UNIVERSIDADE, CIDADANIA E ALFABETIZAÇÃO.

::Profª Magda Soares::

 

 

          A formulação do tema, através da qual se pretende desenvolver essa reflexão - UNIVERSIDADE, CIDADANIA E ALFABETIZAÇÃO - exige preliminarmente, que se defina o papel da alfabetização na construção da cidadania, para que, no contexto dessa definição, se possa pensar as responsabilidades da universidade em relação à articulação entre esses dois processos.

 

1. CIDADANIA E ALFABETIZAÇÃO

 

          A relação entre cidadania e alfabetização pode ser analisada sob duas perspectivas, aparentemente contraditória: de um lado, é preciso negar, de outro lado, é preciso afirmar a vinculação entre o exercício da cidadania e o acesso à leitura e à escrita.

 

1.1 - A negação:

                   A alfabetização não é imprescindível ao exercício ou à conquista da cidadania.

 

          A vinculação entre alfabetização e cidadania faz parte do senso comum: a concepção de que só quem é alfabetizado é capaz de agir politicamente, de participar, de ser livre, responsável, consciente - de ser homem histórico e político: de ser cidadão. Na verdade, essa concepção oculta os reais determinantes não só da exclusão da cidadania, mas também da construção da cidadania.

          A ênfase excessiva posta no analfabetismo como causa da exclusão da cidadania, e a cidadania, e a correspondente ênfase na alfabetização como fator essencial para evitá-la ocultam as causas mais profundas dessa exclusão, que são condições materiais de existência a que são submetidos os “excluídos”, as estruturas privatizantes do poder, os mecanismos de alienação e de opressão, tudo isso resultando na outorga diferenciada de direitos sociais, civis e políticos às diversas classes e categorias sociais. Na verdade, a exclusão do agir e do participar politicamente, longe de ser produto de uma “ignorância” causada pelo analfabetismo, é produto das iniqüidades sociais que, elas sim, impõem estreitos limites ao exercício dos direitos sociais, civis e políticos que constituem a cidadania. Basta que se considere a co-ocorrência de indicadores de exclusão: altas taxas de analfabetismo e outros indicadores educacionais (taxas de repetência, de evasão, de não acesso à escola, etc.) ocorrem ao lado de baixas faixas salariais, maiores índices de subnutrição, de moralidade, de expectativa de vida, etc. Portanto, ao se pensar em alfabetização e cidadania, é preciso fugir a uma interpretação linear desses dois termos, atribuindo-lhes uma relação de causa-consequência, em que a exclusão da cidadania seja tomada como conseqüência do analfabetismo; as relações entre analfabetização e cidadania – pois elas existem – devem ser entendidas no conjunto mais amplo dos determinantes sociais, políticos e econômicos que inviabilizam o exercício da cidadania por enorme parcela da população brasileira.

          Por outro lado, a ênfase excessiva posta na alfabetização como fator essencial à construção da cidadania ignora que não é a alfabetização – mais que isso, não é nem mesmo a educação, de uma maneira mais ampla – que conduzirá o povo à conquista da cidadania, esta conquista se faz, fundamentalmente, através da prática social e política, dos movimentos de reação e de reivindicação, das organizações populares, expressões de uma cidadania em construção, pois evidenciam o povo participando, lutando por seus direitos sociais, civis políticos, agindo com sujeito histórico, fazendo-se cidadão. A recente conquista do direito de voto pelo analfabeto, de um lado, comprova, pelas acirradas polêmicas que suscitou, a arraigada resistência a reconhecer, no analfabeto, um cidadão (lembre-se que os analfabetos constituem o grupo de excluídos que mais tardou a obter o direito de voto), e, de outro lado, testemunha o cidadão fazendo-se pela prática da reivindicação política, ainda que analfabeto. Portanto, ao se pensar em analfabetização e cidadania é preciso, aqui também, e de novo fugir a uma interpretação linear desses dois termos, atribuindo-lhes uma relação causa-consequência, em que a construção da cidadania seja vista independente da alfabetização; esta deve ser entendida com um componente, entre muitos outros da conquista, pela população de seus direitos sociais, civis e políticos.

          A desmistificação dessas duas concepções a respeito da vinculação entre alfabetização e cidadania – a não alfabetização vista com causa da exclusão da cidadania, a alfabetização vista como fator essencial à conquista da cidadania – é que leva a negação que deu título a este item: a alfabetização não é condição imprescindível ao exercício ou a conquista da cidadania.

 

1.2 – A afirmação:

                       A alfabetização é instrumento na luta pela conquista da cidadania.

 

          As considerações feitas no item anterior visaram a relativar o papel da alfabetização na conquista e no exercício da cidadania, situando-a no conjunto dos determinantes desta conquista e desse uma outra contextualização, entretanto, torna-se necessários: é preciso também situar a alfabetização no tempo histórico e no espaço social e político em que ocorre ou deve ocorre ou deve ocorrer.

A aquisição das habilidades de leitura e de escrita repousa, para a maior parte das pessoas, no pressuposto de que essa aquisição não é mais de aprendizagem de uma técnica neutra, intrinsecamente boa, quem depende de um contexto social específico em que ocorre.

Na verdade (o que se pode afirmar, aliás, sobre qualquer outra tecnologia), a leitura e a escrita estão enraizadas em uma ideologia da qual não podem ser isoladas: o valor e a importância da língua escrita não são inerentes a ela, mas dependem da função e dos usos que lhe são atribuídos no contexto social. Atribuir aquisição da língua escrita um valor positivo absoluto revela uma visão etnocêntrica: estudos antropológicos têm apontado o fato de que, em culturas ou grupos predominantemente orais, a comunicação escrita é, muitas vezes vista mais com um mal do que com um bem.

As sociedades modernas, porém, são fundamentalmente grafocêntrica: nelas, a escrita está profundamente incorporada a vida política, econômica, cultural, social, e é não só enormemente valorizada, mas, mais que isto é mitificada: na escritura estaria o discurso da verdade, a escrita seria o repositório do saber legítimo.

Assim, enquanto a sua posse e uso plenos sejam privilégio de determinadas classes e categorias sociais, a escrita assume o papel de arma para o exercício do poder, de legitimação da dominação econômica, social, cultural, de discriminação e de exclusão. No quadro da ideologia hegemônica em sociedade grafocêntrica, não há possibilidade de participação econômica, política, social, cultural plena sem o domínio da escrita.

É no quadro dessa ideologia, em que se insere o nosso país, que no significado da alfabetização ultrapassa de muito a mera aquisição de uma “técnica” – saber ler e escrever; a alfabetização é fundamentalmente, um processo político através do qual grupos excluídos dos direitos sociais civis e políticos têm acesso a bens culturais que são sonegados e que são um capital indispensável na luta pela conquista desses direitos, pela participação no poder e pela transformação social. Justifica-se, assim, a afirmação que seu título a esse item: a alfabetização é um instrumento na luta pela conquista da cidadania.

 

2- UNIVERSIDADE, CIDADANIA E ALFABETIZAÇÃO.

 

Das reflexões desenvolvidas nos itens anteriores, infere-se que as responsabilidades da universidade em relação ao binômio são cidadania-alfabetização inserem-se na destinação maior que essa instituição tem, que é de participar da construção de uma sociedade mais justa e da constituição de uma identidade política para o conjunto do povo brasileiro, filiando-se a luta contra as discriminações e as exclusões.

É, por excelência, à universidade que cabe desenvolver reflexões sobre aquilo que se oculta sob as concepções do senso comum a respeito das relações alfabetização-cidadania, desnudar essas concepções de seu conteúdo ideológico, afirmar o real papel da população que dela estão excluídas.

No quadro referencial dessas reflexões cabe à universidade colaborar na descoberta de soluções para o combate ao analfabetismo ( o Brasil possui, aproximadamente, 3,5% - 30 milhões – dos analfabetos do mundo) e para o combate ao fracasso em alfabetização na escola de 1° grau ( estão no Brasil cerca de 4,5% - quase 5 milhões – do total mundial de crianças que não tem acesso a escola: as taxas de repetência e evasão mantêm-se, há mais de quatro décadas, em torno do 50%); mas, descobertas de soluções que realmente levem à inserção da criança e do adulto na cultura letrada, pois as soluções que têm sido propostas são pseudo-soluções, que, na verdade, camuflam, sob o pretenso “alfabetizado”, o analfabeto funcional, isto é, aquele que, embora tenha aprendido a ler e escrever , não se apropriou verdadeiramente da escrita enquanto bem de uso, não se integrou realmente na cultura letrada ( ao povo tem-se permitido que aprenda a ler e a escrever, não se lhe permite que se torne leitor e escritor).

É, também, à universidade que cabe, por excelência, buscar, através da reflexão e da pesquisa, a produção de um conhecimento que conduza a uma alfabetização que, além de inserir realmente o adulto ou criança na cultura letrada, faça-o de forma que essa inserção não seja uma assimilação passiva dessa cultura, mas represente novas possibilidades de avançar na luta pela conquista da cidadania. A alfabetização, tanto da criança quanto do adulto, vem-se fazendo, em nosso país, mais para controlar, regular o exercício da cidadania, que para libertar para esse exercício. A alfabetização nas escolas públicas e os movimentos de alfabetização de adultos, não têm levado as classes trabalhadoras além do limiar do mundo da escrita, funcionando mesmo como fator de discriminação: alfabetiza-se para que o indivíduo seja mais produtivo ao sistema, não para que se aproprie de um instrumento fundamental à conquista da cidadania; basta lembrar que, embora se alfabetize, dificulta-se, até impossibilita-se o acesso à leitura: onde estão as bibliotecas? onde há livro a preço acessível?   Cabe à universidade, pela própria natureza dessa instituição, desvelar essa função politicamente distorcida que o processo de alfabetização vem exercendo, e encontrar e disseminar caminhos para que a alfabetização seja o processo pedagógico marcado pelo significado que o vincula a questão da cidadania.

A verdade, porém, é que a alfabetização com objeto de reflexão, pesquisa e ensino tem estado ausente da universidade, que tende a considerá-la estranhamente, objeto específico da outras instâncias – órgãos de planejamento e execução de políticas educacionais, escolas de 1° e 2° graus. Assim, a pesquisa sobre a alfabetização na universidade ainda é escassa (levantamento recente da produção acadêmica e científica sobre alfabetização no Brasil mostrou que a produção de pesquisas sobre esse tema é, em média, de pouco mais de três pesquisas por ano); por outro lado, a presença do tema alfabetização, nos cursos superiores de formação de profissionais, é quase nula – basta lembrar que só muito recentemente cursos de Pedagogia e de Letras, que formam profissionais diretamente responsáveis pela alfabetização, nas instituições escolares, começam a incluir disciplinas sobre alfabetização, leitura e escrita em seus currículos.

Considerando-se as relações da alfabetização com as construções da cidadania, pode-se, talvez, afirmar que, ausente das reflexões, da pesquisa e do ensino sobre a alfabetização, a universidade está, na verdade, ausente de uma arena essencial, na história da construção da cidadania em nosso país.

Se a universidade brasileira, compromissada que deve ser com a construção de uma sociedade democrática, em que o exercício da cidadania seja plenamente garantido a todos, não assumir imediata e vigorosamente a reflexão, a pesquisa e o ensino na área da alfabetização a concretização dessas metas, se ocorrer, pode vir marcada, mais uma vez, pelo divórcio entre alfabetização e conquista de direitos sociais, civis e políticos - entre alfabetização e cidadania.