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Literatura e Autoritarismo
Dossiê "Escritas da Violência II"
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê  

ALEGORIAS DA VIOLÊNCIA POLÍTICA NOS ROMANCES DA TRILOGIA ROMANA DE DYONELIO MACHADO

Fernando Simplício dos Santos1
Resumo: O artigo propõe uma leitura dos romances Deuses Econômicos (1966), Sol Subterrâneo (1981) e Prodígios (1980), de Dyonelio Machado (1895-1985), a fim de sistematizar certa alegorização da violência política e de destacar o papel do intelectual representado em meio às contradições do poder. Sob tal enfoque, entre outras características, ao mesmo tempo em que esta trilogia focaliza as divergências do Principado de Nero (54-68 d.C), é possível detectar uma crítica à Era Vargas (1930-45/1950-54), ao Golpe de 64 e à Ditadura Militar. Além disso, o texto também procura mapear traços do projeto estético do autor, considerando-o como mensagem que reitera a necessidade de uma práxis de vida, baseada no exercício e na conscientização política.
Palavras-chave: Violência política, literatura, história e alegoria.
Abstract: This article presents a reading of Dyonelio Machado’s novels “Deuses Econômicos” [Economical Gods] (1966), “Sol Subterrâneo” [Underground Sun] (1981), and “Prodígios” [Prodigies] (1980), in order to systematize a certain kind of political violence they presented allegorically. It also highlights the role of the Intellectual in the context of the contradictions of the political power. In this way, at the same time this trilogy brings into a focus the divergences in Nero’s Government (54-68 AD), it is also possible to realize that Dyonelio Machado criticizes Vargas’s Government (1930-45/1950-54), the Coup d’État of 64 and the Military Dictatorship in this trilogy. Besides that, this article also intends to present aspects of Dyonelio Machado’s aesthetical project in considering it as a message that reiterates the necessity of a praxis of life based on both political exercise and awareness.
Keywords: Political violence, literature, history and allegory.

1. Introdução
No conto “O velho Sanches”, publicado por Dyonelio Machado no livro Um pobre homem (1927), tem-se a formulação inicial de um método artístico que está baseado em certa “poética da presentificação do passado”. Nessa narrativa, de tanto ler os textos da Antiguidade (tais como: os de Sêneca, Suetônio, Tácito e Horácio), “procurando aliar, na Arte, a Fé com a Beleza Clássica” (Machado, 1995, p. 11), o erudito protagonista começa a vislumbrar alguns acontecimentos do Império Romano, de modo a relacioná-los com aqueles que ocorrem em seu próprio presente. No final da história, após o velho Sanches reconhecer no governador de sua cidade a mesma imagem do soberano Augusto, o narrador compara este peculiar personagem com a própria ilusão — querendo destacar a força de sua imaginação, estreitamente vinculada ao fictício. De certa maneira, poderíamos dizer que tal correlação entre arte, fantasia e história talvez possa condizer com a seguinte assertiva de T. S. Eliot: “necessitamos de um olho capaz de ver o passado em seu lugar com suas definidas diferenças em relação ao presente e, no entanto, tão cheio de vida que deverá parecer tão presente para nós como o próprio presente. Eis o olho criativo” (Apud Campos, 2010, p. 214). O importante a observar aqui é que, de maneira sui generis, a relação entre ficção, história e política já está peculiarmente sistematizada desde a primeira composição literária do escritor de Os ratos. No decorrer de toda a sua carreira, além de sua preocupação com o aperfeiçoamento estilístico, Dyonelio Machado sempre buscou aprimorar essas três características essenciais à sua poética.
Contundente crítico da história das contradições da política (seja em suas reflexões de cunho histórico-social, seja em suas obras literárias), Dyonelio almejou identificar e separar as transformações do poder de seus recorrentes mecanismos de dominação. Não é por acaso que as suas observações a respeito da violência (1990, p. 87-109) dizem respeito a variados níveis de coerção, resgatando uma reflexão sobre o assunto que vai desde a Antiguidade greco-romana até o contexto histórico que abrange a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais.
Esse ponto de vista não deixa de problematizar um confronto secular que está vinculado a conflitos sócio-político-culturais, que ainda hoje estão pendentes de esclarecimento — especificamente no caso do Brasil. Nas palavras de Francisco Foot Hardman (2009, p. 140), “na construção de uma cultura brasileira unitária, apagam-se rastros da violência sob forma de massacre, batismo silenciador ou incorporação dos tiranos ancestrais da sujeição voluntária”. Em outro patamar significativo, os romances Deuses econômicos, Sol subterrâneo e Prodígios, elaborados por Dyonelio com mais de vinte anos de pesquisa, problematizam certas discrepâncias ocorridas no Império Romano, ao mesmo tempo em que podem ser lidos de modo alegórico, isto é, como um questionamento de parte da história política de nosso passado recente, ajudando-nos a perfazer os caminhos que “a cultura como apagamento de rastros2” insiste em velar.
Conforme as considerações expostas acima, o presente trabalho traz uma análise dessa trilogia romanesca, a fim de sistematizar uma alegorização da violência política, exposta em certos níveis de significação, além de destacar o papel do intelectual representado em meio às contradições do poder. Em outros termos, pretende-se averiguar a maneira pela qual é instituída a articulação entre tirania antiga e autoritarismo moderno. Nessas produções, ao retornar a focalização literária para o século I, em pleno período das crises econômicas, religiosas e culturais, eclodidas no Principado de Nero (54-68 d.C), alegoricamente é possível detectar uma crítica à Era Vargas, ao Golpe de 64 e à Ditadura Militar. Isso porque, segundo a leitura proposta aqui, as ideologias concernentes ao tempo da enunciação (1954-1980)3“aparecem confundidas” com as imagens evocadas pelo passado longínquo e vice-versa, buscando uma renovação estética muito criativa. Dessa forma, podemos estabelecer um tipo de jogo interpretativo (“fluxo e refluxo” histórico-literário) que é sistematizado por trocas de imagens e formas discursivas, entre a representação da Antiguidade e apreciação feita pelo narrador.
Tal como observa, Angus Fletcher (2002, p. 11), a alegoria é multiforme: ela está “presente na literatura universal da Antiguidade até os tempos modernos”. Segundo a definição de Fletcher, uma vez que diz uma coisa para significar outra, este tipo de metodologia interpretativa nos auxilia a ir além da “expectativa normal que temos da linguagem”, indagando a corriqueira concepção de que “as palavras ‘significam somente o que dizem’”. Assim concebida, por tratar de significações que englobam um minucioso trabalho com a linguagem, a arte literária visa sondar desdobramentos de uma possível cadeia de associações históricas e, sobretudo, simbólicas4. Às vezes, o próximo e o distante podem caminhar em conjunto, comunicando-se ou buscando certo tipo de fusão. Signos esparsos, mas análogos entre si, apontam para uma cascata de imagens que contribuem para desvendar significados subjacentes aos textos. Enquanto a trilogia traz uma crítica, o próprio estatuto da ficção é valorizado.

2. Crítica e alegoria: sob a perspectiva de um mundo simbólico
Eu não procuro mais ser justo por meio da minha obediência à Lei. Agora tenho a justiça que é dada por meio da fé em Cristo. (São Paulo, Carta aos Filipenses, 3-9)
Muitos historiadores observam5 que, na época de Nero, a instauração de uma nova seita, firmada na trajetória de vida de Jesus Cristo, desestabilizava os ideais políticos. Por isso, através de uma concepção de domínio, os representantes do Império Romano eram obrigados a garantir a manutenção do poder. Nesse contexto de impasses, mesmo com a morte ignominiosa de seu principal idealizador, o Cristianismo continuou a ser visto como uma doutrina que, em meio a outras causas, ainda conspirava contra o Principado. Desde então, quer nas Sagradas Escrituras, quer no transcurso da História, o exemplo de Jesus Cristo serviu de parâmetro para que outros homens se tornassem seus seguidores, pois muitos viram em seus martírios uma maneira eficaz de restaurar a fé ou de lutar contra as injustiças terrenas. Principalmente a partir de seu engajamento religioso, coube ao apóstolo Paulo de Tarso trabalhar para difundir os preceitos cristãos.
Não é difícil perceber que, assim como ocorreu com os primeiros profetas do Cristianismo, São Paulo foi politicamente perseguido, sendo decapitado em meados de 67 e 68 d.C, por resolução de Nero. Por outro lado, graças à ação paulina de cunho religiosa e, posteriormente, em virtude da inevitável conversão da maioria da população romana e de outros povos, em 325 d.C., o imperador Constantino transformou o Cristianismo em religião oficial. Em síntese, por intermédio da representação dos conflitos ocorridos em tal contexto histórico, trabalhada de modo peculiar nos romances Deuses econômicos, Sol subterrâneo e Prodígios, a figura deste apóstolo aparece interligada à imagem do homem revolucionário, já que, nessas três obras, ele questiona contundentemente os setores sociais, políticos e culturais, controlados pelo Imperium.
Assim, fundamentado nessa trilogia romanesca pelo ideal de fraternidade universal ou pela luta de igualdade entre os homens, o Cristianismo é transformado numa política estruturada na ação e passa a ser visto como um partido, especialmente, organizado por Jesus Cristo. E, por apresentarem reflexões que questionavam as ideologias políticas vigentes, as missivas do apóstolo Paulo são refiguradas até serem, alegoricamente, transformadas em manifestos políticos.
Nota-se que, sobretudo, o exemplo da “militância religiosa” de São Paulo serviu para Dyonelio Machado criar, por meio de uma perspectiva moderna, os protagonistas de sua trilogia romana (o literato Lúcio Sílvio e o filósofo Evandro), construindo-os de modo sui generis, visto que, assim como o apóstolo, eles também são intelectuais que almejam criticar e reestruturar revolucionariamente a ordem social e governamental. Não sem razão, em todo o desenvolvimento das três obras, o imperador se vê obrigado a impedir qualquer tipo de rebelião e a estabelecer a contra-revolução. Nesse sentido, o narrador observa que
Nero percebeu o golpe político: o patriciado levantara a massa contra ele, essa massa desesperada, sem teto, que tudo perdera no flagelo, inclusive os filhos. Era preciso e urgente desviar o golpe da sua cabeça (...). Sem querer sair de sua casa, ele poderia ver a satisfação apocalíptica e messiânica com que os partidários do Cristo assistiam àquela tragédia que destruía os ídolos e os seus templos. E em que até eles quisessem perceber talvez, porque os aproximava do fim deste mundo e do começo do outro. Foi essa satisfação mística e delirante que os perdeu. (Machado, 1976, p. 43, grifos nossos)
Estritamente associada a uma subversiva categoria partidária, a religião desestrutura e desestabiliza os preceitos do Principado, revelando, por exemplo, o choque entre as suas doutrinas e a ideologia em torno da conquista de territórios, por exemplo. Para a conservação da ordem política do Imperium, o problema é que pessoas de outras nações, bem como mulheres e escravos, não importando a função social por eles exercida, são admitidos por essa nova seita, sem exceção ou preconceito. Então, para o cristão dessa produção literária, seria possível concretizar em vida o tão desejado Reino dos Céus, acabando, assim, com todas as injustiças políticas, culturais e econômicas. Trata-se de um lugar utópico e místico que alude, alegoricamente, à moderna acepção comunista.
Aqui, é impossível deixar de destacar relações com o pensamento marxista, pois, tal como acontece com as produções literárias em questão, ele também resgata o conceito de revolução desde suas origens, ao ressaltar que liberto e escravo, “patrício ou plebeu, barão e servo (...), numa palavra, opressores e oprimidos, sempre estiveram em constante oposição (...), envolvidos numa luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que terminou sempre ou com uma transformação revolucionária de toda a sociedade, ou com o declínio comum das classes em luta” (Marx & Engels, 2007, p. 45-6). Em Deuses econômicos, a partir do embate político entre as religiões monoteísta e politeísta, “antiga” e “moderna”, além de a “massa” tender a instaurar a revolução cristã, com intuito de tomar o poder e de tornar a sociedade economicamente mais igualitária, a população reivindica contra: o controle da cultura e as recorrentes torturas; a destruição de livros e de objetos artísticos; os atentados às instituições oficiais, considerados como formas de protestos; a perseguição dos intelectuais e dos cristãos — com inúmeras prisões, interrogatórios, assassinatos e desaparecimento de civis, entre outras causas. Só que, em vez de apenas focalizar as incoerências do regime tirânico, o narrador apresenta um questionamento tão contundente que se atém à própria destruição6 da cidade-símbolo (da capital do século I), na qual tanto Nero como outros importantes imperadores tradicionalmente demonstraram a sua soberania.
Além de tudo isso, essas considerações ainda podem ser mais acentuadas através da reconfiguração da luta contra o “capitalismo moderno”:
A classe capitalista vem incutindo essas idéias, que visam a manter o atual estado de cousas, como se ele dependesse mesmo da ordem geral que reina na natureza. A presença dos pobres ao lado dos ricos é tão necessária para o equilíbrio social, como a do quente e do frio, a do seco e do úmido, para a estabilidade do mundo físico. Farsantes! E esses ricos, que vão buscar à cosmologia os sofismas com que entorpecem o desejo de luta dos espoliados, encontram sempre intelectuais prontos para fazer seu jogo, a apresentar o drama desumano da diversidade das fortunas como uma fatalidade benéfica, desejada por deus e por ele prolongada até a perpetuidade (Machado, 1976, p. 210, grifo nosso)
A partir desses exemplos, fica claro o papel que o intelectual deve exercer em uma sociedade cujo “equilíbrio monetário” tende a favorecer os mais abastados e cuja explicação de desigualdade também está fundamentada na “vontade divina”. Com efeito, sua função não é a de compactuar com uma ideologia que garante cada vez mais a exploração que o homem faz de seu semelhante. Primeiramente, o intelectual tem que reconhecer que ele também faz parte deste sistema para, em seguida, decodificar os seus mecanismos, questioná-los e sugerir possibilidades de melhorar as condições sociais e econômicas como um todo. Além disso, é preciso ressaltar que, à medida que o sujeito da enunciação destaca termos como “massa”, “capitalismo”, “classe operária”, “revolucionário”, etc., gradativamente a alegoria dyoneliana está sendo instituída. Por meio da crítica a sistemas políticos, a alegorização do universo ficcional está vinculada à mitologia greco-romana e a certa concepção de simbolismo religioso. Trata-se da configuração de uma luta contra a sistematização do poder que, através desse recurso artístico, põe em xeque a ilusão em torno da linearidade do discurso histórico ou de sua acepção positivista.
Assim como ocorre com outras obras desse gênero, se, em um primeiro nível de leitura, essa trilogia romana pode ser interpretada principalmente através das imagens e formas discursivas referentes ao Império Romano; em outro nível de decodificação, é possível recorrer à alegoria, uma vez que ela também colabora para tornar os textos mais ricos, porque traz à tona um campo repleto de significações. Bem como salienta Jeanne Marie Gagnebin (1999, p. 43), “a alegoria consiste neste movimento de fragmentação e de desestruturação da enganosa totalidade histórica (...). Se a interpretação alegórica é uma forma privilegiada de saber humano, é porque ela expõe à luz do dia esta ligação entre significação e historicidade”. Nesse sentido, pode-se dizer que, nas três composições em questão, com o retorno da perspectiva literária para o passado, há um questionamento a essa falsa concepção de fragmentação e da totalidade histórica. É por essa razão que tais romances não poderiam ser simplesmente concebidos como “anacrônicos”. Neles, uma de suas mensagens mais incisivas nos explica que a violência e a cobiça pelo poder, infelizmente, retornam: elas estão presentes tanto nos reinados da Antiguidade e da Era Medieval quanto nos governos autoritários modernos.
Diante da crítica à República de Nero, como alguém poderia ficar impune ao sustentar os ideais de revolução? Por causa de uma carta que Lúcio Sílvio enviara para o filósofo Evandro, estes são presos em Sol Subterrâneo. O cárcere passa a representar o enclausuramento corporal, traduzindo o maior tipo de punição para o homem revolucionário: “a prisão degrada, porque escraviza. Dentro das quatro paredes duma enxovia, o preso perde a iniciativa de gerir a si mesmo: abdica dos seus direitos mais elementares na pessoa do cárcere, — que se adona do seu presente e do seu futuro” (Machado, 1980, p. 167). Segundo Foucault (2009, p. 73), a prisão é o principal lugar em que a tirania se expressa “em estado puro”. Nela, o poder é revelado por inteiro, justificando completamente a sua moral contraditória. Em todo o caso, nessas obras de Dyonelio, suas seqüelas também dizem respeito aos sentimentos de aflição espiritual ou psíquica. E tal sensação é pressentida pelos dois personagens principais mesmo já estando em liberdade. Isso quer dizer que, em um regime de exceção, a liberdade também pode ser uma ilusão. Sem dúvida, esta característica condiz com certos mecanismos de controles modernos.
Desde Sol subterrâneo, depois de ter mandato matar o apóstolo Paulo e de ter perseguido os seus fiéis, Nero não sabia que, de uma só vez, a sua soberania enfraquecia-se: paulatinamente não tinha mais como acusar outros culpados de conspiração política ou de crime de lesa-majestade. Na verdade, o César valia-se dessas justificativas para instaurar a “livre tirania”. Como última alternativa, ele foi obrigado a acusar Sêneca de tentativa de tomar o poder, especialmente porque a sua concepção filosófica, devido ao seu cunho moralizante, ético e humanista, aproximava-se das doutrinas do Cristianismo.
Ainda que a política imperial tentasse revigorar as suas forças, a população decidiu rebelar-se contra o governo “ditatorial”, principalmente por causa dos planos de cerceamento da liberdade e dos direitos cíveis — o que inclui: “mandar degolar os Gauleses que residem em Roma, envenenar o senado num festim, incendiar a Cidade. E, para dificultar toda providência destinada a debelar o fogo, lançar as feras sobre a população” (Machado, 1981, p. 305). Em resumo, o importante a salientar aqui é que, entre outras coisas, gradativamente todas essas imagens podem refigurar — de maneira alegórica e artística — os impasses políticos desencadeados durante a Era Vargas ou, até mesmo, a luta revolucionária dos anos 60/70 contra a Ditadura Militar.
Em especial na década de 60, a fusão entre cultura e política impulsionou toda uma geração. Um dos seus objetivos era reivindicar a favor dos diretos de uma classe esquecida pela elite social brasileira. As sonhadas reformas nos diversos setores da sociedade, se plenamente concretizadas, seriam “decorrência da implantação de um governo democrático, popular e nacionalista. Trampolim para a Revolução Socialista” (Borges, 2004, p. 89) — particularmente proposta pelo janguismo: política de João Goulart. Em decorrência do Golpe de 64, garantir essas reivindicações ficou cada vez mais difícil. Embora não completamente consolidada, acreditar na revolução era reconhecer a possibilidade de criar um mundo igualitário e mais justo. Com efeito, ainda hoje, é preciso analisar com detalhes os motivos por que a força que havia em torno das ideologias dessa geração deixou ao poucos de ter grande influência — mesmo com a parcial bancarrota da ditadura militar e mesmo com todo o sofrimento e luta das pessoas que perderam os seus familiares por causa da coerção e das torturas políticas. Vejamos como essas questões são refiguradas na trilogia romana com outras peculiaridades.
Nessas três obras, existe um personagem singular. O seu nome é Ascalon: “um provocador”. Na poética dyoneliana, esta expressão é geralmente utilizada quando um indivíduo faz parte da contra-revolução, ou seja, ele pode ser um policial, um investigador ou qualquer outro tipo de aliado do poder. Mas, devido ao seu modo irônico e mordaz, ora Ascalon é tratado como uma das autoridades do regime neroniano, cuja função é amedrontar e delatar os opositores do Império, ora alguns personagens o consideram como um dos partidários de Cristo. Segundo Alfredo Bosi (1988, p. 72), “Ascalon é aquele triste espécime que os regimes de terror incubam, meio homem meio sombra atraído a um só tempo pela violência dos marginais e pela segurança, o outro tanto violenta, da polícia”. Em todo caso, ele é reconhecido como um ente emblemático cuja função é desestabilizar toda a trama romanesca.
Ao se sentir culpado por ter denunciado os colegas Evandro e Lúcio Sílvio, Ascalon desaparece de maneira inexplicável no fim de Sol Subterrâneo, retornando, ainda mais misteriosamente, no começo d’Os Prodígios. Depois de quatro anos num Somatophylákion (um tipo especial de sarcófago), em vez de estar totalmente morto, ele reaparece com o coração negro e marcado com estigmas por todo o corpo: a bile negra, que incita todos os sintomas da melancolia, toma todo o seu corpo, dando-lhe um aspecto facial horrendo. Responsável por prenunciar o dia negro: ater dies, metaforicamente ele se torna o representante da morte e do grottesco.
Segundo as considerações do narrador, Ascalon é privado da morte porque já era um “morto em vida”. Porém, prodigiosamente, ao contrário dos protagonistas que “viveram” os males do cárcere, Ascalon traz em si a marca do “tempo”, pois o seu corpo em estado disforme demarca uma transformação singular: aquela do pior cárcere que poderia existir para um personagem de ficção: a do esquecimento. Não por acaso, o narrador antecipa “a possibilidade de estar o figurante [Ascalon] preparando-se para abandonar a cena...” (Machado, 1981, p. 261). Assim, a sua figura vai se esvaecendo paulatinamente, até desaparecer da história. Em Prodígios, pouco a pouco, o narrador não o descreve mais; outros personagens não falam mais dele; a morte passa a ser completamente simbólica. A construção do personagem Ascalon rompe com as fronteiras do mensurável, porque, assim como ocorre no último romance da trilogia, o imaginário da ficção é potencialmente evocado.
Nesse sentido, de forma alegórica, há uma alusão às variadas significações do termo: akedia, em grego, significava cadáver insepulto7. Já na Idade Média, passou a expressar Acedia ou tristitia e, mais tarde, melancholie — todas essas acepções poderiam representar a “companheira privilegiada da solidão interior” (Lambotte, 2000, p. 59). Como em Ascalon o mal nunca morre, a sua principal missão é difundir os ideais da tirania: na mente dos protagonistas, ela permanece eternamente viva. É por isso que, mesmo depois de sair do túmulo, Ascalon insiste em procurar por Lúcio Sílvio e Evandro, relembrando-lhes que, apesar do transcorrer do tempo, a perseguição ditatorial ainda está entre eles.
Sob outro ponto de vista, mesmo que a imagem de Ascalon represente principalmente o delator político, ela não deixa de alegorizar a morte de todos aqueles que foram assassinados pela Ditadura Militar ou por outros regimes de exceção, mas cujos corpos nunca foram enterrados. Sem dúvida, é sobretudo Freud (1980, p. 275-6) que explica essa relação entre luto e melancolia. Para ele, o sentimento propagado pela perda de um ente querido pode estar estritamente sobreposto ao estado melancólico. Com a melancolia, o homem passa a apresentar um tipo de depressão; não expressando interesse pelo mundo nem por sua própria vida; demonstrando características de baixa-estima; além de recriminar e punir a si mesmo. Por vezes, todo esse quadro de reações também é exposto por alguém que, apesar de impossível, ainda persiste em procurar a pessoa que possa minorar os sofrimentos causados pela perda. Uma vez que não pode mais encontrar o seu corpo, resta-lhe a angustiante “devoção melancólica”. Sobretudo pensando no contexto moderno da trilogia — referente à Era Vargas ou à Ditadura Militar —, no último livro, a trajetória de Ascalon traduz de forma peculiar tal devoção.
Na trilogia, a função que a tese do personagem Caio Plínio Secundo exerce no desfecho das três narrativas merece ser destacada, uma vez que também reforça a crítica em torno do Estado Novo. Em tal tese, é defendida a impossibilidade da supremacia das divindades cultuadas pelos romanos, ao constatar que “os deuses não podem tudo, visto que não podem suicidar-se” (Machado, 1981, p. 105). Isso equivale a dizer que racionalmente as divindades não existem, não são reais. Os mortais simplesmente criaram todas as entidades míticas para comprovar a superioridade dos homens perante os deuses. Entretanto, apenas seria permitido ao ser humano alcançar tal superioridade através do suicídio. Correlacionando a função dos deuses com as transformações sociais, políticas, religiosas e econômicas, a tese de Caio aponta para o fim do Império Romano e para a ascensão do Cristianismo. Nos Prodígios8, por meio de uma alusão direta ao contexto histórico da Antiguidade, atribui-se ao célebre Sérvio Suplício Galba (o futuro imperador) a liderança da rebelião militar que induziu Nero ao suicídio. Nesse sentido, é importante citar a passagem que apresenta a morte desse tirano:
Após uma tremenda agonia moral, aproximando-se do fim com a vilania dum caráter corrupto, tem a capitalizar entre as suas frustrações a de um suicídio-assassínio.
E assistiu a isso em vida, se é certo o que já corre pela Cidade: que havia sido socorrido in extremis por um centurião e com ele houvesse trocado suas últimas palavras, lamentando ter o auxílio chegado demasiadamente tarde. Mesmo assim valioso como prova de fidelidade. (Machado, 1981, p. 312)
Observa-se que, conforme a tese de Plínio Secundo, Nero se matou para virar uma entidade soberana, só que muito superior aos próprios deuses. Graças à semelhança com a qual a cena do “suicídio-assassínio” do imperador é descrita, alegoricamente, existe uma alusão o contexto moderno: momento em que à morte de Getúlio Vargas9 ocorre (1954) — lembrando que Dyonelio Machado e Graciliano Ramos foram presos juntos, durante a ditadura do Estado Novo. Na história oficial, consta que tanto o imperador romano quanto Vargas foram acusados de cometer suicídio, embora existam elementos que deixam tal constatação, no mínimo, ambígua. Depois da morte do presidente brasileiro, boa parte da população nacional manifestou-se a favor do “pai dos pobres”, disseminando um sentimento de luto e nostalgia. Não obstante, nas ficções em questão, percebe-se uma crítica que procura destruir o mito político, veementemente evocado em volta da figura de “Nero-getulista”. Em Sol subterrâneo, tem-se a seguinte passagem em que se comemora o fim do Principado neroniano:
Assim que a Cidade teve conhecimento da morte de Nero, o povo saiu à rua, a dançar de alegria, cobertas as cabeças com o píleus, — o boné da liberdade. Suas estátuas foram jogadas por terra, sua memória amaldiçoada. Mesmo em vida, o senado o tinha declarado inimigo público, sujeito aos ultrajes que acompanharam o antigo método de execução romana: pôr nu o condenado, prender-lhe o pescoço numa forca e açoitá-lo até que sobrevenha a morte (Machado, 1981, p. 308, grifo nosso)
Tal como a citada personalidade da história política do Brasil, segundo alguns historiadores, antes de morrer, Nero estava praticamente deposto. No entanto, nas ficções, as manifestações representam questionamentos à “política ditatorial”, na medida em que a população comemora o suicídio do imperador e destrói as construções que antes foram feitas para louvar a sua entidade e para destacar a ascensão da República. Por extensão, na trilogia, também existe uma característica que pretende apontar para a desmistificação do soberano, ao mesmo tempo em que celebra o fim do seu poder. Em outro campo significativo, alegoricamente, as cenas que prenunciam a queda do imperador aludem criticamente às da destituição de Vargas. É importante observar que, conforme Jeanne Marie Gagnebin (1999, p. 39), “num contexto determinado, a alegoria pode, sim, remeter a uma significação precisa entre outras (...)”. Ela permite estabelecer uma decodificação textual que revela e, reciprocamente, procura outros sentidos para tal revelação. Em suma, remetendo-se à crise política e cultural da Antiguidade greco-romana, inclusive ao prenunciar o fim do Principado de Nero, nota-se que as ruínas focalizadas no decorrer das três composições alegorizam, em meio a outros aspectos, a desintegração da própria Era Vargas.

3. Tirania antiga e alegoria moderna
Por intermédio da maneira como tirania antiga e autoritarismo moderno se articulam, é possível refletir sobre uma milenar mise-en-abyme histórico-literária: um tipo-metafórico de cavidade temporal e atemporal, que vorazmente impele o leitor de Deuses Econômicos, Sol subterrâneo e Prodígios até as discrepâncias ocorridas no Império Romano, só que respectivamente lhe revelando inúmeras contradições presentes em modernos regimes de exceção.
No Brasil, têm-se vários exemplos desses cacos da História, que não dizem respeito somente à Ditadura Militar, à Era Vargas ou ao Império Romano. A Inconfidência Mineira (1789-1792), A Revolta da Serra do Rodeador (1817), da Serra Talhada (1837), do Contestado (1912) e a de Canudos (1893) representam apenas alguns relampejos que ainda saltam aos olhos do incomum e misterioso Anjo de Paul Klee, resgatado por Benjamin em sua nona tese que está apresentada no texto “Sobre o conceito de história” (1994, p. 226). Com o seu olhar que sonda o acúmulo de catástrofes, ao mesmo tempo em que uma força misteriosa o arrasta para o futuro, o Angelus Novus ainda é capaz de perscrutar as inúmeras guerras de nossa heterogênea contemporaneidade. Não podemos esquecer que uma das maiores lições da modernidade é a sua eterna correlação com as “forças operando dentro da cultura — desejo, domínio, violência, vingatividade — que ameaçam desentretecer nossos significados, soçobrar nossos projetos, dirigir-nos inexoravelmente de volta à escuridão” (Eagleton, 2005, p. 156) ou até mesmo apagar “os rastros da violência política”. Através dos tempos, disfarçada sob as “máscaras da civilização”, a modernidade também se apresenta entre o progresso e o atraso; os senhores e os servos; os desenvolvidos e os subdesenvolvidos; a luta e a repressão.

Referências

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1 Doutorando em Teoria e História Literária na UNICAMP. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). E-mail: wertysantos@yahoo.com.br
2 Expressão de F. F. Hardman. In: Morte e progresso: cultura como apagamento de rastros. São Paulo: Editora UNESP, 1998.
3 Apesar de ter publicado o romance Deuses econômicos somente em 1966, em suas entrevistas e reflexões dispersas (1995, p. 37), Dyonelio Machado diz que tinha feito uma primeira versão desde 1954, a qual foi recusada por editoras da época.
4 Diversos tipos de anacronismos históricos (“que sustentam a atualidade do não-atual”) não podem ser considerados no caso da análise dessa trilogia de Dyonelio Machado, porque, devido à alegoria e em virtude do trabalho estético referente a outras figuras de linguagem, próprias ao discurso artístico do autor, os três romances em pauta privilegiam a analogia ficcional em torno da religião, da escravidão, da tirania, do autoritarismo, da mitologia, entre outros aspectos.
5 Como referências sobre o contexto antigo, baseamo-nos no texto de Eric Auerbach, intitulado “O Cristianismo”. In: Introdução aos estudos literários (1972, p. 55-64) e no livro O Império Romano (2009), de Patrick Le Roux. Além dessas obras, também consultamos A vida dos doze Césares (2002) e Anais (1950), respectivamente, de Suetônio e de Tácito.
6 Em 64 d.C., Roma foi destruída pelo fogo. Alguns historiadores dizem que se tratava de uma conspiração dos cristãos; outros sustentam que foi o próprio Nero que a destruiu para reerguê-la como símbolo de seu poder.
7 Por exemplo, a peça Antígona, de Sófocles, também nos elucida como a trilogia dyoneliana dialoga com a literatura grego-romana. Depois de ter recebido a notícia da morte de seus dois irmãos, Antígona (2002, p. 84-90) pensou que todos os seus suplícios teriam findado. No entanto, o rei Creonte permitiu apenas a um deles todas “as honras da sepultura”. Então, foi assegurado a Etéocles um lugar digno no Hades, enquanto o corpo de Polinices permaneceu insepulto: sem os tributos fúnebres, ele foi entregue aos abutres. Contrariando a lei soberana, Antígona decidiu enterrar o outro irmão. Somente assim, ela pôde garantir que a alma de Polinices não vagasse por cem anos na mais repleta escuridão.
8 Suetônio (2002, p. 408) observa que o “prefeito do pretório, Ninfídio Sabino, em Roma; na Germânia, Fontéio Capitão; na África, Clódio Macro”, todos eles, formularam uma revolução contra o Principado, e que Galba só tornou-se imperador depois de ter “esmagado” todos os conspiradores.
9 É importante observar que a aproximação feita entre os destinos de Vargas e Nero considera a relação ficcional que é estabelecida por Dyonelio Machado nos três romances em pauta. Com outras palavras, valoriza a literatura como um construto que se vale do discurso histórico para refigurá-lo artisticamente. Como já dissemos, não desconhecemos as diferenças evidentes entre as respectivas épocas, delimitadas pelo estudo da História.
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