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Literatura e Autoritarismo
Dossiê "Escritas da Violência II"
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê  

LEITURA DO POEMA “JANELA DO CAOS” COMO MANIFESTACÃO ESCRITA DA VIOLÊNCIA

Juan Fernando Gutierrez Rodriguez1
Resumo: Propor uma leitura do poema “Janela do caos” partindo de conceitos chaves como a religião, a linguagem, o papel antagônico da poesia em uma época específica, a dissolução do idealismo e o problema de um sujeito em permanente tensão com as categorias opressivas do pensamento hegemônico. O poema “Janela do caos” é considerado pela crítica o mais enigmático e ao mesmo tempo um dos mais fascinantes e representativos da obra de Murilo Mendes. Partindo da observação de que o único meio possível de unificação e organização do poema é a linguagem, pretende-se demonstrar que a visão do caos sintetiza uma perspectiva da realidade assinalada pela violência e pela ausência de ordem, e que tal visão supera o marco da realidade local para atingir um valor de universalidade. O livro Poesia Liberdade permite refletir em torno do ato de poetizar, no sentido de que a voz poética não é a portadora exclusiva da verdade. Essa experiência de deslegitimação se traduz em termos do tipo de enfoque utilizado por Murilo Mendes. Assim, a sua experiência consiste em refletir sobre um mundo imerso no caos, que por sua vez faz parte de um processo mais abrangente mediante que mantém a aspiração à totalidade com o objeto de entender o ato poético como uma reação consciente e inconsciente aos momentos de crise na história, ao indicar a gestação de um processo de transformação dos paradigmas que regem o mundo num momento determinado.
Palavras-chave: Violência, religião, poesia, Murilo Mendes, guerra.
Abstract: Propose an interpretation of the poem "Janela do caos" from key concepts like religion, language, the antagonistic role of poetry in a specific time, the dissolution of the idealism and the problem of a subject in constant tension with the oppressive categories of the dominant thinking. The poem "Janela do caos" is considered by critics as enigmatic and at the same time one of the most fascinating and representative of the works of Murilo Mendes. Starting from the observation that the only possible means of unification and organization of the poem is language, we attempt to demonstrate that the vision of chaos summarizes a perspective of reality marked by violence and lack of order, and that this vision goes beyond the framework of local reality to reach a value of universality. The book Poesia Liberdade allows us to reflect about the act of creating poetry in the sense that the poetic voice is not the sole bearer of truth. This experience of illegitimacy is reflected in the type of approach used by Murilo Mendes. Thus, his experience is to focus on a world in chaos, which in turn is part of a broader process that keeps the aspiration for a total unity aiming to understand the poetic act as a conscious reaction and unconscious to the moments of crisis in history, to indicate the gestation of a process of transformation of the paradigms that govern the world at any given time.
Keywords: Violence, religion, poetry, Murilo Mendes, war.

Partiremos de um traço característico do livro Poesia Liberdade, já advertido em diversos estudos críticos, que é a presença de uma atitude negativa perante a realidade, transformando seu significado de um modo definitivo; no entanto, a pergunta pela sua significação ainda permanece longe de ser esclarecida, porque, como se tentará demonstrar, a negatividade só representa uma das forças que caracterizam o desequilíbrio constitutivo do poema.
Apesar de a presença da religião ser uma das principais características da poesia de Murilo Mendes, sem deixar de considerar as implicações dessa escolha, que de entrada se mostra problemática num século marcado pelo auge de visões da realidade mais próximas de categorias profanas do que sagradas ao sugerir o reconhecimento de um horizonte de sentido embora oculto ou adormecido na consciência do ser humano, o livro Poesia Liberdade concretiza um tom pessimista que aponta para a recriação de uma realidade conflitante e complexa, que já não é possível explicar mediante categorias racionais, ante o qual a reação do leitor é de desconforto e perplexidade, pois desafia as estruturas lexicais, gramaticais e lógicas, próprias da convenção. Isto cria uma dissonância essencial que se insere dentro do fenômeno da poesia moderna.
A percepção do tempo neste livro está atravessada pela visão religiosa já mencionada, a qual assume (reduzindo-a) a história humana como uma ponte entre dois momentos específicos: o momento da queda do homem, e o momento da recuperação de sua condição inicial. Essa concepção particular do tempo é uma constante na obra poética de Murilo Mendes, na qual só é possível achar um estado de plenitude no começo da história humana, e tudo mais é uma condição negativa, de espera (Fragmento 1). A noção do tempo histórico se vê assim contaminada por esta idéia. Levando isto em conta, o poeta enumera de maneira angustiada os elementos de um passado mais humano, onde a memória e o desejo são os elementos fundamentais na consecução do efeito poético de almejar essa plenitude desaparecida. Deste modo, a perspectiva religiosa em Murilo Mendes dista de ser uma ilha de sossego, e na verdade é, nas palavras de Laís Correa de Araújo, “conturbado, caótico, pouco ortodoxo, angustiado e angustiante, vibrando nos sentidos, como parte indivisível de seu corpo”2.
O fato de pensar a concepção do tempo em Poesia Liberdade como subsidiária da religião cristã, entra em contradição com a concepção da criação artística própria de Murilo Mendes. O efeito dessa contradição surge quando encontramos que sua poesia acolhe um conceito de história que se enquadra no sistema do pensamento religioso cristão (que a entende como um período linear, ou seja, uma simples conexão do começo e o final dos tempos), e a própria concepção da poesia como um processo que reflete a condição essencial do homem. Ao ser pensado nos termos da poesia renovadora que pretende desenvolver o poeta, nos defrontamos com uma incoerência que a apreciação de Correa de Araújo já soluciona.
O poema que encerra o livro, titulado “Janela do caos”, é considerado pela crítica como o mais escuro, enigmático e ao mesmo tempo um dos mais fascinantes e representativos da obra de Murilo Mendes. Está composto por onze partes, sendo que sua construção não responde a nenhuma organização lógica nem racional, e parece estar viabilizado por uma técnica de justaposição de planos, própria de uma estética de vanguarda. Na perspectiva de uma realidade desestruturada, o único meio possível de unificação e organização do poema seria uma nova noção de linguagem, situação que implica a adaptação do leitor as novas condições históricas. O caos que serve de título ao poema determina a existência de uma ordem prévia. A superação desta condição implica a presença de uma confiança na volta ao estado original de plenitude: “Coros serenos de vozes mistas, / De funda esperança e branca harmonia / Subindo vão” (Fragmento 11). Revela-se, além disso, uma tentativa por demonstrar que numa linguagem poética não existem palavras privilegiadas nem hierarquias semânticas; todas as palavras compartem um único nível de valor e podem cumprir a mesma função; neste sentido, mediante a rebeldia no plano da linguagem, Poesia Liberdade apontaria a pôr em questão, entre outros muitos elementos, a capacidade comunicativa tanto do homem quanto da sociedade na qual ele se insere. Ao afetar a transferência de conhecimento, essa incomunicabilidade opera no mundo, conforme Walter Benjamin, um declínio progressivo da experiência.
Apesar de sua aparente carência de unidade, o livro está caracterizado por uma forma de pensamento que procura a unidade perdida mediante a fusão dos contrários e a circularidade do tempo histórico. A utilização de uma linguagem povoada de imagens dissonantes e sem constrangimentos formais, além de afirmar a crença numa unidade perdida à qual ainda é possível aspirar, problematiza a inserção do poeta na tradição poética brasileira. Existe a idéia em torno do ato de poetizar em Poesia Liberdade, no sentido de que a voz poética, subjetivada e impessoal, é a portadora exclusiva da palavra. Essa experiência da voz se traduz em termos do ponto de enfoque aplicado ao poema. Assim, a experiência do sujeito lírico consiste em refletir sobre um mundo imerso no caos, que por sua vez faz parte de um processo mais abrangente dentro do qual cabe a aspiração a um ideal de totalidade.
O fato do poema estar formalmente desvinculado de toda tradição poética para constituir uma lógica própria, indica a clara intenção de mostrar a estética da violência como o instrumento de percepção da realidade na era contemporânea. Perante o panorama de violência generalizada, e como se tentará demonstrar, o poema desenvolve formas alternativas de violência, como reflexo de uma atitude que faz questão da ordem presente.
A experiência de um mundo em crise não obriga o poeta a recusar os princípios espirituais que caracterizam sua visão de mundo. Uma explicação para isto seria o mínimo efeito que o mundo social e a história têm tido em determinadas épocas sobre as convicções espirituais e dos valores cristãos. Essa separação permitiria ao poeta inverter o significado dos símbolos do cristianismo, como ocorre em outros poemas do livro, entre eles “A ceia sinistra”, no qual prevalece uma atitude de rejeição categórica aos instrumentos da guerra, sendo o homem agregado a essa categoria de instrumento. Os símbolos estão organizados nesse poema de forma tal que, uma vez lido, recuperam plenamente sua significação sagrada. Assim, se confirma o dito por Manuel Bandeira sobre a poesia de Murilo Mendes, na qual “assistimos a essa constante incorporação do eterno ao contingente”3, e na qual os valores transcendentes do cristianismo, ao menos desde a nova concepção de linguagem –e este é um logro do poeta-, sustentam a preeminência sobre o contingente (o homem e a guerra).
Esses valores transcendentes estão alicerçados em uma confiança na volta da condição perdida e esquecida pela memória humana. Assim, o fragmento final de “Janela do caos” surtiria certo equilíbrio das forças em conflito, forças que conformam uma tensão entre a realidade do presente e o idealismo determinado pela convicção religiosa do poeta. Eis a razão pela qual o poema oscila entre a escuridão inicial e a luz da branca harmonia (no fragmento 3, a recuperação do canto que parece ter sido esquecido). Por mais que o equilíbrio tenha um caráter irrevogável, não pode apagar a evidência de que o poema em toda a sua extensão expõe uma recusa da violência que mantém o mundo sumido no caos.
No poema, assim como no livro todo, é incorporado um caráter inegável e sustenido de negatividade, mas uma vez lido, percebe-se que esse conceito sofre uma leve alteração determinada pelos critérios e os próprios interesses da voz poética. A função dessa negatividade relativa seria, então, a de estabelecer a rede de relações do poema com a realidade, isto é, a interpretação dos fatos históricos, com o objeto de recusar de forma contundente qualquer identificação passiva com a sociedade.
Não se trata, então, de uma negatividade constitutiva, senão de um tratamento da realidade que parte da dissonância da voz poética ao ser confrontada com um mundo que se apresenta como violento e desprovido de valores transcendentes. Esse choque é o fator que caracteriza a experiência do leitor em termos de desconforto e perplexidade.
Se bem a guerra é o elemento central de recusa na consideração de “Janela do caos” como manifestação escrita da violência, o poema busca transmitir a sensação de perplexidade e desconforto que a guerra desperta em qualquer espírito racional. O modo de gerar essa sensação consiste em violentar de maneira consciente a linguagem, com o fim de por em questão a relação dos indivíduos com a realidade. Assim, a essa violência que supõe uma carga esmagadora para a humanidade, o poema contrapõe o que vamos chamar de tentativa de equilíbrio, ou seja, ignorar as regras que estruturam a linguagem e a comunicabilidade com o intuito de chamar a atenção da sociedade para a realidade constrangedora da guerra. Se essa violência gera nos homens terror e desconcerto, uma linguagem transtornada faria com que se alterasse decisivamente o substrato mais profundo de suas crenças e convicções, ao mesmo tempo em que os coloca em um estado de alerta. Nessa lógica de rebeldia semântica e gramatical, as hierarquias verbais são descartadas pela voz poética na medida em que se quebram os limites entre palavra poética e não poética, assim como a ordem da frase também é despedaçada mediante a variação aleatória dos tempos verbais.
Também é notável a violência exercida sobre a própria realidade. O poema busca que o ser humano se sacuda de seu adormecimento e sua indiferença perante os acontecimentos, reflita sobre sua relação com a realidade e faça uma avaliação de sua escala de valores, incluso, e principalmente, os de tipo religioso. Sobre este aspecto, o leitor se veria obrigado a pensar na importância dos símbolos sagrados e na verdadeira finalidade da visão cristã como modo de organizar a sociedade sob a luz de valores transcendentes e universais.
A observação feita por Hannah Arendt no seu texto em torno ao fato da violência ter sido encarada historicamente como um fenômeno marginal (Arendt, 1985, 6) é de elevada importância para entender o poema “Janela do caos” como uma recusa ao conceito, porque permite entender que seus mecanismos mudam de aparência conforme avança a história. Isto quer dizer que, como qualquer outro evento da existência humana, as guerras têm um final, mas não ocorre o mesmo com a violência que as particulariza e dinamiza, ocupando todos os aspectos da vida cotidiana das sociedades; neste caso, simplesmente se opera uma transferência do ponto de vista. Diante da desumanização decorrente de sua prática, a guerra impõe uma dinâmica de progresso veloz, o que constitui um paradoxo, porque o seu crescimento se faz em detrimento das condições de vida de povos inteiros, desembocando no que Arendt chama a incerteza de um futuro.
A inclusão de elementos referentes à guerra traz à tona a idéia de uma inteligência humana voltada inteiramente para as ações negativas; de outro lado, a este campo semântico é contraposto o dos instrumentos musicais, fator que também é indício de uma esperança em que essa capacidade do homem recupere sua qualidade principal, entendida em termos de produzir uma melhora na sua existência, e não piorá-la.
A experiência particular da Segunda Guerra Mundial no Brasil faz com que seja difícil pensar em um trauma do mesmo jeito que o teriam sofrido os povos europeus; por tanto, e pelo menos no caso individual do poeta, se existir um modo de superar os possíveis danos causados pela violência da guerra, a resposta está nos valores legítimos da religião cristã. Desta visão religiosa se desprende outra característica da poesia de Murilo Mendes percebida por grande parte de crítica: a de manter um caráter universal sem perder de vista a importância do presente em que se inscreve Poesia Liberdade.
Resumindo, a presente leitura do poema “Janela do caos” abre a possibilidade de pensar nele desde uma negatividade relativa matizada pela visão religiosa do poeta, além de constituir um antagonismo duplo, no qual ele se opõe à guerra e ao mesmo tempo insere sua crença numa transcendência dos valores cristãos inserido numa ordem e numa época marcada pela prevalência dos valores profanos (os valores de câmbio) sobre os sagrados.
Deste modo, o poema “Janela do caos” tem sido assumido como a verbalização de uma preocupação pelo presente histórico de caos e decadência moral. Ao mostrar a recusa da violência e a explicitação de uma aposta por visões de mundo contrárias aos modos estabelecidos pela convenção, ele constitui o ponto de partida para afiançar uma posição perante a realidade, ao arriscar possíveis significações da existência na sua dimensão temporal, ou seja, através da experiência vivida e da expectação pela volta dos seres humanos à unidade essencial perdida, atitude considerada como fator que leva a entender a realidade de modo estético.

BIBLIOGRAFIA

Araújo, Laís Corrêa de. Murilo Mendes: ensaio crítico, antologia, correspondência. São Paulo: Perspectiva, 2000.
Arendt, Hannah. Da violência. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985.
Friedrich, Hugo. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
Hamburger Michael. A verdade da poesia. Tensões na poesia modernista desde Baudelaire. São Paulo: Cosacnaify, 1999.
Mendes, Murilo. Poesia completa e prosa. Organização e preparação do texto: Lucia Stegagno Picchio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar S. A., 1994.
Messeder Pereira, Carlos Alberto, org. Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
Michaud, Yves. A violência. São Paulo: Ática, 1989.


1 Doutorando em Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo. E-mail: nosfernando@yahoo.com
2 Araújo, apud., pág. 77.
3 Mendes, Murilo. Poesia completa e prosa. Organização e preparação do texto: Lucia Stegagno Picchio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar S. A., 1994, p. 36.
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