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Literatura e Autoritarismo
Dossiê "Escritas da Violência II"
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê  

ESCRITA E EXPERIÊNCIA DO CÁRCERE EM LIMA BARRETO E GRACILIANO RAMOS

Daniela Birman1
Resumo: Neste artigo, realizaremos uma confrontação entre O cemitério dos vivos, de Lima Barreto (1881-1922), e Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos (1892-1953). Segundo buscaremos mostrar, os dois títulos se conjugam e se opõem de diferentes maneiras, de modo que sua comparação se faz produtiva. Referentes a diferentes períodos da nossa história, O cemitério dos vivos e as Memórias do cárcere revelam processos de despersonalização, aniquilação e reestruturação do eu; narram o confronto dos escritores com uma determinada instituição disciplinar (prisional e manicomial); e podem ser lidos como testemunhos das experiências vividas no cárcere. Obras de grande força literária, elas resultam ainda de distintos trabalhos da memória e são atravessadas por diferentes forças críticas. Ao nos debruçarmos sobre elas, nos deteremos sobre as problemáticas acima citadas, buscando analisar o trabalho literário realizado por Lima e Graciliano para transmitir um acontecimento-limite refratário à linguagem.
Palavras-chave: Lima Barreto, Graciliano Ramos, confinamento, testemunho, memória.
Abstract: This article promotes a confrontation between Lima Barreto’s O cemitério dos vivos and Graciliano Ramos’ Memórias do cárcere. We attempt to show that these works unify and oppose each other in ways that render their comparison productive. Despite referring to distinct periods in Brazilian history, O cemitério dos vivos and Memórias do cárcere reveal processes of de-personalization, of annihilation and restructuring of the self; they narrate the confrontation of their authors with certain disciplinary institutions (the prison and the asylum), and hence lend themselves to be read as testimonies of experiences of imprisonment. Both are works of great literary strength result from distinct labors of memory and are wrought with different critical forces. Our examination of these works privileges the cited problematiques, with the intent of analyzing the literary labor undertaken by Lima and Graciliano in order to convey a limit-event that refracts language.
Keywords: Lima Barreto, Graciliano Ramos, confinement, testimony, memory.

“E, aliás, quereis saber uma coisa? Estou certo de que a nossa gente de subsolo deve ser mantida à rédea curta. Uma pessoa assim é capaz de ficar sentada em silêncio durante quarenta anos, mas, quando abre uma passagem e sai para a luz, fica falando, falando, falando....” (Dostoiévski, 2000)
1. Introdução: testemunhos do confinamento
Internado à força pela polícia no Hospital Nacional de Alienados em 25 de dezembro de 1919, após ter passado a noite da véspera do Natal “em claro, errando pelos subúrbios, em pleno delírio” (Barreto, 2004, p. 20), Lima Barreto permanece no hospício até 2 de fevereiro do ano seguinte. Tratava-se do segundo enclausuramento do escritor nessa instituição, para a qual também havia sido levado em 18 de agosto de 1914, sempre em decorrência de alucinações alcoólicas, segundo os diagnósticos médicos. Dias depois de deixar o hospital, por ocasião da sua primeira internação, o autor escreveu o conto “Como o ‘homem’ chegou” (2001, p. 1152-1166), no qual narra o transporte de um louco inofensivo num carro-forte, do Norte do país até o Rio de Janeiro, denunciado o irracionalismo e a violência da razão médica, forte aliada do controle exercido pelo Estado na Primeira República.2 Já ao longo da segunda passagem pelo manicômio, Lima anotou, em tiras de papel, seu Diário do Hospício, material que daria origem ao romance póstumo e inacabado O cemitério dos vivos.3 Este talvez viesse a ser, na opinião do seu biógrafo, Francisco de Assis Barbosa, “a sua obra-prima” (Barbosa, 2002, p. 326). Nestes dois textos, o escritor nos conta sua entrada e estada nessa “catacumba” (Barreto, 2004, p. 73): “Aqui no hospício [...] eu só vejo um cemitério: uns estão de carneiro e outros de cova rasa”, escreve (ibidem, p. 69).
Mais de vinte e cinco anos após Lima, Graciliano Ramos partilhará conosco seu ato de “exumação” (Ramos, 2008, p. 13).4 No dia 3 de março de 1936, em meio à vaga de prisões e perseguições desencadeada pela repressão à Intentona Comunista, o escritor é preso, sem nenhuma acusação formal, na sua casa em Maceió. Depois de ter sido transferido para Recife, ele é embarcado, no porão do navio Manaus, para o Rio de Janeiro. Lá permanecerá encarcerado até janeiro de 1937, passando pela Casa de Detenção e pela Colônia Correcional de Dois Rios, na Ilha Grande, entre outros locais de aprisionamento. Durante este período, Graciliano se ocupará da redação (e da proteção) das notas sobre a cadeia e experimentará a urgência de escrever dois contos: “O relógio do hospital” (2003, p. 33-43) e “Paulo” (ibidem, p. 45-52). Ambos evocam os pavores vividos por ocasião de uma cirurgia sofrida por ele em 1932, cujas lembranças retornam com força na prisão. Será, porém, somente quase dez anos após a sua libertação que Graciliano se debruçará sobre as Memórias do cárcere. O livro permanecerá inacabado e será lançado postumamente em 1953.
Ao seguirmos a etimologia do termo testemunho (cf. Benveniste, 1995, p. 278), que em latim pode ser designado por duas palavras (testis e superstes), poderemos compreender as Memórias do cárcere e O cemitério dos vivos de acordo com, no mínimo, estes dois sentidos do termo.5 Segundo a definição de Benveniste, testis é aquele que “assiste como um ‘terceiro’ [...] a um caso em que dois personagens estão envolvidos” (ibidem, p. 278). Trata-se da acepção jurídica e histórica do conceito. De acordo com este significado, podemos afirmar que Lima testemunhou o projeto político e psiquiátrico de exclusão dos “doentes mentais” do espaço público na Primeira República. Já Graciliano é testemunha da política de exceção do governo de Getúlio Vargas, às vésperas da instauração do Estado Novo.
É preciso ressaltar, nesse contexto, que os dois comprovam as violências e o autoritarismo sofridos não apenas por eles, mas também por seus companheiros de clausura. Dessa forma, embora Lima e Graciliano (e o narrador de O cemitério dos vivos, Vicente Mascarenhas) empreguem a primeira pessoa, os acontecimentos transmitidos por eles ultrapassam a esfera da experiência pessoal, individual.
Assim, embora não se canse de demarcar as diferenças entre ele e seus colegas de manicômio, Lima não deixa de se reconhecer neles. Ao narrar, por exemplo, um incidente envolvendo o internado Roberto Duque-Estrada Godfroy que, embriagado, subiu na lateral esquerda do edifício do hospício, de onde começou a destelhá-lo, ele escreve: “Esse acontecimento causa-me apreensões e terror. A natureza deles. Espelho” (2004, p. 100, grifo nosso). E em determinadas passagens das Memórias do cárcere, Graciliano substitui a primeira pessoa do singular por aquela do plural, indicando-nos desse modo também a dimensão coletiva da sua narrativa: “Afinal que valíamos nós? Estávamos ali mortos, em decomposição, era razoável evitarem o contágio” (Ramos, 2008, p. 117). Além disso, o escritor esclarece, logo no primeiro capítulo do livro, que a decisão de escrevê-lo origina-se de um dever que ele tem diante de seus antigos companheiros de cárcere (ibidem, p. 13).
Graciliano e Lima podem ainda ser interpretados de acordo com o sentido de superstes. O termo refere-se à testemunha enquanto “aquele ‘que subsiste além de’’’ (Benveniste, 1995, p. 278), ao sobrevivente. Este significado implica, segundo explica Márcio Seligmann-Silva, a passagem “por um evento-limite, radical, passagem essa que foi também um ‘atravessar’ a ‘morte’, que problematiza a relação entre a linguagem e o ‘real’” (Seligmann-Silva, 2003, p. 8). Os dois autores testemunhariam, nesta condição, essa experiência-limite refratária à linguagem, que abala e aniquila o sentido do mundo e o eu daquele que o vive. Assim, se testis refere-se ao significado jurídico e histórico do conceito, superstes aponta para sua acepção experiencial.
Esse “‘atravessar’ a ‘morte’” dos dois autores é explicitamente indicado por eles em seus livros. No caso de Lima, como o título do romance já indica, o hospício é comparado a um cemitério de vivos. O narrador-protagonista Vicente Mascarenhas nos explica, pois, que o manicômio se assemelharia a um determinado cemitério que Henrique C. R. Lisboa diz ter existido em Cantão: “Nas imediações dessa cidade, um lugar apropriado de domínio público era reservado aos indigentes que se sentiam morrer. Dava-se-lhes comida, roupa e o caixão fúnebre em que se deviam enterrar. Esperavam tranqüilamente a Morte” (Barreto, 2004, p. 189). Já nas memórias de Graciliano, é a própria autoridade institucional, representada por um guarda manco e vesgo da Ilha Grande, quem enuncia a semelhança traçada por Lima: “— Aqui não há direito. Escutem. Nenhum direito. Quem foi grande esqueça-se disto. Aqui não há grandes. Tudo igual. Os que têm protetores ficam lá fora. Atenção. Vocês não vêm corrigir-se, estão ouvindo? Não vêm corrigir-se: vêm morrer” (2008, p. 429).
O cemitério dos vivos e as Memórias do cárcere podem ser lidos, nesse contexto, tanto como narrativas nas quais seus autores nos transmitem o relato do seu “‘atravessar’ a ‘morte’” como escritas por meio das quais eles buscam sobreviver a esta passagem. “Na verdade estávamos mortos, vamos ressuscitando” (ibidem, p. 13, grifo nosso), esclarece Graciliano, enfatizando o caráter inacabado desta ação. Ao mergulharmos, portanto, nestes textos, faremos a leitura, por um lado, das descrições dos diferentes estados de destruição de si e, por outro, das tentativas, por meio da escrita, de resistir a esta aniquilação.

2. Destruição e reconstituição de si
Lima Barreto e Graciliano Ramos denunciam os procedimentos de despersonalização e homogeneização dos indivíduos efetuados no hospício e na prisão. “Como é que eu, em vinte e quatro horas, deixava de ser um funcionário do Estado, com ficha na sociedade e lugar no orçamento, para ser um mendigo sem eira nem beira, atirado para ali que nem um desclassificado?” (Barreto, 2004, p. 184), pergunta-se o narrador Vicente Mascarenhas, relatando-nos uma entrevista que teve na Seção Pinel, destinada aos internos gratuitos do hospício. Com esta interrogação, o narrador-protagonista expressa seu espanto diante da abrupta interrupção dos seus papéis sociais anteriores e da sua rápida transformação num “dos pobres, dos sem ninguém” (ibidem, p. 181), da seção. Citamos:
Fui de novo à presença de um médico; era também moço, mas não tão céptico como o primeiro que me viu no pavilhão, nem tão crente como o chefe deste. Interrogou-me pacientemente sobre o meu delírio, sobre os meus hábitos e antecedentes. Disse-lhe toda a verdade. Não me desgostou este médico, senão quando ele me perguntou assim, com um pouco de menosprezo:
— O senhor colabora nos jornais?
— Sim, senhor; e já até publiquei um livro.
O doutor, por aí, sorriu desdenhosamente, mas foi um instante. Saí do exame e fiquei pelos corredores. Eu tinha passado bem a noite passada; mas tudo aquilo me parecia mais extravagante. (Ibidem, p. 183-184, grifo nosso)
Graciliano também relata episódios de desfiguração e destruição da sua identidade. Na Ilha Grande, ele não apenas teve sua cabeça raspada e foi despojado de pertences pessoais como sofreu a extrema violência de ter seu nome subtraído. O escritor foi batizado com um número por Cubano, preso que exercia o papel de “cão de fila” (Ramos, 2008, p. 436), submetendo os demais prisioneiros a uma dura disciplina:
Um grito e um aceno levantaram-me, aproximaram-me do negro que fizera a chamada e ordenara a organização das filas.
— O seu número é 3535, anunciou.
Fiquei um momento absorto, pouco a pouco me inteirei da supressão do meu nome, substituído por quatro algarismos. (Ibidem, p. 435)6
Evidentemente, estas operações de despersonalização, homogeneização e exclusão, que separam de forma binária os encarcerados dos demais indivíduos da sociedade e suprimem-lhe suas características pessoais, se somam a outros esquemas, que distribuem e diferenciam os confinados no interior da instituição.7 É nesse contexto que Lima Barreto e/ou Vicente Mascarenhas nos descrevem as diversas seções do hospício, com suas respectivas divisões de classe e diferenças de tratamento; denunciam regalias e privilégios; e nos narram a passagem deles por diferentes médicos, que os entrevistam e examinam seu “caso”. Ou, segundo resume Mascarenhas, “faziam-me perguntas de confessor, e eu as respondia com toda a veracidade de catecúmeno obediente” (Barreto, 2004, p. 227). É também nesse sentido que Graciliano narra a chegada à Casa de Detenção dos presos transportados no navio Manaus, ressaltando a passagem de um tratamento indiferenciado para uma caracterização grosseira de cada um dos detidos, que definirá o local para onde eles serão encaminhados na instituição. Citamos:
Minutos depois estávamos na secretaria, em pé, de cócoras, sentados em malotes, arriados em bancos; alguns se aproximaram de mesas sujas de poeira, ouviram as perguntas de três funcionários hábeis dispostos a caracterizar-nos, arrumar-nos convenientemente no papel. Bem. Agora nos personalizavam. Tínhamos sido aglomeração confusa de bichos anônimos e pequenos, aparentemente iguais, como ratos. Decidiam, em meia dúzia de quesitos, diferenciar-nos. Trabalho sumário, poucas linhas para indivíduo [...]. (Ramos, 2008, p. 174-175)
Além de serem despojados da sua identidade anterior, e diferenciados no interior da instituição disciplinar, Lima e Graciliano passam por um processo mais brutal de aniquilação de si. No caso do primeiro, este processo não tem início no manicômio, devendo ainda ser relacionado ao seu alcoolismo, à experiência de extremo sofrimento diante da loucura do seu pai, às suas dificuldades financeiras e ao fracasso dos seus sonhos com a carreira de escritor. Lima, como se sabe, chega ao hospício num carro-forte da polícia após uma crise de alucinação alcoólica. Ele havia passado a véspera do seu ingresso ali “a procurar uma delegacia, a fim de queixar-me ao delegado das coisas mais fantásticas dessa vida, vendo as coisas mais fantásticas que se possam imaginar” (Barreto, 2004, p. 40-41). De acordo com as anotações do alienista que o examinou na Seção Pinel, ele era então “um indivíduo precocemente envelhecido, de olhar amortecido; fácies de bebedor, regularmente nutrido” (cf. Barbosa, 2002, p. 370). Ainda segundo estes apontamentos, o escritor descreveria seus delírios como “de caráter terrificante, perseguidor, etc” (ibidem, p. 370).
Durante o período de enclausuramento e após a saída do manicômio, Lima se dedicará a um processo de reconstituição de si por meio da escrita. Com efeito, tanto no seu diário quanto no romance em forma biográfica, o autor se submete a um exame, no qual indaga sobre sua saúde mental, reflete sobre seu alcoolismo e sobre seus fracassos. Ele descreve ainda nestes textos as vexações e os sofrimentos vividos dentro e fora do hospício, dos quais não consegue esquecer. A escrita do autor parece exercer, nesse contexto, a empresa de salvação do eu apontada por Maurice Blanchot ao examinar a forma do diário. Para o crítico, com efeito, o diário de Virginia Woolf a protegeria dos perigos da escrita e da loucura, enfrentados pela escritora num livro como As ondas, no qual “ruge o risco de uma obra em que é preciso desaparecer” (Blanchot, 2005, p. 273).
Ao ingressar no hospício, Lima empreenderá, por meio da escrita do seu diário, este movimento de reconstrução (diferenciada) de si. Nele, a literatura funcionará como uma chave de interpretação, impulsionando uma escrita intertextual responsável por fortes passagens do texto. “[...] sonhei Dostoievski, mas me faltou a sua névoa”, escreve (Barreto, 2004, p. 73). Além disso, esta escrita do eu deslizará para a irrealidade da ficção. Pois, se o seu diário e romance mantêm grande permeabilidade, isto significa não só que O cemitério dos vivos tem caráter autobiográfico, mas também que o diário — no qual em diversos momentos ele se refere a si mesmo por possíveis nomes para o narrador do romance — é atravessado pela imaginação e pela fantasia. Desse modo, se Lima busca salvar seu eu por meio da escrita cotidiana do diário, ele também recorre à literatura e à ficção para recriar a si mesmo.
Já Graciliano Ramos pontua suas Memórias do cárcere com indicações precisas da desordem mental sofrida por ele durante o encarceramento. Uma série de desorientações irrompe, pois, com freqüência no seu cotidiano, manifestando-se nas ações mais rotineiras, como na dificuldade de fixar a atenção, encadear idéias, compreender notícias e conversas. “As palavras me chegavam quase destituídas de significação, às vezes me surpreendia lançando respostas a perguntas indefinidas”, escreve (Ramos, 2008, p. 125). Esta perturbação é indissociável da narrativa da falência física do autor, a qual ele também nos descreve com pormenores. Em determinados momentos, sua perturbação e desordem radicalizam-se, atingindo estados de dilaceração do eu. Ao indicar, de forma rigorosa, estes diferentes estados de alteração, o escritor parece nos apontar a impossibilidade de apropriação da experiência e do uso da primeira pessoa em situações-limite, tal como esta impossibilidade foi trabalhada por Maurice Blanchot em sua obra teórica. Ao se dedicar, com efeito, ao tópico do impessoal (Blanchot, 1969, p. 153-179 e p. 191-200), ao vocábulo do il (ibidem, p. 556-567) e àquele da passividade (idem, 1980), o crítico se esforça, pois, por elaborar esta problemática.8
A temática da impessoalidade, explorada inicialmente por Blanchot, aponta, sobretudo, para a destituição da identidade anterior, do eu mundano, processo efetuado nas operações de despersonalização das instituições totais ressaltadas por Lima e Graciliano. Já a noção de il indica o vazio não mais do conteúdo identitário, mas do lugar do sujeito, da sua centralidade, que seria apagada. Esta substituição da primeira pessoa por uma irremediável ausência de centro surge no capítulo no qual Graciliano descreve seu embarque no navio Manaus. Nesta passagem, em que o escritor se defronta de modo direto com a ameaça de morte, ele se surpreende com as próprias palavras, que “soavam-me aos ouvidos como se fossem pronunciadas por outra pessoa” (Ramos, 2008, p. 106). A estranheza prossegue: “Uma dualidade [...] principiava a assustar-me: a voz e os gestos a divergir de sentimentos e idéias. Cá dentro, uma confusão, borbulhar de água a ferver. Por fora, um sossego involuntário, frieza, quase indiferença. A fala estranha me saía da garganta seca” (ibidem, p. 107).
Mas será ao elaborar o conceito de passividade que Blanchot avançará na sua compreensão da aniquilação do sujeito em situações-limite, anunciando, com esta noção, segundo explica Marlène Zarader (2001, p. 131-136), a supressão do pólo da consciência. Citamos Blanchot: “talvez [...] a passividade seja esta parte ‘inumana’ do homem que, destituído do poder, descartado da unidade, não saberia dar lugar a nada que aparece ou se mostra [...]” (1980, p. 32, tradução nossa). Este aniquilamento último, nos parece, atravessa o testemunho de Graciliano por meio da temática da cegueira.9 Embora a ausência temporária de visão descrita nas Memórias só o tenha acometido no final do seu período de encarceramento, esta temática se insinua em outras passagens do seu testemunho, como na “perturbação visual” (Ramos, 2008, p. 104) experimentada pelo escritor ao adentrar no porão do navio Manaus e nos contos “O relógio do hospital” (Ramos, 2003, p. 33-43) e “Paulo” (ibidem, p. 45-52), escritos no cárcere.10 A redação destas narrativas, nas quais Graciliano se debruça sobre as lembranças do período em que se recuperava de uma cirurgia, surge, nesse contexto, como uma forma de elaboração e resistência à destruição carcerária. Segundo o autor explica, ao se referir à necessidade de relatar essas reminiscências, “as dores no pé da barriga e a dormência da coxa traziam-me ao espírito enfermeiros e serventes [...], sonhos, visões. Necessário fixar isso. Achava-me na verdade perto disso” (Ramos, 2008, p. 546).

3. Entre a exigência e a impossibilidade de narrar
Se Lima Barreto e Graciliano Ramos, como vimos até aqui, privilegiam distintas dimensões do processo de destruição e reconstrução de si (sem com isso excluir a outra face deste processo), esta diferença de ênfase pode ser associada ao modo como cada um deles trabalha a tensão entre a necessidade e a impossibilidade de narrar.11 Debrucemo-nos, rapidamente, sobre estes trabalhos.
Em boa parte do livro de testemunho de Graciliano, acompanhamos o autor em seu gigantesco esforço para se dedicar às notas da cadeia durante o período de confinamento. Contudo, segundo mencionamos, o escritor apenas iniciará efetivamente suas Memórias do cárcere cerca de uma década depois do seu aprisionamento. A árdua empreitada se alongou por quase seis anos, durante os quais Graciliano, permeado pela sensação de dever, escreverá vagarosamente e com custo. Não por acaso, o volume mais demorado, que lhe exigiu 19 meses de trabalho, foi aquele dedicado à colônia da Ilha Grande, na qual Graciliano viveu os piores horrores da sua experiência carcerária. Iniciadas em 1946, as Memórias do cárcere foram escritas até setembro de 1951, ano em que o autor autorizou sua publicação em caso de morte (cf. Ramos, 1992; Moraes, 1996). E, de fato, a narrativa já saiu como obra póstuma. Somente seu último capítulo ficou por ser redigido. Porém, se levarmos em consideração o longo adiamento deste capítulo e a declaração feita no início do livro - “[...] provavelmente isto será publicação póstuma, como convém a um livro de memórias” (Ramos, 2008, p. 13) –, é possível pensarmos que a incompletude da obra, que nos chega aberta em seu final, após mais de 600 páginas penosamente buriladas pelo escritor, é signo da impossibilidade de conclusão de tal relato. E, quem sabe, do desejo de nos deixá-lo inacabado.
Diferentemente das memórias de Graciliano, o romance e o diário de Lima sobre o hospício são movidos pela pressa em narrar o que ele sofreu e testemunhou. A ânsia do autor imprime-se nos textos, marcados pela rapidez com que foram escritos. O trabalho de registro da memória sobre o manicômio foi realizado, dessa forma, segundo o ritmo que marca a escrita de diários: num curto intervalo temporal em relação aos fatos transmitidos. O que não exclui dele, evidentemente, reflexões sobre acontecimentos e aflições bastante anteriores ao encarceramento do escritor. Lima começou, pois, a redigir as notas que compõem o Diário do Hospício dez dias após sua segunda internação. E será ainda em 1920 que ele começará a trabalhar no romance sobre a “casa de loucos”. Sua dedicação à escrita nesse período não se limitará, contudo, à redação desta obra. Segundo nos conta Francisco de Assis Barbosa (2002), nos seus últimos anos de vida, o autor, já bastante doente, organizava seus papéis, inventariava sua biblioteca e apressava-se para terminar romances. De acordo com o biógrafo, entre 1920 e 1922 Lima considerou concluídos cinco volumes de sua autoria.12 Ele não tem tempo, porém, de terminar o Cemitério dos vivos, que permaneceu na forma de esboço.
Portanto, de um modo ao mesmo tempo similar e distinto de Graciliano, Lima parece ter se movido entre a necessidade e a impossibilidade de narrar o que viu e viveu no hospício. Assim, se por um lado a exigência do seu testemunho suscitou a pressa e a urgência com as quais ele se dedicou ao diário e romance, por outro lado a dificuldade de simbolização da experiência surge no caráter esboçado e incompleto dos textos. Estes se conservam fragmentários, seja pela própria forma do diário, que favorece esta condição, ou pela incompletude do romance. Um dos capítulos do diário, aliás, é inteiramente composto por fragmentos. Este reúne anotações que serão posteriormente desenvolvidas, na obra de ficção ou naquela confessional. A pressa na redação destes apontamentos é tanta que em determinados trechos o escritor não constrói frases nem estrutura narrativas. Citamos: “Cigarro. Insistência em pedir. Negar. Arrependimento. O caso do velho. Remorso: dei o cigarro, muito depois de tê-lo negado” (Barreto, 2004, p. 96).
A dificuldade de transmissão da experiência surge assim como uma espécie de fratura exposta. Numa comparação com o relato penosamente burilado de Graciliano, não é possível, porém, concluir que este último tenha se aproximado, após anos de laboração, de uma quase unidade, apenas falhada devido à ausência do último capítulo. É necessário, pois, lembrar que as Memórias do cárcere foram inteiramente perfuradas ao longo de uma década pelo trabalho do esquecimento. É o próprio autor quem tece uma extensa consideração a respeito desta dimensão do seu livro:
Não resguardei os apontamentos obtidos em largos dias e meses de observação [...]. Quase me inclino a supor que foi bom privar-me desse material. Se ele existisse, ver-me-ia propenso a consultá-lo a cada instante, mortificar-me-ia por dizer com rigor a hora exata de uma partida, quantas demoradas tristezas se aqueciam ao sol pálido [...]. Mas que significa isso? Essas coisas verdadeiras podem não ser verossímeis. E se esmoreceram, deixá-las no esquecimento: valiam pouco, pelo menos imagino que valiam pouco. Outras, porém, conservaram-se, cresceram, associaram-se, e é inevitável mencioná-las. Afirmarei que sejam absolutamente exatas? Leviandade. (Ramos, 2008, p. 14)
Portanto, embora as duas obras sejam póstumas e inacabadas, o ritmo no qual elas foram compostas e sua incompletude se diferenciam bastante. Assim, se Lima escreve em meio ao “calor dos acontecimentos”, em forma fragmentada e buscando, ao se examinar numa situação extrema, salvar seu eu, Graciliano constrói, a partir da distância temporal de dez anos dos acontecimentos, uma narrativa perfurada pelo esquecimento, aberta em seu final e que recria com rigor sua própria aniquilação. Consideramos, pois, o estabelecimento desta oposição fundamental para entendermos as diferentes forças críticas e formas de resistência que constituem estas escritas. Acreditamos, e aqui concluímos nossas considerações, que estes distintos ritmos de elaboração da obra e das distâncias temporais por elas percorridas são centrais para compreendermos tanto a denúncia efetuada por Lima – composta por uma série de instantâneos, curtas narrativas e descrições breves, carregadas de imagens e observações contundentes – quanto a experiência prisional, arduamente sedimentada e perseguida por Graciliano durante mais de 15 anos.

Referências bibliográficas

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1 Pós-doutoranda do Instituto de Estudos da Linguagem (Iel - Unicamp), sob a supervisão do professor Francisco Foot Hardman. Bolsista da FAPESP. E-mail: danielabirman@gmail.com.
2 Sobre a crítica da aliança da razão psiquiátrica com o autoritário projeto modernizador do Estado brasileiro na chamada literatura “pré-modernista” e, em especial, em Lima Barreto, ver Roberto Vecchi (1998, p. 111-124).
3 O escritor chegou a publicar em vida o primeiro capítulo deste romance, no nº 49 da Revista Souza Cruz, em janeiro de 1921, com o título “As origens”. Lembramos que O cemitério dos vivos é composto, na edição das Obras completas de Lima Barreto (1956), de quatro partes: o Diário do Hospício; o romance O cemitério dos vivos; o inventário da biblioteca do autor; e uma reunião de documentos relativos às internações manicomiais do romancista. Esta última traz a entrevista concedida por Lima, internado, ao jornal A Folha, em 1920, e registros encontrados nos arquivos do Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil e dos hospitais Pedro II e Gustavo Riedel. Ao citarmos, portanto, O cemitério dos vivos, podemos nos referir tanto ao diário e ao romance de Lima sobre o manicômio quanto somente a este último. O contexto da citação deverá esclarecer a que texto(s) fazemos menção. Ressaltamos que apoiamo-nos aqui em outra edição que reúne esse diário e esse livro incompleto (cf. Barreto, 2004), de modo que todas as citações aqui transcritas referem-se a esta publicação. Com organização e notas de Diogo de Hollanda e prefácio de Fábio Lucas, esta edição revisita os manuscritos do autor, indicando-nos distinções entre estes e o texto estabelecido.
4 Graciliano Ramos começou efetivamente a escrever suas Memórias do cárcere em janeiro de 1946. Cf. Dênis de Moraes (1996) e Clara Ramos (1992).
5 Para uma leitura das Memórias do cárcere como uma obra de testemunho, ver a análise de Alfredo Bosi (2002, p. 221-237) sobre o trabalho literário realizado pelo “observador arredio e perplexo” (ibidem, p. 222) deste título.
6 Estes procedimentos que privam os indivíduos de elementos nos quais se apoiava seu eu mundano, despersonalizando-o, podem ser compreendidos a partir da descrição de Erving Goffman da série de mortificações do eu efetuadas nas chamadas instituições totais. Com efeito, entre as formas de mutilação apresentadas pelo sociólogo em seu Manicômios, prisões e conventos (Goffman, 2008) estão a barreira entre o internado e o mundo externo, obstáculo que leva à privação de outros papéis do indivíduo; o despojamento dos seus bens e sua substituição parcial por mercadorias padronizadas, normalmente do “tipo 'barato'” (ibidem, p. 29), o que contribui para a perda da sua imagem usual e para a sua desfiguração pessoal; a perda do nome.
7 Ao localizar estes esquemas, nos referimos à repartição diferencial própria da disciplina, tal como esta foi examinada por Foucault (2008) no seu estudo das prisões. Os dois modos de operação (exclusão e diferenciação), é importante ressaltar, não são incompatíveis, mas têm sido aplicados simultaneamente desde o século XIX nas instituições disciplinares, ainda segundo Foucault (ibidem, p. 165).
8 Ressaltamos que nossa abordagem desta questão na obra de Blanchot é fundamentalmente devedora do exame desta obra realizado por Marlène Zarader (2001).
9 A problemática da cegueira também está presente em mais de uma narrativa de Infância (Ramos, 2008). Cf., por exemplo, “Cegueira” (ibidem, p. 143-150), “Chico Brabo” (ibidem, p. 151-156) e “Um enterro” (p. 187-192).
10 Em “O relógio do hospital” (Ramos, 2003, p. 33-43), lembramos, o narrador é assombrado por um homem de “buracos negros de órbitas vazias”. Já “Paulo” (ibidem, p. 45-52) é marcado pelo ir e vir de uma luminosidade de neblina.
11 Sobre a necessidade e a impossibilidade narrar vivida por sobreviventes do Holocausto, cf. Dori Laub (1992, p. 75-92).
12 São estes: Histórias e sonhos; Marginália; Feiras e mafuás; Bagatelas; e Clara dos Anjos.
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