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Literatura e Autoritarismo
Dossiê "Escritas da Violência II"
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê  

O FUNCIONÁRIO PÚBLICO EM LIMA BARRETO E CYRO DOS ANJOS

Elisa Hickmann Nickel1
Resumo: O texto abaixo compara, pela ótica do funcionário público, três personagens: Augusto Machado, Gonzaga de Sá e Belmiro. Os dois primeiros são criações do escritor Lima Barreto (1881 – 1922) e aparecem em Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, publicado em 1919. O terceiro é o protagonista do mais conhecido romance de Cyro dos Anjos (1906 - 1994), O Amanuense Belmiro (1937). Essa comparação é parte do projeto de mestrado que analisa a distância entre o tipo ideal burocrático de Max Weber(1864 - 1920), a administração pública brasileira e a obra dos dois autores, procurando entender de que forma o patrimonialismo dominante no período é retratado por eles, bem como as razões da dificuldade de romper com ele. A dissertação aborda também as obras Bagatelas, Coisas do Reino do Jambon e Os Bruzundangas, de Lima Barreto, publicadas postumamente em 1923, 1953 e 1923, respectivamente, além de A Menina do Sobrado (1979), de Cyro dos Anjos. O texto a seguir, porém, se volta para o universo literário desses dois romances, constatando a predominância de patrimonialismo e de relações de favor no meio burocrático em que os três personagens funcionários públicos vivem. Em seguida, procura entender de que forma os três personagens reagem a isso, percebendo uma grande diferença nela. Finalmente, a partir das conclusões dessa análise, o texto retoma a questão da ação no mundo, da importância de pensar e se posicionar sobre os acontecimentos históricos, sociais e políticos de nossa época.
Palavras-chave: Cyro dos Anjos, Lima Barreto, funcionário público, patrimonialismo.
Abstract: The text below compares, focusing the public employee, three characters: Augusto Machado, Gonzaga de Sá and Belmiro. The first two have been created by the writer Lima Barreto (1881 - 1922) and appear in Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, published in 1919. The third is the protagonist of Cyro dos Anjos’s (1906 – 1994) best-known novel, O Amanuense Belmiro (1937). This comparison is part of the master's research that examines the distance between the pure type of bureaucracy as described by Max Weber (1864 - 1920), the Brazilian public administration and the work of these two authors. The research endeavors to understand how the then prevailing patrimonialism is portrayed by them as well as the reasons for the difficulty of abandoning it. The research also examines the works Bagatelas, Coisas do Reino do Jambon and Os Bruzundangas, by Lima Barreto, published posthumously in 1923, 1953 and 1923, respectively, and A Menina do Sobrado (1979), by Cyro dos Anjos. The following text, however, turns to the literary universe of the two novels first mentioned in this Abstract, finding the predominance of patrimonial relations in the bureaucratic middle where the three characters (who are all public employees) live. It then attempts to understand how the three characters react to it, noticing a considerable difference there. Finally, the conclusions from this analysis allows the paper’s writer to revisit the question of consciously acting in the world, or, in other words, the importance of thinking and expressing one’s opinions on historical, social and political events of our time.
Keywords: Cyro dos Anjos, Lima Barreto, public employee, patrimonialism.

O presente texto pretende comparar três personagens-funcionários públicos: Belmiro (do romance O Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, publicado em 1937), Augusto Machado e Gonzaga de Sá, ambos do romance de Lima Barreto Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, publicado em 1919. Essa comparação faz parte de uma pesquisa de mestrado que trata desses dois autores (Cyro dos Anjos e Lima Barreto), e cujo objetivo é uma análise comparativa entre a obra deles a partir da figura do funcionário público. Quem são os funcionários criados por eles? Como eles se comportam em seu trabalho? Em que medida eles agem em conformidade com as idéias weberianas do tipo ideal burocrático? E até que ponto o mundo em que eles vivem, tanto no que se refere ao romance como à época em que os livros foram escritos, seguia tais princípios? São algumas das perguntas a que essa pesquisa pretendia responder.
Ao definir o tipo ideal burocrático, Max Weber afirma que o funcionário submetido a esse tipo de poder deve estar sujeito a uma rigorosa e sistemática disciplina e controle no desempenho do cargo. O governante será obedecido não enquanto pessoa, mas sim enquanto líder legitimado por essa mesma ordem impessoal. Os funcionários a serviço desse quadro administrativo não devem ser proprietários dos meios materiais de administração e produção. E, por fim, normalmente só toma parte no quadro aquele que prova possuir uma formação e uma qualificação profissional para o cargo em questão. Já no projeto de mestrado se constatava uma grande distância entre estes ideais de impessoalidade e meritocracia, já desde meados do século XIX adotados formalmente pelo Estado brasileiro (de acordo com Franco, 1974, p. 112 e 113), e os funcionários públicos de Lima Barreto e de Cyro dos Anjos. Tampouco o funcionário público real do Brasil de fins do século XIX e da primeira metade do XX se aproximava do ideal de Weber; é o que evidenciam, entre outros: Carone (1972), Cunha (1963), Faoro (2000) e Holanda (1995). Percebe-se, pelo contrário, uma predominância do patrimonialismo e das relações de favor na obtenção (e também no dia-a-dia) dos cargos públicos, tanto nos romances e crônicas como fora deles.
Além das questões mencionadas no primeiro parágrafo, porém, mostrou-se importante, para melhor compreender esses autores e suas épocas, analisar a forma de reagir ao mundo de seus personagens. Quer dizer, sim, é possível distinguir nos romances, particularmente nos dois que queremos analisar aqui, traços claros de patrimonialismo e relações de favor. Mas o que os personagens pensam e fazem a esse respeito? Tentar responder a essa pergunta, que é o que faremos a seguir, pode esclarecer muito da visão de mundo dos três personagens e do próprio Lima Barreto.
Vejamos Belmiro primeiro. O conceito lukácsiano de romantismo da desilusão, aplicado muito apropriadamente por João Luiz Lafetá a esse personagem, trata do herói romanesco que evita conflitos e lutas externos, e para quem
a elevação da interioridade a um mundo totalmente independente não é um mero fato psicológico, mas um juízo de valor decisivo sobre a realidade (...) O problema estético (...) concentra-se (...) em torno do problema ético básico, da questão da ação necessária e possível. O tipo humano dessa estrutura anímica é em sua essência mais contemplativo que ativo (Lukács, 2000, p. 119, 121 e 122).
De fato, trata-se de um personagem essencialmente contemplativo. O ponto crucial, aqui, é que essa elevação da interioridade se torna juízo de valor decisivo sobre a realidade. O que queremos dizer com isso é que o lirismo de Belmiro, seu recolhimento de caramujo e sua opção por não agir no mundo significam sim uma tomada de posição – na direção conservadora. Aqui a questão do funcionário público pode ser considerada uma chave para se atingir essa compreensão do personagem: Belmiro obtém seu emprego de amanuense por conhecer um deputado, procura conseguir a devolução de documentos de um amigo, apreendidos pela polícia, por meio de um senador seu conhecido, e escreve versos ao invés de trabalhar na Seção do Fomento. Sua forma de agir na profissão é patrimonialista, construída com base em relações pessoais e de favor. A ausência de reflexão sobre o mundo faz com que ele aceite e obtenha vantagens pessoais através de práticas bem pouco modernas, que o governo de Getúlio Vargas se esforçou para combater.
O conservadorismo, porém, está presente também em outras posições de Belmiro, que não estão diretamente relacionadas à sua profissão. Um exemplo é o trecho seguinte, marcado pelo positivismo e pelo elitismo freqüentes nos intelectuais brasileiros das décadas de 20 e 30. O protagonista reflete sobre a revelação de seu amigo Redelvim de que ocorrerá uma tentativa dos comunistas tomarem o poder, movimento hoje conhecido por Intentona Comunista: “Fiquei melancólico e cívico, pensando que, neste país, a civilização poderia ter, certamente, um sentido mais cordial, sem os cruentos conflitos que andam pelo mundo. Talvez algumas leis, alguma compreensão...”(Anjos, 1989, p. 53).
Aqui, um dos raros momentos em que ele fala sobre o mundo que o rodeia, Belmiro deseja também uma civilização mais cordial. É o mesmo que ele tenta sempre fazer com os amigos: aproximá-los, serená-los, ignorando os conflitos ideológicos que surgem entre eles. Isso se mostra cada vez mais difícil no decorrer do romance, com Redelvim envolvido com o Partido Comunista e Silviano com sua tendência para o fascismo. Belmiro, entretanto, nunca se posiciona, alegando que o indivíduo não pode ser apreendido nem aprisionado em doutrinas e teorias rígidas, pois é mais do que isso. É o que ele defende no seguinte trecho, ao descobrir o envolvimento de seu amigo Redelvim com o partido comunista e a possibilidade, revelada por ele, de ocorrer uma Revolução proletária:
Pensei, depois, no Redelvim e na Jandira. Ao contrário do que acontece ao primeiro (...) os indivíduos significam demais para mim. Onde os outros vêem unidades mecânicas da massa, ou abstrações econômicas, eu vejo homens, criaturas que sentem e pensam. Vejo, por exemplo, o homem Redelvim, sensível, inteligente, cuja imolação em nome de uma quimera seria uma crueldade do destino. (Anjos, 1989, p. 53)
É essa a atitude frequente de Belmiro ao se deparar com a convicção de Redelvim: um comentário amável sobre o indivíduo que se sobrepõe à massa, invocando, em termos dele mesmo, uma “simpatia humana”.
Porém, antes de contar seu envolvimento, Redelvim menciona apenas que a Revolução Proletária era para breve, ao que Belmiro responde:
Respondi-lhe que isso não era motivo para aflições. Revoluções sempre as houve e haverá. Silviano acha, mesmo, que revoluções ou guerras são reajustamentos, operações da economia da espécie. Quando há, por exemplo, superpopulação, vem uma guerra para destruir o excesso de indivíduos que perturba o equilíbrio social (Anjos, 1989, p. 52).
Desaparece, nesse trecho, a idéia de simpatia humana ou de uma real preocupação com os males do mundo. Elas ressurgem, porém, logo a seguir, quando a conversa prossegue e o amigo lhe conta que, por ocasião do fechamento da sede do Partido, a polícia recolhera a relação de todos os seus membros, na qual constava o nome dele, Redelvim. Belmiro então se preocupa e pergunta o que poderia acontecer ao amigo, se começasse a haver prisões. Na mudança de atitude de Belmiro fica clara a espécie de simpatia humana dele: ela se volta apenas para si mesmo e para os que lhe são próximos, família, amigos e conhecidos. O discurso do indivíduo que se sobrepõe à massa e que não se encaixa em abstrações econômicas adquire com isso um novo sentido: ele legitima o apreço do protagonista por algumas pessoas em detrimento de outras e confere ao amanuense uma feição amável, preservando sua imagem e a si mesmo de conflitos.
Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá é um romance bem diferente, não pelas situações que se dão na burocracia, mas pela forma dos protagonistas reagirem a elas. Augusto Machado, o narrador, é funcionário público e conta parte da vida de Gonzaga de Sá, seu amigo que trabalha na seção de Alfaias, Paramentos e Imagens da Secretaria dos Cultos. Enquanto Gonzaga está prestes a se aposentar, Machado está no começo da carreira, o que talvez explique parte da diferença na forma dos dois reagirem aos abusos do patrimonialismo. Mas há grande afinidade na forma de pensar sobre essas situações, em geral com um misto de indignação e ironia. Vejamos um exemplo. Augusto Machado fala sobre o diretor geral dos Cultos Católicos, o Barão de Inhangá, chefe de Gonzaga:
Homem inteligente, mas vadio, nunca entendera daquilo nem de coisa alguma. Entrara como chefe de Seção e durante as horas de expediente o seu máximo trabalho era abrir e fechar a gaveta da sua secretária. Foi feito diretor e, logo que se repimpou no cargo, tratou de arranjar outra atividade. Em falta de qualquer mais útil aos interesses da pátria, o barão fazia a toda hora e a todo o instante a ponta no lápis. Era um gasto de lápis que nunca mais se acabava; mas o Brasil é rico e aprecia o serviço de seus filhos. (Lima Barreto, 1961, p. 45)
Na mesma linha de crítica, Gonzaga de Sá diz que o Barão do Rio Branco estava
fora do seu tempo, sempre com o ideal voltado para as tolices diplomáticas e não com a inteligência dirigida para a sua época. (...)
- Este Juca Paranhos (era outro modo de ele tratar o barão do Rio Branco) faz do Rio de Janeiro a sua chácara... Não dá satisfação a ninguém... Julga-se acima da Constituição e das leis... Distribui o dinheiro do Tesouro como bem entende... (...) Mora em um palácio do Estado, sem autorização legal; salta por cima de todas as leis e regulamentos para prover nos cargos de seu ministério os bonifrates que lhe caem em graça. (Lima Barreto, 1961, p. 39 e 40)
No conteúdo, portanto, as críticas dos dois personagens se voltam para o uso de patrimônio do Estado para fins privados e para a falta de racionalização no serviço público necessária para que ele atingisse o fim de tornar melhor ou mais fácil a vida de seus cidadãos. Eles constatam e criticam também o absurdo dos excessos burocráticos, que criavam muito mais cargos que o necessário, o que era com freqüência feito por razões pessoais, para proporcionar empregos a protegidos. Há ainda, nos dois personagens, uma crítica à própria racionalidade excessiva na burocracia, que esquece o papel humano do funcionário e faz com que ele se perca em detalhes que pouco contribuem para a melhoria social e a felicidade geral dos homens. Esse último aspecto fica claro quando Gonzaga de Sá fala a Machado sobre o funcionário Xisto Beldroegas, seu colega de repartição, que tinha uma
necessidade espiritual da fixação, da resolução em papel oficial de tudo e todas as coisas. Beldroegas não podia compreender que o número de dias em que chove no ano não pudesse ser fixado; e se ainda não o estava, em aviso ou portaria, era porque o congresso e os ministros não prestavam. (...)
Apesar de enfronhado na Legislação, não tinha uma idéia das suas origens e dos seus fins, não a ligava à vida total da sociedade. (...) Para o doutor Xisto Beldroegas, a lei era ofensiva, inimiga da parte. Ninguém tinha direito em presença dela; e todo pedido devia ser indeferido, não logo, mas depois de mil vezes informado por vinte e tantas repartições, para que a máquina governamental mais completamente esmagasse o atrevido. (Lima Barreto, 1961, p. 86, 87 e 88)
A crítica às minúcias perseguidas pela burocracia, em detrimento de assuntos que poderiam contribuir mais para a sociedade, está presente também no início da narrativa de Augusto Machado. É o irônico caso de salvas devidas ao Bispo de Tocantins, que “ao entrar no porto de Belém, a bordo de um “gaiola”, recebera da respectiva fortaleza apenas dezessete tiros de salva. Sua Reverendíssima reclamou. Competir-lhe-iam dezoito tiros; e basto cabedal de textos e leis a alta autoridade eclesiástica citou, fundamentando a sua opinião.” (Lima Barreto, 1961, p. 17) Feita a reclamação, a Secretaria dos Cultos produziu um longo texto a respeito, sem nada resolver; o Ministério do Exterior fez o mesmo, analisando a legislação dos países civilizados ou não e estabelecendo equivalências entre os sacerdotes das diversas religiões, e também sem nada resolver. Finalmente, o Ministério da Guerra decidiu a questão, definindo que o bispo deveria receber uma salva de dezessete tiros com canhões de quinze e um tiro com canhão de sete e meio. E Augusto Machado conclui a narração desse caso:
Era, além de salomônico, matemático, ou ambas coisas juntas, pois, com dezoito disparos, se tinham dezessete tiros e meio, satisfeito o prestígio do governo e os melindres do prelado.
Essa resolução foi tomada depois de serem ouvidas as grandes repartições técnicas do Ministério, cujo saber foi no caso incalculável. (Lima Barreto, 1961, p. 18)
Há, portanto, nos dois personagens, uma semelhança nas suas opiniões sobre esse mundo, e na importância que dão a essas questões, que os torna profundamente diferentes de Belmiro. Enquanto ele se volta para si mesmo, para sua vida interior, e pouco discute um mundo que entretanto se revela internalizado nele, os dois personagens de Lima Barreto se voltam para o mundo, o analisam e opinam sobre ele, comparando-o com sua interioridade e sendo transformados por ele. Mas, embora as posturas de ambos se distanciem claramente da de Belmiro, eles não são iguais. Enquanto Augusto Machado, bem mais novo, tem vontade de ser diretor, Gonzaga de Sá, que era “Filho de um general titular do Império, podia ser “muita coisa”; não quis. Era preciso ser doutor, formar-se, exames, pistolões, hipocrisias, solenidades... Um aborrecimento, enfim...” (Lima Barreto, 1961, p. 26)
Essa diferença entre os dois não se restringe à atitude com relação ao trabalho: ela engloba diversos aspectos de suas vidas, o que é muito bem analisado por Osman Lins. Frente a uma estrutura social adversa aos delicados de alma, aos que refletem sobre o mundo e duvidam sempre de si mesmos e da vida, o romance parece oferecer duas alternativas: “isolar-se de uma vez, ocupando na sociedade o lugar mais silencioso, exíguo e insignificante; ou tentar abrir os muros, invadir o meio onde o recusam e clamar – dentro ou fora dos muros – contra o absurdo do próprio isolamento e do isolamento de outros. Luta ou capitulação.” (Lins, 1976, p. 116 e 117)
Osman Lins associa Gonzaga à capitulação e Machado à luta. Mas isso também não é definitivo, já que o fato de Machado escrever, em início de carreira, sobre a vida de Gonzaga pode indicar não apenas a proximidade que ele percebe entre o amigo e ele mesmo, mas também uma reflexão sobre as próprias possibilidades e escolhas para o futuro.
Osman Lins explica ainda em que se baseia essa alternativa entre luta e capitulação, e ao fazê-lo torna clara a diferença entre os dois personagens de Lima Barreto e Belmiro que procuramos mostrar há pouco:
A alternativa entre luta e rendição compreende certas condições sociais, uma realidade política e econômica sobre a qual se projeta. Ora, tanto a luta como a rendição levam a um exame desse campo, dessa realidade.(...) Renda-se a personagem ao próprio isolamento como Gonzaga de Sá ou tente rompê-lo à maneira de Machado, a consciência desse fato é aguda e determinante, tornando-os amargos, irados, irônicos. (Lins, 1976, p. 117 e 118)
Esse dilema que encontramos nesse romance que o próprio Lima Barreto considerava calmo, solene e cerebrino surge também em outros momentos em sua obra. Particularmente interessante para a comparação com Belmiro é o trecho seguinte, de Cemitério dos Vivos:
devíamos procurar a nossa desincorporação, pela imobilidade e pela contemplação. O sábio é não agir. Quando li esta conclusão nos meus manuais baratos de filosofia, assustei-me. Aceitava a concepção, mas a conclusão me repugnava. Se na verdade era que, em presença desse tumulto da vida, desse entrechocar de ambições, o homem beneficiado pela sabedoria tinha o dever superior de afastar-se disso tudo e tudo isso contemplar com piedade; era verdade também que a ação, julguei assim, seria favorável à nossa reincorporação no indistinto, no imperecível, desde que fosse orientada para o Bem. Como conhecer o Bem? O meu espírito não encontrava, para sinal de seu conhecimento, senão na revelação íntima. (Lima Barreto, 2004, p. 163)
Para concluir, gostaríamos de reafirmar a importância de se discutir essa questão do patrimonialismo e das relações de favor no Estado brasileiro, não apenas pelas más conseqüências que ela já causou aos seus funcionários por mérito e à própria sociedade brasileira, mas também porque ainda hoje se vêem sobrevivências dela. Além disso, parece-nos um tema interessante também por ajudar a compreender melhor tanto Belmiro como Augusto Machado e Gonzaga de Sá, já que as reações dos três personagens nesse aspecto podem, em grande medida, ser consideradas exemplares de suas formas de reagir aos acontecimentos históricos e sociais. Finalmente, a questão é pertinente também por conduzir a uma reflexão sobre a ação no mundo e sobre a importância de pensar sobre ele, reflexão que os estudiosos das ciências humanas devem ter sempre em mente.

REFERÊNCIAS

ANJOS, Cyro dos. O Amanuense Belmiro. 12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.
CARONE, Edgar. A República velha (Instituições e classes sociais) – volume um. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972.
CUNHA, Mário Wagner Vieira da. O Sistema administrativo brasileiro: 1930 – 1950. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, 1963.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro – volumes 1 e 2. 10. ed. São Paulo: Globo; Publifolha, 2000.
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 2. ed. São Paulo: Ática, 1974.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Cemitério dos Vivos. São Paulo: Editora Planeta do Brasil; Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2004.
LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. São Paulo: Editora Brasiliense, 1961.
LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.
LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000.


1 Mestranda em Teoria e História Literária pela UNICAMP e bolsista CNPQ. O presente texto foi apresentado no Colóquio do projeto temático Escritas da Violência de abril de 2010.
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