Imagens
do Índio, etnocentrismo e racismo nas literaturas e culturas ibero-americanas
do século XX (Brasil, Peru, Equador)
Marcelo
Marinho
[1]
Resumo
Uma
das mais marcantes características da modernidade nas literaturas
ibero-americanas é a emergência da figura do índio e de sua cultura
nas páginas de ficção. Todavia, a Europa permanece assombrando
as páginas dos autores ibero-americanos mais engajados em causas
indígenas, de Ciro Alegría a Darcy Ribeiro, de Augusto Roa Bastos
a Miguel Ángel Asturias. Assim, a partir da ferramenta metodológica
desenvolvida pelo comparatista Daniel-Henri Pageaux sob o nome
de “imagologia”, será analisado, num corpus de textos literários
brasileiros, peruanos e equatorianos, o grau de etnocentrismo
presente no imaginário de autores que mais marcaram, nesses países,
a cultura do Século XX, reflexo das imagens de auto-representação
no espaço ibero-americano.
Palavras-chave:
Indigenismo; Etnocentrismo; Racismo.
Abstract
Regarding
Iberian-American literatures, one of the most important characteristics
of the Modernity is the affluence of Indians and their culture
through the fiction works. However, Europe remains astonishing
many authors engaged on defending indigenous populations, from
Ciro Alegría to Darcy Ribeiro, from Augusto Roa Bastos to Miguel
Ángel Asturias. So, starting from the methodological tool developed
by Daniel-Henri Pageaux under the name of “imagology”, it will
be analyzed, through a corpus of Brazilian, Peruvian and Ecuadorian
literary texts, the ethnocentrism degree present in the imaginary
of some authors that marked strongly, in those countries, the
culture of the 20th Century, images of the self-representation
in Iberian-America.
Key
words: Indigenism; Ethnocentrism; Racism.
O
racismo e seu duplo: o etnocentrismo
Uma
das mais marcantes características da modernidade nas literaturas
ibero-americanas é a emergência da figura do índio e de sua cultura
nas páginas de ficção. Assim, em Macunaíma, um dos textos
que confirmam a modernidade na literatura brasileira, Mário de
Andrade propõe a desconstrução do mito do Bom Selvagem e sua provocativa
substituição pela figura do “herói sem nenhum caráter”, forma
de marcar a especificidade de nossa literatura em relação àquela
importada da Europa. Ora, o que se observa é que a proposta de
Mário de Andrade se constrói, exatamente, sobre o duplo ou o avesso
da imagem do Bom Selvagem: sua referência continua sendo a literatura
européia, cabendo à idéia de autonomia nada mais que os resquícios
de uma utopia jamais realizada. E a Europa setentrional parece
continuar assombrando as páginas dos mais engajados autores ibero-americanos,
de Ciro Alegría a Darcy Ribeiro, de Augusto Roa Bastos a Miguel
Ángel Asturias, cabendo ao imaginário (a ser visto como um “coletivo
de imagens”, segundo Daniel-Henri Pageaux) de diferentes textos
um maior ou menor grau de etnocentrismo (desdobramento de um racismo
velado), reflexo das imagens de auto-representação no espaço ibero-americano.
Assim
é que o grande poeta e prêmio Nobel mexicano Otavio Paz, em seu
Labirinto da Solidão, afirma que “o mexicano não
quer ser nem índio nem espanhol, e não quer nem mesmo ser descendente
deles; o mexicano os renega” (p. 109). Uma tal proposição poderia
ser estendida ao conjunto da América hispânica, tal como é possível
notar nas palavras lançadas pelo romancista peruano Mario Vargas
Llosa, quando de uma entrevista coletiva concedida, em 1995, nos
elegantes salões parisienses da Maison de l’Amérique Latine, momento
em que Peru e Equador travavam uma guerra por questões fronteiriças,
estúpida guerra, segundo Llosa, visto que “esses países se batem
por um território no qual não há nem peruanos, nem equatorianos,
tão apenas índios”. Nota-se o quão reveladores podem ser os lapsos
ou atos falhos.
Poder-se-ia
igualmente dizer que o brasileiro não quer ser nem negro, nem
índio, nem português. Estranha identidade é essa cuja dimensão
fundadora se traduz pelo ato de negação. E, fato ainda mais grave,
negação de si mesmo. Pois, pelas suas manifestações culturais,
pela sua alimentação e sua vestuária, pela sua música e sua arquitetura,
pela sua religião e – sobretudo – pela sua língua, esse povo
somente poderá ser aquilo que não deseja parecer: negro, índio,
português e espanhol ao mesmo tempo, abstração feita de outras
componentes étnicas do país. No imaginário social marcado por
esse amálgama quaternário, o elemento indígena parece ocupar uma
posição essencial, haja vista sua dimensão fundadora a par de
suas raízes imemoriais sobre o solo do continente. Qual será a
percepção que desse antigo senhor teria, nos dias de hoje, a América
latina em seu conjunto? Muito mais do que respostas provisórias
a essa questão, busquemos, nas páginas seguintes, a formulação
de questões permanentes.
1. Literatura
e imagem do Outro
A
percepção que se tem do Outro é, de forma geral, vaga e movediça,
posto que construída ao grado das flutuações discursivas ligadas
a mudanças de interesses sócio-políticos, tal como é possível
perceber com uma simples mirada sobre a evolução da imagem dos
brasileiros nos jornais paraguaios durante os recentes períodos
de crise dos brasiguaios naquele país. Todavia, essa percepção
pode se desenhar de forma mais rígida em manifestações lingüísticas
menos suscetíveis de mudanças quotidianas, como, por exemplo,
nos ditados e provérbios (“mais por fora que bunda de índio”),
nos sintagmas fixos (“programa de índio”), em epítetos (“bugre”,
“bugrão”) e em definições de palavras dicionarizadas, assim como
nos textos literários, portadores do espírito ou da essência de
uma época. Esses textos, ao lado de textos historiográficos, jurídicos
e didáticos, são uma ferramenta fundamental para a reconstrução
da imagem do índio tal como ela se concebe no conjunto do continente
ibero-americano. Acompanhando Tzvetan Todorov, será legítimo dizer
que a figura do índio pode igualmente simbolizar a emergência
das minorias no discurso literário que, por sua vez, poderia justificar
e procurar manter os degraus da escala social em estado de câmbio
improvável. Ademais, alguns textos literários atingem grande sucesso
de público e ascendem ao estatuto de modelo estético, fato que
implica na multiplicação aritmética de um discurso que poderia,
igualmente, dar seu testemunho sobre o processo de autentificação,
diante de um imaginário coletivo, das imagens apresentadas nas
páginas de ficção.
A
noção de fortuna, sucesso ou modelo ultrapassa o simples quadro
estético, como pode testemunhar, por exemplo, nas páginas equatorianas
de Jorge Icaza, a transformação em texto literário de um certo
episódio verídico no qual uma índia, vítima da violência de seu
marido, impedirá toda e qualquer pessoa de vir em seu socorro
(Huasipungo, p. 82). Segundo afirma Teodosio Fernandez em sua
“Introdução” a Huasipungo, esse episódio aparece inicialmente
em Juan Montalvo (Catilinárias, 1880), e é retomado por Fernando
Chavez (Plata y Bronze, 1927), sendo por fim utilizado por Icaza
em 1934. Tratar-se-ia, portanto, da generalização ao conjunto
dos indígenas, por intermédio de multiplicadoras páginas de ficção,
de um comportamento que seria apenas e tão somente individual;
por esse viés, um tal discurso vem agregar (ainda mais) uma imagem
depreciativa – tendo em vista os padrões culturais que são aqueles
dos brancos – ao imaginário do público receptor. Se representação
coletiva do mundo e discurso literário estão assim tão imbricados,
será preciso considerar, no andamento do presente estudo, as noções
propostas por Tzvetan Todorov:
Passar
por um discurso para aceder ao mundo é, talvez, um desvio de percurso;
mas esse desvio também conduz ao destino desejado (...) Os discursos
são, também eles, evento, são motores da história, e não apenas
representações (...) As idéias não fazem, sozinhas e por si só,
a História, pois as forças sociais e econômicas também atuam;
mas, da mesma forma, as idéias não são um puro efeito passivo.
Inicialmente, elas tornam os atos possíveis; em seguida, elas
permitem torná-los aceitáveis e aceites: eis aí, ao final das
contas, atos decisivos. (Nous et les autres, p. 13)
Para
o estudioso dos feitos sociais, o desvio sobre o qual fala Todorov
poderá transformar-se em atalho, pois, se considerarmos que transmutar
uma situação em discurso literário equivale a transformá-la em
imagens, notaremos, com Daniel-Henri Pageaux, o célebre comparatista
teorizador da imagologia, que toda imagem procede de uma
tomada de consciência, por menor que seja, de um Eu em relação
a um Outro, de um Aqui em relação a um Alhures (apud Machado,
1988:58 sqq.). Assim é que o pesquisador da história cultural
poderá contar com testemunhos materiais, provas tangíveis de um
certo estado de fatos sociais. Quanto às imagens e ao imaginário,
notar-se-á que as imagens do Outro se estabelecem de maneira exemplar
no plano da aparência física, e, com freqüência, pelo viés de
caracterizações fortemente estereotipadas com intuitos depreciativos,
pois, segundo Pageaux, “o estereótipo representa uma confusão
essencial entre a Natureza, o Ser e a Cultura, o Fazer” (apud
Machado, 1988:140). Com efeito, pela transferência de semas entre
imagens da natureza e imagens da cultura, os textos deixam eventualmente
subentender que a inferioridade cultural (por vezes, a inferioridade,
simplesmente) de um sujeito – ou de um povo – somente pode ser
a conseqüência inevitável de uma anomalia natural – física ou
fisiológica – qualquer, e vice-versa. Ao anunciar uma anomalia
física (estereotipada), o texto, ao mesmo tempo, prova a inferioridade
cultural (ou intelectual) do personagem em questão, pois, como
diz Pageaux, o estereótipo “prova ao mesmo tempo em que se enuncia”
(apud Machado, 1988:60), razão pela qual “não se deve espantar
da importância do registro físico, fisiológico, para enunciar
o estereótipo (nariz adunco para o judeu, sorriso de grandes dentes
brancos para o negro, etc...): a natureza justifica, cauciona
uma situação cultural: tal povo sabe... não sabe...” (Pageaux,
1994:63). Passemos, portanto, à análise de discursos literários,
neles entrando através de seu menor fragmento: a palavra.
2. Das
palavras ao discurso
Consideremos,
inicialmente, a palavra “indigenismo”, emblematicamente ausente
da versão 1976 do Aurélio, o mais popular dos dicionários brasileiros.
Somente dez anos mais tarde, em 1986, o Aurélio definirá
o indigenismo como “estudos ou conhecimentos acerca de nossos
indígenas, os índios brasileiros” (nós grifamos). Através do emprego
do pronome possessivo “nosso”, uma relação de exclusão termina
por se estabelecer. O pronome “nosso” pode marcar nuances muito
diversas, do companheirismo à ironia, ao desprezo, da simpatia
pessoal a um interesse suposto comum a dois interlocutores. O
“eu” (autor do dicionário) dirige-se a um “tu” (o leitorado) e
fala sobre uma terceira pessoa (ou um terceiro objeto, externo
ao diálogo). O pronome possessivo “nosso” parece indicar que essa
terceira pessoa faz parte das posses compartilhadas pelo “eu”
e pelo “tu”, ao mesmo título que os objetos que se pode simbolicamente
possuir, como vemos em “nossas florestas”, “nossa literatura”
ou “nossa fauna”. “Nossos sul-americanos”, por exemplo, não teria
sentido em nenhum caso de figura, assim como “nossos cariocas”
ou “nossos paulistas”. Um sintagma como “nossos negros” levantaria
o protesto geral; e, no entanto, o dicionário serve-se de “nossos
índios”, sem aparentes objeções.
Cria-se,
dessa forma, uma relação de continente e conteúdo entre “nós”
(autores e leitores de dicionários) e “eles” (os índios): do conjunto
formado apenas pelos primeiros (categoria englobante, superior),
estão excluídos os segundos (categoria englobada, inferior). Essa
construção gramatical sintomática de um discurso de exclusão,
doravante cristalizada para sempre nas páginas de um dicionário,
é retomada alhures, como, por exemplo, no título de um estudo
proposto por Gonzalez Prada, Nuestros Indios, publicado
pela UNAM (México). E o etnocentrismo prossegue nas páginas do
Aurélio, versão 1986, agora na definição do próprio termo
“índio”: “o habitante das terras americanas ao chegarem os descobridores
europeus” (grifo nosso). Se a noção de “descobrimento” é hoje
discutida em todas as instâncias de reflexão, é possível ainda
observar, no Aurélio, que até mesmo o conceito de “índio” é definido
às avessas pelo conceito de “europeu”. Ainda que no interior do
espaço lingüístico, o índio parece não lograr seu direito a uma
existência própria, autônoma, condicionando sua definição e sua
significação à existência do colonizador. Também nos textos literários
será preciso levar em conta a construção de personagens de pura
origem européia, pois, com freqüência, a imagem dos indígenas
será definida como a forma avessa da imagem dos europeus, numa
estrutura binária fortemente marcada por relações de hierarquia.
3. O avesso
e seu avesso: imagens fisiognomônicas
É
assim que, em Maíra, romance com visada etnográfica do engajado
Darcy Ribeiro, ao descrever o universo de uma tribo indígena,
o autor coloca em cena o personagem de Alma Freire, “moça clara”,
“esguia”, “loura”, tal como exigem os padrões etnocêntricos de
beleza, Mãos e braços de Alma são dotados de muitas qualidades
estéticas, aquilo que as índias podem “admirar na cor,
na textura da pele, na rigidez das carnes, no calor” (Maíra, p.260-261;
grifo nosso), qualidades das quais as índias são privadas, pois
“admiram”, ao invés de “examinar”, atitude mais neutra e não hierarquizante.
Alma oferece, ainda, à admiração das indígenas, o “desenho delicado
da curvatura da boca, a arquitetura do nariz levantado, a arcada
soberba da sobrancelha”, seu “cabelame lasso”, “os redemoinhos
louros, de seda, do corpo de Alma”, “a bunda alta e esbelta, abundante
e firme, e os seios alçados, bicudos, torneados, alados” (Maíra,
p. 261). A tais características físicas poderia se opor um eventual
retrato especular (ao avesso) das índias, invertido pelo verbo
“admirar” e composto pelo próprio leitor. Assim, Alma, com sua
idade aproximada de 35 anos, conserva-se bastante bem, e seu retrato
opõe-se nitidamente àquele das “velhas índias, maltrapilhas”,
que “agarram os próprios seios, caídos, secos e os balançam”,
“apalpando as pelancas muxibentas” (id., p. 255). A hierarquia
está estabelecida.
Também
em Graciliano Ramos e no peruano José María Arguedas, é a “bela
nórdica” – com freqüência adornada de um “grande coração” – que
se apresenta como objeto dos desejos, em oposição à índia de pele
cúprea. Por exemplo, em Todas las Sangres, Matilde,
“uña señora rubia, de grandes ojos verdes” (p. 46), é “majestuosa
y dulce” (p. 147) e deixa perceber “en su porte una majestade
y gracia”, enquanto “el alto sol [hace] brillar su cabelera, [delinea]
su fino cuerpo” (p. 165). É nos olhos de Matilde, ou em sua cor
ora verde, ora azul, que reside a argúcia da patroa de tantos
índios (p. 84), nativos cujos sentimentos em relação à bela ruiva
européia de olhos claros não deixam dúvida: “creo que en el fondo
sienten por ella un ardiente deseo sublimado” (p. 171). Também
para o equatoriano Jorge Icaza, os seres “superiores” terão forçosamente
o tipo nórdico, pois até mesmo os anjos são ruivos (Huasipungo,
p. 233). Em Caetés, de Graciliano Ramos, o personagem de João
Valério, que escreve um livro sobre os índios Caeté, apaixona-se
por Luísa, “grande e loura” (p. 45), “tão linda, branca e forte,
com as mãos de longos dedos bons para beijos, os olhos grandes
e azuis” (p. 16). O próprio João Valério tem “o nariz bem feito,
os olhos azuis, os dentes brancos, o cabelo louro – vantagens!”
(p. 21). Ademais, a lourice ou brancura parece ser parâmetro suficiente
de beleza, como testemunha Josefa, “lourinha”, “linda muchacha”
(p. 52), enquanto os índios descritos por João Valério “andam
nus e comem gente” (p. 21), têm o “beiço caído, a perna claudicante,
os olhos embaçados”, “grandes orelhas” (p. 36), são mancos e bêbados
(p.76-80) e, por conseqüência, não são nem inteligentes (p. 76),
nem limpos (p. 77).
Também
em Darcy Ribeiro, os índios (não todos, alguns poucos) serão belos
somente na medida em que podem assemelhar-se ao branco: “o aspecto
geral dos índios é bom, bons dentes, exceto alguns banguelas.
Boa pele, limpa de sinais de doença, exceto bexigas em alguns.
Uns quantos rapagões daqui dariam excelentes recrutas. São altos
e espadaúdos, como os catarinas, e exibem umas caras abertas,
sorridentes, francas, que dão gosto” (Maíra, p. 228; grifo nosso).
Sobretudo se considerarmos que também será feita alusão aos “dentes
podres” (p. 317) dos índios, o padrão de perfeição, ainda uma
vez, pertence aos “catarinas”, os habitantes de Santa Catarina,
o estado mais germanizado do país, pois, nas páginas de Darcy,
a brancura também é padrão de beleza: “é bom ver essas menininhas
[índias] novas ressurgirem cada verão, tão clarinhas. Até passando
perto da Canindejub [a loura Alma] elas fazem uma bonita
figura” (Maíra, p. 279; grifo nosso). As indiazinhas, ainda
que não possam ser tão belas quanto Alma, poderão ao menos copiar-lhe
a brancura, tornando-se mais atraentes, diz o romance. Aliás,
em Macunaíma, de Mário de Andrade, o herói indígena negro torna-se
louro após lavar-se em uma poça d’água mágica, ou seja, após livrar-se
de sua “sujeira”; coincidentemente, em Huasipungo, a cor mais
escura é comparada à falta de limpeza, pois os próprios índios
terminam servindo-se da expressão “cara lavada” (p. 113) para
designar os brancos. Cor de pele e ausência de higiene seguem
em par na literatura de ficção, como demonstra Huasipungo (p.
89, 90, etc.).
Se
o (anti-)herói do romance Maíra, o índio Isaías, é “raquítico,
caquético” (p. 180), nota-se que a loura Alma é a expressão nec
plus ultra da beleza humana – supondo-se que os índios sejam
tomados por humanos, o que nem sempre acontece, como é possível
ver nas comparações de Jorge Icaza, em cujas páginas os índios
são por vezes apresentados como vermes (“larvas”, p. 92, ou “gusano”,
p. 116), vacas e outros animais (p. 46), feito uma certa índia
“com tetas sanas como vaca extranjera” (p. 94). Observe-se, aqui,
que o aspecto negativo da índia é traduzido pela imagem da vaca,
e o aspecto positivo pelo fato de ser uma vaca vindo de alhures,
“extranjera”, num processo de auto-representação extremamente
negativo, sintetizado na voz do latifundiário Pereira: “Está visto...
es una raza inferior” (p. 119). Ao se propor a construir uma literatura
engajada, Icaza resvala no abismo dos preconceitos e mergulha
num conjunto de frases que uma leitura mais atenta revelará eivado
do etnocentrismo característico das culturas latino-americanas.
A
título de conclusão
A
lista de retratos literários negativos de indígenas poderia alongar-se
por muitas páginas. Todavia, haja vista os limites reservados
ao desenvolvimento do presente estudo, permaneceremos com os exemplos
apresentados nestas linhas de reflexão versando sobre o grau e
o alcance do etnocentrismo presente em textos literários ibero-americanos,
até mesmo em autores muitas vezes marcados por suas posições progressistas,
como é o caso dos autores abordados no presente trabalho. Por
essa razão, a imagologia, ou o estudo de imagens, apresentadas
tanto em textos literários quanto em textos de qualquer outra
natureza, pode servir como uma importante ferramenta para a interpretação
das formas de representação da sociedade. As idéias aqui expostas
permitem entrever, igualmente, o fato de que a imagem do índio,
no espaço literário ibero-americano, é marcada por aspectos fortemente
negativos, e sua multiplicação em todas as formas de discurso
tende a sedimentar e a justificar o processo de exclusão de que
sofrem as populações indígenas ibero-americanas.
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