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Literatura e Autoritarismo
Dossiê "Escritas da Violência II"
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê  

O FOCO NARRATIVO EM TEATRO, DE BERNARDO CARVALHO

Gabriela Ruggiero Nor1
Resumo: O trabalho apresenta considerações acerca da problematização do ato de narrar em Teatro (1998), de Bernardo Carvalho. Para tanto, abordamos a tensão, presente no texto, entre a necessidade imperativa de relatar uma experiência e as dificuldades do narrador em fazê-lo plenamente, o que configura uma prosa hesitante e lacunar. Dentre as questões suscitadas pela obra, destacamos como essenciais para nossa reflexão os limites entre ficção e verdade e o problema da violência, ambos relacionados à construção particular do foco narrativo no romance analisado.
Palavras-chave: Narrador; violência; experiência; sentido.
Abstract: This paper presents some considerations on the narrator of Teatro (1998), novel written by Bernardo Carvalho. In order to approach the problem, one of the aspects studied is the tension established between the need to narrate and the difficulties implied in doing so fully and properly. This tension helps to build a fragmentary narrative, full of hesitations and gaps. Among the questions that are brought up by the text, we have selected as essential to our study the limits between truth and fiction and the problem of violence, both related to the specific construction of the narrator in the novel examined.
Keywords: Narrator; violence; experience; meaning.

O presente trabalho concentra-se no estudo do romance Teatro, de Bernardo Carvalho, publicado em 1998. Dividida em duas partes – Os sãos e O meu nome – a obra se apresenta ao leitor de maneira fragmentária, fazendo com que seu sentido seja lentamente construído. O entendimento do texto, narrado em primeira pessoa, não é imediato: o vínculo estabelecido entre as duas partes da narrativa faz com que informações acerca de personagens e eventos comuns a Os sãos e a O meu nome sejam constantemente confrontadas e revistas. Neste estudo, atentaremos em especial para a primeira parte do romance, que apresenta dados mais produtivos para o enfoque selecionado.
A primeira parte da narrativa compreende o relato de um policial aposentado, que insiste possuir informações verdadeiras acerca de atentados terroristas que ocorreram no país das maravilhas, local para onde seus pais haviam se deslocado, e terra natal do narrador. Acreditando correr riscos devido ao seu conhecimento sobre o caso, o protagonista de Os sãos faz o caminho inverso àquele feito por seus pais, fugindo e exilando-se no país de origem de sua família, com o qual o país das maravilhas faz fronteira. Havendo forjado sua morte no percurso, para se proteger, agora precisa contar sua história. No entanto, para fazê-lo, para restituir alguma verdade, é necessário narrar na língua pobre de seu pai, língua apenas precariamente dominada pelo narrador.
Na hesitante tentativa de narrar sua história, o protagonista traz ao texto elementos como a loucura, abordada na forma de paranoia, que é expressa no texto na oposição entre os sãos – cidadãos do país das maravilhas, em especial os colegas do narrador na polícia – e os nativos do país de origem de seus pais. Também são pontos essenciais do romance a questão da verdade e os limites entre ficção e realidade, limites frágeis que são colocados à prova a todo momento na primeira parte da narrativa. Todos esses aspectos entrelaçam-se, resultando num enredo obscuro, em que o movimento de elucidação e ocultamento é incessante: todo o relato do narrador de Os sãos é uma busca desesperada de atribuição de sentido a uma experiência cuja compreensão é incompleta, insuficiente. Assim, o protagonista da primeira parte de Teatro vê-se frente à tensão entre a necessidade imperativa de narrar sua história – a verdade sobre os atentados terroristas que assolaram o país das maravilhas, uma verdade à qual somente ele tem acesso – e a dificuldade de fazê-lo, numa língua praticamente desconhecida, com a qual se constrói o sentido pouco a pouco:
Nasci e cresci do outro lado da fronteira que o meu pai atravessou na calada da noite com a minha mãe grávida para viver no “centro do império”, ele dizia, e agora eu entendo. A mesma fronteira que tive que atravessar de volta para falar essa língua que ele havia abandonado ao decidir viver lá, embora comigo ainda tentasse usá-la, e que aos poucos compreendeu ser a sua única esperança e o último vestígio da sua identidade, a única herança que podia me deixar. Foram sessenta anos até eu entender que somente nessa língua pobre eu poderia falar, escapar ao controle dos “sãos”, somente fora do país, contar essa história que, na língua deles, que também foi minha ao nascer do lado de lá da fronteira, só pode soar como alucinação ou heresia. Só a língua do meu pai pode restituir alguma verdade. (Carvalho, 1998, p.10).
A escolha de uma língua pobre para narrar relaciona-se com um dos eixos centrais do livro: a questão do contato entre ficção e realidade, feito através da linguagem. Na obra de Bernardo Carvalho, escrever e produzir discursos equiparam-se a produzir realidades. Os atentados terroristas, que aniquilavam suas vítimas, matando-as com um pó letal, eram sempre acompanhados por cartas; cartas que procuravam justificar os crimes, que procuravam fazer uma crítica à sociedade capitalista. O narrador, que trabalhava na polícia, afirma ter escrito, sob ordens de seus superiores, cartas semelhantes àquelas enviadas pelo terrorista. Pouco a pouco, percebe, desesperado, que a realidade reproduz exatamente o teor de suas cartas. Mas a polícia aponta um culpado. E a mídia impressa, que acompanhara o caso todo em seus pormenores, traz a reportagem completa sobre o acusado dos atentados – reportagem mentirosa, segundo o narrador, pois como seria possível a acusação de alguém, sendo que fora ele quem redigira as cartas? Esta língua do país das maravilhas, em que se escrevem apenas mentiras está, para o protagonista, absolutamente contaminada; utilizá-la permite apenas que se construam falsidades, pois a verdade já não cabe mais neste idioma.
Assim, através da abordagem da relação entre escrita, realidade e verdade, a obra de Bernardo Carvalho presta-se a uma crítica da mídia, dos meios de comunicação e de sua produção de discursos, tomados como verdadeiros, mas, no contexto de Os sãos, falaciosos. Ironicamente, ao chegar à segunda parte da narrativa, O meu nome, o leitor descobre que todo o relato exposto anteriormente seria, de acordo com o segundo narrador do romance, um texto ficcional, dentro do universo de Teatro. Um texto de ficção escrito por Ana C. - personagem apontada em Os sãos como uma mulher, antigo caso amoroso do narrador. Esta personagem, entretanto, reaparece nesta segunda parte como um célebre ator de filmes pornográficos homossexuais, que também escrevia textos de ficção de qualidade duvidosa: dentro de sua produção, Os sãos seria uma exceção, por se tratar de uma narrativa mais elaborada. O personagem Ana C. coleciona uma legião de fãs que, de tão obcecados por seu ídolo, muitas vezes chegam a se tornar loucos; esses fãs, internados em sanatórios, passam a escrever textos assinando em nome do ator, o que dificulta a atribuição de autoria definitiva ao manuscrito de Os sãos. Portanto, permanece em questão estabelecer se Os sãos foi ou não escrito por este personagem.
O próprio Ana C. não pode intervir neste caso: desaparecido após ter sido acusado de envolvimento num assassinato político, é dado como morto. Segundo o protagonista de O meu nome, o texto ficcional de Ana C. guardaria uma verdade cifrada, comunicável somente a ele, que havia sido confidente do ator. A maior revelação contida no manuscrito seria o fato de Ana C. estar vivo, e estar escrevendo ficção de forma a comunicar este dado ao narrador. Ou seja: a história se repete, e novamente temos um narrador que se julga detentor de uma verdade, incomunicável ou ininteligível aos outros, e que precisa ser narrada. E o procedimento de mise-en-abîme, inserindo ficção dentro de ficção, faz com que todo o enredo, paulatinamente reconstituído na primeira parte, seja ressignificado na segunda narrativa do romance.
O narrador de O meu nome, no entanto, narra esta verdade – a verdade sobre o desaparecimento de Ana C. e seu envolvimento no crime político – de dentro de um sanatório. Este dado só vem à tona ao final da narrativa, quando se estabelece no texto a confusão de línguas entre a personagem psiquiatra e seu paciente, o narrador: aquilo que ele diz acreditando ser um relato verdadeiro é interpretado pela médica como patologia. Desta forma, Bernardo Carvalho leva às últimas consequências a questão da confiabilidade do narrador; o primeiro narrador seria já ficcionalizado no interior do romance, visto que, de acordo com a segunda parte da obra, Os sãos trata-se de um texto de Ana C. Entretanto, este segundo narrador – que estabelece o sentido por trás do texto lido anteriormente – é rotulado como louco.
Deixando de lado a questão da complementaridade entre as duas partes do romance, interessa-nos de imediato examinar os procedimentos utilizados tanto pelo primeiro narrador quanto pelo segundo para a atribuição de sentido à realidade à sua volta. Todo o processo de deciframento dos fatos envolve a leitura de textos pelos personagens, textos que na superfície dizem uma coisa, mas que nas entrelinhas querem dizer outra – e chega-se a esta “outra coisa”, que é a verdade dos narradores, através da interpretação de sinais e pistas que nada significam para as outras personagens. Havendo interpretado os sinais, passam a narrar suas histórias: o primeiro do exílio, e o segundo de um sanatório. Nenhum outro personagem adere às verdades relatadas; os narradores narram em línguas incompreendidas – o primeiro numa língua pobre e o segundo numa linguagem interpretada como loucura – e narram solitários, para ninguém. São relatos que não alcançam nenhum outro personagem, são narradores desamparados em suas falas verdadeiras.
Nas duas partes da narrativa, a questão da paranoia vem à tona. Em Os sãos, ela se dá na medida em que os atentados terroristas instauram no país um clima de insegurança e desconfiança generalizadas, trazendo medo aos cidadãos locais. No entanto, o paranoico é definido, em Teatro, como aquele que busca atribuir sentido à realidade que, na verdade, não teria sentido algum. O paranoico é um obcecado pelo sentido – como são os dois narradores do romance – e, através desta busca de sentido, acaba por construir uma realidade paralela: o paranoico, como diz Ana C., “'é aquele que procura um sentido e, não o achando, cria o seu próprio, torna-se o autor do mundo'” (Carvalho, 1998, p.31).
No limite, portanto, todas as acusações que os narradores fazem à sociedade em que vivem aplicam-se a eles: são eles tomados pela busca de significados; são eles produtores de realidades; estão eles também encerrados numa visão de mundo específica, que procura ver um sentido particular nos eventos e fatos. Assim, tudo em Teatro é relativo: o que se depreende da leitura da obra é que, se há verdade, ela é contingente a uma situação específica, a uma interpretação particular – sempre relativa, sempre construção, e nunca a priori.
Assim sendo, não há permanência no mundo construído no romance de Bernardo Carvalho; o mundo se contradiz, a narrativa se contradiz; ficção e realidade se confundem dentro da ficção ou, ainda, a ficção produz realidades. O que resulta disso é uma atmosfera de insegurança e instabilidade que aponta, na contemporaneidade, para o desamparo do indivíduo moderno e sua vulnerabilidade frente à realidade violenta e ameaçadora, que se desdobra em múltiplos discursos de verdade, midiáticos ou não. A solidão de narrar para ninguém, por sua vez, ressalta a precariedade dos laços afetivos estabelecidos por esses personagens e o desfalecimento da ideia de coletividade da forma como os narradores tradicionais, remetendo a Benjamin (1994, p.197-201), a conheciam. Afinal, para o crítico, o ato de narrar estava intrinsecamente ligado ao intercâmbio de experiências acumuladas ao longo de gerações, relatadas inúmeras vezes na tradição oral. Este intercâmbio se dava justamente no encontro do narrador com seus ouvintes – ou seja, o pressuposto deste tipo de narrativa era a existência de uma coletividade apta e disponível para ouvir uma experiência, o que, segundo Benjamin, já não ocorre.
Não seria exagero dizer, nas circunstâncias em que se encontram os narradores de Os sãos e de O meu nome, que a realidade apreendida pelos personagens tornou-se absurda. Tomemos, por exemplo, o narrador da primeira parte de Teatro: policial aposentado, conhece sua origem – seus pais cruzaram a fronteira rumo ao país das maravilhas pouco antes de ele nascer – e conhece o seu destino: deixar-se-á ser morto por um dos vigilantes da fronteira do país onde se exilou, após terminar de narrar sua história. A estratégia usada para que esses vigilantes, homens encarregados de observar a movimentação na fronteira entre o país das maravilhas e o país da família do narrador, o matem, é fazer referência a uma expressão utilizada no local, de teor indecifrável: até que Daniel pare de sonhar. No trecho abaixo, acompanhamos os momentos anteriores à possível morte deste narrador (Carvalho, 1998, p.86-87)
Não sei o que me deu. Disse que o estava contratando [o vigilante] para me proteger. Paguei adiantado. “Virá um homem”, eu disse. Expliquei ao vigilante como o homem estaria vestido, para que pudesse reconhecê-lo. “Virá com um terno escuro, uma gravata amarela e um chapéu, com uma pasta debaixo do braço. Passará por esta esquina exatamente às duas da manhã. O ideal é que você lhe diga: 'Até que Daniel pare de sonhar'. Porque ele não saberá responder. Não vai entender. Não é daqui.
(...)
Vou pegar a minha pasta. Vou chegar exatamente às duas, como tinha programado. Estará escuro, não verá o meu rosto. Vou passar por ele, encostado no muro, já com a metralhadora na mão. E quando ouvir: “Até que Daniel pare de sonhar”, como eu tinha lhe dito para dizer, e me lembrar de Ana C. chamando o meu nome na rua (por que não pensei no meu nome antes, já que tinha decidido mantê-lo?), quando nos reencontramos depois de tantos anos, Daniel!, Daniel!, pela primeira vez tomarei coragem para perguntar: “O que vocês querem dizer com isso?”, e esperar por fim a resposta.
Até que chegue aos excertos citados, retirados das duas últimas páginas de Os sãos, o leitor não tem nenhuma indicação do nome do narrador. Ao articularmos, finalmente, sua identidade à expressão utilizada no país para o qual ele foge – até que Daniel pare de sonhar – é inevitável que, no contexto da absurda realidade construída em Os sãos, não se passe a questionar, também, o relato feito por este narrador. Afinal, esses personagens anônimos, nativos do país de origem dos pais de Daniel, insistem em dizer – até que Daniel pare de sonhar. Seria, portanto, um sonho, um delírio, a história narrada por ele? O que permanecerá acontecendo, “até” que Daniel pare de sonhar? São interrogações que se mantêm sem resposta, e que só reforçam as tônicas da narrativa de Bernardo Carvalho: loucura, realidade e ficção. De maneira semelhante, é à última página da segunda parte de Teatro, O meu nome, que tomamos conhecimento do fato de este segundo narrador também se chamar Daniel, problematizando ainda mais a interpretação da obra.
O que o Daniel de Os sãos procura fazer ao longo de seu relato é reconstruir os eventos de sua vida, atribuindo sentido a dados que se apresentaram para ele de maneira enigmática. Assim, relaciona situações aparentemente desconexas, buscando estabelecer alguma espécie de coerência ou continuidade para os fatos vividos. Afinal, o que se encontra entre a origem e o fim – a sua experiência na polícia, o possível envolvimento com o terrorismo, o amor frustrado da juventude – é o que lhe escapa à compreensão; ou seja, toda uma vida que, na velhice, se lhe apresenta como sem sentido.
Como expunha Walter Benjamin em seu célebre ensaio sobre Leskov, já citado, “as ações da experiência estão em baixa” (1994, p.198); em Teatro, o que vemos é precisamente esta ideia de experiência em ruínas. O único desejo deste narrador é de contar sua história, reconstituir o sentido dos acontecimentos; e seu único alívio, antes de se deixar atirar pelos vigilantes, é ascender a um entendimento, parcial que seja, de sua existência. Uma existência que se desvelou em realidade produzida por ele, mas à revelia de sua vontade; existência na qual mesmo seu envolvimento no terrorismo não foi escolha, mas sim desígnio, conforme apontado na primeira página do romance, em que uma quiromante prevê seu ingresso em atividades ilegais. “Contar algo significa ter algo especial a dizer”, aponta Adorno em seu trabalho Posição do narrador no romance contemporâneo (2003, p.56) – mas, como o próprio crítico ressalta no mesmo ensaio, o romance atual não dá conta de narrar, no sentido tradicional. Esta dificuldade, por sua vez, relaciona-se à precariedade da experiência contemporânea, como desenvolvido primeiramente por Benjamin.
Para Walter Benjamin, a ideia de experiência está vinculada à possibilidade de transmissão de uma sabedoria de geração em geração. Em seu texto Experiência e pobreza, esta convicção está exposta no primeiro parágrafo (1994, p. 114):
Em nossos livros de leitura havia a parábola de um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho. Tais experiências nos foram transmitidas de modo benevolente ou ameaçador, à medida que crescíamos: “Ele é muito jovem, em breve poderá compreender”. (…) Que foi feito de tudo isso? (…) Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração?
Os dois narradores concebidos por Bernardo Carvalho em Teatro estão na maturidade, mas nem por isso possuem alguma sabedoria a ser transmitida. A despeito disso, narram – e precisam narrar – mas sua experiência, se é que se pode chamar assim, assemelha-se a uma colcha de retalhos.
De acordo com as observações de Adorno, o romance ainda exige que haja relato (2003, p.56), a despeito dos impedimentos para a plenitude do ato narrativo. Também o protagonista de Os sãos precisa contar sua história. Uma das diferenças radicais entre o narrador que tinha “algo especial a dizer” e este narrador contemporâneo reside no fato de que, enquanto o primeiro sabia antecipadamente o valor do que tinha a narrar e como fazê-lo para que a matéria narrativa se comunicasse de maneira inteligível ao leitor, no caso contemporâneo é o próprio processo narrativo que vai desenrolando a experiência a ser narrada, constituindo-a, sem necessariamente organizá-la. E, nessa trajetória, como vemos em Os sãos, frequentemente sobrepõem-se narrador e fatos relatados, imbricados de tal modo que o leitor está sempre consciente do processo narrativo: a realidade não se dá a ver de modo independente da posição do narrador; é insistentemente convocada, ligada estreitamente à voz dele. No caso de Teatro, o narrador que examinamos com mais atenção se remete constantemente à ação narrativa, posto que é somente através do ato de narrar que se pode atribuir algum sentido possível à vida. A narrativa se torna, então, não transmissão de uma experiência prévia, mas a própria reconstituição do significado de uma experiência que nem mesmo o narrador compreende por inteiro.
Após essas observações sobre o narrador no romance de Bernardo Carvalho, cabe agora apontar algumas outras características relativas aos personagens elencados pelo autor. Em Teatro, o personagem Ana C., autor de Os sãos, o narrador construído por ele – filho de imigrantes de um país sujo, cuja “cidade imensa e imunda parece um cemitério gigantesco” (Carvalho, 1998, p.16) – e o narrador da segunda parte – interno numa instituição para doentes mentais –, são todos personagens que apontam para grupos marginalizados na sociedade. Como ressalta Paulo Sérgio Pinheiro em seu ensaio Estado e Terror (2007, p. 271),
O mais democrático dos Estados é sempre regime de exceção para enormes contingentes. Loucos, prostitutas, prisioneiros, negros, hispânicos, árabes, curdos, judeus, ianomâmis, aidéticos, homossexuais, travestis, crianças, operários irão nascer e morrer sem terem conhecido o comedimento do Leviatã. As graves violações dos direitos humanos pelo Estado revelam a rotina do Terror no cotidiano das populações.
Em suma, os personagens concebidos por Bernardo Carvalho em sua ficção localizam-se como outcasts, indivíduos provenientes de grupos socialmente excluídos. O que prevalece em Teatro são discursos dominantes: o discurso da mídia, da política e o discurso clínico da psiquiatria. Nesse sentido, o escritor constrói um cenário extremamente negativo, na medida em que dá voz a estes personagens, sem no entanto fazer com que esta voz seja ouvida: como já foi abordado anteriormente, não há adesão aos pontos de vista desses personagens. Eles precisam fugir, forjar sua morte para sobreviverem com suas verdades, ou serem enclausurados em clínicas para serem silenciados. O poder e a possibilidade de fazer valer uma informação continuam localizados nas parcelas dominantes da sociedade; não há glória nem salvação para esses narradores, que narram sim, mas para ninguém, dentro de seus universos.
Partindo desta análise, pode-se verificar a aderência da proposta da ficção de Bernardo Carvalho às teses de Michel Foucault expostas em Microfísica do poder. Relacionando poder e verdade, o filósofo declara que
O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (não é – não obstante um mito, de que seria necessário esclarecer a história e as funções – a recompensa dos espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que souberam se libertar). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (2008, p.12)
Os narradores de Bernardo Carvalho nada podem com sua verdade, frente à teia de relações de poder na qual se encontram inseridos; e suas buscas por sentido e linguagem capazes de construção de um discurso autêntico estão fadadas ao fracasso, posto que, citando novamente Foucault, “(…) aquilo que se deve ter como referência não é o grande modelo da língua e dos signos, mas sim da guerra e da batalha. A historicidade que nos domina é belicosa e não linguística. Relação de poder, não relação de sentido” (Ibidem, p.5). Logo, a reconstituição de uma verdade através da interpretação linguística de sinais, e usos linguísticos específicos – a língua pobre, por exemplo – pouco impacto têm, pois apesar de não haver verdade a priori, já há produtores de verdade designados antecipadamente. No estabelecimento da sociedade tal qual a conhecemos contemporaneamente, o discurso verdadeiro não se localiza na voz de nenhuma das personagens eleitas por Bernardo Carvalho como centro de Teatro.
Revendo os temas percorridos neste trabalho a respeito da obra em estudo, o que se pode depreender é uma perspectiva extremamente negativa da vida em sociedade, em que elementos relativos à atualidade – como a desconfiança generalizada acarretada por ações terroristas e a consequente sensação de confronto iminente – se relacionam a mudanças na narrativa moderna, previamente discutidas por teóricos como Theodor Adorno e Walter Benjamin. Dessa forma, a prosa estudada une tema e forma; problemáticas acerca do tratamento estético dado ao romance na contemporaneidade justapõem-se aos eventos efetivamente narrados – não há limites exatos entre essas duas instâncias, em Teatro elas são interdependentes e cada uma delas contribui para reforçar ambiguidades e dúvidas propostas no texto. O entorno dos narradores de Teatro, suas tentativas hesitantes de relato e seu desamparo frente à realidade violenta, ameaçadora e nada solidária em que circulam nos faz crer que talvez Bernardo Carvalho tenha razão, afinal, em propor em sua ficção que a maior paranoia seja, enfim, pensar que a realidade tenha algum sentido.

Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In.:______ Notas de Literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CARVALHO, Bernardo. Teatro. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2008.
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Estado e Terror. In.: NOVAES, Adauto (org). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.


1 Mestranda em Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). E-mail: gabriela.nor@usp.br
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