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Literatura e Autoritarismo
Dossiê "Escritas da Violência II"
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê  

MEMÓRIA E AÇÃO: ASPECTOS DE NÃO VERÁS PAÍS NENHUM, DE IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO

Ramiro Giroldo1
Resumo: O texto trata do quarto romance publicado por Ignácio de Loyola Brandão, Não Verás País Nenhum. Pretende discutir a conformação do narrador e o impacto nele provocado pelo autoritarismo. A reconstituição mnemônica na narrativa empreendida é lida como uma estratégia subversiva que tem por meta a apreensão cognitiva da própria violência sofrida, a princípio inacessível na consciência lacerada do narrador.
Palavras-chave: Não Verás País Nenhum, Ignácio de Loyola Brandão, Memória, Ditadura Militar.
Abstract: The paper takes as its object the fourth Ignácio de Loyola Brandão’s novel, Não Verás País Nenhum. The intent is to discuss the narrator and the impact caused by the authoritarianism in his conscience. The mnemonic reconstitution promoted in the narrative is taken as a subversive strategy to cognitively apprehend the violence that, at first, seems unreachable in the narrator’s lacerated conscience.
Keywords: Não Verás País Nenhum, Ignácio de Loyola Brandão, Memory, Military Dictatorship.

1.
O trabalho toma como objeto Não Verás País Nenhum, o quarto romance de Ignácio de Loyola Brandão. O intuito é discutir a conformação do narrador e as marcas nele deixadas pela vivência em uma instância autoritária, levando em conta os mecanismos ficcionalmente engendrados de reconstituição mnemônica. De particular interesse, assim, é a tentativa que o narrador empreende de superar os efeitos da violência contra ele perpetrada. Tal tentativa tem como objetivo final a apreensão cognitiva da própria violência sofrida, submersa e inacessível em uma consciência lacerada.
Como se observa em outros textos de Loyola, como Dentes ao Sol e o volume de contos Cadeiras Proibidas, o elemento fantástico é elaborado de forma a constituir uma olhar reflexivo e crítico a determinadas circunstâncias histórico-sociais brasileiras. Faz-se necessária, dessa forma, uma compreensão dos dados empíricos transfigurados.
Escrito no período da transição democrática, Não Verás País Nenhum é ambientado em outra época, um futuro não muito distante de feitio odioso. Embora não existam marcações temporais claras quanto ao momento preciso, aparentemente não são passadas mais de duas décadas do período no romance denominado “Abertos Oitenta” – período análogo aos anos oitenta empíricos. Trata-se uma época que se apresenta como resultado de séculos de exploração indiscriminada do homem e do meio-ambiente. Já na ambientação, o romance elabora pretensas consequências de problemas seus contemporâneos.
A degradação ambiental atinge níveis insustentáveis na poluída São Paulo do futuro pela qual vaga Souza, o narrador: ausência completa de vegetação, calor extremo, atmosfera sufocante e escassez de água, cujo consumo é regulado por fichas de difícil obtenção. Formalmente, a cidade se apresenta em estreita ligação com seu impacto na consciência do narrador, como o trecho abaixo transcrito pode exemplificar:
Para cada homem em circulação, existe praticamente um Civiltar ao seu lado. Eles andam girando a cabeça para todos os lados e se assemelham a robôs. O treinamento intensivo desperta neles, compulsivo, o faro, o instinto. Não sei como, enxergam tudo. Verdade.
Parece que são treinados pelos mesmos métodos com que se ensinavam os antigos cães pastores na polícia militar. Ficam condicionados e são uma beleza na eficiência. Por menos que se goste deles, é preciso reconhecer: evitam catástrofes nesta cidade. Pior sem eles.
Chegamos a esse ponto. Aceitar os Civiltares como necessários, suportá-los e chamá-los de vez em quando. Para mim, ter de fazer isso um dia vai ser pior que tomar óleo de rícino. O quê? Óleo de rícino? Ainda existe? Cada coisa de que me lembro de repente. É engraçado. (Brandão, 2007, p. 22-23)
Óleo de rícino, produto de origem vegetal, não existe mais em seu mundo. A lembrança, distante, é evocada como uma reação à constante presença da força policial. Não se trata, contudo, de uma associação simplista: no quadro imaginário configurado no romance, a memória do brasileiro é nublada e constantemente reconstruída pelos meios de comunicação em massa, tornando o passado indistinto. A mera lembrança de um dado corriqueiro, significativamente evocado em repúdio à opressão, se reveste de um valor subversivo. A princípio, o narrador não possui ciência de tal valor, mas gradativamente, por meio da memória, constrói um processo de negação à violência que lhe é (e foi) infringida.

2.
Não Verás País Nenhum transparece desconfiança para com a transição democrática, na apresentação de uma instância acentuadamente autoritária que, além de não se apresentar como tal, dificilmente pode ser assim percebida – a articulação crítica acerca da realidade não está à mão de uma população alienada quanto à constituição das forças dominantes. Os contornos autoritários ou são plenamente ignorados pelos personagens ou, pior, vistos como “democráticos”. A própria percepção de que se vive sob um governo autoritário parece a princípio inatingível, mas o narrador se empenha em alcançá-la.
Paulo Sérgio Pinheiro, no ensaio “Autoritarismo e Transição”, oferece uma visada de auxílio à discussão dessa marca do romance. Segundo Pinheiro, a transição do regime autoritário para o democrático não se constituiu plenamente, posto que o autoritarismo teria se implantado na configuração social brasileira. Assim, procedimentos e percepções se preservariam e seriam reproduzidos nas mais diversas instâncias. Nas palavras do autor,
Uma transição concebida como limitada às instituições da representação política poderia fazer supor que a guerra explícita das relações de poder do regime de exceção tenha sido suspensa e que, depois do final da ditadura, a relação entre as classes foi regularizada pelo retorno à cidadania política. (...) A transição política parte de uma concepção das relações de poder localizadas no sistema de representação política, com pouca ênfase nos movimentos da sociedade civil, que na resistência à ditadura a todo momento punham em questão as condições de exercício da violência. (...) Nos países de tradição autoritária como o Brasil – sem ruptura com o antigo regime - , a aparente pacificação das transições políticas, a partir dos traços benevolentes do final da ditadura e da euforia da transição, mascara as verdadeiras limitações, reproduzidas historicamente e agravadas, da democracia e da organização do poder. (Pinheiro, 1991, p. 46)
A transição, assim, não se completa graças à não-observância do elemento social. Trata-se de um dado contextual que em diversas instâncias é transfigurado ficcionalmente no romance; um exemplo significativo é o uso do vocábulo “civiltar”, que remete ao entranhamento e à reprodução disseminada de práticas e percepções autoritárias.
Uma questão que surge, relativa à valoração de Não Verás País Nenhum, é se, em seu estreito diálogo com o momento histórico de produção, o romance soa datado. A fim de responder, é preciso observar que as forças opressoras, na obra, negam à população do Brasil futuro a possibilidade de compreender de maneira ampla a natureza do processo histórico. Não Verás País Nenhum se constitui, nesse sentido, como uma crítica ao caráter estático da configuração autoritária e, também, como um elogio ao movimento, uma vez que a necessidade de se compreender dado processo é posta em cena.
Dessa forma, ao invés de cristalizar o momento histórico de produção e se constituir apenas em diálogo com ele, o romance propicia um contato com a tendência interna do processo evolutivo da realidade objetiva, se fizermos uso dos termos de Lukács em “Introdução aos Escritos Estéticos de Marx e Engels”. O romance configura, nesse sentido, um elogio à compreensão do processo histórico num sentido amplo, assim apresentando uma conformação crítica e literária que supera a contingência histórica imediata. Na ênfase dada à compreensão do processo histórico, o romance evita um diálogo unilateral com seu tempo, mantendo seu potencial reflexivo a respeito da liberdade de pensamento.

3.
O narrador, o protagonista Souza, é dono de uma consciência lacerada pelo contexto opressor de contornos bastante difusos que o cerca. Trata-se de um ex-professor de História impedido de lecionar durante um período que, no romance, pode ser identificado com a ditadura militar. A narração, marcada pela reconstrução de uma memória truncada e enganosa, pode ser compreendida como uma tentativa de apreender a realidade e de cunhar uma articulação crítica acerca dela.
No intuito de discutir o feitio do narrador-protagonista, incapaz de narrar o que não foi plenamente apreendido, é pertinente recorrer a proposições de Theodor W. Adorno acerca da impossibilidade em narrar na contemporaneidade. Segundo Adorno, “[s]e o romance quiser permanecer fiel à sua herança realista e dizer como realmente as coisas são, então ele precisa renunciar a um realismo que, na medida em que reproduz a fachada, apenas a auxilia na produção do engodo” (Adorno, 2003, p. 57).
O texto “Memória da ditadura em Caio Fernando Abreu e Luís Fernando Veríssimo”, de Jaime Ginzburg, trata da elaboração formal do impacto da ditadura militar, por meio da discussão do conto “Os Sobreviventes”, de Abreu, e da crônica “Lixo”, de Veríssimo. Segundo o autor,
A escolha por uma concepção tradicional de mimese [conforme Aristóteles] implica uma organização formal do material a ser exposto. Ele deve estar unificado, articulado em tempo e espaço, de modo a permitir sua inteligibilidade. Uma representação da ditadura, no sentido mimético, pressupõe seu entendimento. Uma compreensão realista da ditadura levaria ao reconhecimento de uma imagem delimitada e compreendida. O leitor observaria na obra contornos de uma percepção cujos fundamentos conhece. (Ginzburg, 2007, p. 52)
Ainda que a narrativa de Não Verás País Nenhum apresente linearidade, escapa a um concepção tradicional de mimese. O processo de reconstrução mnemônica se dá de forma “atualizada”, por assim dizer: o leitor toma contato com seus passos à medida em que o narrador os trilha. O horror do futuro parece se configurar e adquirir maior pungência por meio do feitio do narrador, que além de por vezes não compreender o que narra, constantemente se desmente e reavalia sob outra perspectiva o que já foi narrado.
Acerca da articulação entre forma e conteúdo em Não Verás País Nenhum, frisemos portanto que a incerteza do narrador quanto ao mundo que o cerca é indissociável da apresentação de seu tempo, uma época em que se exaurem o homem e o meio ambiente.
Um dado do enredo que já fora elaborado por Loyola sob outra perspectiva histórica, no conto “O homem do furo na mão”, serve de exemplo da dificuldade em narrar. No princípio do romance, Souza narra o surgimento de uma coceira na palma de sua mão, uma coceira que se torna um furo incômodo às autoridades, aos vizinhos e a sua esposa Adelaide, que acaba por deixá-lo. Causa-lhe, contudo, um estranho orgulho. A existência desse atípico furo que não sangra basta para preocupar as forças opressoras, porque é uma marca da diferença que lhes escapa do controle. O trecho que segue é significativo:
Os anos que o Esquema me deve. Quanto rondei sem emprego, amaldiçoado pelo carimbo: APOSENTADO COMPULSÓRIO POR LEI DE SEGURANÇA. Agora, nem estou registrado. Meu sobrinho me conseguiu o lugar. Estou acuado. Dever, não poder brigar, ter de agradecer. Não gosto dele, me sinto mal.
Mal comigo. Preciso sobreviver, tenho Adelaide, sustento meus pais. Junto a mim carrego um carro de justificativas para permanecer como sou. Por isso amo o furo. Ele me mostra de repente que existe o não. A possibilidade de tudo mudar. De um dia para o outro. (Brandão, 2007, p. 54)
O furo cumpre a função de gatilho, apresentando-se como o ponto de partida para perceber ou, até, cunhar uma individualidade que permita o enfrentamento de traumas recalcados relacionados tanto à frustração profissional quanto à pessoal. A profissional se articula ao desapontamento para com os rumos político-sociais do Brasil, enquanto a pessoal remete à difusa recordação da morte de um filho que Souza não sabe realmente se teve, a despeito de indícios como alfinetes de fralda guardados em sua casa. A reconstituição da consciência lacerada, dolorosa por si só, é dificultada pela propaganda oficial, que constrói uma realidade paralela onde até mesmo a desertificação da Floresta Amazônica é positiva.
Para apreender uma realidade que Souza desconfia ser diferente do que lhe dizem os meios de comunicação, se faz necessário o exercício da rememoração. Acerca do valor da lembrança, o excerto que segue merece destaque. Trata-se de um diálogo entre Souza e seu sobrinho, que se muda para seu apartamento junto a um grupo com ligações escusas no chamado Esquema:
- A gente limpa a área.
- Como?
- Tira esses móveis. Quem precisa deles?
- Eu. São os meus móveis. O que pensa?
- Penso que eles atrapalham.
- Vivi a vida inteira com eles. Preciso deles.
- Pois é, enquanto a vida era outra coisa. Não dá mais.
- Até aqui só eu fiz. Cedi a casa, a comida, agora querem meus móveis.
- O que há? O que esses móveis significam? Deixamos as camas, umas cadeiras. Para que o resto?
- Os móveis são minhas lembranças. Certeza de que vivi.
- A única certeza de que a gente precisa é a de estar vivo.
- A vida não é só daqui para a frente, tem tudo que ficou atrás.
- Lembranças. Você é a última pessoa deste país que fala em lembranças. O que elas podem acrescentar?
- Uma visão de mim mesmo. O que fui e o que vou ser. (Brandão, 2007, p. 179)
Sem o conhecimento de seu próprio passado, Souza se vê imobilizado. Sem conhecer a história de seu país, o homem seria incapaz de conhecer a sua própria, de distinguir suas particularidades em relação ao vizinho. Como se a apreensão do contexto maior onde ele se vê inserido, o nacional, fosse necessária para a apreensão do particular.
A carência de uma memória impede que Souza formule uma identidade própria. Sintomático, assim, é que os diálogos que ele trava com sua esposa denunciem uma extrema falta de comunicabilidade. Um diálogo que não avança, como que atravancado.
Quanto a essa falta de comunicabilidade, é pertinente recorrer a noções cunhadas por Hannah Arendt. Para a autora,
Haverá talvez verdades que ficam além da linguagem e que podem ser de grande relevância para o homem no singular, isto é, para o homem que, seja o que for, não é um ser político. Mas os homens no plural, isto é, os homens que vivem e se movem e agem neste mundo, só podem experimentar o significado das coisas por poderem falar e ser inteligíveis entre si e consigo mesmos. (Arendt, 2008, p. 12)
A proposição permite que se note no romance o traçar de uma relação entre a incompreensão que Souza tem do outro e de seu mundo e a incomunicabilidade, a falta de recursos e condições adequadas para que o diálogo entre os homens se realize. Observa-se, ficcionalmente, uma articulação entre a inapreensibilidade do passado e a impossibilidade de agir.

4.
Hannah Arendt usa a expressão vita activa para nomear três atividades tomadas como fundamentais para o que ela chama de condição humana: labor, trabalho e ação. Vita activa se opõe a vita contemplativa: enquanto uma é ligada às necessidades básicas do homem, a outra se despe do interesse imediato de atuar sobre o mundo. Por labor, se deve entender a atividade ligada ao processo biológico do corpo humano, ou seja, as atividades imediatamente necessárias à sobrevivência da espécie. O trabalho, por outro lado, responde ao artificialismo do humano, e se verifica na construção de um mundo de coisas que é nitidamente diferente do natural. Já a ação, responsável pela formação de um corpo político, se dá exclusivamente entre os homens, e corresponde à pluralidade humana,
(...) condição básica da ação e do discurso, [que] tem o duplo aspecto de igualdade e diferença. Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus ancestrais, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que existiram, existem ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso ou da ação para se fazerem entender. Com simples sinais e sons, poderiam comunicar suas necessidades imediatas e idênticas. (Arendt, 2008, p. 188)
A pluralidade, assim, cria as condições para a história e para a memória. Noção que pode ser pertinentemente articulada à leitura do beco-sem-saída em que se encontra o indivíduo marcado pela experiência com a instância autoritária, conforme ficcionalmente elaborado em Não Verás País Nenhum. Souza, privado do discurso, desprovido da comunicabilidade, não consegue perceber suas particularidades em relação ao outro.
Souza se vê, consequentemente, privado da memória; a ele é negado, inclusive pela propaganda oficial, o próprio direito a ela. Privado do diálogo, desprovido de memória acerca de si e de seu país, o protagonista apresenta uma trajetória que percorre o sentido inverso: ao invés de, por meio do contato com o outro (dado pelo discurso), presentificar a condição humana da ação e poder acessar ou construir uma memória, ele necessita primeiro reconstruir a memória (a sua e a do Brasil) para então perceber suas particularidades e fazer notar a pluralidade que, em condições ideais, seria o ponto de partida e não de chegada. O processo inverso (da memória à pluralidade) visa concluir o que foi iniciado com o estranho furo em sua mão, e pode ser lido como uma passagem, a ser trilhada continuamente.
O protagonista, de acordo com a leitura aqui proposta, não chega a concluir plenamente esse processo. O trecho que segue, momento de síntese apenas aparente, serve de exemplo:
Alguém procurou um dia descrever a pessoa que ama? Parece fácil, simples, mas é impossível. A imagem sai alterada. Porque o medo de encararmos a quem amamos é diferente. Não digo distorcido. É que tudo vem de outra maneira. Que não é o real, porém sim o real filtrado.
Acrescido, modificado pelo que acrescentamos. Pois o outro não passa daquilo que é realmente, mais a soma do que adiciono e moldo. Ao ser, junto o que vejo, o que sinto, o que recebi, o que ela me doa a cada momento. E, assim, ela é uma soma dela e de mim, intercambiada, transplantada.
Quem vê de fora, sem sentir o que sinto, percebe duas imagens que não se ajustam. Como assistir a filme de terceira dimensão, penetro na quarta. Bem, é isso. Com tal calor e a cabeça latejando, não dá para muita clareza.
Então afirmo que Adelaide não se foi pelo furo, mesmo porque o furo nunca existiu. Criei-o à força, para me agarrar a algum motivo, a fim de modificar, encarar o mundo. Muleta? E daí? Prefiro andar de muletas que ficar parado na esquina, como um tonto inútil. (Brandão, 2007, pp. 373-374, grifo nosso)
Observemos que a conclusão acerca do furo e do comportamento de Adelaide preserva uma hesitação e não é posta como plenamente confiável. É cunhada, afinal, em um momento precário, no qual o narrador se encontra desgastado por fome, sede, calor e cansaço. A sentença anterior ao parágrafo que apresenta a pretensa revelação final é, nesse sentido, bastante significativa na instituição da dúvida: “Com tal calor e a cabeça latejando, não dá para muita clareza”.
O processo de reconstrução mnemônica, embora talvez inconcluso, permite a Souza a apreensão dos contornos autoritários de sua sociedade. A violência do contexto em que o narrador se vê imerso, assim, pode ser articulada criticamente por meio de uma ampla compreensão do processo histórico. Tal compreensão é ficcionalmente apresentada como decorrente da estreita relação entre o indivíduo e sua sociedade, já que Souza reconstrói sua história pessoal em sincronia com a de seu país.
Uma vez elaborada a articulação crítica, o narrador é capaz de vislumbrar uma esperança. Débil e por demais obscurecida pela negatividade, não pode ser estritamente chamada de utópica, mas é uma conquista para um personagem que, a princípio, vivia à revelia de si próprio. Encerremos este texto com uma transcrição do trecho final do romance, no qual a esperança, ainda que débil, se apresenta. Após sentir o cheiro de chuva, Souza pergunta a um homem que, como ele, se encontra exaurido e à beira da morte:
- Estamos delirando, amigo?
- Se for delírio, que mal faz? Há muito tempo prefiro viver no delírio.
Não dormi, fiquei alerta, elétrico à espera dessa chuva prometida. Era certeza, que viria. Mais hora, menos hora. Viria. Pode ser que estivesse ainda longe, mas caminhava em nossa direção. Com a atmosfera rarefeita, os sons e os cheiros chegam mais rápido, são espantosamente velozes.
Como a luz das estrelas. Quando ela nos atinge, brilhava há muito tempo, às vezes há milhares de anos. Pode ser que este cheiro molhado venha de um ponto tão remoto que vai demorar muito a chegar. Aposto tudo que é chuva. Alguém sabe se está chovendo por aí? (Brandão, 2007, p. 381)

Referências

ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura I. São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34, 2003.
ARENDT, Hannah, A Condição Humana. Tradução de Celso Lafer. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Cadeiras Proibidas. 9 ed. São Paulo, Global Editora, 2002.
_________. Dentes ao Sol. Rio de Janeiro: Editora Brasília - Rio, 1976.
_________. Não verás país nenhum. 25 ed. São Paulo: Global Editora, 2007.
_________. “O homem do furo na mão”. In: _________. Cadeiras Proibidas. 9 ed. São Paulo, Global Editora, 2002.
GINZBURG, Jaime. Memória da ditadura em Caio Fernando Abreu e Luís Fernando Veríssimo. O eixo e a roda. Belo Horizonte, UFMG, v. 15, 2007.
LUKÁCS, Georg. Introdução aos Estudos Estéticos de Marx e Engels. In: _________. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Autoritarismo e Transição. Revista USP. São Paulo, USP. n. 9, 1991.


1 Doutorando em Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, sob orientação do Prof. Dr. Jaime Ginzburg.
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