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Literatura e Autoritarismo
Dossiê "Escritas da Violência II"
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê  

O FOCO NARRATIVO DO ROMANCE EM CÂMARA LENTA: O PROBLEMA DA ALTERNÂNCIA E SUAS RELAÇÕES COM A VIOLÊNCIA HISTÓRICA

Carlos Augusto Costa1
Resumo: Procura-se analisar as relações entre processos de alternância do foco narrativo do romance Em câmara lenta (1977), de Renato Tapajós, e aspectos referentes ao violento contexto histórico de produção do romance.
Palavras-chave: Foco narrativo. Alternância. Ambiguidade. Narrador. Violência.
Abstract: It seeks to analyze the relationships between processes of switching of the narrative point of view of the novel In slow motion (1977), by Renato Tapajós, and aspects relating to the violent historical context of production of the novel.
Keywords: Narrative point of view. Switching. Ambiguity. Narrator. Violence.

O presente trabalho propõe uma análise do foco narrativo do romance Em câmara lenta (1977)2, de Renato Tapajós. Sua leitura suscita um conjunto de situações em que se pode verificar recorrentes processos de alternância do foco narrativo. O aspecto fragmentário da história, em que ocorrem deslocamentos no tempo e no espaço, pode ser entendido como um dos fatores que condicionam a narração do romance ora em primeira pessoa, ora em terceira. Entretanto, observamos que essa alternância não ocorre de modo pacífico, parecendo haver influência de elementos externos à obra. Há situações em que a alternância se dá em um mesmo parágrafo ou uma mesma cena, o que desarticula a expectativa do leitor, dificultando a percepção inteligível da narrativa. Nesse sentido, tencionamos compreender o percurso formal de construção dessas alternâncias, assim como as circunstâncias sociais que possivelmente estão relacionadas a elas.
O romance foi publicado pela primeira vez em 1977. Seu autor, que já havia passado cinco anos na prisão por sua militância na Ala Vermelha do PC do B, foi preso novamente por ocasião da publicação do livro. Em câmara lenta foi considerado pela censura da Ditadura Militar (1964-1985) como um livro subversivo, com expressões que ameaçavam a segurança nacional. Seu enredo compreende: uma série de reflexões do narrador em torno da legitimidade da luta armada, assim como de seu posicionamento ético em relação à continuidade da resistência; a narração de ações armadas, que culminam com a morte de vários membros da organização de esquerda; e a narração do evento cujo desfecho exerce profunda influência na relação do narrador com a linguagem: a morte da personagem “ela”. Além disso, a narrativa apresenta a construção de um foco de guerrilha na Amazônia, que é desmantelado pelos militares.
Esta apresentação está organizada em três momentos. Primeiramente expomos alguns elementos conceituais para a análise proposta. Em seguida, procuramos articular a relação entre esses conceitos e trechos extraídos do romance, com vistas a demonstrar a referida alternância. Por fim, com base em pressupostos teóricos da estética adorniana, bem como em estudos sobre violência, traçamos relações entre o processo de alternância do foco narrativo e as tensões sociais sintomaticamente presentes no romance.
Em seu livro Problemas de lingüística geral (1995), Émile Benveniste dedica um capítulo à discussão sobre “as relações de tempo no verbo francês”. Segundo ele, há dois modos de se organizar os tempos verbais em uma narrativa. A esses dois modos, ou sistemas, o autor chama plano de enunciação histórica e plano de enunciação do discurso, respectivamente.
O plano de enunciação histórica tem como principal característica a narração de acontecimentos passados, e é fundamental que esses acontecimentos tenham se encerrado em algum momento, de modo a não serem registrados em hipótese alguma como matéria do presente. Sua definição básica pressupõe a exclusão da autobiografia. É vedado ao escritor ou ao historiador expressar-se em primeira pessoa. Uma narrativa histórica por excelência contém, com exclusividade, a marca da terceira pessoa. Ela não pode conter as formas pessoais eu/tu, nem mesmo os dêiticos aqui ou agora.
Entretanto, há situações em que o plano discursivo se interpõe no percurso da narrativa histórica. É o que acontece quando o narrador intervém nas falas e pensamentos das personagens, ou elabora julgamentos sobre fatos. Neste momento, a narrativa histórica passa ao plano de enunciação do discurso. De acordo com Benveniste, é próprio da linguagem “permitir essas transferências instantâneas” (BENVENISTE, 1995, p. 267). Para ele, o discurso pressupõe a presença de um locutor e um ouvinte, em uma situação em que o primeiro procura de alguma maneira influenciar o segundo. A escolha das formas pessoais do verbo é o elemento de distinção básica entre discurso e narrativa histórica. Como dissemos, a narrativa histórica só admite a forma de terceira pessoa. No plano do discurso, todas as formas pessoais são legítimas, sendo que a instância ele/ela só existe enquanto possibilidade de colocá-la em oposição às formas eu/tu.
A adoção de vários tempos verbais e de vários pontos de vista implica no abandono do plano de enunciação da narrativa histórica. Daí surge o interesse em analisar os efeitos estéticos que essas alternâncias de instância narrativa, e consequentemente do tempo verbal, podem produzir em um romance como Em câmara lenta, cuja história nos chega a partir de três pontos de vista diferentes: 1) pelo olhar do narrador em primeira pessoa; 2) pelo olhar do personagem “ele”; e 3) pelo olhar do personagem “venezuelano”. Em síntese, trata-se de um romance que submete o plano da narrativa histórica ao plano do discurso, de modo que o que tende a ser tratado com objetividade, como no caso da história narrada em terceira pessoa, é contrastado com as constantes interferências do narrador em primeira pessoa, que é a “forma autobiográfica por excelência” (BENVENISTE, 1995, p. 270), na opinião de Benveniste. Desse contraste, ou dessa conjugação de focos narrativos, principalmente quando ocorre em um mesmo parágrafo, nasce a dificuldade em identificar, em certos momentos do romance, o referente de alguns pronomes. Isso produz ambiguidades que interferem no entendimento da história narrada.
Para efeito de melhor compreensão do que apresentamos até aqui, vamos nos concentrar na análise de três passagens do romance. A primeira delas narra o episódio em que as personagens “ele” e “ela” passam uma noite de ano novo juntos. Não há ação propriamente dita, apenas uma série de descrições físicas e psicológicas de “ela”, que nos é transmitida ora pelo olhar do próprio narrador, ora focalizadas pela personagem “ele”. Em determinado momento o narrador em terceira pessoa se põe a contar um evento anterior à noite de ano novo da seguinte forma:
[...] Uma outra vez, num outro tempo, ele fora ao apartamento em que ela estava morando, perguntar alguma coisa agora já esquecida, e mal a conhecia. Quant[d]o ele bateu na porta, ela ainda estava dormindo e veio abrir a porta descalça e vestida com uma camisola azul e transparente. Ficou falando com ele na porta entreaberta, o rosto ainda abandonado no sono. Eu a via a contraluz [...] Ela estava quase de perfil, um dos braços levantados, apoiado na porta [...] (TAPAJÓS, 1979, p. 164).
Primeiramente é possível apontar neste trecho a presença do dêitico temporal agora em uma oração com marcas temporais e instância narrativa tipicamente histórica. Este fato é importante para determinarmos o foco narrativo predominante no romance, qual seja, o foco em primeira pessoa. Em seguida, observamos a conjugação dos planos de enunciação histórica e do discurso. O parágrafo inicia em uma perspectiva histórica, e o leitor tem a impressão de total isenção do narrador no percurso narrativo. Entretanto, sua expectativa é logo suspensa, pois a objetividade da cena é subtraída a uma instância discursiva que diz: “Eu a via a contraluz”. É interessante notar que o trecho não apresenta, em termos formais, nenhuma indicação de passagem da palavra a uma personagem, neste caso, a personagem “ele”. Além disso, não há travessão ou aspas para marcar esta fala. A ambiguidade se constitui, então, a partir da dúvida em saber se este eu tem como referente a personagem “ele”, ou o próprio narrador.
No parágrafo imediatamente posterior a este, a situação é semelhante. Desta vez a cena se passa na noite de ano novo. Trechos do parágrafo são assim apresentados:
[...] Palavra nenhuma – ela o olhava como quem está muito longe. Então pegou o copo ainda meio cheio e, num gesto lento, como se afastasse uma cortina, ofereceu a ele. A cortina se afastou lentamente e, naquela noite de ano novo, conversamos até quase amanhecer [...] Depois ele a beijou e se amaram com todo o sabor da descoberta, com a fúria e o fulgor da novidade [...] (TAPAJÓS, 1979, p. 165-166).
Sem travessão, sem aspas, sem uma chamada, mesmo sutil, para indicar a passagem da palavra, nada que aponte quem de fato enuncia “conversamos até quase amanhecer”. Um dos referentes desta voz na terceira pessoa do plural é certamente a personagem “ela”. Mas de novo ficamos na dúvida sobre quem conversou com ela, o narrador ou “ele”.
O terceiro e último trecho selecionado para esta apresentação é composto por indeterminações ainda mais surpreendentes. Trata-se da narração do foco de guerrilha na Amazônia. A ação dos guerrilheiros possui um movimento circular, sendo retomada várias vezes no plano da enunciação histórica, fragmentando a narrativa. Entretanto, uma única cena não apenas rompe com essa objetividade, como também retoma a ambiguidade em grau ainda mais elevado. A voz narrativa diz:
Os guerrilheiros chegaram perto das primeiras casas e as pessoas, todas as pessoas da vila se agruparam lentamente [...] Em torno deles os caboclos silenciosos vestidos apenas de calções ou calças frouxas [...] Os guerrilheiros pararam e o venezuelano começou a falar [...] Falou da miséria em que os caboclos viviam e os caboclos não sabiam que em sua vida havia miséria [...] Finalmente ele falou que precisavam de ajuda, para curar os ferimentos, comer e preparar mantimentos para continuarem. Isso os caboclos entenderam. E entenderam que aqueles rapazes estranhos não eram pessoas ruins ou mal-intencionadas. Abrigaram-nos em suas casas, deixando-nos descansar, curaram seus ferimentos com suas ervas e raízes, deram-lhes comida e mantimentos (TAPAJÓS, 1979, pp. 41-42).
Quando lemos “curaram seus ferimentos” e “deram-lhes comida” conhecemos o sujeito a que se referem os verbos (os caboclos) e o referente dos pronomes seus e lhes (os guerrilheiros). Porém, quando lemos “abrigaram-nos em suas casas” e “deixando-nos descansar”, o referente do pronome oblíquo nos não está formalmente determinado. A impressão que temos é a de que o narrador se inclui entre os guerrilheiros, na condição de narrador-personagem. Entretanto, logo em seguida, este mesmo narrador volta a ficar de fora da cena, narrando com o distanciamento necessário ao plano de enunciação histórica. Nesse sentido, uma questão nos salta à vista: o que tenciona essa alternância de foco narrativo?
Levando em conta algumas reflexões sobre a estética adorniana, podemos supor que, do ponto de vista formal, este procedimento narratológico tem profundas ligações com problemas relacionados ao romance moderno. Para Adorno, o romance moderno experimenta o triunfo do subjetivismo literário, principalmente em relação ao ponto de vista do narrador, sobre a objetividade no processo de caracterização dos elementos narratológicos. A narração objetiva da realidade deixa de ter sentido em uma situação em que a própria experiência individual já não tem mais suas bases sustentadas por relações íntegras e coerentes. Em síntese, o mundo construído a partir do processo de subjetivação da narração é, na verdade, o reflexo da destruição do mundo objetivamente administrado. O desconforto gerado pela desarticulação espaço-temporal tem ressonância na forma do romance. De acordo com o autor, “na transcendência estética reflete-se o desencantamento do mundo” (ADORNO, 2003, p. 58). Mais adiante, afirma que “a violação da forma é inerente a seu próprio sentido” (p. 60). Essas questões não podem ser concebidas de maneira desvinculada dos acontecimentos catastróficos ocorridos principalmente durante a primeira metade do século XX.
Em tom semelhante, Anatol Rosenfeld endossa a necessidade de adaptação estética do romance moderno para dar conta desse “estado de fluxo e insegurança” (ROSENFELD, 1973, p. 86) da vida no século XX. Segundo ele, uma única frase é capaz de incorporar elementos do passado e do futuro, visualizados por olhares que se decompõem e retornam em movimentos circulares, transformando o romance em um conjunto de fragmentos. Tudo isto tem a ver com a tentativa de reproduzir a experiência psíquica das personagens, outrora suspensa pela perspectiva distanciada e objetiva do narrador tradicional. Como na pintura, Rosenfeld afirma que no romance o ser humano também sofre o processo de fragmentação e decomposição. No romance moderno, a perspectiva é diluída, e o narrador se encontra dentro das personagens. Segundo Rosenfeld,
[...] se a perspectiva é expressão de uma relação entre dois pólos, sendo um o homem e o outro o mundo projetado, dá-se agora uma ruptura completa. Um dos pólos é eliminado e com isso desaparece a perspectiva. Num caso, resta só o fluxo da vida psíquica que absorveu totalmente o mundo [...] noutro caso, resta só o mundo, reduzido a estruturas geométricas em equilíbrio que por sua vez, absorvem o homem [...] Em ambos os casos, suprimi-se a distância entre o homem e o mundo e com isso a perspectiva. O abandono da perspectiva mostra ser expressão do anseio de superar a distância entre indivíduo e mundo (ROSENFELD, 1973, p. 87-88).
A visão microscópica do narrador, a que se refere o teórico em seu ensaio, capta de maneira caótica o também caótico mundo das personagens, e isto torna a experiência de leitura indissociável da experiência de choque. Referindo-se à obra de Marcel Proust, Rosenfeld afirma que a emergência da subjetividade faz desaparecer o que ele chama de “visão perspectívica” do narrador. Os pontos de vista se confundem e o passado é assimilado em situações do presente, à medida que não se pode mais delinear os limites entre narrador e matéria narrada.
Em câmara lenta certamente pode ser inserido no conjunto de romances modernos que se enquadram nessas reflexões. Vários de seus elementos apontam para isso. O romance possui um eu narrador em meditação e autocrítica, que não narra de maneira uniforme, uma vez que vive o impasse entre se colocar apenas na posição de narrador, com visão distanciada dos fatos, e se inserir na história, eliminando, dessa forma, sua “visão perspectívica”. Esse impasse, além de abalar a visão, também provoca alterações no tempo verbal. Plano de enunciação histórica e plano de enunciação do discurso revezam-se em um mesmo parágrafo ou frase. Assim, não só a visão do narrador e o mundo das personagens se tornam precários, mas também a visão do leitor, uma vez que este é abruptamente lançado na história contada. Narrador, personagens e leitor compartilham um mundo caótico e fragmentado, em que se torna cada vez mais difícil definir seus contornos. É dessa situação que surgem as ambiguidades apontadas nas três passagens do romance analisadas acima.
Contudo, para além de suas relações com essas reflexões estéticas sobre o romance, que acompanha os abalos da vida moderna, o que ocorre com o foco narrativo do romance de Renato Tapajós tem a ver também com os impactos traumáticos da violência agravada principalmente com o advento das guerras modernas.
Tanto Adorno quanto Walter Benjamin, em seus estudos sobre o narrador, falam do soldado que retorna da guerra, impossibilitado de narrar o que viveu. A guerra funciona como uma não-experiência, ou uma experiência traumática que cinge a relação entre sujeito e linguagem, ou, entre sujeito e possibilidade de articulação linear da linguagem. Falar da vida em constante conflito só é possível por meio de algo fadado ao próprio conflito.
De acordo com Jaime Ginzburg, uma das características do trauma reside na dificuldade de a pessoa que passou por uma situação de extrema violência, a de tortura, por exemplo, se identificar com ela mesma, no momento em que é torturada. Quando convocada a relatar sua experiência, como diante de um analista, ela tende, em muitos casos, a se referir a uma terceira pessoa, como se houvesse uma cisão entre o eu da enunciação e o eu do enunciado. Em seu texto Escritas da tortura, Ginzburg afirma que para a pessoa torturada, “falar sobre o próprio nome se torna uma situação de tensão dentro do processo violento” (GINZBURG, 2001, p. 143).
É necessário fazer aqui uma importante observação. No artigo Imagens da tortura: ficção e autoritarismo em Renato Tapajós, Ginzburg (2003) comenta que, embora o narrador do romance Em câmara lenta não tenha sido efetivamente torturado, ele assume o ponto de vista da vítima, tomando para si o processo de destruição física e psicológica da personagem “ela”, como se ele mesmo tivesse sido vítima da tortura e sobrevivido. Desse modo, esse narrador passa a desenvolver atitudes próprias da pessoa traumatizada, como a dificuldade de articulação lógica da linguagem, a negação de si mesmo, enquanto potência capaz de superar as dificuldades, e a negação da própria condição de existência. Frases como: “É muito tarde”; “simplesmente acabou, e com isso acabou o tempo”; “Nada deu certo”; “As palavras não fazem mais sentido”; “[...] O gesto repetido aqui, neste quarto, é um gesto sem história, fora dela, fora do tempo”; ou, “eu também morri, lá, naquele dia”, são sintomas dessa negatividade constitutiva do próprio eu, assim como da realidade histórica.
Nessa perspectiva, nossa hipótese é a de que no romance Em câmara lenta, a personagem “ele” é o próprio eu-narrador. Este, tendo assimilado a perspectiva da personagem “ela”, encontra dificuldade para se referir a si mesmo tanto no momento da tortura, quanto na sua existência anterior a tortura. Nos relatos que Ginzburg analisa no artigo Escritas da tortura, pelo que se pode observar, a vítima tem dificuldade de se referir especificamente sobre o momento do acidente traumático. No romance de Tapajós, o passado como um todo é apresentado a partir de uma fantasmagoria, seja no caso da tortura, seja na convivência com os membros da organização, ainda que recuperado em situações de afetividade, como em duas das passagens analisadas. As imagens fantasmagóricas da personagem “ela”, bem como das outras personagens mortas, são típicas do trauma, e se configuram como elemento que desestabiliza a relação do narrador com o passado. Nesse sentido, para falar de si junto dessas pessoas, é necessário que o narrador se posicione em outra perspectiva que, de algum modo, o distancie da dor e do sofrimento, uma vez que o trauma também implica em um mecanismo inconsciente de defesa.
Para finalizar, acreditamos ser provocativo supor que o narrador predominante do romance, isto é, o narrador em primeira pessoa, comete suicídio antes do final da história. A narração por ele empreendida se dá até o último momento de sua vida, quando é assassinado por policiais. Daí em diante restam apenas dois parágrafos, que são narrados em terceira pessoa. Diferentemente de situações anteriores em que o foco em terceira pessoa narra ações de guerrilha na Amazônia, assaltos, fugas e até o famoso conflito da Rua Maria Antônia, desta vez essa voz narra o que sucede logo após a morte do eu-narrador. Vejamos o trecho a seguir:
[...] Eu estou entrando no ponto porque quero e quero ver eles rolarem e morrerem como porcos, como porcos sujos que são. Agora, perto do muro, acho que eles já me viram e aquele filho da puta do carro não vai escapar. Os dois revólveres na mão, disparando, isso sim, esse é o momento, agora eu corro atirando e acertei, ele caiu de cara dentro do carro e eu sinto a alegria, a alegria verdadeira, a exaltação, e o da construção eu já acertei, ele despencou, a exaltação do gesto, a sagração do sangue, o ódio em movimento, o outro correu, o da carrocinha levantou a metralhadora, filho da puta, eu não vou nem me desviar porque vou acertá-lo primeiro, errei, mas de novo e...
A rajada da metralhadora o atingiu no peito, lançando-o contra o muro. Uma outra bala calibre quarenta e cinco acertou em sua boca, saindo pela base do crânio, jogando sangue no muro. Ele caiu para a frente, sobre a calçada, os braços abertos, as mãos ainda apertando a coronha dos revólveres. Diversas rajadas atingiram seguidamente o corpo, picotando-o e fazendo com que ele estremecesse ao impacto das balas. O sangue, como um rio, escorreu pela calçada em direção à sarjeta (p. 175-176).
O trecho apresenta uma sequência de dois parágrafos. No primeiro, temos um eu narrando uma ação que ocorre de maneira simultânea à narração. Trata-se de uma ação praticada pela própria voz narrativa, a mesma voz que inicia o capítulo três páginas atrás, e a mesma voz que narra ações e acontecimentos em primeira pessoa ao longo de quase todo o romance. O foco narrativo em primeira pessoa é predominante na história. O eu-narrador é morto exatamente no momento em que ele próprio se enuncia em uma situação de confronto com militares. Em seguida, o segundo parágrafo do trecho em tela passa a ser contado com foco narrativo em terceira pessoa. O eu-narrador é apresentado como vítima, na posição de um ele que a partir daquele momento deixa de existir na história.
Nessa perspectiva, procuramos mostrar aqui que Renato Tapajós construiu um narrador em terceira pessoa para dar conta do processo de autodestruição do eu-narrador, cuja morte já vinha sendo anunciada nos constantes processos de negatividade. Se esta ideia for procedente, aliada à suposição anterior e a outros fatores relevantes para a compreensão do romance, acreditamos que Em câmara lenta possui um procedimento narratológico de elevado grau de elaboração.

Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor W. “Posição do narrador no romance contemporâneo”. In: ______. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003, pp. 55-63.
BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura.
BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral I. Campinas, SP: Pontes, 1995. Editora da Universidade Estadual de Campinas (Linguagem Crítica).
GINZBURG, Jaime. Escritas da tortura. Dialogos Latinoamericanos, Universidade de Aarhus, v. 3, p. 131-146, 2001.
______. Imagens da tortura: ficção e autoritarismo em Renato Tapajós. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea. Brasília, v. 21, p. 129-142, 2003.
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TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. São Paulo: Alfa-Ômega, 1979.


1 Mestrando em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Jaime Ginzburg. Bolsista do CNPq. Contatos: carlosaugustocosta@usp.br.
2 A edição utilizada neste trabalho é de 1979, cujo conteúdo é o mesmo da primeira edição.
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