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HISTÓRIA, MELANCOLIA E ALEGORIA EM WALTER BENJAMIN

Lizandro Carlos Calegari[a]

A PROPÓSITO DA HISTÓRIA, DA MELANCOLIA E DA ALEGORIA EM BENJAMIN

            Paris, 1940. Tropas alemãs entram na cidade. Walter Benjamin foge, no entanto, ao descobrir que é impossível atravessar a fronteira franco-espanhola, suicida-se, em 27 de setembro, em Port Bou, na Catalunia. Antes de sua morte, Benjamin teve uma vida assinalada pelo fracasso, pela dor e pelo sofrimento. Esses sentimentos associados à noção de perda, a rigor, são constantemente observados em seus escritos. Porém, não foi somente em virtude de sua experiência pessoal que o filósofo se ateve a elementos que remetessem à idéia de ruína, cacos e fragmentos. O seu olhar buscou centrar-se na totalidade, o que lhe permitiu conferir um conjunto de traços reveladores de uma catástrofe única cujo cerne são a morte e a destruição.

            A consciência dessas marcas trágicas [1] que se articularam incessantemente no curso da história serviu de base para que o autor, pouco antes do fim de sua vida, escrevesse as então famosas teses Sobre o conceito da história [2] que, segundo Susana Kampff Lages, “apresenta um panorama povoado por imagens de morte, destruição, de um lado, e redenção iluminada, por outro” [3] . Afora essas caracterizações, nesse artigo, Benjamin reúne uma série de reflexões atinentes ao historicismo, ao materialismo histórico, à teoria da social-democracia, à relação entre o presente e o passado.

            Foi justamente a percepção de um processo histórico violento, do qual foi vítima, o que levou Benjamin a definir o seu perfil melancólico que, decerto, constitui-se numa forma de resistência às posturas ideológicas autoritárias. Assim, é o estabelecimento de determinadas resistências ao poder o que faz as suas teses oscilarem ora entre as trevas ora entre as luzes. Em outros termos: o conhecimento dos verdadeiros lances históricos pode ser um fator determinante para a articulação de lutas em prol da liberdade.

           Conforme as definições de Eric Hobsbawn, o século XX foi a “era das catástrofes” [4] , em que o impacto violento de uma série de experiências de destruição em massa contribuiu para o aniquilamento de seres humanos de um modo nunca antes concebível. Benjamin recolhe esse arsenal de tragédias e elabora o seu conceito de história deixando estrategicamente latentes elementos melancólicos. Assim, a escrita benjaminiana abriga um discurso fundamentalmente melancólico cujo intuito pauta-se numa advertência. Conforme Susana Kampff Lages, a idéia da melancolia é um recurso que permeia a escrita benjaminiana não apenas para promover uma auto-reflexão, mas também para realizar uma reflexão sobre condições políticas bem concretas em que a melancolia se torna, como valor negativo, elemento paralisador da ação, um obstáculo a uma literatura consistente consigo mesma e com sua própria circunstância histórica” [5] .

           A compreensão da melancolia nos escritos benjaminianos exige uma breve abordagem acerca de dois conceitos presentes no ensaio Sobre o conceito da história: historicismo e materialismo histórico. O primeiro pode ser definido nos seguintes termos: está a serviço dos vencedores, busca assegurar o poder nas mãos da elite e tenta desviar o olhar dos oprimidos das tragédias. Além disso, “[o] historicismo culmina legitimamente na história universal. (...) Seu procedimento é aditivo. Ela utiliza a massa dos fatos, para com eles preencher o tempo homogêneo e vazio” [6] .

            O historicismo, portanto, deixa submersas as tragédias vividas pelos antepassados e, em virtude disso, a melancolia não é esboçada em primeiro plano. Essas marcas melancólicas são elaboradas de forma mais consistente em se tratando das concepções relativas ao materialismo histórico. Esse último, por sua vez, desenvolve considerações que preenchem satisfatoriamente as definições de melancolia propostas por Benjamin em seu livro Origem do drama barroco alemão [7] .

            Em seu estudo sobre o drama barroco, Benjamin desenvolve uma contribuição importante à teoria da melancolia. A sua fundamentação acerca desse tópico pauta-se em elementos referentes a compreensões antigas e medievais. Nessa abordagem, ele cita Aristóteles e Constantinus Africanus, fazendo referência ao deus Cronos, ao planeta Saturno e à bile negra.

            O filósofo faz referência a vários pontos que descrevem o melancólico. Um deles está associado à noção de perda e de desinteresse pela vida [8] . Os referidos traços são perceptíveis nas concepções condizentes ao materialismo histórico. Na tese III, Benjamin salienta que nada “pode ser considerado perdido para a história” [9] . Portanto, se se considerar que essa última consiste num acúmulo de catástrofes, então a melancolia surge enquanto uma reação a esse estado geral de perda.

            Aliás, uma relação mais direta entre melancolia e história é formulada na tese VII. Aí, o filósofo alemão sugere que a análise da história proposta pelo historiador materialista coincide com a empatia: “[i]mpossível caracterizar melhor o método com o qual rompeu o materialismo histórico. Esse método é o da empatia. Sua origem é a inércia do coração, a acedia, que desespera de apropriar-se da verdadeira imagem histórica, em seu relampejar fugaz. Para os teólogos medievais, a acedia era o primeiro fundamento da tristeza” [10] .

            Existe, pois, uma ligação entre a noção de tristeza e a perda propiciada pelo horror e pela barbárie decorrentes das tragédias mundiais. Conforme assinala Benjamin, todos os bens culturais vistos pelo materialista histórico têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror, já que “[n]unca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie” [11] . Portanto, a história, na ótica benjaminiana, é marcada pela humilhação e pela morte de inúmeros seres humanos e, por isso mesmo, só pode ser avaliada melancolicamente.

            A contemplação do passado como cenário de ruínas e de destruição é articulada na tese IX. Esse olhar sinistro da história é formulado a partir da visão do anjo do quadro de Paul Klee: “[h]á um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso” [12] .

            Nesse fragmento, a melancolia está na própria imagem contemplativa do anjo. Segundo Benjamin, existe uma relação entre a postura melancólica e o pensamento contemplativo. Ele explica que a bile negra, substância responsável pela melancolia, motiva o espírito para a contemplação [13] . O anjo contempla o passado, horroriza-se com o que vê, e torna-se melancólico. Como decorrência desse estado, ele permanece estático e com uma aparência assustadora.

            Existiria ainda uma conexão entre o quadro de Klee e a gravura de Dürer, Melencolia I. A dispersão das ruínas aos pés do observador do quadro de Klee faz uma remissão, ao menos na descrição proposta por Benjamin, à gravura de Dürer. Enquanto nesta Benjamin observa que estão “dispersos no chão os utensílios da vida ativa, sem qualquer serventia, como objetos de ruminação” [14] ; naquele, há uma cadeia de acontecimentos trágicos. Portanto, se, no primeiro caso, o anjo encerra um perfil contemplativo melancólico; no quadro de Klee, em virtude das mencionadas compatibilidades, o anjo, da mesma forma, também é melancólico.

            Afora isso, outro traço revelador da atitude melancólica centra-se no fato de o anjo ver com sofrimento o passado em razão da perda e, devido a isso, projetar um futuro com receio. Na tese transcrita, observa-se que o anjo, por deparar-se com um passado trágico, vira as costas para o futuro.

            Outro aspecto atinente à melancolia pode ser rastreado na tese IX se se atentar para as observações de Benjamin em seu estudo sobre o drama barroco. Aí, chamam a atenção longos trechos de Panofsky e Saxl a respeito de Cronos. O filósofo se atém nesse deus por ser considerado um “demônio das antíteses”, um “deus dos extremos” [15] . Essas definições conduzem à idéia de que seu caráter é, em última análise, “determinado por um dualismo intenso e fundamental” [16] . Tomada como figura matriz do conceito da melancolia, a divindade resgataria o comportamento dual do melancólico. Aliás, a idéia de que existe um vínculo entre melancolia e dualismo também foi elaborada por Romano Guardini [17] .

            Na tese citada, o anjo da história se vê jogado em um campo de dualismos, pois não há valores seguros em que possa confiar. Ele está numa espécie de ponto-chave tenso: ele observa o passado, mas é jogado em direção ao futuro; ele vê catástrofes, mas é atingido por um sopro proveniente do paraíso; ele enxerga ruínas, mas se depara com o progresso; ele avista os mortos, mas quer ressuscitá-los; ele está preso, mas, ao mesmo tempo, em movimento. Essas oscilações, conquanto definem o anjo, caracterizam um contexto histórico com valores relativos, incertos e inseguros, rompendo com a possibilidade de qualquer perspectiva futura estável.

            A contemplação melancólica não se reduz meramente às condições passadas. Ela se estende ao momento presente. Segundo Benjamin, há uma ligação entre o ontem e o hoje: “existe um encontro secreto, marcado entre gerações precedentes e a nossa” [18] . Essa mesma idéia é retomada na tese XIV: “[a] história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’” [19] . Portanto, a visão do materialista histórico, identificada com a do anjo, permite formular uma sucessão de acontecimentos trágicos que não se esgotam no passado, mas que alcançam o presente e se arremessam para o futuro.

            Essa breve abordagem acerca da história e da melancolia autoriza uma reflexão sobre a função do procedimento alegórico desenvolvido por Benjamin. Segundo o autor, a leitura alegórica proporia a imagem por fragmentos, revelaria a incompletude e o despedaçamento, privilegiando o momento e restaurando a continuidade em instantes heterogêneos e desconexos. A alegoria consistiria, portanto, na representação de estilhaços do passado esquecido, da história do sofrimento e da catástrofe. Com isso, ela projeta a denúncia do oprimido ao trazer à tona o que está implícito. Logo, a função do procedimento alegórico seria exibir estaticamente a face doente ou doentia da história.

            De acordo com o filósofo germânico, existiria, pois, uma relação entre a história como ruína e a alegoria: “[c]omo ruína, a história se fundiu sensorialmente com o cenário. Sob essa forma, a história não constitui um processo de vida eterna, mas de inevitável declínio. Com isso, a alegoria reconhece estar além do belo. As alegorias são no reino dos pensamentos o que são as ruínas no reino das coisas” [20] .

            Pela ótica alegórica, a história, portanto, enquanto um amontoado de ruínas, padece ela própria de uma enfermidade mortífera denominada melancolia. Em outros termos, o procedimento alegórico estimula um pensamento melancólico.

            Em certa altura de seu estudo sobre o drama barroco, Benjamin desenvolve considerações sobre a fragmentação alegórica. Ele afirma que essa relação entre fragmentação e alegoria não é acidental [21] , já que “é sob a forma de fragmentos que as coisas olham o mundo” [22] . Esse olhar estilhaçado e caótico que observa o mundo incita uma linguagem fracionada, deformando qualquer estrutura lingüística orgânica. De acordo com o pensador, essa fragmentação da linguagem aparece “como o fundamento da tristeza” [23] .

            Uma leitura alegórica do ensaio Sobre o conceito da história abriga um discurso profundamente melancólico, não em si mesma, mas por instigar uma associação de elementos aí dispersos. O referido ensaio, carregado de marcas da agônica história, encerra, enquanto reflexo dessa última, uma linguagem caótica e desorganizada. A percepção de uma história trágica determina uma postura melancólica que, pela ação da bile negra, obscurece o olhar do observador, perturbando assim a sua capacidade de organização.

            Portanto, a leitura alegórica está a serviço do resgate de um passado marcado por diferentes formas de violência constitutiva. A melancolia, enquanto resultado da percepção de episódios trágicos que articularam toda a história social, muitas vezes, estimula uma forma de apresentação estilhaçada, assinalada por ambivalências e dualismos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.

____. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense S. A., 1985.

GUARDINI, Romano. De la mélancolia. Paris: Seuil, 1953.

HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos. O breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: Edusp, 2002.



a Mestre em Letras - UFSM

[1] O vocábulo, tal qual foi empregado neste artigo, designa catástrofe, extermínio, destruição, aniquilamento.

[2] BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 1985. p. 222-232.

[3] LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. 2002. p. 131.

[4] HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos. O breve século XX. 1995. p. 112.

[5] LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. 2002. p. 110.

[6] BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 1985. p. 231.

[7] BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. 1984.

[8] Idem. p. 163.

[9] BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 1985. p. 223.

[10] Idem. p. 225.

[11] Idem. Ibidem.

[12] Idem. p. 226.

[13] BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. 1984. p. 176-178.

[14] Idem. p. 164.

[15] Idem. p. 172.

[16] Idem. p. 173.

[17] GUARDINI, Romano. De la mélancolia. 1953. p. 48.

[18] BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ____. Magia e técnica, arte e política. 1985. p. 223.

[19] Idem. p. 229.

[20] BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. 1984. p. 200.

[21] Idem. p. 210.

[22] Idem. p. 208.

[23] Idem. p. 231.

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