A
CULTURA DO MEDO COMO RESULTANTE DE PROCESSOS AUTORITÁRIOS
EM
MARIO VARGAS LLOSA E JOSÉ SARAMAGO
Camila Clélia
Alencastro Paes [1]
A necessidade de interagir, inerente ao homem, é um dos fatores
responsáveis pelas transformações que vêm ocorrendo nas diferentes
áreas – tais como no campo político, econômico, social e cultural
– as quais resultaram na globalização. Os indivíduos, buscando
conhecer melhor o que ocorre ao seu redor, passaram a analisar
de forma crítica as semelhanças e as diferenças que se vêm processando
no mundo contemporâneo. É nesse contexto de mudanças – em que
a literatura parece perder a centralidade cultural – que atua
a literatura comparada, sendo marcada por uma relação de interação
entre a literatura e outras práticas. Nela, a obra é considerada
em sua totalidade, isto é, em seu caráter pluridisciplinar.
A globalização da literatura comparada nasce, assim, da análise
de um conjunto de saberes que vai além do já existente, passando
de uma perspectiva de ordem nacionalista para o reconhecimento
do caráter supranacional do sistema literário e cultural. Trata-se
de um projeto realizado através do diálogo de idéias, o qual
desafia as ciências humanas a construírem uma outra compreensão
de si próprias. Esse projeto é inspirado num conjunto de situações,
e está empenhado na busca natural e espontânea da verdade, para
a qual Walter Benjamin (1984) considera que “não é necessária
a coerência das ciências”.
Por sua vez, Mikhail Bakhtin (1999), em sua teoria, defende
a idéia sobre a qual o jogo de opiniões em confronto, entre
duas ou mais ciências cruzadas entre si, constituem um diálogo
intertextual produzido no campo das ciências humanas. Os pontos
de vista simultâneos dessas ciências se completam na totalidade
que constitui o evento dialógico promovido na prática cultural.
Nesse aspecto, Benjamin e Bakhtin, apesar de possuírem discursos
e estilos diferentes, se aproximam pelo fio do sentido, por
um compromisso com a verdade mais ampla que os mantém interligados
na história.
A essas, pode-se acrescentar as postulações do semiólogo Roland
Barthes (s/d), o qual assinala que “a interdisciplinaridade
consiste em criar um objeto novo que não pertença a ninguém”.
O autor se refere, especificamente, ao texto literário, no qual
a interdisciplinaridade ocorre por meio do entrecruzamento das
diferentes áreas do conhecimento que se encontram disseminadas
na narrativa.
Sabe-se que o processo histórico de um país pode aparecer através
das diversas manifestações literárias de seus escritores. A
literatura contemporânea de ênfase social, comprometida com
a ótica popular e com o desvendamento da verdade, é comum tanto
na América Latina como em países da Europa, como ocorre em Portugal.
A procura de um tempo presente faz com que apareçam textos de
ênfase referencial, promovendo a recuperação da história num
diálogo intertextual baseado no contexto cultural, no ambiente
social.
Os episódios narrados em ¿Quién mató a Palomino Molero? (1986),
de Mario Vargas Llosa, e A Caverna (2000), de José Saramago,
objeto deste estudo, refletem os acontecimentos comuns nas sociedades
da época representada pelas obras. De forma crítica, os escritores
analisam seu contexto, procurando compreendê-lo de forma
realista e conduzindo o leitor ao conhecimento da verdade que
o circunda, ao mesmo tempo em que contribui para que este reflita
sobre o papel que lhe cabe na sociedade.
A América Latina, na opinião de Eduardo Coutinho (2001) e de
Ángel Rama (1982), entre outros autos, é uma construção múltipla,
plural, variável, que designa um conjunto de nações denominado
por eles de “Pátria Americana”. Simón Bolívar já proclamava:
“Para nós a Pátria é a América”, e essa afirmação tem sido confirmada.
Ao longo dos anos, a realidade demonstrou que, apesar das diferenças
geográficas, a história da América Latina foi marcada por um
cenário político representado pelas desigualdades sociais, pela
hipocrisia moral e pela repressão. Nesse sentido, Ángel Rama
afirma que o gênero do romance foi decisivo na formação da literatura
latino-americana, servindo para denunciar as tragédias nacionais
e transnacionais, e situando o homem artisticamente no mundo.
A unidade latino-americana a que se referem os autores citados
é representada, aqui, através da narrativa de Mario Vargas Llosa
que, ao refletir a sociedade de seu país de origem, o Peru,
apresenta as contradições existentes entre a democracia e o
autoritarismo, comuns em grande parte dos países do continente
latino-americano.
Por meio da ficção, o autor peruano mostra que a socialização
do indivíduo funciona como um condicionamento. Através da cultura,
o homem é levado a considerar a sociedade como um modelo de
vida social, pela imposição de normas de conduta, pela determinação
das apreciações morais e dos comportamentos sociais. Surgem,
assim, novas culturas, como a cultura do medo, a qual
se busca explicar, por intermédio da análise das obras mencionadas.
A temática principal do romance de Vargas Llosa é o indivíduo
vítima de uma sociedade corrompida, tratada pelo autor como
uma personagem coletiva. Em ¿Quién mató a Palomino Molero? são
examinadas as características da sociedade peruana e seus mecanismos
de corrupção, de intrigas e de repressão provocadas pelo militarismo,
traços representativos da cultura latino-americana contemporânea
considerada como um todo.
Da mesma forma, no romance A Caverna, de José Saramago, ocorre
um diálogo cultural entre o artista e a sociedade, onde o primeiro
relata uma condição social, e o romance se emancipa através
de suas idéias. A Revolução dos Cravos, ocorrida na década de
setenta, em Portugal, sinalizou o processo de modernização da
sociedade portuguesa, a qual se abre para o pensamento ocidental
contemporâneo. O 25 de abril de 1974 representa a transição
de um passado agrário e patriarcal para a evolução das relações
econômicas, políticas e sociais, numa perspectiva de globalização
apontada pelo capitalismo tardio deste final de século, que
culminou com o ingresso do país na Comunidade Européia, nas
décadas de 80 e 90.
Mikhail Bakhtin oferece uma sólida base teórica para a compreensão
e constituição do sujeito, e para o caráter eminentemente social
e político desse processo. O autor enfatiza que as relações
sociais existem na concretude dos contextos em que elas se dão.
Esse tipo de estratégia analítica, indispensável para uma leitura
sociologicamente orientada, estabelece uma via de mão dupla
entre o contexto sociológico e os sujeitos discursivos, favorecendo
a análise crítica das obras, a que se propõe este estudo.
Em A Caverna, Saramago oferece uma elaborada metáfora sobre
a sociedade portuguesa contemporânea. Nela, pode-se acompanhar
os sofrimentos de uma família de artesãos que depende de um
centro comercial, o qual deixa de comprar os produtos de barro,
produzidos em sua olaria, para obter outros de plástico, de
mais fácil comercialização. O centro todo poderoso que vai engolindo
as antigas construções tem, como única meta, que o povo consuma.
Dentro de um mundo virtual, o centro comercial é a caverna do
mito de Platão; e a família do oleiro é o único vínculo de humanidade
que resiste ao centro, porque o artesão acredita na luta mediante
a reflexão. Conforme enfatiza Walter Benjamin (1995: 107), “a
narração não tem a pretensão de transmitir um acontecimento
(...), integra-o à vida do narrador para passá-lo aos ouvintes
como experiência. Nela, ficam impressas as marcas do narrador
como os vestígios das mãos do oleiro no vaso da argila”. Saramago
controla o decorrer da trama e tudo sucede em seu exato momento,
sem artifícios. O romance consegue seu objetivo maior, que é
provocar uma reflexão sobre os valores da sociedade contemporânea
em tempos de globalização.
Este é um romance que encerra um ciclo que se iniciou com Ensaio
sobre a cegueira (1995) e continuou com Todos os nomes (1997).
O conjunto das três obras, denominado pelo próprio autor de
“Trilogia Involuntária”, representa a visão que este demonstra
ter sobre o mundo. A ação do protagonista Cipriano Algor, em
A Caverna, se apresenta sob a forma de uma concretização da
reflexão do narrador. Obedecendo, intencionalmente, às fronteiras
entre a realidade e a ficção, o romancista apresenta uma narrativa
que se aproxima do testemunho. Nela, o tom coloquial e confessional
oferece ao leitor um pacto de verossimilhança, um convite a
compartilhar a experiência de uma personagem comum, de alguém
que, em sua vivência, se aproxime o mais intimamente possível
da experiência empírica de um leitor comum que teme pelo seu
futuro.
Na opinião de Linda Hutcheon (1994), o contexto literário está
ligado às circunstâncias, ao ambiente; ele é construído por
procedimentos interpretativos que são fruto de experiências
anteriores, resultando outros textos e contextos. A questão
do contexto encontra-se estreitamente ligada à interpretação
que ele condiciona. Quando se comunica com o leitor, o narrador
tem como função narrar a história. É nessas circunstâncias que
ele orienta e até manipula a percepção possível dos acontecimentos
narrados. Nas narrativas a considerar, a presença do narrador
é constante. Além disso, essa presença não se limita à narração.
O narrador interfere no desenvolvimento da história através
de tomadas de posição que podem até inscrever de modo explícito
o destinatário.
Por outro lado, contrariamente ao entendimento do senso comum,
as ciências humanas vêm esclarecer que tudo o que diz respeito
ao comportamento social do homem – e sua vida individual e coletiva
– tem origem histórica, não havendo nada relativo à realidade
social que possa ser aceito como herança biológica, como extensão
das leis naturais.
Pode-se dizer, também, que os homens de todas as culturas apresentam
um mínimo de reações semelhantes. As razões para que esse fator
ocorra residem na vida social. O medo é um desses elementos.
Ele está diretamente relacionado com a instituição da vida em
grupo. A construção do espaço na sociedade é sempre um empreendimento
marcado pelo controle social, em que o medo é um elemento fundamental,
pois é mutável como a sociedade em que o homem vive.
Através da sociedade, o ser humano é condicionado, isto é, é
submetido a uma cultura instituída que o leva a considerar o
seu modo de vida como um modelo ou expressão natural da vida
em sociedade. Ao lado do aprendizado das normas e dos costumes,
a aquisição da linguagem funciona como um mecanismo poderoso
de controle, na opinião de Roland Barthes:
A
cultura é (...) a soma total, integrada, das características
de comportamento aprendido, que são manifestadas e compartilhadas
pelos membros de uma sociedade. Sua continuidade é garantida
pela punição de membros da sociedade que se recusam a seguir
os padrões de comportamento que lhes são determinados pela cultura.
(s/d: 23)
Dessa maneira, o comportamento humano é um produto de suas próprias
práticas no processo de criação de seu mundo. Portanto, o homem
é, em tudo o que lhe caracteriza como ser social, um ser criado
pela cultura, embora não o seja passivamente. Além disso, a
evidência de que a experiência da socialização é a experiência
da dominação é apresentada, também, por Michel Foucault (1992),
quando se refere às “múltiplas sujeições que existem no corpo
social”.
A ideologia faz acreditar que as instituições sociais existem
porque se apresentam como produtos de leis naturais, constituindo-se
no discurso que a sociedade faz de si mesma. A ideologia, por
meio da dissimulação, torna invisível o processo que conserva
sua estrutura de sociedade. Sendo assim, a ideologia é, pois,
o discurso da dominação, na opinião de Foucault, uma vez que
serve de legitimação da ordem vigente. Esse discurso é voluntário,
produzido espontaneamente pelos grupos ou classes no exercício
da dominação. Para ele “é somente mascarando uma parte importante
de si mesmo que o poder é tolerável. Seu sucesso está na proporção
daquilo que consegue ocultar dentre seus mecanismos”. (Id.:
83)
No presente trabalho, procura-se demonstrar que a existência
de práticas de castigo, nas culturas humanas, faz parte da crença
mantida, com a criação de novas culturas, na eficácia de punições
aplicadas a todos aqueles que infringirem as leis sociais. A
análise leva em conta a reflexão sobre a existência de mitos
de castigo nas culturas atuais, constituindo-se em verdadeira
fonte para a produção de um silogismo de aceitação – por intermédio
do medo – de castigos, torturas e até da pena de morte a que
são submetidos os indivíduos, nas sociedades contemporâneas.
Esses mitos de castigo propiciam a formação de uma nova cultura
– a cultura do medo – que habitua a todos a aceitarem
como legítima a utilização da violência sobre o corpo, a imposição
de castigos cruéis, a condenação de pessoas à morte ou mesmo
o constrangimento psicológico por meio de atitudes autoritárias
e repressoras. A instituição de práticas de castigo e a pena
de morte, em muitas sociedades, não ocorrem sem o concurso das
idéias de justificação social do castigo: a presença dos mitos,
no campo da ideologia e da cultura, e seus efeitos sobre a vida
dos indivíduos.
(Re)construir a partir do “já dito” equivale a (re)interpretar
de novo. Segundo Linda Hutcheon (1994), o papel do intérprete
não se limita a uma simples decodificação ou reconstrução do
sentido geral; a tarefa do leitor deve conduzir a uma deslocação
interpretativa, a uma leitura das obras num contexto alargado,
cultural, social e político. Ao crítico, é atribuída uma tríplice
competência: uma competência lingüística, em que o leitor decifra
não só o explícito, mas também o implícito; uma competência
genérica, que se traduz no conhecimento das convenções literárias
e retóricas; e a competência ideológica, que se encontra subentendida
na distinção que voluntariamente se estabelece entre os diversos
tipos de leitores. Essa tripla competência pode ser perspectivada
como um eco do compromisso autor/leitor.
O estudo do contexto pressupõe uma série de conhecimentos aparentemente
anteriores ao texto, mas serve, fundamentalmente, para que haja
uma reconstrução do contexto no momento da análise. Levando
em conta as palavras de Walter Benjamin (1984), de que “a verdade
é bela não tanto em si mesma, quanto para aquele que a busca”,
considera-se que o trabalho de análise e interpretação, desenvolvido
a partir das hipóteses levantadas, encontra plena resposta no
conteúdo das obras.
Dessa forma, a união dos textos não tem por objetivo conduzir
as semelhanças e as diferenças a um denominador comum, mas apresentar
uma das possíveis leituras das obras selecionadas. Vargas Llosa
mostra, através de seu protagonista, que a violência serve ao
exercício da dominação e que o medo e a impunidade podem ser
características dos processos autoritários. Por sua vez, Saramago
demonstra que as sociedades capitalistas também podem provocar
o medo ao exercer a dominação sobre os seres humanos, os quais
são esmagados pelo poder econômico.
Em ambos os casos, os processos autoritários criam suas vítimas
subjugando e castigando os indivíduos, pois o medo pode ocorrer
de múltiplas formas. Os mitos de castigo e o Mito da Caverna,
utilizados pelos autores, são modos de representação da ideologia,
a qual condiciona a sociedade formando novas culturas, como
a cultura do medo, cuja presença é observada através
dos romances analisados.