportavam vazias
e partiam cheias, convexas de gente e de caixotes. Bissau despovoava-se
de brancos e o início da estação das chuvas encontrou-os sem
saber o que fazer numa terra de selvagens triunfais que estilhaçavam
à metralhadora os postigos das fachadas (p. 53).
O
primeiro excerto desvela a decrepitude em que já se encontravam
os oficiais portugueses, bem como o absurdo da guerra com seu
saldo de mortes e terror. Não passa despercebido, do mesmo modo,
o quanto a "debandada geral" em que se configurou
o retorno português das colônias africanas acabou estimulando
as disputas das forças guerrilheiras locais, em nada contribuindo
para o ideal democrático propalado pelo exército revolucionário
em Lisboa.
O
casal de velhos, além disso, como representante do povo anônimo
português que se dirigira às terras africanas em busca de melhor
vida, exemplifica em sua trajetória o fracasso de tal ilusão,
pois os retornados, geralmente, chegavam tão ou mais pobres
do que quando partiram.
Sendo
assim, ao regressar, o casal é instalado, inicialmente e na
companhia de dezenas de outras pessoas, num hotel, onde uma
voz informou
com ferocidade, damas e cavalheiros, informou com pompa senhoras
e senhores, que se encontravam no Hotel Ritz por pura benevolência
paternal das autoridades revolucionárias (...) até o Estado
democrático, nascido com a ajuda da parteira mão castrense,
do ventre putrefacto do totalitarismo fascista que durante
tantos decénios nos garroteou e oprimiu, conseguir casas ou
pré-fabricados para as vítimas da ditadura felizmente extinta,
e que em nome, camaradas, da luta de classes e da construção
do socialismo dirigida pela vanguarda política do exército,
passariam a ser punidos com a forca, a decepação da mão esquerda,
a extracção de vísceras pelas costas ou o degredo em Macau,
os intoleráveis abusos de assar sardinhas nos lavatórios, engasgar
os ralos com tornozelos de faisão, cozinhar refogados e fritos
nas cerâmicas dos chuveiros, vender as torneiras (...), assim
como servir-se das cortinas estampadas do hotel para blusas
e adornos. (p. 62 - grifos nossos).
Não
poderia ser mais irônico e cruel esse discurso, proferido com
os devidos chavões marxistas, como indicam as passagens grifadas,
denunciando a decadência total em que se encontravam os retornados
de África. Foi essa a realidade enfrentada pelo casal anônimo
que, mais tarde é removido para uma pensão horrível e, por fim,
vai morar em uma casa identicamente arruinada, na região da
Ericeira. A mulher, sem mais conseguir reconhecer a si mesma
nesse presente caótico, submerge na alienação que a mantém nos
tempos da infância. E os idosos terminam destruindo suas vidas,
afastando-se: ele prefere viver a sua solidão em Lisboa, em
um quarto alugado, onde passa também a alienar-se de tudo. Recebendo
um magro salário-desemprego, lança fora, por último, o retrato
de recém-casados "em que se adivinhava, com muito custo,
uma fivela de cinto e um ângulo de véu (...). De repente sem
passado, aboborou-se na contemplação pasmada dos pescadores
da muralha e dos seus anzóis de inimaginável persistência, na
mira de que mais cedo ou mais tarde uma tágide desgovernada
pelas correntes de fevereiro abocanhasse a linha" (p.
144). Passagem de uma riqueza de imagens a compor um quadro
desolador de pobre esperança tão pouco lúcida - só mesmo fora
de rota poderia a inspiração novamente correr pelos mares de
Lisboa, pois não há mais nada sobre o que se cantar.
Outro
personagem histórico destacado na narrativa, Manoel de Souza
Sepúlveda aparece como um homem de posses: propriedades em Loanda,
vivenda no Bairro de Alvalade, apartamento na costa da Caparica
- mas morava em Malange (Angola), onde, viúvo ("a mulher
descansava o reumatismo no cemitério do Lobito, com um anjo
de mármore funerário, de asas desfraldadas, assente no peito
para obviar ressuscitações inoportunas" - p. 74), ganhava
a vida trocando diamantes com um "amigo inspetor da PIDE",
do qual recebia um cheque (da Holanda ou da Bélgica), quando
a jóia chegava ao lapidador parente do policial.
Novamente,
a notícia da Revolução chega ao acaso, dessa vez através de
um engraxador de sapatos:
Informou-o de que haviam
sucedido acontecimentos estranhos em Lixboa: o governo mudara,
falava-se em dar a independência aos pretos, imagine, os clientes
dos folhados de creme e das torradas indignavam-se (...) Manoel
de Souza de Sepúlveda escutou a mesma conversa no barbeiro,
no notário, na farmácia (...) e na semana seguinte era visto
na África do Sul a tomar o avião para Lixboa (p. 76-77).
Como
pode-se ler na passagem anterior, destaca-se em Sepúlveda a
astúcia própria dos negociantes, com sua preocupação em não
perder tempo diante das circunstâncias, não perder oportunidades
sejam elas quais forem. Assim, a sua apressada partida tem como
destino certo, inicialmente, a casa paterna, onde mora o irmão
e a cunhada. Tudo o que encontra é decadência, da casa, do
casamento do irmão, e decide-se a ir para seu apartamento na
Costa da Caparica. No caminho, o cruzamento, mais uma vez, do
passado com o presente: do táxi, avista os pedreiros construindo
os Jerônimos (p. 80).
No
entanto, surpresa mesmo terá ao entrar no imóvel e deparar-se
com dezenas pessoas que ali estavam vivendo: a crítica ao processo
revolucionário não poderia ser mais sarcástica do que o irônico
discurso dos pobres miseráveis reclamando seu direito à propriedade:
Chegou agora de África,
coitado, não vinha cá há séculos, explorava os camaradas pretinhos,
julga que a casa é dele. Isso pertence ao povo, amigo, pertence
à gloriosa vanguarda do proletariado, foi ocupada revolucionariamente,
percebe?, se for à Câmara encontra lá o meu nome como dono e
gerente deste centro de recuperação para doenças da espinha
(...) (p. 85).
Novamente,
a apropriação das palavras-de-ordem marxistas demonstra o quanto
todo o processo não foi a sério, permitindo, ao contrário, todo
tipo de oportunismo, diante da situação de grande miséria com
a qual se defrontava o país. Diante desse real pesadelo, sem
saber o que fazer, Sepúlveda adormece na praia, onde é assaltado.
Restou-lhe, contudo, um cheque para recomeçar a vida: montou
um bar, alugou uma casa e mais tarde conseguiu comprar a discoteca.
Interessa registrar uma
passagem de grande significado simbólico: a prosperidade de
Manoel de Souza de Sepúlveda chegou-lhe após ele se ter livrado
da cabeça de touro que sempre acompanhara a sua família desde
a infância. Segundo o simbolismo analítico de Jung, o sacrifício
do touro representa o desejo de uma vida do espírito que permita
ao homem triunfar sobre suas paixões animais primitivas e que,
após uma cerimônia de iniciação, lhe daria a paz. Então, matar
o touro é suprimir o pai, porque o touro seria a dominação perversa;
domar o touro é sublimar os desejos instintivos [14] . A ironia de tudo isso está em que, refletindo-se sobre a
"real" história de Sepúlveda, conhecida através da
História Trágico-Marítima do século XVI, conclui-se pela
total inversão dos acontecimentos: foi o instinto dos "selvagens'
que não conseguiu "domar" o responsável por sua morte
e a de toda sua família.
Nesse
romance, subvertendo, portanto, a "real" trama histórica,
Sepúlveda consegue sobreviver à crise geral e não só, pois enriquece.
Tornou-se dono do bar Dona Leonor, assim batizado em homenagem
à esposa morta, local freqüentado pelos vice-Reis da Índia depostos
(p. 124) e onde igualmente aparece o Padre António Vieira, com
"seus sermões de ébrio" (p. 124). Assinale-se que
para bom resultado dos negócios, Sepúlveda não deixou de manter
acordos com Fernão Mendes Pinto e Francisco Xavier sobre o recrutamento
de mulatas para o estabelecimento (p. 125). Enriqueceu tanto
o "naufragado" Sepúlveda que financiou a possibilidade
de editar Os Lusíadas em bolso, publicada numa coleção
de romances policiais, e ganhou tanta notoriedade que privava
da companhia do Rei durante os autos de Gil Vicente (p. 129).
Restava-lhe,
apesar de tudo, algo por conquistar: não conseguia comprar a
última discoteca do Largo de Santa Bárbara, de propriedade de
Nuno Álvares Pereira, assim descrito no romance:
Um homenzinho pequenino,
de boné à Lenine na calva (...), que fora, na juventude, condestável
do reyno, e a seguir religioso em São Domingos, antes de se
cansar de missas e Te Deuns cantados a bater o queixal numa
nave gelada, devolver à Ordem as sandálias que lhe aleijavam
os pés e o burel que lhe causava urticária sem o defender do
frio, recuperar a gabardina profana, pedir um empréstimo ao
Duque de Bragança, seu genro, adquirir a Boite Aljubarrota na
esquina da Avenida Almirante Reis com a primeira travessa do
Largo, e enterrar-se na mesa mais afastada da porta a observar
o escuro, na companhia de um capilé aguado, escutando, imune
às repreensões da filha, a orquestra que tocava, num estradozito
oblíquo, as cantigas de amigo do senhor D. Dinis (p. 130).
Depreende-se do trecho
acima o quanto o caráter historicamente intrépido de Nuno Álvares
Pereira é colocado pelo avesso, pois aparece como uma figura
nostalgicamente fragilizada. Ao mesmo tempo, porém, o perfil
decidido do condestável desloca-se para sua recusa às propostas
de Sepúlveda e à obsessão de seguidamente interromper a fala
do negociante, para perguntar se o outro não ouvia "as
trombetas do acampamento castelhano" (p. 131). O entrecruzamento
do passado com o presente não poderia ser mais bem-humorado
do que na frase do já irritado Sepúlveda lançada ao teimoso
concorrente "— Trombones, uma ova, berrou ele possesso.
Em que século é que você julga que vive?" (p. 132). E mais
uma vez, o capítulo termina (no caso, essa parte de Sepúlveda
e Nuno Álvares) com o espectro da invasão castelhana (p. 133).
No
décimo capítulo aparece Vasco da Gama, e há toda uma inversão/invenção
da sua biografia: nascido em Sines, o mais famoso navegador
lusitano é, no romance, natural de Vila Franca de Xira. No
regresso de Angola, é para lá que se dirige, encontrando o povoado,
já normalmente empobrecido por essa época, às voltas com uma
enchente. Consola-se, apesar disso, pois, enfim, sempre "nomearam-me
conde!" (p. 114). O curioso é saber-se que recebeu, efetivamente,
essa titulação, mas, na verdade, foi conde de Vidigueira, no
Alentejo. Parece, assim, repetir-se o processo de duplicação,
através do qual coexistem o Vasco da Gama, mito histórico, circulando
impávido no imaginário do presente, com tantos outros Vascos,
homens comuns que se confundem em seus fracassos e sucessos
com esses monumentos do passado.
Sendo
certo que um momento marcante do passado histórico português
foi o que protagonizou o navegador de Sines, quando de sua partida
para as Índias, as recordações sobre essa passagem são descritas
como se Vasco da Gama contasse a "verdadeira" versão
da história:
Lembrou-se
do Restelo de manhã, à hora da partida dos veleiros, da corte
instalada num palanque com um toldo de franjas para ver o largar,
das aias que beliscava às cegas nos jardins do palácio, confundindo
o seu odor de pedra-pomes com a essência de passiflora da rainha.
Lembrou-se dos bispos paramentados a oiro, do núncio apostólico
e dos seus óculos escuros de mafioso taciturno, das decotadas
embaixatrizes de países longínquos, do mercado a assistir, suspenso,
ao levantar das âncoras. Lembrou-se dos corvos que recitavam
o Hino da Carta nas tabernas, lembrou-se do povo, ai, do povo,
a acenar bandeirinhas verdes e encarnadas, da velha que me atirou
uma bênção angulosa de profeta ao bolinarem já para as correntes
da barra (...) (p. 113).
Note-se
do trecho destacado o quanto a referência desse evento é sempre
Os Lusíadas, mas reconfigurado em amarga ironia ao marcar
a grande divisão social existente, restando ao povo o papel,
não de representantes de um nacionalismo glorioso, mas de pobres
ingênuos que, no final das contas, nada ganharam com tão magnânimos
ideais de audaciosa expansão.
Entre a história e a
ficção, enfim, "o conde entrou na Vila como os mortos nos
sonhos" (p. 114). Com um humor corrosivo, assiste-se, então,
ao sobrinho pedindo-lhe para não andar pelas ruas exibindo suas
"suíças de Neptuno vestuto". E Vasco não se ofende,
pois tem noção de que "nem o parvo do Rei julgava que eu
voltasse". Como de resto, todo empreendimento expansionista
foi feito de forma nada racional, como só poderia ser uma busca
pelo que efetivamente se desconhece.
Referenciada
uma passagem temporal indefinida, Vasco da Gama volta a encontrar
o rei (fica-se sabendo que fazia quarenta e dois anos que eles
não se viam), quando já "o mosteiro dos Jerónimos, concluído
há decênios, transformara-se de imediato num monumento arcaico
votado aos casamentos dos domingos e à patética celebração de
glórias defuntas" (p. 117). Nesse contexto, a figura do
rei não poderia ser mais decadente: "Encontrou um príncipe
envelhecido afastando as moscas com o ceptro, de coroa de lata
com rubis de vidro na cabeça e hálito de puré de maçã de diabético"
(p. 117).
A
decadência atinge toda glória passadista lusitana, pois "uma
epidemia de moléstias ribeirinhas extinguira praticamente as
tágides, reduzidas a um pequeno cardume de sereias grisalhas
que se alimentavam dos esgotos de Chelas e do sedimento da Siderurgia,
jogado às ondas por uma complicada rede de canais". Para
mais, "Tágides a quem as hérnias da coluna mal consentiam
nadar catavam-se de conchas perto do aparato da Petroquímica
e do seu odor de tripas amoniacais" (p. 120). Dessa forma,
sem as musas, sem as inspiradoras das epopéias, não há nem mesmo
como Vasco contar suas aventuras ao Rei, (no caso aqui, as que
viveu em Angola), pois vão desaparecendo as tágides: à medida
que ia querendo narrar, elas "se evaporavam, uma após a
outra" (p. 121). Por fim, o rei quer mesmo é dedicar-se
a uma partida de sueca com Vasco da Gama pois, por um lado,
de pouco adianta contar-se qualquer coisa e, de outro, tem-se
uma crítica à desatenção dos reis para com os reais e complexos
problemas do país que a seu tempo não resolveram, postergando
para o futuro, sempre pouco refletido, as crises que vivenciam
todos os nau-fragados do presente.
Além
disso encontra-se, nessa mesma parte da obra, mais uma dura
passagem sobre a decadência geral de Portugal:
"O
povo abandonava os castelos e mudava-se para o Luxemburgo ou
a Alemanha, à procura de trabalho em fábricas de automóveis
e de moldes de plástico. Os duques geriam sucursais de bancos
na Venezuela. Os oficiais da escola de Sagres fumavam mortalhas
de heroína e exploravam bares em Albufeira. E se os castelhanos
invadissem o reyno topariam apenas com ingleses indiferentes
no golfe de Estoril, sentinelas a caírem de sono no portão do
Estado-Maior do Exército e mulheres vestidas de preto nas aldeias
desertas, espalhando as saias em redor de banquinhos de pau,
a olharem para o interior de si mesmas um oco absoluto"
(p. 119).
Revelada
no pensamento de Vasco, através da voz do narrador, essa avaliação
tão negativa da realidade portuguesa demonstra o abandono a
que se viu relegado um país paralisado economicamente, que não
se organizou efetivamente para o futuro. De tal sorte, que nem
mesmo os potenciais inimigos, castelhanos, teriam o que encontrar,
a não ser a invasão inglesa, que desde o final do século XIX
foi marcante e monotonamente vitoriosa. Some-se a esse quadro
a própria desmoralização dos mitos, apontada de forma extrema
nos episódios em que Vasco e o rei D. Manuel andam "com
as roupas bizarras de um carnaval acabado", e "longas
madeixas cheirando a orégão de copa, em que proliferavam parasitas
de outros séculos", tendo como séquito um "cortejo
de desocupados que os troçava" (p. 120)
[15] .
Morando, agora, em uma vivenda no bairro econômico de Madre
de Deus, que ganhou como pagamento por seus serviços, além de
uma medalha e de um diploma, Vasco da Gama passa a receber a
visita do rei D. Manuel, que o vai buscar para passeios de automóvel
na praia do Guincho. Mas, tudo na sua vida e morada é deprimente
e a figura de Vasco da Gama é totalmente rebaixada na passagem
em que ele aparece como um velhinho vestindo pijama de criança:
Jantava
água de barril e biscoitos de caravela e com todas as janelas
cerradas e todas as damas recolhidas, subia a raspar as pantufas
no soalho de tacos, despia-se, conforme as juntas deixavam,
do cinto, do punhal, do gibão, da bóia de cacilheiro e dos restantes
adereços de nauta sem idade (...), enfiava-se membro a membro
num pijama de bolinhas de criança (...). (p. 183).
As
visitas do rei D. Manoel contavam com um Ford "antiquíssimo,
ferrugento e descapotável", para passearem "Marginal
fora, a discutir o Oriente num rebolar coxo de bielas, envoltos
em rolos de fumo escuro do motor" (p. 183). Em um
desses passeios, acabaram presos quando
foram
interpelados por um policial que lhes pediu a documentação,
passando a fazerem vizinhança à cela de António José da Silva,
o judeu, o qual jogava batalha naval com Vasco da Gama, enquanto
"esperava a visita soturna dos frades da Inquisição"
(p. 188).
Passados
dois dias, retiraram o conde e o rei da cela, mas sem lhes conceder
um mínimo de higiene e dignidade em sua apresentação junto ao
Tribunal da Polícia, nada que lhes garantisse a "sua condição
de nobres" (p. 188). Arrastados para julgamento, eram assistidos
pelo povo,
curiosos
e desempregados, o vosso povo, o pobre povo de Lixboa, Senhor,
o que em mil quatrocentos e noventa e oito se amontoou na praia
do Restelo para me ver partir, aquelas caras sérias lavradas
pelo desengano da desgraça, aqueles olhos sem esperança, aquela
roupa rasgada, o povo que não esperava nada de Vós ou de mim
por não esperar nada de ninguém nem de milagre algum (...) (p.
188).
Há
nesse trecho um desapontamento, uma desesperança que, à primeira
vista, contradiz as lembranças de Gama sobre o momento de sua
partida para as Índias. Só não se trata de uma contradição realmente
pensando-se que aquelas recordações foram descritas logo de
sua chegada em Lisboa; com o passar do tempo, com seu reconhecimento
do que estava acontecendo mesmo no país, com o rumo de sua própria
trajetória, agora sem nenhum reconhecimento, a impressão que
passa a vigorar tem que ser efetivamente a descrença.
O navegador e D. Manuel
são, por fim, enviados para um hospício, permitindo que se reflita
o quanto, talvez, só mesmo os loucos para acreditarem em Vascos
e Reis, numa altura em que nem a pátria os conhece mais. Reforce-se
a seguinte idéia: em um presente onde o passado ainda se acha
o mais poderoso dos tempos, perde-se a lucidez e não há lugar
para o futuro.
Uma
outra personagem muito especial na obra é Diogo Cão, o qual
tem sua trajetória inicialmente relatada quando da sua convivência
com Camões na Residencial Apóstolo das Índias. No entanto, sua
"história" desenrola-se em dois capítulos próprios,
dos quais o último é o maior de todo romance. Fato em si, menos
relevante, não fosse o caso de se tratar do navegador que, justamente,
alargou os conhecimentos portugueses sobre a África. Sabendo-se
muito pouco de sua biografia, apenas restaram os registros de
seus feitos, como ter ele realizado duas viagens durante o reinado
de D. João II, estabelecendo contato com o rei do Congo, penetrando
no Rio Zaire, atingindo a baía de Benguela, então o ponto mais
ao sul das rotas portuguesas. Além disso, foi a partir de seus
descobrimentos que se chegou à conclusão de que para contornar
o sul da África era necessário que os navios se afastassem da
costa, navegando em alto-mar. Para demarcar suas conquistas,
utilizava padrões que se espalharam pelas praias africanas.
No romance, esse grandioso
navegador, fervoroso e pleno de ousadia e coragem, aparece como
um beberrão que, por causar tantas confusões nos bairros de
prostituição à procura de uma "tágide" por quem se
apaixonara, é enviado para Angola. No entanto, reconhecendo
os serviços prestados por aquele que foi um navegador "como
poucos" (p.151), o monarca ilude a frágil lucidez de Diogo
Cão, dizendo-lhe que em África, seu cargo seria o de fiscal
das Companhias das Águas, à procura das tágides, pois de acordo
com o rei "é claro que toda gente quer que repovoemos o
rio dessas pequenas" (p. 151). Quer dizer, se o objetivo
é que se esqueça de Diogo Cão, juntamente deverá
ser esquecer das tágides, das ninfas, das musas inspiradoras
dos poemas gloriosos. E a realidade só evidencia o quanto não
há mais o que cantar, sendo a África renegada, assim como não
são bem-vindos os retornados.
Diogo
Cão, segundo esta narrativa ficcional, viveu em Loanda por doze
anos, sete meses e vinte e nove dias, como se essa (ou qualquer
outra) precisão temporal tivesse algum sentido na obra - dá,
isso sim, a ilusão de uma objetividade, de um testemunho que,
em verdade, nada significa em si mesmo.
Em Angola, o navegador
era motivo de chacota, por suas aventuras náuticas narradas
com a eloqüência dos ébrios; somente uma velha prostituta, encarregava-se
de cuidar dele. A fusão da decadência mais brutal com a inocência
dos lunáticos faz com que se configurem, nessas passagens, a
máxima expressão da humanidade profundamente fragilizada daquele
que seria um dos grandes heróis portugueses.
Assim,
no capítulo em que a meretriz procura por Diogo Cão na capital
do "reyno", ninguém parece mais conhecer de quem
se trata, e alguns, sem muita convicção, "confusos, numa
voz escolar" perguntavam: "é por acaso o barbaças
que descobriu a Madeira? E eu explicava-lhes pacientemente que
não, meu menino, não descobriu Madeira nenhuma, é apenas um
capitão de Áfricas, aquele que subiu a foz do Zaire com os navios
de el-rei" (p. 199). Por aí se vê uma outra crítica: o
passado não pode ser simplesmente ignorado, desconhecido, ainda
que a verdade não esteja nos livros escolares. O passado deve
ser reconhecido, e bem, para que se mantenha como referência
à disposição de um olhar para trás que não impeça o avanço do
presente.
Dando continuidade à procura de Diogo Cão, a velha instala-se
no Terreiro do Paço, a questionar marujos e funcionários públicos
sobre "o paradeiro dos heróis" (p. 199). E faz uma
contundente contestação à situação presente: "Nunca encalhei,
no entanto, em homens tão amargos como nessa época de dor em
que os paquetes volviam ao reyno repletos de gente desiludida
e raivosa, com a bagagem de um pacotinho na mão e uma acidez
sem cura no peito, humilhados pelos antigos escravos e pela
prepotência emplumada dos antropófagos" (p. 200). A passagem
fala por si na amargura que descreve.
Enfim,
a prostituta encontra a triste figura do navegador de D. João
II: " o seu corpo de neptuno apeado deteriorara-se nesses
meses de abandono desde o regresso de Angola: possuía furúnculos
e grandes peladas na cabeça, (...) conservava dois únicos dentes
na gengiva inferior, e respirava de leve, como os pintos, em
assopros dolorosos e velozes" (p. 207).
Interessa assinalar como o retorno à infância também aparece
como um constante questionamento sobre as personagens do livro:
numa leitura psicanalítica, muito genérica, as marcas do que
se é repousa no que fomos e nos fizeram; assim como o presente
de um país se entende pelo passado que o fez. São ilustrativas,
por exemplo, a passagem em que Diogo Cão compara a velha à mãe,
e vira "miúdo" - p. 213; mas também a própria narração
do retorno de Sepúlveda à casa dos pais e a questão do touro;
e, claro, os episódios em que Camões quer enterrar o pai, enfim.
Sintomática
se faz, portanto, a aparição de uma galeria de personagens que
marcaram, de alguma forma, o imaginário passadista português:
Egas Moniz e seus filhos de baraço no pescoço; Santo António
sermoneando atuns; Fernão Lopes fazendo apontamentos em cadernos
espirais; Garret e suas pestanas irresistíveis, polígrafo e
político; D. Fuas Roupinho pedindo dinheiro emprestado.
O
contraponto que se estabelece vem com nova crítica da mulher
à miséria: quando vão para a Apóstolo das Índias buscar os mapas
do navegador, diz ela não se recordar,
apesar
da sua comprida existência de mulher da vida acostumada a mil
penúrias de abismo e a um sem números de assombrosas desgraças
(...), de uma pobreza como aquela a que assisti nessa tarde,
com sujeitos a ressonarem uns sobre os outros em desvão de chiqueiros,
crianças roendo baratas nos ângulos dos quartos, mulatas submissas
inexistentes de magreza (...) (p. 227).
O mais instigante é que,
ao ver as prostitutas da Residencial Apóstolo da Índia, a velha
meretriz apiedou-se foi dos homens a quem serviam: ora, se elas
são as tágides que restaram, se, portanto, não há mais inspiração,
o triste fica mesmo é para os leitores; tristeza consubstanciada
no final da trajetória de Diogo Cão, vendo a Terra transformada
em um deserto seco de ondas e tágides.
Por certo que o maior
cantor da epopéia portuguesa se faz presente nesses episódios
"naufragados". Como segunda personagem do romance,
é assim apresentado: "Era uma vez um homem de nome Luís
a quem faltava a vista esquerda" (p. 19). Tendo-lhe morrido
o pai durante a guerra colonial em Angola pouco antes de embarcar
de volta para o "reyno", traz a mortalha consigo no
navio de regresso. Durante a viagem, em alojamentos miseráveis,
faz amizade com Vasco da Gama e Miguel de Cervantes, também
retornados e assim apresentados: o primeiro "um reformado
amante de biscas e suecas"; e o segundo, "um maneta
espanhol que vendia cautelas em Moçambique (...) sempre a escrever
em folhas soltas de agenda e papéis desprezados um romance intitulado,
não se entendia porquê, de Quixote, quanto toda a gente sabe
que Quixote é apelido de cavalo de obstáculos (...)" (p.
20).
No
entanto, estabelece uma maior proximidade com o Gama, o qual
passa a Camões o endereço em que residirá em Vila Franca, e
o poeta não titubeia em decorá-lo para uma visita na Páscoa,
já que "não conhecia ninguém em Portugal (...)" (p.
24).
Então
"à segunda ou terceira semana e após muitas naus de descobertas"
(p. 89), ainda está Camões no cais de Alcântara, procurando
uma forma de realizar o enterro. Tendo trocado o esquife por
uma embalagem de cartão, segue "com o pai debaixo de braço"
(p. 91), a procurar por um cemitério onde possa enterrar o falecido,
furtivamente, à noite. No meio do caminho, acaba parando na
Gare Santa Apolônia, onde pega a caneta esquecida de um funcionário
e começa "a primeira oitava heróica do poema..." (p.
97). Evidentemente: Os Lusíadas é a epopéia de um país
já defunto em sua glória passadista.
Segue
Camões escrevendo oitavas, quando trava conhecimento com Garcia
da Orta, o qual, no romance, trabalha como garçon no bar da
estação: "um fulano amargo, de meia-idade, radioamador,
que morava no Bairro Alto com a esposa, cinco descendentes e
o sogro inválido (...)[que] criava plantas medicinais na varanda"
(p. 157). Garcia da Orta propõe que Camões lhe venda o pai como
adubo, ao que o outro acaba consentindo: não se enterra, assim,
o passado glorioso de Portugal; ao contrário, ele segue alimentando
a "natureza" do país, ainda que seja uma natureza
artificialmente criada e mantida como experimentos que garantam
a descoberta de novos remédios para os males portugueses. Mas,
essa natureza é muito perigosa, carnívora e acaba devorando
praticamente toda família do botânico, com exceção da mulher,
que se vai embora, abandonando-o. Acabam nas ruas de Lisboa,
Orta e Camões; o primeiro some-se pelas ruas noturnas, enquanto
Camões foi "moendo episódios heróicos, parando a tomar
notas nas retrosarias iluminadas, até desembocar na praça de
minha estátua, mãe, com centenas de pombos adormecidos nas varandas
em atitudes de loiça e cães que alçavam a pata no pedestal da
minha glória (...)" (p. 166).
Nessas imediações, chamando
o testemunho dos leitores, Camões avista o "cortejo de
tochas e de risos de pagens", em que surge D. Sebastião,
"rodeado de validos, arcebispos e privados, vestido de
uma armadura de bronze e de um elmo de plumas, e desapareceu
para as bandas do pelourinho da Câmara, seguido pelo espanto
dos polícias e guardas-nocturnos, a caminho de Alcácer Quibir"
(p. 166).
Como
também não poderia ser de outra forma, Camões é o protagonista
do final do romance. Vivendo em um hospital para tuberculosos,
desocupado pelo governo para servir de alojamento aos retornados,
lá,
o homem de nome Luís,
a quem apesar da ausência de sintomas obrigaram a um roupão
de moribundo, obteve autorização para um intervalo de uma hora
fora da cerca do hospício, escoltado por um servente que carregava
o penico de loiça destinado aos bacilos da hemoptise que tardava
(p. 237).
Pensando-se
que a tuberculose, de certa forma, é considerada uma doença
"da miséria", nada mais corrosivamente crítico do
que a imagem de uma legião de tísicos (a)guardando o futuro
do país:
Amparados uns aos outros
para partilharem em conjunto do aparecimento do rei a cavalo,
com cicatrizes de cutiladas nos ombros e no ventre, sentaram-se
nos barcos de cascos ao léu (...). Esperámos, a tiritar no ventinho
da manhã, o céu de vidro das primeiras horas de luz, o nevoeiro
cor de sarja do equinócio, os frisos de espuma que haveriam
de trazer-nos (...) um adolescente loiro, de coroa na cabeça
e beiços amuados, vindo de Alcácer Quibir com pulseiras de cobre
trabalhado dos ciganos de Carcavelos e colares baratos de Tânger
ao pescoço (...) enquanto apertávamos os termómetros nos sovacos
e cuspíamos obedientemente o nosso sangue nos tubos do hospital
(...) aguardando, ao som de uma flauta que as vísceras do mar
emudeciam, os relinchos de um cavalo impossível (p. 247).
Tal
cena desconstrói qualquer espírito messiânico: não há mais lugar
para a imobilidade mortal e alienada de um futuro que não se
fizer construir na certeza de seu presente. O passado, de tão
grandioso, acaba, por sua presença maciça, soterrando as expectativas
de construção de uma vida nova. D. Sebastião não retornou, a
Revolução não se fez, e mesmo o poeta, que ainda finge acreditar
minimamente na lira, sabe, muito bem, que o cavalo passadista
é impossível de ser mensageiro das necessárias mudanças.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
A derrota de Alcácer
Quibir levou à perda da independência, transformando-se em mito;
a derrota na guerra colonial levou à queda da ditadura, mas
com um processo revolucionário que se fez ilusão, que ainda
está por se cumprir. Para isso é preciso, antes de mais, quebrar
os mitos. Processo feito em As Naus através, principalmente
com a humanização dos "heróis", levada às últimas
conseqüências: seu rebaixamento. Não se tratando de homens melhores,
mas piores do que são, o trágico dá lugar ao riso, sem dúvida
bastante amargo, mas remetente de uma crítica ao presente, visto
não como sem saída — porque já não se tem, e felizmente, dogmatismos
a serem seguidos — mas um presente a fazer-se, em um futuro
que já não pode mais ser adiado. O chamado do poeta ecoa distante:
"É a hora!", mas com um sentido totalmente renovado,
porque já não há mais nada para ser esperado, a não ser a extrema
ousadia de humanizar o passado, desglorificar os heróis e desacreditar,
com muito bom humor, todas as verdades históricas que não desconfiem
de si mesmas.
Tal proposta desmitificadora
implica, também, a desmitificação de uma identidade que se reconhece
como forjada, construída exemplarmente, por certo, e de tão
exemplar tão pouco "verdadeira". Com isso apenas se
quer referir o quanto o texto de Lobo Antunes aponta para o
terceiro nível da ideologia, de acordo com as proposições de
Paul Ricoeur [16] : toda ideologia é integradora, é o fundamento
de um grupo que se identifica, que se reconhece como tal. É
o molde de todas as identidades sociais e nacionais. Nesse
sentido, resguardando-se seu caráter positivo, não se perde
de vista, contudo, o traço sempre conservador da ideologia.
Pode-se questionar, então: de certo modo, apontar para a artificialidade
de uma identidade nacional mitificada, não significa, ainda
assim, continuar buscando um sentido mais apropriado de identidade?
Reconhecer o fracasso da glorificação ufanista não tem, igualmente,
o sentido de afirmar a vitória da lucidez, potencialmente nunca
perdida, de que não existe um fim da história? De que o processo
histórico assim se denomina por sua inexorável e paradoxal permanência
sob o signo da mudança?
Às respostas não se pode
furtar um claro posicionamento igualmente ideológico, primeira
óbvia constatação, quando se defende um sonoro sim para todas
elas; posição de empenhamento que não abre mão de ver na literatura
a capacidade sempre renovada de engendrar criticamente, acima
de tudo, o presente. O cerne dessas problematizações está em
que o presente nada mais é do que a contingência da época de
nascimento dessa obra, de toda obra literária (e artística,
em geral, sem dúvida), para além e sempre da contingência de
todos os presentes possíveis de sua "leitura" (aqui
sinônimo de decodificação interpretativa/construtiva).
Por essa razão, entende-se
que o romance em foco veicula uma noção positiva de ideologia:
a fragmentação de qualquer identidade sólida, estacionária em
seu reconhecimento, nada mais faz do que reclamar a construção
de um projeto minimamente estruturado de nacionalidade. Como
já disse a protagonista de Lucialima, "ter um país
é ter para onde voltar" [17] - e não é essa justamente a grande procura
dos retornados e dos que os recebem na mesma terra que se tornou
estranha a todos?
Assim, a essa concepção
de ideologia como base positivamente integradora, corresponde
uma visão de utopia que se apresenta como construtiva, como
também positivamente configuradora. Porque urge reconhecer-se
o país, na provisoriedade inexorável de qualquer afirmação dialética,
torna-se do mesmo modo urgente o não abrir mão da utopia.
Poder-se-ia afirmar ser
o sebastianismo, certamente, já uma visão utópica. No entanto,
o messianismo que o impregna constrói um futuro que no máximo
está ressuscitado dos mortos o que, na imponderabilidade de
todo milagre, amarra o futuro numa visão do passado e, assim,
torna-se tudo, menos efetivamente vivo e pulsante. A utopia
revigorada no romance de Lobo Antunes aponta, sim, para o desejo
de construção de uma pátria portuguesa tão mais habitável quanto
maior for a possibilidade de se sonhar com o que nem se imagina
que possa ser sonhado.