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Literatura e Autoritarismo
Dossiê "Escritas da Violência II"
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê  

QUANDO SE PODE AMAR
as formas do romance e do drama em Joaquim Manuel de Macedo

Rodrigo Cerqueira1
Resumo: Este artigo analisa duas obras de Joaquim Manuel de Macedo, Rosa e O cego, ambas de 1849, com a finalidade de apontar as especificidades das representações da autoridade na forma romanesca e dramática.
Palavras-chave: Autoridade, romance brasileiro, drama brasileiro
Abstract: This paper studies Joaquim Manuel de Macedo’s Rosa and O cego, both from 1849, in order to specify the authority’s representation in the novelistic and in the dramatic form.
Keywords: Authority, brazilian novel, brazilian drama

1.
É bem verdade que alguns poucos entusiastas da obra de Joaquim Manuel de Macedo tendem a deplorar um comentário crítico, feito por José Veríssimo (2007, p. 231), que acabou se tornando uma espécie de lugar comum: “Os romances de Macedo são todos talhados por um só molde. São ingênuas histórias de amor, ou antes de namoro, com a reprodução igualmente ingênua de uma sociedade qual era a do seu tempo, chã e matuta.” A despeito dos esforços de Temístocles Linhares (1987), Tânia Rebelo Serra (1994) e Leandro Almeida (2008) para demonstrar a existência de uma variedade temática nos livros do autor de A moreninha, Veríssimo não deixa de ter sua razão: Rosa e O cego, por exemplo, ambas de 1849, são duas histórias que guardam suas semelhanças.
Aquela, um romance, narra os amores e desamores de Rosa por Juca, um estudante inconseqüente e volúvel, cujas errâncias transcendem os limites da Corte, se espalham pela Bahia, e voltam para mais uma rodada de loucura pelos salões e bailes do Rio de Janeiro. Sua extravagância, fruto de um comportamento debochado e pouco afeito às normas da boa sociedade, não difere muito da de seu par amoroso. É verdade que os desvarios femininos são outros: vaidade e futilidade dão o tom dos seus equívocos. De qualquer sorte, toda a dinâmica da narrativa está assentada nos erros desses dois jovens, incapazes de canalizar corretamente o amor que sentem um pelo outro, um amor puro como só pode ser aquele que fora marcado pela inocência da infância. E é exatamente para cumprir essa função dirigente que entram em cena as personagens mais velhas: Maurício e Anastácio. Aquele, o pai da moça, é um negociante da cidade, homem cortês e afetuoso, que sintetiza muito bem a maneira polida e tolerante com que esse estrato mais elevado da sociedade carioca do oitocentos se via, isto é, muito bem inserido no concerto de um mundo civilizado. Já o tio da desmiolada Rosa é um roceiro sangüíneo, pouco afeito às modernidades da Corte, a qual despreza pela sua fatuidade e hipocrisia, colocando-se, assim, como um elemento de seriedade e constância num mundo caracterizado pelo cinismo das relações sociais. E assim se desenrola, por mais de três centenas de páginas, o livro: os jovens vão metendo os pés pelas mãos – provocando ciúmes infantis, prometendo casamentos desmoralizantes, cortejando as mais diversas moças pelo simples prazer da conquista –, enquanto os mais velhos, cada um a sua maneira, vão tentando controlar a dinâmica da história, de modo a colocar o enredo nos trilhos. Mas já me adianto demais.
O cego, por sua vez, é um drama parecido em ao menos um ponto – um ponto bastante importante, diga-se de passagem – com a história de Rosa: a sua juventude também é marcada pelo signo perigoso da inconseqüência. Paulo é um deficiente visual que assumiu um compromisso com Maria, a mulher que ama, antes que um infortúnio lhe tirasse a visão. Também aqui, com lá, no romance, a velhice assume uma função controladora: Emília, mãe do mancebo apaixonado, julga arriscada a união de um cego.
E por demais ainda o esposo é cego,
Elle que nada vê, tudo adivinha,
Cria phantasmas... illusões... chimeras...
Mil desgraças ficticias imagina...
Pensa ter a traição sempre a seu lado,
Aproveitando a noite de seus olhos,
E faz por suas mãos o seu martyrio!...
Ah! poupa-te, meu filho, a taes torturas!...
(Macedo, 1863, p. 145)
Mas há, na peça, um elemento complicador: Maria, a noiva, não ama Paulo, e sim seu irmão, Henrique, um nobre rapaz que, ido lutar nas guerras de independência, fora julgado morto. Contudo, mesmo desfeita a falsa notícia da morte de seu amado, Maria não pôde mais voltar atrás na promessa que fizera. Muito pelo contrário, ela é obrigada a levar à frente esse casamento que não deseja para não manchar a honra da família, já que seu pai, Damião, empenhara a palavra.
Por enquanto, basta de paráfrase. Voltarei a alguns desses pontos logo adiante.
Pois bem, se é verdade que as histórias apresentam uma semelhança estrutural – às ações juvenis cabe a marca do desvario, enquanto à velhice é reservado um papel bem definido de condução – não posso deixar de apontar uma diferença que salta aos olhos: o desfecho. O bom termo – o casamento feliz – é privilégio apenas dos romances. Nos dramas de Macedo até aqui estudados,2 ainda que o enredo apresente poucas variações estruturais, o fim é diferente. Tragicamente diferente. Se Rosa e Juca, depois de todos os mal-entendidos, logram concretizar aquilo que era seu desejo desde a mais remota infância – a união amorosa respaldada pela instituição do casamento –, a Paulo não resta outra saída que não o suicídio, um gesto desesperado que abre espaço para que o amor verdadeiro de Maria e Henrique possa se concretizar de maneira honrosa para todos. E o que determina essa diferença não deixa de guardar seu interesse: a capacidade que os familiares têm de impor sua vontade sobre a volubilidade das paixões juvenis. Noutras palavras, a tragédia ou a felicidade do amor não está, como Macedo quer fazer crer, na auto-determinação dos jovens, mas no jogo insidioso através do qual a velhice faz valer sua autoridade familiar. E é exatamente sobre os diversos funcionamentos desses mecanismos de controle, que, variando de acordo com o gênero, determinam o fracasso ou o sucesso da empreitada autoritária, que eu pretendo me deter.

2.
Vou começar pela constatação de um equívoco que não deixará de ter, pelo menos assim espero, suas implicações positivas. Ainda no processo de escrita do capítulo inicial da tese, quando me deparei com a diferença entre os desfechos dos romances e dos dramas, a primeira hipótese que me veio à mente para explicá-la foi a lançada por Franco Moretti para ler o teatro elizabetano e jacobino, segundo o qual “a ‘tarefa’ histórica efetivamente realizada por essa forma [no caso, a trágica] foi, precisamente, a destruição do paradigma fundamental da cultura dominante. A tragédia solapou a monarquia absoluta de toda legitimação ética e racional” (Moretti, 2005, p. 42). De fato, se pensarmos na frase final de O cego, quando Henrique tem a coragem de tomar Damião pelo braço e responsabilizá-lo pelo suicídio de seu irmão, parece ser exatamente esse o propósito da peça: “Eis o fruto, senhor, da prepotencia!!!” (Macedo, 1863, p. 225). Aqui, Macedo dá a impressão de indicar que a falha trágica estaria na ação violenta daquele que não respeita as liberdades individuais, cuja figuração mais comum na literatura do período está na possibilidade de poder escolher o objeto de seu amor sem qualquer espécie de ingerência externa. Pois bem, ao compará-la, aquela passagem, à preocupação carinhosa do pai de Rosa com a infelicidade da filha, temos a exata medida da diferença entre os gêneros: “– Por que hesitas em abrir-me a tua alma, minha filha!... duvidas da minha ternura, porventura tenho eu sido para ti um tirano!...” (Macedo, 1945, p. 303). Pronto, o que a comparação parece revelar é que, se a desgraça moraria em uma ação prepotente, seria na posição conciliadora e libertária de Maurício, mais aberta ao outro, que residiria o segredo da felicidade final do romance: no respeito à autonomia da filha. É bom que se diga: uma autonomia bem limitada, pois está sempre restrita unicamente à esfera do amor, mas ainda assim uma autonomia possível num contexto cujo potencial castrador não pode ser ignorado.3
Mas a proximidade com a linha argumentativa de Moretti não pára por aí. Como já disse, O cego também é a história de Maria, obrigada, por seu pai, a se unir a Paulo como forma de manter a palavra dada. As simples implicações da dinâmica dessas decisões não deixam de guardar suas similitudes com a definição moderna de tragédia, que, ainda segundo Moretti, “se torna [a partir do século XVI] a história de um tirano que retira a ação do domínio da razão” (Moretti, 2005, p. 54). Razão e ação: reside no imbricamento desses dois conceitos a legitimidade do poder absoluto. Peço desculpas se acabei voltando à mesma tecla: o que me saltou à vista, ao fim da peça, é que uma ação prepotente – que, desprovida de qualquer base racional que sustente sua decisão, não leva em consideração a vontade alheia – só pode ter um fim trágico.
Agora, ao equívoco que mencionei mais anteriormente: o que, num primeiro momento, me parecia um caminho seguro a ser seguido, revelou, com o aprofundamento da análise, ao menos três fios soltos. Primeiro, embora O cego não seja uma tragédia propriamente dita,4 como considerei num momento inicial,5 acho que trazer para o centro da análise o seu caráter trágico6 ainda pode render bons frutos. Depois, se continuasse na trilha aberta por Moretti (2005), segundo a qual a forma trágica foi uma das responsáveis pela desautorização dos valores que mantinham de pé uma idéia absoluta de poder, mais cedo ou mais tarde teria que lidar com seu corolário – o fim desse processo de deslegitimação simbólica significou, no contexto estudado pelo crítico italiano, a liberdade de pôr, no final do século XVIII, o pescoço real numa guilhotina –, o qual não se aplica, nem remotamente, à nossa realidade. Por fim, embora o desfecho da peça aponte abertamente para uma idéia bastante crítica das desgraças causadas por uma autoridade prepotente, não se pode dizer que seja aquele descolamento entre razão e ação o grande responsável pelo caráter trágico da obra, até mesmo porque não se pode dizer que as decisões de Damião sejam tão arbitrárias e prepotentes quanto Macedo, pelo tom peremptório da frase com que fecha sua peça, quer nos fazer acreditar.

3.
Não posso mais crer, como gostaria de ter feito a partir da argumentação de Moretti, que a função do trágico, no drama de Macedo, seja a de pôr em suspenso a idéia de uma autoridade assentada sobre um conjunto de ações prepotentes. Me parece mais acurado dizer que o trágico, aqui, reside na história de um poder que se mostra inoperante diante dos desafios que lhe são propostos. Tomemos, para início de conversa, um dado que não deixa de ter suas implicações: a representação dessa ingerência familiar – e isso serve tanto para os romances quanto para as peças – está cindida, ainda que, como veremos, haja duas formas diferentes de se pensar essa cisão. No caso específico de O cego, temos, de um lado, como já vimos, Damião, que representa uma espécie de autoridade que não se envergonha de lançar mão das suas prerrogativas de pai para fazer valer a sua vontade: “[...] eu mando. [...] Obedecei-me” (Macedo, 1863, p. 156). O problema é que, no contexto da peça, essa manifestação de poder não é tão arbitrária quanto Macedo quer fazê-la parecer.
Não é de erro, ou martyrio, que tratamos
Sim de cumprir palavra que foi dada.
Nossa fidelidade é conhecida;
Fraqueza é desmentir tão nobre fama.
[...]
De meus avós e pae herdei sem mancha
Nome, que hei de legal-o como herdei-o.
(Idem, p. 156-7)
Cria-se, com essa justificativa, uma dinâmica interessante: sei que o leitor já vai cansado de uma idéia sempre repisada, a de que essa é uma peça que busca vogar num universo simbólico mais moderno, cujo ideal maior seria o da autonomia individual, nem que fosse uma autonomia tão restrita quanto a de se poder escolher o eleito do coração. Nesse sentido, a face do mal – a autoridade cuja prepotência, castradora da liberdade e, portanto, a responsável pelo desfecho trágico – é encarnada por Damião. Assim, se dou um passo à frente, posso inferir, aparentemente sem maiores problemas, que o substrato moral – a manutenção da palavra – que sustenta a decisão prepotente do pai de Maria guarda um ranço pré-moderno, em que as relações humanas ainda são mediadas por conjunto bem rigoroso de regras fora do qual a pessoa perde sua função social.7
O problema é que, se formos deslindar qual a trama das idéias de que é composta essa prepotência, teoricamente tão característica de outra época, a peça começa a mostrar, como Janus, uma outra face.
Mas porque causa não correu primeiro,
E antes que partisse a procurar-me?
Por que me não pediu-te por esposa?
Não sabia, que eu prompto coroára
Com tua mão o amor que te jurava!
Maria, esses protestos de mancebo
Soltos ao vento, o mesmo vento os-leva.
Se Henrique a mim viesse, o-esperaria;
Não veio a mim, não temos de esperal-o.
(Idem, p. 156)
Autoritário, Damião era sim, e suas palavras – “Que sou eu quem a obriga a cumprir juras / Feitas, quando já morto vos julgava” (Idem, p. 180) – não deixam qualquer margem para dúvida. Não se pode, contudo, afirmar nem que essa prepotência seja arbitrária, nem que ela seja a responsável pelo erro que põe em movimento o enredo trágico. Essa responsabilidade cabe a Henrique – ironicamente, aquele mesmo que vai culpar Damião pelo suicídio do irmão – o qual, ao partir para defender a emancipação do país, deixou de agir como deveria. Noutras palavras, numa sociedade de regras bem precisas, qualquer ação individual que não lhe pague o devido tributo só pode acabar tragicamente, o que nos leva diretamente para um segundo ponto.
No outro lado da autoridade cindida, temos Emília, a mãe de Paulo, que encarna uma voz prenhe de sabedoria, capaz de vislumbrar, com clareza, a desgraça que se insinua por trás da cegueira física e moral do filho:
Vejo aberto a teus pés enorme abysmo;
E tu, ó duas vezes muito cego,
Cego pela paixão, dos olhos cego,
Querido filho, vás lançar-te n'elle!...
(Idem, p. 142)
A autoridade de que dispõe Emília, afora a assentada sobre a inabalável hierarquia familiar, está marcada pelo signo da experiência. Embora tenha certeza de que o enlace amoroso do filho só pode levar à desgraça, o que, como já sabemos, se confirma, ela é incapaz de se valer de suas prerrogativas, limitando-se ao conselho: “Não 'stá accêso o altar; recua um passo; / Dize que não; 'stàs salvo” (Idem, p. 142). Mas, como Walter Benjamin bem pontuou, aconselhar é apenas fazer uma sugestão (Cf. Benjamin, 2000, p. 119-20). Ao abrir espaço para que a esfera da decisão mude de mãos, Emília permite que uma ação que julga equivocada seja levada a cabo. Isso significa que não há apenas um, mas dois erros que levam ao final trágico: permitir que uma juventude inconseqüente e inexperiente – “Ceg[a] pela paixão” –, incapaz de respeitar a autoridade materna, guie seus próprios passos, somente poderia ter como resultado, dentro do universo simbólico macediano, a marca da desgraça.
Instaura-se, assim, um paradoxo interessante: deliberadamente, o que é posto em xeque é a força que, em sua prepotência, castra a autonomia individual. Isso é o que vemos na superfície da peça. Contudo, o maior risco ao enredo não está aí, mas num duplo movimento. Primeiro, ele reside numa juventude excessivamente independente, cujas ações desrespeitosas e individualizantes rompem com a hierarquia constituída, pondo em risco a ordem social. Como veremos logo adiante, dos males, este – a insensatez juvenil – é o menor. Há, contudo, um agravante, que, tacitamente, acaba por assumir a completa responsabilidade da desgraça que desaba sobre as personagens: é a sabedoria desprovida de força.8 É ela que permite que uma ação inconseqüente ponha o elemento trágico em movimento. A tragédia brasileira, sob esse ponto de vista, não é “a história do tirano que retira a razão do domínio da ação” (Moretti, 2005, p. 54). Antes de tudo, porque o plano racional lhe é completamente estranho. Mais importante do que essa cisão9 é o caráter descentralizado de sua atuação. Mesmo num microcosmo bastante restrito como é o da peça, cada face da autoridade cuida somente do seu quinhão: a Emília cabe aconselhar Paulo, enquanto a responsabilidade de Damião é fazer com que sua filha mantenha a palavra dada, salvaguardando o nome de sua família. O trágico gira, assim, em torno de um vazio deixado por uma autoridade cindida, descentralizada e incapaz de se valer da força quando necessária.10

4.
Uma breve recapitulação antes de seguirmos adiante: num primeiro momento desse artigo, tendo em vista o desfecho da peça, tinha a nítida impressão de que poderia lê-la como uma espécie de libelo contra a prepotência de uma autoridade que ignora a liberdade individual de escolha. Uma análise mais cuidadosa acabou por revelar que não é aí, contudo, que reside o seu caráter trágico, e sim na incapacidade que essa autoridade, descentralizada, teve de regular essas paixões destruidoras, dirigindo moral e intelectualmente a juventude. Somente quando trouxer para o primeiro plano da análise a forma romanesca, creio que serei capaz de dar a real dimensão do processo.
Se não, vejamos.
Também aqui, no romance, a juventude é o lócus da inconstância e do erro, mas há um dado novo: “– Sim; amas um homem, que está na flor de seus anos, e que tem todos os defeitos próprios de uma idade verde e ardente” (Macedo, 1945, p. 305). A fala é do pai de Rosa, e serve como um consolo para o desassossego da filha, já cansada dos arroubos do amado. O mais importante, contudo, está na naturalidade com que ele trata do assunto: loucura, volubilidade, extravagância, fatuidade, inconstância, tudo isso são dados pressupostos pelo sistema, o que não os torna, necessariamente, um problema. Isso quer dizer que Macedo assume como natural uma representação paradigmática da modernidade: valorizar a mobilidade, a inquietude e a insatisfação da juventude é uma maneira que a forma romanesca, nos finais do século XVIII e início do XIX, encontrou para dar significado a um conjunto de experiências tão desconcertantes quanto as que se vivia e com as quais ainda não sabia como lidar.11
O problema real, como já vimos, não está em assumir que a juventude seja desvairada, mas reside, isso sim, no vácuo deixado por uma autoridade que não se faz presente: “– Fiquei completamente louca, e completamente decidida ao horrível sacrifício; meu pai acabava de deixar a sala; eu estava só... sem amparo... sem autoridade sôbre mim... a paixão cegava-me... não vi nada... não vi ninguém...” (Idem, p. 242, grifo nosso). A confissão de Rosa não deixa dúvida de que a relação de subordinação, no romance, é também ela uma relação que “se exerce em benefício do subordinado” (Tönnies, 1979, p. 38, tradução minha), e, mais importante, que esse deve reconhecer voluntariamente. (Mas paro por aqui, porque não quero me adiantar na argumentação.) Voltando ao que dizia, é exatamente por estar sem um norte que Rosa toma uma decisão que lhe é prejudicial: a de se casar com o risível Comendador Sancho apenas para fazer ciúmes em Juca, que andava cortejando outras mulheres. É nesse ponto que as estruturas da peça e do romance se encontram: a inconseqüência juvenil, um dado natural dentro desse universo simbólico, está sempre dirigindo os enredos para um abismo. Mas é também aqui que os dois gêneros passam a trilhar caminhos opostos: na trama que compõe a representação da atuação decisiva da autoridade familiar na correção desses destinos perdidos.
– Portanto, se você fosse o pai de Rosa, responderia ao comendador sem consultá-la?
– Sim; aí não há que consultar.
– E se ela adivinhasse essa intenção e viesse dizer-lhe uma manhã, como veio dizer a mim: “meu pai, o comendador Sancho escreveu-lhe pedindo-lhe a minha mão, eu venho rogar-lhe que me dê licença para aceitá-lo por meu marido” o que faria?...
– Primeiramente, mostrar-lhe-ia a inconveniência de tal casamento, e dar-lhe-ia bons conselhos.
– Isso também fiz eu, mano; se ela porém teimasse?
– Teimaria eu também pela minha parte...
– E se apesar de tudo ela insistisse?...
– Eu lhe diria não quero, e lhe ofereceria algum outro noivo.
– Até aí cheguei eu; mas se Rosa rejeitasse todos os partidos, se continuasse a querer casar com o comendador?...
– Trancá-la-ia num quarto, pô-la-ia de penitência jejuando pão e água; mandá-la-ia para um convento; ou enfim dir-lhe-ia – não! não! e não!...
– Oh! tanto não me animo eu a fazer! ela é minha filha... minha querida filha do coração.
– Por isso mesmo.
(Macedo, 1945, p. 202)
O diálogo entre o pai e o tio de Rosa é paradigmático para o que pretendo. Primeiro, ao contrário do que ocorreu na peça, os irmãos passam a agir de forma centralizada, de modo a corrigir as ações desastradas da moça e, assim, “restaurar uma ordem que entediam como justa” (Mattos, 1987, p. 1). Há, contudo, um segundo ponto, que revela o funcionamento desse mecanismo de controle. Em O cego, Damião fora pintado como um tirano prepotente, cuja ação, desarrazoada, teria causado o desfecho trágico da peça. Emília, por sua vez, prenhe de sabedoria, não se utilizou da força – até mesmo porque, personagem feminina, esse não lhe parece ser um atributo intrínseco – para fazer valer uma autoridade que tinha. No romance em questão, Anastácio e Maurício parecem ocupar posições, digamos, simétricas: um lado incorpora a força, o outro, a consciência do erro juvenil. Mas há um leve deslocamento simbólico nas representações: Maurício, ao contrário de Emília, não traz mais consigo a marca pré-moderna da sabedoria.12 O que o caracteriza é uma tolerância bem típica de um outro universo de valores – mais liberal e moderno –, sem o qual não existiria a forma romanesca. E, nesse novo universo de valores, a força é repaginada. Releiamos o diálogo citado: ela está lá, não restam dúvidas: a peremptoriedade do “[...] eu mando. [...] Obedecei-me” (Macedo, 1863, p. 156) de Damião ecoa no “Eu lhe diria não quero” (Macedo, 1945, p. 202) de Anastácio. Mas há uma diferença na dinâmica que rege a construção da representação de cada autoridade. Tanto Damião quanto Anastácio têm seus motivos para fazer valer, pela força, o peso de suas autoridades. A de Damião, contudo, tem um quê que a torna menos tolerável: deixado de fora da ação da peça, a partida inconseqüente de Henrique, que justifica todas as suas decisões posteriores, tem um caráter meramente informativo, incapaz de mobilizar com a simpatia dos leitores – ou, falando mais precisamente, dos expectadores. A de Anastácio, pelo contrário, surge como último recurso de uma cadeia lógica muito bem delineada, que começa com a extravagância de Rosa, da qual acompanhamos todos os passos, passa pela argumentação racional da inconveniência de tal atitude, mas é somente quando se esgotam todas as possibilidades ditas civilizadas que a força se mostra como um recurso tão justificado quanto necessário.
Justificado e necessário, é verdade. O uso da força está visível no horizonte das possibilidades de ação da autoridade constituída. Mas, no romance, ela permanece latente. Não dá suas caras, porque há uma inflexão no enredo, uma inflexão na qual reside o compromisso que caracteriza a forma romanesca:13 na falácia de que o processo de auto-determinação individual encontra seu par perfeito nas demandas de uma socialização extremamente autoritária, mas que prefere ver-se através de uma máscara mais civilizada: “– [Decidimos] Uma cousa que te deve ser bem agradável: convínhamos ambos, em que era chegado o tempo de te casarmos” (Idem, p. 288). Antes de tudo, não posso deixa de notar que o plural, nessa passagem, aponta para a correção de uma dos erros trágicos da peça: a decisão do destino de Rosa é tomada conjuntamente, guardando, ao mesmo tempo, tanto a feição moderna de um pai que sabe respeitar a vontade filha, quanto a tom de uma violência encoberta, encarnada na voz do tio, não por menos o autor da frase. Há, ainda, uma outra característica que vale a pena ser ressaltada: a decisão do casamento é, claramente, uma forma de ingerência externa – uma restauração da ordem, diria Mattos (1987) –, mas que, devido à perfeita identificação com os desejos da jovem, tem o seu viés intervencionista transformado numa espécie de eminência parda. A prepotência familiar se reafirma no momento mesmo em que parece ser eliminada. Ironicamente, o auge da autonomia juvenil – escolher a quem se quer amar sem qualquer espécie de ingerência externa –, só pode ser levada à cabo, de forma plena, quando é submetida à vontade de uma autoridade. Ou seja, só há emancipação quando ela se revela subserviente:
– E tens a certeza, perguntou Mariano, de que serás capaz de vencer-te a ponto de seguir um caminho absolutamente contrário daquele que até hoje tens seguido?
– Creio que sim; principalmente se vossa mercê me der licença para...
– Acaba ...
– Eu declaro antes de tudo, que nada farei que não seja com aprovação de vossa mercê...
– Vamos...
– Meu pai... eu amo...
(Macedo, 1945, p. 343)
Ao contrário da peça, na qual o casamento, posto no meio do enredo, marca, sem sombra de dúvidas, o desastroso caminho sem volta da inconseqüência de Paulo, no romance, adiada para o final da trama, a união amorosa é o momento em que a ação cessa e o movimento do mundo se interrompe. Mas a ação cessa e o movimento se interrompe de modo insidioso. A pergunta de Mariano, pai de Juca, guarda um tom mais liberal, porque, ao menos teoricamente, está aberta para qualquer resposta. Mas Juca sabe que, se quiser desposar Rosa, só há uma saída: a completa submissão à autoridade paterna. Assim, no romance, a consecução amorosa é o momento em que a intempestividade juvenil, que punha em risco a cadeia hierárquica de decisões, é vergada pelo peso de uma autoridade conservadora, a qual sempre prezou pela interrupção do curso dos acontecimentos.

5.
Nem um drama que critica a autoridade prepotente, nem um romance que respeita a auto-determinação individual. O que se vislumbra, no universo ficcional de Macedo, é a construção de uma autoridade insidiosa: o risco, tanto na peça, quanto no romance, não reside no uso da força. O risco está sempre do lado de cá, da juventude apaixonada, que precisa ser moral e intelectualmente guiada. Mesmo Damião, a quem se imputa a culpa da desgraça final, nada mais fez do que cumprir à risca o papel histórico que lhe cabia. Quem permitiu, em O cego, que o trágico se consumasse foi Emília, que fraquejou ao dar liberdade de ação a um elemento tão corruptor quanto a paixão inconseqüente de Paulo. Assim, as lições do romance e da peça apontam, de maneiras distintas, para um problema convergente: o uso da força tem seus riscos, é verdade, mas o que se entrevê por sob essa pátina crítica é que a sua ausência é ainda mais nociva para a manutenção da ordem.

Referências

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DA MATTA, Roberto. 1997. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco.
LINHARES, Temístocles. 1987. História crítica do romance brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, vol. 1
MACEDO, Joaquim Manuel. 1863. O cego, in Theatro, Paris: Imp. de Simon Raçon e Comp., p. 151-225.
______________. 1942. O moço loiro. Paris: Livraria Garnier, 2 t.
______________. 1945. Rosa. São Paulo: Livraria Martins.
MATTOS, Ilmar Rohloff de. 1987. O tempo Saquarema. São Paulo: HUCITEC; Brasília: INL.
MORETTI, Franco. 2000. The way of the world: the Bildungsroman in European culture. New York: Verso.
______________. 2005. Signs taken for wonder: on the sociology of literary forms. London: Verso.
PAVIS, Patrice. 2008. Dicionário de teatro. 3. ed. São Paulo: Perspectiva.
SERRA, Tânia Rebelo Costa. 1994. Joaquim Manuel de Macedo ou os dois Macedos: a luneta mágica do II Reinado. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Dep. Nacional do Livro.
TÖNNIES, Ferdinand. 1979. Comunidad y asociacion: el comunismo y el socialism como formas de vida social. Barcelona: Ediciones Península.
VERÍSSIMO, José. 2007. História da literatura brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908) . 7. ed. Rio de Janeiro: Topbooks.


1 Doutorando em Teoria e História Literária no Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp. Bolsista Fapesp. E-mail: drigoscerqueira@gmail.com.
2 Neste artigo esboço algumas questões que estarão presentes no primeiro capítulo da minha tese de doutorado, o qual se detém na produção ficcional de Joaquim Manuel de Macedo entre os anos de 1844 e 1856.
3 Essa é uma idéia constante nos romances de Macedo. Num mundo em que a mulher é serva da “lei, que os homens lhe têm imposto”, o amor, melhor, a possibilidade de escolher a quem se ama é afirmação mais contundente da sua autonomia: “A verdade é esta: a mulher só tem na vida – o amor –; sacrificar seu unico bem é perder tudo... é deixar-se morrer de um modo cruel” (Macedo, 1942, p. 122 e 123, t. II).
4 Até mesmo porque, como “gênero literário que possui suas próprias regras”, a tragédia está bem delimitada a três períodos: “A Grécia clássica do século V, a Inglaterra elizabetana e a França do século XVII (1640-1660)” (Pavis, 2008, p. 416).
5 Este artigo é uma versão modificada de uma comunicação apresentada no “Colóquio Projeto Temático Escritas da Violência 2010”, então intitulada: “Quando se pode amar: as formas do romance e da tragédia em Joaquim Manuel de Macedo”.
6 Se a tragédia é um gênero bem delimitado no que se refere ao tempo, ao espaço e a um conjunto de regras, “o trágico [é um] princípio antropológico de filosófico que se encontra em várias outras formas artísticas e mesmo na existência humana” (Pavis, 2008, p. 416).
7 Cf. Da Matta (1997), especialmente “Sabe com quem está falando? Um ensaio sobre a distinção entre indivíduo e pessoa no Brasil”, p. 179-248.
8 Para Ferdinand Tönnies (1979, p. 39, tradução minha), uma autoridade é constituída de três características: idade, força e sabedoria, “as quais se apresentam unificadas na autoridade que corresponde ao pai empenhado na proteção, assistência e guia de sua família.”
9 Na verdade, a cisão entre razão e ação, uma das aspirações do poder absoluto (Moretti, 2005, especialmente p. 47), preocupa apenas superficialmente as nossas elites. Não se ignora que a arbitrariedade é uma de suas feições mais marcantes.
10 “Servindo-se de imagens e conceitos cunhados em países distantes, [os dirigentes Saquaremas] buscavam referências para a compreensão do quadro em que se moviam, assim como procuravam ser semelhantes às nações que se apresentavam como portadoras de uma civilização. Ao lado dos que pretendiam dirigir, e até mesmo dos demais que suportavam o peso de uma dominação, não se envergonhavam de recorrer à força que insistiam em monopolizar como recurso para restaurar uma ordem que entendiam como justa, mas que insistia em lhes escapar” (Mattos, 1987, p. 1, grifo nosso).
11 Cf. Moretti (2000), especialmente p. 3-13.
12 “Ele [o verdadeiro relato] apresenta sempre, aberta ou tacitamente, um aspecto utilitário. Essa utilidade pode se traduzir num ensinamento moral, numa recomendação prática, ou ainda num provérbio ou numa norma de vida – de toda forma, o narrador é um homem que sabe dar bons conselhos para seu público. se a expressão “dar conselhos” começa a parecer, hoje, antiquada, é porque a experiência está cada vez menos comunicável. [...] O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está se perdendo, porque o aspecto épico da verdade, quer dizer, a sabedoria, está em vias de desaparecer” (Benjamin, 2000, 119-120).
13 “Ela [a literatura do século XIX] teve que assumir uma forma dúctil e precária: não mais aquela de uma completa síntese dialética, mas outra, mais “dúbia”, a do compromisso” (Moretti, 2005, p. 34).
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