Grupo de Pesquisa Literatura e Autoritarismo  |  Índice de Revistas  |  Normas para Publicação
Literatura e Autoritarismo
Dossiê "Escritas da Violência II"
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê  

SOLEDAD NO RECIFE*
Capítulo 10**

Urariano Mota ***
Resumo: O livro Soledad no Recife, publicado pela Editora Boitempo em julho de 2009, percorre as veredas dos testemunhos e das confissões ao reviver a passagem da militante paraguaia Soledad Barrett pelo Recife, em 1973, e a traição que culminou em sua tortura e assassinato pela ditadura militar.
Delatada pelo próprio companheiro Daniel, conhecido depois como Cabo Anselmo, Soledad morre com um grupo de militantes socialistas, na capital pernambucana, pelas mãos da equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury. O episódio ficou conhecido como “O massacre da chácara São Bento” e revelou-se um extermínio, uma execução coletiva, diferente de um confronto armado.
A trama real inspira o romance em que Urariano Mota - com a propriedade de quem viveu e sobreviveu aos anos pós 1964 - resgata os vestígios da traição arquitetada contra Soledad e contra o País naqueles tempos, com o olhar reflexivo de quem se volta ao passado. A vida e morte de Soledad é um forte contraponto à “história oficial” propagada pela mídia na época, e um testemunho da violência do Estado.
Nas palavras de Flávio Aguiar, que assina a apresentação da obra, Soledad no Recife é a recuperação de uma história, “como preito àquelas vidas que se doaram e foram ceifadas pela traição inesgotável que foram o golpe e a ditadura de 1964 ao seu próprio país – traição espelhada na de Anselmo ao amor que, sabe-se lá por quê, despertou em Soledad”.
Palavras-chave: Ditadura, Repressão, Literatura, Memória
Abstract: The book Soledad no Recife goes through testimonies and confessions in its revival of the time spent by the Paraguayan militant, Soledad Barret in Recife in 1973, and the betrayal that led to her torture and murder at the hands of the military dictatorship.
Denounced by her fellow comrade and lover, Daniel, afterwards known as Corporal Anselmo, Soledade dies with a group of aspiring guerrillas, in the Pernambuco capital, at the hands of Commissioner Sérgio Paranhos Fleury’s squad. The episode became known as “The São Bento Farm Massacre”, and is seen more as an act of extermination rather than an armed confrontation.
The whole intregue is the inspiration behind the novel, in which Urariano Mota – with the credentials of someone who lived through and survived the years after 1964 – picks up the threads of the betrayal woven against Soledad and against the country at that time, with the reflexive attitude of those who go back in time. The life and death of Soledad are a strong contradiction to the “official history” propagated by the media of the time, as well as being a testimony to State violence.
In his introduction, Flávio Aguiar says the book is the recuperation of a story, “as a tribute to those lives that were sacrificed and cut short by the insatiable betrayal of their own country that was the 1964 coup d’etat and the ensuing dictatorship
Keywords: Dictatorship, Repression, Literature, Memory

Relato agora, colo relatos, lembranças e depoimentos do que me foi contado pelos religiosos presentes àquela festa. A paixão, o calor nos fatos aqui narrados foi construído pelo horror, que veio depois. O que se segue é um testemunho do que na ocasião parecia inexplicável. Uma reconstrução do que permanecia entre escombros.


“Mamãe, mamãe, não chore. A vida é assim mesmo, eu fui embora....” tocava na radiola da casa dos padres. “Eu tenho um beijo preso na garganta...”. Então Soledad, a viejita, viejita desde os 5 anos de idade, teve um estremeço, um estremeço como as mulheres possuídas por santos nos terreiros. “Ser mãe é desdobrar fibra por fibra os corações dos filhos...”. E por isso descalçou as sandálias, e se pôs a dançar, a bailar, sozinha, ela e seu fogo presente no útero. Abriu os braços, e com toques graciosos nas mãos, com os pezinhos a bater com o calcanhar o ritmo. A saia de estampas de flores ondulou nos quartos largos de mulher parideira. “Mamãe, mamãe não chore, eu nunca mais vou voltar por aí”. Os padres, as freiras, abriram uma roda. Soledad Barret Viedma disso não se deu conta. “Eu tenho um jeito de quem não se espanta”. Quem era essa Gal Costa que cantava tão bem para uma guerreira no desamparo? “Leia um romance. Leia ‘Elzira, a morta virgem’...”. Então ela, ela e o seu santo, ela e o seu útero, ela e aquele que jamais teria nome ficaram tontos. Ficaram tontos, mas não do girar. Ainda que girem, Soledad y la viejita eram aptas para girar enquanto bailavam. Ficaram tontas com uma súbita punção no fígado. Então ela se apoiou em um pezinho e parou, e desceu no chão. Cercam-na.

- O que foi? - um dos padres lhe pergunta.

- O que se passa? - Daniel a interroga.

- Nada - ela responde, e se põe sentada. Sem perceber, leva uma das mãos para o ventre, como uma criancinha ao apontar o dodói.

- Você bebeu? - volta Daniel.

- Sim. Uma aguardente com mel, pesada - ela mente, e sorri.

- Sabes que não podes. Sabes que o teu organismo é frágil. Sabes ... - Daniel lhe diz, pondo-lhe uma das mãos no ombro, enquanto os seus olhos correm a assistência. – Bem sabes... – continua com voz quente e audível.

Há nessa voz um quê de falso, Soledad percebe. Então ela recebe um novo estremeço e se põe em pé.

- Fiebre - ele lhe diz.

Vontade Soledad tem de cuspir à cara, dele, desse amante cuja máscara fria ela agora descobre. As palavras que ele diz não se harmonizam com os traços rígidos, sem verde e sem vida do rosto. Se ele fala com máscara – um santo, um gênio sopra ao ouvido de Soledad -, se ele fala assim, então ponha a máscara conforme a cena e o espetáculo.

- Sol, querida ...

Soledad antevê no ar uma ameaça de beijo, e mais grave, de toque com lábios frios que apenas delatam, que falam para outros que ela seria a sua amada. Toque de lábios que mentem. A máscara não está conforme o

- Sol, querida...

Então ela lhe dá as costas, sob o gentil pretexto

- Tentarei algo de bom na cozinha.

- Mas estás bem? - ele retorna, mas ela não ouve, ou não escuta.

Ela deixa um rastro na festa, porque sai e não se ausenta. Está na cozinha, todos sabem. No entanto, algo, alguma coisa não é mais como antes. Não se trata da comum percepção de que se ela estivesse no mesmo lugar, já não seria como antes. Trata-se de que há uma descontinuidade agora. Por exemplo, a música já não se toca, mas continuam a existir pilhas de discos de Chico, de Caetano, de Gal, de Mercedes Sosa, de Santana a um canto. Por quê? Ninguém então disso se dá conta. Há murmúrios, porque todos viram o que cada um pensou que somente ele próprio vira. Todos viram os estremeções, a posse de Soledad pelo espírito do baile, o giro de flor e a sua queda. Isso foi para todos um espetáculo e um encanto. Diferente do teatro e da função de circo, aquilo, todos notam, não poderia ser repetido. Aquilo havia sido uma função de outro gênero, uma criação de outra arte. Ela parecia estar em um reino de humanidade inexplorada. Isso não é percebido como um conceito. Então se murmura.

Para seu desconforto, Daniel nota que todos olham para ele. Por isso ele, ou seu papel de rapaz livre, senta-se no jardim, sobre a grama. E a cada olhar que o varre, ele sorri. Sorri sempre, na esperança da experiência de que as pessoas captam o particular, nunca o todo em seu rosto. E se levanta, porque na ilha em que se plantou ninguém vem ao seu encontro. Vai a um dos grupos formados. Penetra no que se acha a Irmã Célia. O rum se bebe farto com coca-cola. No centro, como liderança, a Irmã Célia é uma luz que pisca, como se fosse uma lâmpada que se interrompe rápido e volta, nos olhos azuis que se turvam e voltam em breves piscadelas. Ninguém distingue se essas piscadas são um tique nervoso ou um namoro a susto com o pecado. Irmã Célia é pequena, magra, franzina, mas dotada de uma energia que a faz mover-se como um dínamo quando age e fala. Ela muito se assemelha a Mércia, uma advogado do Recife que defendeu inúmeros perseguidos na ditadura. Ela, ao perceber Daniel, simula uma surpresa em veloz escurecer e brilho nas pupilas. Ele, atento ao sketch e à mímica, também se toma de surpresa.

- Irmã Célia, você por aqui? Eu não tinha ainda notado - ele diz e a beija de modo respeitoso, gelado, na testa morna.

- Eu sou muito grande, sou não? - responde-lhe a Irmã Célia, no seu português que às vezes é tradução literal da língua inglesa.

- Um pouco big - ele responde.

No grupo todos riem. É um riso nervoso, de conveniência, de quem acaba de sair de uma iluminação espiritual, de uma encenação incomum, mas não quer mostrar que se abalou, porque, afinal, a vida continua, tudo bem, nada vimos. Ele também ri, ri no seu costume, ambíguo. Se o ambiente for bom para o riso, é riso. Se não, é mostrar dentes, sem rosnar. Diferente dos animais de ataque aberto, ele insinua e se contrai.

Então chega para o grupo um estudante baixinho de nome Zenilton. Para nada dizer sobre ele, diga-se que encarna o palhaço de todos os grupos da festa. E se tomam tal característica como uma ofensa, diga-se que ele desperta risos e alegria entre os nacionais e gringos religiosos. Existe nele, é claro, uma dose generosa de exibicionismo, daquele sem o qual nenhum comediante se faz. “Ele é muito divertido”, Irmã Célia diz. Ele é o cara que se faz de distraído, vale notar, enquanto lhe colam um rabo de pano ou papel na bunda. E assim posto, de cauda até o chão, dá voltas e saracoteios para todos verem. Com o ar mais sério e distraído. Ele possui, como se dizia e se diz, o physique du rôle. Além disso, esganiça a voz para melhor contrastar com a barba senhorial que porta. Agora mesmo, ao chegar, ainda que sem rabo às costas, mal abre a boca e todos riem. E assim seguro do seu papel, fala em voz de caricatura:

- Irmã, eu estou apaixonado. Estou in love - ele fala, e põe a mão no peito como um pierrô de farsa. Todos gargalham.

- Você, in love? Eu não acredito - a Irmã lhe responde.

- “Mi”, Irmã. Yes. Eu mesmo. Mas é um sonho impossível para mim, Irmã.

- Por quê? Ela é uma princesa?

- Mais, Irmã. Bem mais que uma princesa. Jamais eu poderei amá-la. Never, never, never. Do you crê?

- Sim. Por quê, meu rapaz?

- Porque eu não posso disputar com Jesus.

- Você é louco.

- Sim, porque estou in love com Irmã Célia.

- Louco! Você é louco!

E Zenilton se ajoelha, em mistura da pose piedosa, de fé, e a de cortesão.

- Irmã, you acredita?

Irmã Célia, vermelha nas faces, procura afastá-lo com as mãos, enquanto lhe diz:

- Louco, o que você bebeu hoje?

- Por quê? A Irmã quer beber o mesmo que eu?

“É um bom comediante”, Anselmo se diz. E como Daniel sorri e ri alto, com os dentes mostrados por mero reflexo do ato de rir. Mas com um movimento rápido se contrai, porque o seu papel é mais alto: à vera, ele é o marido preocupado com a saúde de Soledad. Não vê a hora de que lhe perguntem, “o que houve com Sol?”, para que responda, com ar grave, “nada, ela está bem”. E se insistirem que ela não parecia estar assim tão bem, ele responderá: “De fato. Ela toma antidepressivos. Uns probleminhas psiquiátricos...”. Mas não, esse momento não chega. Todos – assim ele percebe -, todos o vêem, todos o perseguem com os olhos, como se dele desconfiassem, como se ele fosse um criminoso. E nada falam. Sabem e não dizem, porque de nada em palavras, em provas, o acusam. Então ele fala observações, melhor dizendo, frases retiradas do nada, sobre a música de Vandré, do artista engajado Vandré. Engajado, ele diz, com o mesmo acento de Enganado, o Enganado Vandré:

- Um engajado. Grande artista! Vocês não têm aqui Caminhando?

- Não dá. Está censurado, não é?

- Mas têm ou não?

Ouve-se então, da cozinha, uma voz que canta La navidad de Juanito Laguna. Ninguém ali, na praia de Piedade, ainda a conhece. Se fácil seria rejeitá-la como uma canção desconhecida, se fácil seria não ouvir uma língua a que não estão acostumados, porque não é o inglês, a língua natural daqueles religiosos norte-americanos, fácil não é se descolar e deslocar da voz e da melodia. Então ocorre na festa primeiro um falar baixo, um murmúrio débil, até que se faça um silêncio não pedido, um silêncio que os próprios silenciados não percebem, um silêncio como de voyeur, de que ouve atrás da porta o sussurro de uma intimidade vizinha.

“Juanito de la inocencia
canta en dormido Laguna
así por dentro del sueño
pasa llorando la luna”.

É doce, agradável e bem-vinda, e aqui, para esses níveis de sentimento, difícil é distinguir a voz que canta da melodia. Quem conhece um bom intérprete sabe. Há intérpretes que gravam tão bem uma canção, que a tornam carne e osso de uma só vida. Impossível separá-los, ou não será a mesma canção. Porque Soledad não é só a mulher bonita de um ponto de vista físico, cuja fotografia revela apenas uma estação do seu ser. Uma estação imóvel de um peito dinâmico. Bonita de tal modo, que se dirá do fotógrafo o que se diz do mau desenhista, “como isto não parece com ela ... não saiu parecido”. E se pedirá então ao fotógrafo o impossível, a saber, que a máquina, a mecânica, reproduza um ser, a textura, cor e delicadeza da orquídea, da pessoa mesma. Como se fosse possível da flor um close que a isolasse do ar que ela respira, do campo em torno, do cheiro que exala, em resumo, como se fosse possível reproduzir o complexo, a conspiração de sentidos que se dirigem para um único fim, a pessoa, o ser vivo, inalienável, poderoso em nos despertar amor, afeição, paixão, tara e paz, que buscamos como a uma miragem. Ainda assim, se sabemos que na flor há um ser inalcançado na fotografia, se comparamos, se transpomos mal, imagine-se então Soledad no lugar dessa flor do campo. Imaginamos mal e mau, já vêem. Flor não se rebela nem canta. Flor nos desperta canção e rebeldia, quando machucada. Mas a pessoa de Soledad, ainda que lembre essa flor - e é irrecusável não lhe ver a pele como o tecido de uma pétala -, e assim a lembraremos pelo vento forte e traiçoeiro que se prepara para a muchucar e destruir, ainda assim, como a superar tal associação, ainda que nos persiga como só uma idéia é capaz de perseguir, porque hoje, neste dia do seu aniversário, ela está mais bela que antes, porque, dizem os médicos, a mulher grávida é mais bonita que as não embaraçadas, tentemos um método férreo, duro e cruel: olvidemos a beleza física de Soledad.

Pois não a vêem, e a princípio, nos primeiros versos, não ligam a mulher que conhecem à voz que canta:

“Se le va hundiendo en los ojos
largo el camino.
Muy distraído se queda
Com su destino...”.

Daniel, Anselmo, Anselmo/Daniel vai até o muro do jardim e olha o mar azul da praia de Piedade. Para fazer o que tem vontade, ele pularia o muro e, longe desse canto, ele voltaria a ser Simbad, o marujo, em busca de aventuras, do heroísmo de Hollywood, das histórias em quadrinhos. Então ele seria resgatado pela esquadra norte-americana, rumo ao Pacífico, ao Havaí, longe, bem longe dessa história concreta de ter de entregar isso. “Isso” é Soledad. Se o vemos mal, dele vemos que não lhe dói em absoluto entregar, delatar, fazer aprisionar, eliminar isso, essa mulher. Todas as ações necessárias, exceto trair. Trair, nunca. Não se trai aquilo em que não se acredita, ou, pelo menos, aquilo em que um lance esperto de sobrevivência foi levado a acreditar. Ele não é nem será jamais um traidor. Traidor é quem trai a pátria. Traidor não pode ser quem entrega o terror, o terrorismo, os terroristas. Pero Soledad ergue a voz na cozinha, ou por decibéis sensíveis aos ouvidos de captação de Anselmo, ou pelo silêncio que se faz no encanto, parece erguer a voz. Nem sequer se ouve um riso, uma folha que cai, um gelo em um copo. No cigarro que ele fuma, a própria fumaça canta:

“La Navidad que les canto
no tiene luz
se va tiznando en la noche
de Juan Laguna”

E Anselmo, Anselmo sua máscara entende esse espanhol y esa Navidad, que lhe chega também com o sentido de nascimento, la navidad que les canto no tiene luz. Vira-se para a esquerda e olha o mar. “Isso passa. Calma, hombre. Terás a compreensão daqueles olhos verdes, claros e vivos de Fleury”. E sorri íntimo. Mas fuma:

“Así por dentro del sueño
pasa llorando la luna”.

O que lhe dói não é de modo nenhum – “Culpa zero, entende? Culpa zero” –, não é bem doer, o que o incomoda é a incompreensão do mundo. É a burrice e o preconceito de todos. Vão culpá-lo do que não está em sua consciência. Em sua treinada e prática consciência. “Se eu não me julgo um criminoso, eu não sou criminoso. O que vale é o que eu sei”. E se põe a mover a cabeça para um e outro lado, como um mangusto, um suricato na savana.

“Se le va hundiendo en los ojos
largo el camino”.

Se o vemos bem, e a obrigação de compreendê-lo, de tocar a verdade, a isso nos obriga, notaremos que o ser Daniel de sua alma teria preferido não matar Soledad. Melhor, ele não usa a palavra matar, ele diz pegar, pegar Soledad. Matar, mata-se galinha. Galinha se mata quebrando-lhe ou sangrando o pescoço. E o réptil lhe volta ao ser, a balançar o queixo enquanto se afirma “Eu sou incapaz de matar uma galinha. Me sinto mal, entende? Não gosto de quebrar, de sangrar pescoço”. E não se diz, porque está claro e elementar como o horizonte azul do mar, “que dirá matar gente, torcer e sangrar o pescoço de Sol”. Vem-lhe um engulho, e Anselmo se diz, “beber rum com coca me ataca o fígado”. Se o vemos bem, queremos dizer, se o vemos com a experiência de 36 anos depois, quando ele declara que tentou salvar a companheira, pois assim se refere a ela diante dos ouvidos morais, quando declara que pediu a seu estimado chefe que poupasse a vida de Soledad, ainda o vemos como o homem que acha necessário se eximir da culpa. Ele não é um bárbaro, um brutamontes, porque é atento e atencioso à condenação coletiva. “Fiz o que pude, mas....”. E por assim considerá-lo bem, devemos acreditar que fez o que pôde, no limite, na fronteira máxima da própria sobrevivência. “Caralho”, dirá, “quem me cobra não sabe a barra-pesada daqueles anos”, e, esperto que é, se não põe mais ênfase agora é porque precisa justificar antes a sua “passagem”, supondo uma, da esquerda para a delação, quando em mais de uma oportunidade fez o que ditou a sua consciência. Se o vemos bem, ainda assim não podemos deixar de ver que a sua defesa é constituída de remendos, precários, que a novos fatos cambiam sempre de posição.

Daniel, assim de costas para todos, como se estivesse a fumar sozinho em busca de respostas no mar, pode voltar a ser Anselmo, ele e ele mesmo.

“Muy distraído se queda
Com su destino...”.

Si. Se assim fosse, idealista e belo, poderia repetir “puedo escribir los versos más tristes esta noche”. Pero não, ele está nas vésperas, e por isso deve manter os olhos bem abertos, bem certeiros de caçador, que fareja e sabe o lugar exato para o tiro certo sobre a fera.

“Le está soltando campanas
la Nochebuena
y en el arbolito cantan
las arboledas”.

Arboledas soam a ouvidos brasileiros como se fossem borboletas, mariposas, que na arvorezinha de Natal estivessem a cantar. “Y en el arbolito cantan las arboledas”. Seria, talvez, mais absurdo e mais belo, mariposas cantando na arvorezinha de Natal. Mariposas amarelas, azuis, vermelhas, que belas, frágeis e pássaras nem precisam cantar para encantar. Pois Soledad canta como uma mariposa cantaria, se cantasse. As asas seriam as saias das dançarinas paraguaias quando bailam. Há folheados de saias. “Como posso traí-la?”. Sim, isso. Isso agora é isto: “Como posso traí-la?”. Soledad canta como se cantarolasse. Por sua natureza canta, magnífica, mas desligada de si. “Até parece que ela sabe”, Anselmo se fala, enquanto ouve e escuta “distraído se queda com su destino”.

Lá na cozinha ela faz a sua representação, se revela a mulher terra, terra, terra, ao infinito da duração do seu canto. Todos a sentem. “Como posso traí-la?”. É curioso, seria engraçado, mas até mesmo o pensamento de Anselmo lhe vem em uma forma ambígua. Até mesmo na sua forma há uma ponte, que se liga ao lugar onde se mandaria a solidariedade para o inferno. A partir de sua primeira forma de remorso, “Como posso traí-la?”, que significa “Como posso trair essa ternura, como posso me tornar infame ante essa mulher? Como posso me acanalhar ante essa inocência feliz?”, o seu pensamento se liga ao “Como posso traí-la? De que modo posso traí-la? Quais meios melhores para traí-la?”, até “Sim, de que modo traí-la sem que me advenha qualquer culpa?”. Ele a seguir dirá, como o disse 11 anos depois, “Ela não morreu por minha culpa! Ela morreu pelo que ela defendia, morreu por aquilo em que acreditava, morreu pelo caminho que ela escolheu. Ela morreu como vítima do movimento comunista internacional, não por minha culpa”. Mas então ele terá passado por um longo período de pensar em sua defesa, de preparação para responder às pessoas normais, que não o entendem. “Sim”, ele dirá, “ela era uma terrorista”, sim, completará, “ela sofreu um acidente de percurso”. Para corrigir, “Não, não foi um acidente. A morte estava escrita para toda aquela turma. Aconteceu o que tinha de acontecer. O que tinha de ser, foi”. Mas agora, neste janeiro de 1973, não. Soledad canta e isso lhe dá um arrepio, um incômodo, estúpido, enervante. Um arrepio perseguidor sem clemência.

“Juanito de la inocencia
canta en dormido Laguna
así por dentro del sueño
pasa llorando la luna”.

“Caralho de mulher sentimental. Foda-se”. Há um fato que ele evita. Há uma informação que sua consciência rejeita. Há uma delação, um embaraço, un embarazo, a querer acorrentá-lo. Sol está grávida. Soledad está grávida. ¿Y? Obstáculos de consciência assim ou se atravessam rápido ou não se atravessam. Quem está determinado, sobre um obstáculo não se deve deter. Si, ¿y? E daí, não é mesmo? O que isso quer dizer? Coisa mais comum, mulher grávida. Caralho de sentimentalismo. Porra, se ela está grávida, putz, foda-se. “Sei lá, cara, sei lá com quem ela trepa!... com quem ela faz ‘amor livre’! Por que não se preveniu? Quem está na luta não se embaraça. Isso é um princípio. Isso é ensinado desde o treinamento em Cuba. Ela não sabia? Putz. Agora, sim... até parece. Ter de carregar pano de bunda de mulher. De mulher com psoríase, de neurótica, de puta. Puta, sim. Onde está a responsabilidade? ¿Donde está su grave responsabilidad? Trepar sem DIU, trepar sem pílula, foda-se. Comigo não, camarada”. E num esforço de concessão: “Ela defende o aborto, não é mesmo? Então vá....”. Ele prova a própria língua como um chiclete. Para não encarar o oceano, fita a pequena mata de arbustos, o pequeno mangue à frente do muro do jardim. Nada vê da paisagem. “Nem bucho ela tem. Sim, tem, mas só um pouquinho. Está só no começo”. E não vê a pequena mata à frente, nem o serviço sujo em toda a crueza, crueldade e conseqüência. Isso não é com ele. O serviço está bem dividido, cada um com a sua tarefa. Matar, não, isso não é com ele. “Nunca matei ninguém”, ele se diz, mas é incapaz, ainda que com todo cinismo, de externar o que pensa, de falar isso em qualquer entrevista. Porque é inteligente e não quer ser alvo de maledicência ou zombaria. Pero ele sabe, ele mesmo, “para a minha consciência isto é o que é importante: nunca matei ninguém”, e saboreia, alisa, evolui e amacia a própria língua. Estala esse músculo importante como um chicle de bola.

Zenilton, o bom palhaço, o pequeno farsante, o chama.

- Daniel, vem cá, por favor.

Mas tão absorto ele se encontra, que não se dá conta, não escuta. Ou ao chamado, ou à voz esganiçada que auxilia o não ser ouvida por este nome, Daniel. Jônatas, Jonas, Daniel são peles próximas da queda do seu corpo. São como perispíritos, como os seriados no cinema de sua infância, quando via bandidos entrarem no corpo de pessoas pela simples dose de um remédio, e depois saíam para assumir outra identidade. Pero acá o bandido é outro, o lado do mal está invertido, o mal aqui se veste de bem, o terror quer ser o bem. O terror quer ser a justiça. O cacete. O terrorista quer ser o futuro da humanidade. O caralho.

“Sobre la mesa, un pan dulce,
un arbolito,
unos juguetes. Jugando,
sus hermanitos”.

Quem quiser que se engane com essa idiotice. Putz.

- Daniel - Juanito pelas costas o toca.

Ele estremece. Vira-se. Coisa estranha, pareceu-lhe receber um toque de Juanito.

- Daniel, vamos entrar - lhe fala Zenilton. Chegou a hora da surpresa de Sol.

- Surpresa?!

- O bolo do aniversário. Estava esquecido?

- Não, claro. Sim, sim. Vamos lá.


* “Soledad no Recife” – publicado pela Boitempo em julho de 2009.
O livro mereceu entusiasmadas críticas de

1. Paulo Sérgio Pinheiro, no jornal O Estado de São Paulo,
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090906/not_imp430207,0.php

2. Letícia Lins, no Prosa e Verso de O Globo,
http://www.boitempoeditorial.com.br/publicacoes_imprensa.php?isbn=978-85-7559-138-3&veiculo=Jornal%20O%20Globo

3. Mouzar Benedito, na revista Brasileiros,
http://www.revistabrasileiros.com.br/edicoes/26/textos/687/

4. Eduardo Sales, no jornal Brasil de Fato,
http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/cultura/a-guerrilheira-que-ama-a-flor-que-lutava
**Republicação por iniciativa do autor, com ciência da Editora Boitempo
*** Urariano Mota é escritor e jornalista.
Publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e demais publicações alternativas na época da ditadura.
Em revistas, tem publicado na Carta Capital, Fórum e Continente.
Colunista do Direto da Redação, colaborador do Observatório da Imprensa.
Autor de “Os Corações Futuristas”, que narra a formação de jovens na ditadura Médici, e de “Soledad no Recife”, que recria os últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, executada por Fleury com o auxílio do traidor.
© 2008 - All rights reserved - Web Developer by Odirlei Vianei Uavniczak