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Literatura e Autoritarismo
Dossiê "Escritas da Violência II"
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê  

NAZISMO E HOMOSSEXUALIDADE: O TESTEMUNHO DE UM DOS ESQUECIDOS DA HISTÓRIA

Tiago Elídio1
Resumo: O genocídio nazista foi uma das grandes catástrofes que marcaram o século XX. Entre os grupos perseguidos e assassinados estavam os homossexuais. Após o final da guerra, devido às leis que ainda estavam em vigor contra eles, os que sobreviveram não puderam prestar seu testemunho e contar o que havia passado nesse período. Isso só foi possível décadas depois, quando tais leis deixaram de existir e os homossexuais passaram a ter mais visibilidade, sendo, assim, possível falar. Um importante testemunho desse grupo é a autobiografia de um sobrevivente francês, Moi, Pierre Seel, déporté homosexuel (“Eu, Pierre Seel, deportado homossexual”, sem tradução para o português). Em sua obra, podemos vislumbrar as principais características desse tipo de narrativa testemunhal, como, por exemplo, a questão da denúncia e da violência sofrida. No entanto, sua homossexualidade traz algumas diferenças. Uma delas é a distância temporal entre o evento e a escrita. Passados muitos anos após o fim do regime, sua narrativa não só faz uma denúncia ao sistema nazista, como também ao período pós-guerra. Em seu livro, narra a dificuldade passada pelos homossexuais ao longo dos anos e a dificuldade de reconhecimento desse grupo como vítima do regime de Hitler.
Palavras-chave: nazismo, homossexualidade, silêncio, França
Abstract: The Nazi genocide was one of the major disasters that marked the 20th century. The homosexuals were one of the groups that were persecuted and murdered. After the war, due to laws that were still in force against them, those who survived were unable to provide their testimony and tell what had passed in that period. This was only possible some decades later, when such laws no longer exist and homosexuals had more visibility, and therefore it was possible to speak. An important testimony of this group is the autobiography of a French survivor, Moi, Pierre Seel, déporté homosexuel ("I, Pierre Seel, deported homosexual", without translation into Portuguese). In his work, we can observe some points of this kind of testimonial narrative, for example, the issues of the denunciation and of the violence. However, the homosexuality brings some differences. One is the temporal distance between the event and the writing. Many years had passed after the end of the regime, so his narrative not only makes a complaint to the Nazi system, but also to the postwar period. In his book, he recounts the difficulty that homosexuals had passed over the years and also the difficulty about recognizing this group as a victim of Hitler's regime.
Keywords: Nazism, homosexuality, silence, France

O século XX foi um período marcado por grandes catástrofes e genocídios, sendo um dos mais conhecidos a morte de milhares de pessoas pelo regime nazista. Recusa-se aqui a utilizar os termos comumente usados, Holocausto e Shoah, pois eles estão diretamente ligados aos judeus2. Empregando tais palavras, ficam excluídos da memória todos os outros grupos perseguidos, entre eles os homossexuais, que estiveram por muito tempo fadados ao esquecimento. Uma das razões de tal situação é que, após o término da Segunda Guerra, muitas das narrativas testemunhais sobre o período de perseguição e extermínio nazista foram feitas prioritariamente pelos judeus, grupo que possui uma relação muito forte com a escrita e a transmissão. Isso trouxe como consequência a grande visibilidade deles como vítimas, e o fato de terem sido vistos por muitos como as únicas vítimas.
Além disso, os homossexuais, após a guerra, ainda eram mal-vistos e estigmatizados pela sociedade. Inclusive, muitos diziam que os nazistas haviam agido corretamente em relação a eles. Houve, portanto, logo após o final da guerra, a impossibilidade dessas pessoas prestarem seu depoimento, escreverem suas memórias, e contarem, enfim, o que haviam passado, inclusive pelo fato de ainda existirem leis anti-homossexuais em vigor. Primo Levi, em seu livro A Trégua, conta sobre um sonho recorrente seu, que refletia o medo de retorno ao campo, e a sensação de que esse momento de liberdade não passaria de uma trégua:
É um sonho dentro de outro sonho, plural nos particulares, único na substância. Estou à mesa com a família, ou com amigos, ou no trabalho, ou no campo verdejante: um ambiente, afinal, plácido e livre, aparentemente desprovido de tensão e sofrimento; mas, mesmo assim, sinto uma angústia sutil e profunda, a sensação definida de uma ameaça que domina. E, de fato, continuando o sonho, pouco a pouco ou brutalmente, todas as vezes de forma diferente, tudo desmorona e se desfaz ao meu redor, o cenário, as paredes, as pessoas, e a angústia se torna mais intensa e mais precisa. Tudo agora tornou-se caos: esou só no centro de um nada turvo e cinzendo. E, de repente, sei o que isso significa, e sei também que sempre soube disso: estou de novo no Lager, e nada era verdadeiro fora do Lager. De resto, eram férias breves, o engano dos sentidos, um sonho: a família, a natureza em flor, a casa. Agora esse sonho interno, o sonho de paz, terminou, e no sonho externo, que prossegue gélido, ouço ressoar uma voz, bastante conhecida; uma única palavra, não imperiosa, aliás breve e obediente. É o comando do amanhecer em Auschwitz, uma palavra estrangeira, temida e esperada: levantem, “Wstavach”. (LEVI, 1997, p. 358, grifos meus)
Em relação a Levi, essa era apenas uma sensação imaginária, pois a guerra e o regime nazista já haviam terminado e ele não tinha motivo para ser capturado novamente. Porém, no caso dos homossexuais, era como se de fato eles ainda vivessem sob uma trégua, pois poderiam novamente ser presos, capturados, pelas leis que ainda vigoravam contra os homossexuais.
No caso da França, continuava a existir uma lei que havia sido promulgada em 1942, pelo governo colaboracionista Vichy. Ela reinscrevia no código penal, entre os “delitos” sexuais, as relações entre pessoas do mesmo sexo como uma incriminação agravante. Isso ocorreu, pois foram descobertos casos de marinheiros que haviam se envolvido com civis. Como afirma o historiador Michael Sibalis (2002, p. 302), isso possibilitou a perseguição de indivíduos que “corrompiam jovens” do mesmo sexo, além de reintroduzir na jurisprudência francesa a traiçoeira distinção entre relações sexuais naturais e as que iam contra a natureza, isso depois de um século e meio de tolerância social, pois, na França, desde a Revolução Francesa, não havia algo na lei semelhante ao Parágrafo 175 alemão, que condenava atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo.
À la Liberátion, allié avec les communistes, le gouvernement provisoire de De Gaulle met en place une commission juridique chargée d'examiner, pour le purger, tout l'appareil judiciaire de l'Occupation. Ce comité abroge les nombreux décrets et lois antisémites. Mais personne ne proposera l'abrogation d'une loi parfaitement homophobe imaginée par Darlan et promulguée par Pétain.3 (LE BITOUX, 2002, p. 145)
O comitê jurídico não propôs a revogação de tal lei. O que foi proposto, na verdade, foi a transformação da disposição do artigo 334 no artigo 331 do Código Penal, o que de fato ocorreu, em 8 de fevereiro de 1945 (LE BITOUX, 2003, p. 17). Após o final da guerra, caem, portanto, as leis antissemistas, mas continua a que punia os homossexuais. Dessa forma, os homossexuais continuavam a ser vistos como seres nocivos à sociedade por grande parte da população. Como afirma Eribon (2008), os anos cinquenta e sessenta (e, primeiramente, os anos quarenta e o período da guerra) tinham jogado a subcultura homossexual numa clandestinidade mais rigorosa que nos anos vinte e trinta. Segundo o filósofo, a repressão havia se tornado muito mais intensa que nos anos anteriores à guerra.
Além disso, na França, em 1960, o parlamento havia criado uma emenda que definia a homossexualidade como uma “praga social” (“fléau social”), ao lado do alcoolismo, da tuberculose e da prostituição (LE BITOUX, 2002, p. 148). Nessa época, o país estava em plena guerra da Algéria. “La peur d'une guerre civile sur le territoire national put conduire les parlementaires à vouloir lutter contre tous les “ennemis de l'intérieur”, y compris ceux qui, comme les homosexuels, affaiblissaient le corps social du fait de leur comportement déviant”4. (LE BITOUX, 2003, p. 53).
Os homossexuais, em consequência, passaram a ser vistos como verdadeiros delinquentes sociais. “Ainsi écartelés entre discrimination pénale, discrimination civile et discrimination de liberté d'expression, les homosexuels français de l'après-guerre n'apparaissent-ils pas comme des citoyens de seconde zone?5” (LE BITOUX, 2003, p. 20).
Isso tudo contribuiu para uma maior estigmatização desse grupo. Porém, em decorrência disso, muitos deles se convenceram da necessidade de uma mudança política e social radical. Isso ajudou, portanto, na criação do movimento de liberação homossexual do fim dos anos 60 e início dos 70. Em 1971 nasceu a FHAR (Frente Homossexual de Ação Revolucionária). Proveniente da revolução cultural de Maio de 68, ela contestava as imagens convencionais da homossexualidade. Como afirma Le Bitoux, a Frente lutava contra as normas da vida cotidiana e a submissão à ordem social e sexual (LE BITOUX, 2003, p. 87).
Nesse período, ao longo dos anos de governo de Georges Pompidou, ou seja, entre os anos de 1969 e 1974, era forte a intervenção estatal e a censura. Essa situação durou até o começo dos anos 80.
Ao longo dos anos 70, no entanto, alguns acontecimentos merecem destaque. No dia 25 de abril de 1976, pela primeira vez ao longo do Dia Nacional da Lembrança da Deportação, foi depositado um ramo de flores em memória dos homossexuais, apesar da grande hostilidade dos representantes das federações dos deportados. (LE BITOUX, 2003, p. 142). No ano seguinte, ocorreu a primeira Parada Gay francesa, na praça da República. Nesse mesmo ano e em 1978, ocorreram, em Paris, os primeiros festivais de filmes homossexuais, “L'Olympic Entrepôt” e “La Pagode”, respectivamente. Além disso, ao longo dos anos 70, ocorreu uma grande produção literária e uma representação alternativa da homossexualidade na mídia cinematográfica e televisiva. Também nessa década, em 1979, surgiram duas importantes publicações, as revistas Masques e Gai Pied (anos mais tarde, Gai Pied Hebdo). No primeiro número dessa última, que teve uma tiragem de 30 mil exemplares e atingiu 20 mil quiosques, havia um artigo de Michel Foucault sobre homossexualidade e suicídio, uma nota sobre uma manifestação em Paris contra a repressão no Irã, trechos traduzidos do testemunho de Heinz Heger, homossexual austríaco deportado pelos nazistas, entre outras pautas (LE BITOUX, 2003, p. 199).
Le Bitoux (2003) afirma que a consciência da existência de uma cultura específica começou no seio dos meios homossexuais militantes dos anos 70, que se fazia visível pela constituição de certas publicações mais politizadas e bem direcionadas. Podemos ver, portanto, que essa revista teve um papel político muito ativo. Isso também ocorreu ao longo da eleição presidencial de 1981, indagando aos candidatos sobre a questão homossexual. Durante o segundo turno das eleições, perguntaram ao então candidato do Partido Socialista, François Mitterrand, se, caso ele fosse eleito, a homossexualidade deixaria de ser um delito. Ele respondeu afirmativamente. Um voto homossexual poderia contribuir para sua vitória. Isso poderia, portanto, ser apenas mais uma promessa para ganhar voto. Refletindo essa desconfiança, logo após sua vitória, a revista estampou na capa uma foto do novo presidente com a seguinte pergunta: “Sete anos de felicidade?”
De fato, o presidente François Mitterand cumpriu com sua palavra, e em 4 de agosto de 1982, a lei anti-homossexual foi revogada e a homossexualidade deixou de ser ilegal na França6 (SEEL p. 191, LE BITOUX, 2002, p. 137). Portanto, somente nessa década os gays franceses foram amparados pelo plano jurídico e foi possível o fim da vida dupla, do segredo e da invisibilidade. A revista Gai Pied, por exemplo, atingiu seu auge, chegando a tiragem de 70 mil exemplares em 1982.
Dessa forma, essa série de fatores, como a revogação das leis anti-homossexuais, a emancipação dos movimentos militantes e o sucesso das publicações destinadas aos gays, possibilitou que esse grupo pudesse, enfim, sair do armário e deixar de se ocultar. Além disso, essas condições possibilitaram, por fim, que os perseguidos homossexuais do regime nazista pudessem testemunhar o que havia acontecido com eles, como fez Pierre Seel. Sua autobiografia pode ser vista, portanto, como um duplo testemunho. Primeiramente, pela questão das situações extremas vividas durante seu encarceramento e deportação, a exemplo dos outros testemunhos existentes. Porém, sua narrativa vai além, pois é um testemunho também das dificuldades enfrentadas pelos homossexuais, não somente em relação ao nazismo e ao reconhecimento desse grupo como perseguido, como também de vários outros pontos cruciais, como, por exemplo, a dificuldade de diálogo com a família e o preconceito da sociedade.
Um dos pontos-chave de seu testemunho é, portanto, a denúncia. Esse é um dos principais motivos que levaram Pierre Seel a contar sua história, como narra na passagem a seguir, quando comenta sobre o bispo de Estrasburgo, que havia declarado que a homossexualidade era uma enfermidade:
Moi, en attendant les propos de cet évêque de ma terre natale, je me dressai sur mon lit. Terrifié, terrorisé, indigné. Les homosexuels, des infirmes? Il me fallait réagir. La colère me submergeait. Il fallait faire cesser pour toujours de tels propos. Et pour cela témoigner, tout dire, demander réhabilitation de mon passé, de ce passé qui était aussi celui de tant d’autres, oubliés, enfouis dans les heures noires de l’Europe. Témoigner pour protéger l’avenir, témoigner pour faire cesser l’amnésie de mes contemporains. Déchirer une fois pour toutes mon anonymat: faire une lettre ouverte à monseigneur Elchinger7. (SEEL, 1994, p. 156-157, grifos meus)
Seu testemunho é também uma grande denúncia a todo tipo de violência que ele sofreu, tanto física, quanto psíquica. Porém, algo muito importante também em seu relato, que o diferencia de outros testemunhos referentes ao nazismo, é sobre o estigma que os homossexuais sofriam. Primeiramente perante os outros prisioneiros do campo. A falta de solidariedade por si só já era uma forma de violência muito forte, como discorreu Primo Levi:
Entrava-se esperando pelo menos a solidariedade dos companheiros de desventura, mas os aliados esperados, salvo casos especiais, não existiam; existiam, ao contrário, mil mônadas impermeáveis e, entre elas, uma luta desesperada, oculta e contínua. Esta revelação brusca, que se manifestava desde as primeiras horas de cativeiro, muitas vezes sob a forma imediata de uma agressão concêntrica por parte daqueles em que se esperava encontrar os futuros aliados, era tão dura que logo derrubava a capacidade de resistir. Para muitos foi mortal, indiretamente ou até diretamente: é difícil defender-se de um golpe para o qual não se está esperando. (LEVI, 2004, p. 32-33, grifos meus)
No entanto, apesar das dificuldades, alguns grupos se formavam, de acordo com certas afinidades que existiam, como afirma Seel:
Le baraquement était constitué en réseaux, selon des affinités diverses, politiques parfois, ce qui amoindrissait un peu l’isolement et la dureté du quotidien. Je ne faisais partie d’aucun de ces réseaux de solidarité. Avec mon ruban bleu, rapidement compris par mes compagnons d’infortune, j’avais conscience que je n’avais rien à attendre d’eux: le délit sexuel est une charge supplétive dans l’identité carcérale. Je pus le vérifier plus tard, quand je fus un temps, à Rouen, visiteur de prison. Dans l’univers des détenus, j’étais un élément tout à fait négligeable, une demi-portion menacée à tout moment d’être sacrifiée, sans état d’âme, selon les exigences aléatoires de nos geôliers8 . (SEEL, 1994, p. 51-52, grifos meus)
Observa-se, portanto, que esses grupos de solidariedade não se davam, de fato, com os homossexuais. O “delito” homossexual, como afirma Seel, era uma carga adicional. Eles eram, portanto, um dos grupos mais estigmatizados no campo. E para que isso ocorresse, eram muito bem identificados. Em geral, pelo triângulo rosa, que era maior em relação aos outros triângulos. Mas no caso do campo de Schirmeck, onde estava Seel, era uma faixa azul.
Le Bitoux (2002) ressalta que a grande diversidade de presos homossexuais, tanto de gerações, quanto de percursos, quanto de meios sociais, gerava uma falta de solidariedade entre eles, falta de autodefesa coletiva, como o que ocorreu espontaneamente entre as famílias polonesas, ciganas ou judias. Eram, dessa forma, os mais solitários no campo, como ressalta Wolfgang Sofsky:
Ils n’étaient liés ni par une pratique religieuse, ni par une conviction politique, et n’avaient pas la même origine sociale ou nationale. Le stigmate raciste ne faisait pas de détail, et l’exposition au risque d’extermination bloquait toute possibilité de développer une conscience de groupe cohérente9. (SOFSKY apud LE BITOUX, 2002, p. 87).
Dessa forma, vemos que eles, sim, eram verdadeiras “mônadas impermeáveis”. Como também afirma Levi, “a capacidade humana de cavar-se uma toca, de criar uma casca, de erguer ao redor de si uma tênue barreira defensiva, ainda que em circunstâncias aparentemente desesperadas, é espantosa e mereceria um estudo profundo” (LEVI, 1988, p. 56). Seel, para se defender e sobreviver, criou essa barreira defensiva se isolando dos demais:
Étant parmi les plus jeunes du camp, je craignais que l'attention ne se focalise sur moi. Aussi, entre deux corvées, je m'efforçais de ne parler à personne et m’enfermais dans une solitude désespérée que ne traversait aucun désir sexuel. L’idée même de désir n’avait aucune place dans cet espace. Un fantôme n’ai ni fantasme, ni sexualité10 (SEEL, 1994, p. 54, grifos meus).
Descreve-se, portanto, como um fantasma, exausto, imerso na tristeza e no silêncio. Além disso, outro sentimento muito presente em sua autobiografia é a vergonha. Primo Levi, em Os afogados e os sobreviventes, em um capítulo intitulado “A Vergonha”, afirma que é um fato verídico e confirmado por numerosos depoimentos que muitos sobreviventes, inclusive ele, tenham experimentado a “vergonha” e um sentimento de culpa durante o confinamento e depois. “O sentimento de vergonha ou de culpa que coincidia com a liberdade reconquistada era fortemente complexo: continha em si elementos diferentes, e em proporções diferentes para cada indivíduo singular.” (LEVI, 2004, p. 65). Uma explicação que formula é a seguinte:
À saída da escuridão, sofria-se em razão da consciência readquirida de ter sido aviltado. Não por vontade, não por pusilanimidade, nem por culpa, vivêramos durante meses ou anos num nível animalesco: nossos dias tinham sido assolados, desde a madrugada até a noite, pela fome, pelo cansaço, pelo frio, pelo medo, e o espaço para pensar, para raciocinar, para ter afeto, tinha sido anulado. Suportáramos a sujeira, a promiscuidade e a destituição, sofrendo com elas muito menos do que sofreríamos na vida normal, porque nosso metro moral havia mudado. Além disso, todos roubáramos. (LEVI, 2004, p. 65)
Alguns tiveram até que matar, como foi o caso de Seel, que traz essa confissão em um trecho do seu testemunho, quando fala dos anos em que lutou na guerra do lado alemão:
Un jour, hélas, comme je devais m'y attendre, je me retrouvai face à un partisan au détour d'un chemin escarpé. Nous étions trop près pour nous tirer dessus. Avec la crosse de son fusil, il me démolit la mâchoire. Mais je ne perdis pas connaissance, et réussis à riposter. Dans ce corps à corps fatidique, ça ne pouvait être que lui ou moi. Étant donné que je suis toujours vivant, on peut deviner l'issue du combat. Les nazis nous avaient appris à tuer, puis obligés à tuer: ils avaient fait de nous des assassins.11 (SEEL, 1994, p. 77)
Além disso, no caso dos homossexuais, havia a vergonha por causa da homossexualidade, que gerava um forte estigma. Michael Pollak afirma que “o estigma condena a maioria ao silêncio e a uma gestão solitária de sua identidade” (POLLAK, 1991, p.16), que foi justamente o que aconteceu com Pierre Seel. Em sua autobiografia, inclusive, há um capítulo cujo título é “Os Anos de Vergonha”, em que narra esse período em que reinaram o medo e o silêncio.
Depois de sua libertação do campo de concentração, a caminho de casa, Seel pensava angustiado como seria a reação de sua família, que havia descoberto sobre sua homossexualidade por conta de seu encarceramento:
Les rumeur des rafles d'homosexuels avaient dû faire le tour de la ville. Et depuis que je l’avais quittée, ma famille avait pris que j’étais un « Schweinhund ». Catholiques et soucieux de leur bonne réputation, comment mes parents allaient-ils réagir? Allaient-ils m’accueillir ou non? Et comment? Mais que leur expliquer, puisque j’étais obligé de faire silence? Je me disais que vraisemblablement la famille tout entière s’alignerait sur l’attitude de mon père.12 (SEEL, 1994, p. 65)
Podemos observar nesse trecho uma certa apreensão, insegurança e medo sobre como reagiriam os membros de sua família frente à sua homossexualidade. Afinal, eles haviam descoberto através dos nazistas, e não da boca do próprio Seel. Michael Pollak, baseado em suas entrevistas e análises antropológicas sobre os homossexuais e a AIDS, afirma:
Na maioria das vezes, não foi o homossexual que informou deliberadamente sua condição às pessoas com quem convive, mas estas que perceberam 'por acaso'. Para não provocar uma explicação, o homossexual fica condenado a gerir um silêncio que experimenta como uma exclusão que na verdade nunca foi formulada. Por não querer – ou não poder – remediar a situação, o 'excluído' (que é o único a saber que o é) aprendendo a acomodar-se a ela, trabalha para construir uma vida social em que se sinta equilibrado e seja percebido como tal. (POLLAK, 1990, p. 26)
Seel conta logo em seguida como se deu de fato sua chegada:
Ma famille dînait. Mon père se leva de table. Tandis que je m’avançais, il sortit sa montre en or de la poche de son gousset et me la tendit en disant: « Voilà, mon fils, mon cadeau de bienvenue. Prends place parmi nous. N’en disons pas davantage. Et puis tu iras te reposer. » La gouvernante rajoute un siège et un couvert. Je pus m’asseoir parmi les miens. Le repas se poursuivit en silence. À l’autre bout de la table, j’aperçus ma mère qui cherchait à retenir ses larmes. Personne ne rompit le silence13. (SEEL, 1994, p. 65, grifos meus)
Podemos observar uma recepção fria, onde imperava o silêncio. Seu pai, apenas com uma frase, já deixou claro que não se deveria falar nada mais sobre o assunto. E claro que, frente a essa ordem patriarcal, ninguém foi capaz de romper o silêncio, muito menos Seel, que caso resolvesse falar algo, poderia ser expulso dali. Frente a isso, ele narra como de fato se sentiu ao se deparar com sua família. “Arrivé chez moi, je sonnai comme un étranger.” (SEEL, 1994, p. 65). Estrangeiro, aquele que é diferente, que vem de um outro lugar, que não pertence a um grupo, a uma cidade, a uma família. Aquele que não compartilha os mesmos signos, não é familiar, conhecido. Estranho. Era assim que se sentia. E foi aí que começou seu silenciamento.
Nous étions le 6 novembre 1941. Un doublé secret venait d’un seul coup de se sceller: celui de l’horreur nazie et la honte de mon homosexualité. De temps à autre, un regard glissait sur moi, plein d’interrogations sur mon aspect famélique. Qu’étais-je devenu pendant six mois ? Ainsi donc j’étais homosexuel ? Que m’avaient-ils libéré? Ces questions naturelles, personne ne les posa. Mais quelqu’un les eût-il posées, que je n’aurais pas répondu : j’étais tenu à mon double secret. Et à ces regards silencieux, j’ai mis quarante ans à répondre14. (SEEL, 1994, p. 66, grifos meus).
Na esfera privada, temos a família como grande impositora do silêncio. Em sua narração, Seel observa que o pacto de silêncio imposto por seu pai em relação a sua homossexualidade era como uma lei, ninguém se atrevia a lhe desobedecer e comentar algo:
Le pacte de silence imposé par mon père au retour du camp de Schirmeck, concernant mon homosexualité, continuait à faire loi dans la famille : pas de confidences de ma part, pas de questions de la leur. Tous ensemble, nous faisions comme si de rien n’avait été. Mais mon étiquette d’homosexuel avait fait le tour de ma famille. Chez les plus haineux ou les plus sensibles à l’image publique, ma « réintégration » familial gênait.15 (SEEL, 1994, p. 116).
Porém, pode-se pensar que esse âmbito familiar apenas refletia o silêncio imposto pela esfera pública, com o qual Seel também se deparou, primeiramente em relação aos outros homossexuais da cidade:
Les grands bourgeois homosexuels de ma ville étaient tous de retour. Ils semblaient n’avoir aucunement souffert de l’Occupation. Ils ne parlaient de rien, ne faisaient aucune déclaration. Aucune discussion publique sur ce qui s’était passé pour les homosexuels n’avait lieu. Rien ne venait au secours de mon mutisme16 (SEEL, 1994, p. 113-114, grifo meu).
Como afirma, não havia nenhuma discussão pública a respeito desse assunto. Seel critica essa atitude:
J’étais indigné, car s’ils n’avaient peut-être pas été soumis à la question, ils avaient bien dû constater la disparition de quelques-unes de leurs connaissances. Ils n’avaient peut-être pas vécu entre les barbelés d’un camp, mais ils avaient bien dû entendre parler des rafles d'homosexuels em Alsace. Ils n'avaient peut-être pas étés obligés d'asister au massacre de leur ami, mais ils avaient bien dû apprendre au moins que les homosexuels, sur ce sol annexé quatre ans durant, avaient été indésirables et qu’ils avaient été torturés, expulsés et certains assassinés. Les fichiers de police remis à jour année après année avant l’arrivée des nazis, et la délation aidant pendant l’Occupation, avaient pourtant fait leur œuvre pour des certaines d’entre nous17 (SEEL, 1994, 114).
A vigilância policial que havia antes da guerra e a posterior perseguição aos homossexuais durante o nazismo tinha contribuído para gerar esse medo e dificuldade de falar. Mas um grande fator que contribuiu para isso foi a questão das leis contrárias aos homossexuais que ainda estavam em vigor, como vimos. Portanto, as vítimas homossexuais se sentiam inseguras para contar suas verdadeiras histórias, por medo do estigma e de possíveis ações legais, e, assim, omitiam-nas, ou mesmo mentiam. O testemunho dos homossexuais era, portanto, socialmente inaudível, impossível e perigoso. Assim, relata Seel:
Apprenant l’existence de cette loi, je compris également qu’à parler, je risquais d’être menacé du côté des tribunaux et accusé de faire l’apologie d’une sexualité « contre nature ». Cette disposition judiciaire expliquait peut-être le silence des bourgeois homosexuels de Mulhouse. Mais leur silence ne m'apparaissait pas de même nature que le mien. Je leur faussai donc compagnie. Quant à fréquenter les squares, cela était devenu très dangereux car les violences nocturnes s'étaient multipliées. D'où pouvait venir cette nouvelle haine des homosexuels? Peut-être du côté de ceux que la victoire des Alliés rendait furieux. La bière aidant, ratissant Mulhouse en pleine nuit, ils croisaient sans difficulté, comme les voyous et les truqueurs, des victimes toutes trouvées. Je m'isolai donc.18 (SEEL, 1994, p. 115).
Além de perceber que era arriscado falar e ser ameaçado judicialmente, Seel estava ciente que era extremamente perigoso sair à noite e frequentar certos lugares de encontros, como a praça onde costumava ir em sua adolescência. Portanto, isolou-se.
Primo Levi já comentava que, na maior parte dos casos, a hora da libertação não foi nem alegre nem despreocupada:
Soava em geral num contexto trágico de destruição, massacre e sofrimento. Naquele momento, quando voltávamos a nos sentir homens, ou seja, responsáveis, retornavam as angústias dos homens: a angústia da família dispersa ou perdida; da dor universal ao redor; do próprio cansaço, que parecia definitivo, não mais remediável; da vida a ser recomeçada em meio às ruínas, muitas vezes só. (…) Quase sempre coincidiu com uma fase de angústia (LEVI, 2004, p. 61).
No caso dos homossexuais mais especificamente, havia também angústia por ser homossexual e não poder contar tudo o que houve de fato. Seel afirma: “Je commençais déjà à censurer mes souvenir et je réalisais qu’en dépit de mes attentes, en dépit de tout ce que j’avais imaginé, de l’émotion du retour tant espéré, la vraie Libération, c’était pour les autres19” (SEEL, 1994, p. 110, grifo meu). Assim, após o fim da guerra, Pierre Seel se isolou, entregando-se à autocensura, ao silêncio e à solidão.
O sobrevivente Primo Levi faz também a seguinte constatação:
Aqueles que experimentam o encarceramento (e, muito mais em geral, todos os indivíduos que atravessaram experiências severas) se dividem em duas categorias bem distintas, com poucas gradações intermediárias: os que calam e os que falam. Ambos obedecem a razões válidas: calam aqueles que experimentam mais profundamente um mal-estar que, para simplificar, chamei de “vergonha”, aqueles que não se sentem em paz consigo mesmos ou cujas feridas ainda doem. Falam, e muitas vezes falam muito, os outros, obedecendo a impulsos diversos. Falam porque, em vários níveis de consciência, percebem no (ainda que já longínquo) encarcareamento o centro de sua vida, o evento que no bem e no mal marcou toda a sua existência. Falam porque sabem ser testemunhas de um processo de dimensão planetária e secular. (LEVI, 2004, p.127)
No caso de Pierre Seel, ele esteve em ambos os lados. À princípio, calou, por sua vergonha e pelo silêncio imposto pela sociedade, pois, como acrescenta Levi, os sobreviventes falam porque são convidados a fazê-lo, e, como vimos, isso não ocorreu com Seel por um longo tempo, inclusive no âmbito mais privado, pela própria família, exceto com sua mãe, como narra:
Ma mère fut la seule de ma famille à tenter en plusieurs occasions de me pousser à la confidence pour briser mon silence et soulager ma tristesse. Que m'avaient-ils fait à Schirmeck pour que je lui revienne si meurtri, si taciturne, si changé? Je semblais me traîner sans envie de retrouver goût à la vie. Pourquoi ne lui parlais-je pas? Elle me jurait qu'elle n'en dirait rien à personne. À chaque fois, alors, je lui tournais le dos pour cacher les larmes qui surgissaient dans mes yeux, et je mettais mes mais devant ma bouche pour ne pas subir la tentation de répondre à son imploration20. (SEEL, 1994, p. 119-120)
Vemos, portanto, que foi muito difícil lidar com essa situação. Levi acrescenta também que os ouvintes, amigos, filhos, leitores ou mesmo estranhos, compreendem (ou pelo menos tentam) a unicidade desse evento monstruoso, segundo suas palavras. “Por isso, estimulam-nos a narrar e nos formulam perguntas, às vezes colocando-nos em embaraço” (LEVI, 2004, p. 128). Sua mãe era uma dessas pessoas, entendia que Seel precisava desabafar, e por isso insistia para que ele falasse. Assim, depois de certo tempo, ele contou a sua mãe tudo que passou, pois ela já estava prestes a morrer e levaria consigo seu segredo. Seel nos conta:
Un soir, alors que je venais d'éteindre la lumière et de lui souhaiter une bonne nuit, elle approcha sa main de mon lit et, glissant ses doigts entre mes draps, elle me pressa l'épaule en disant: “Pierre, dis-moi ce qui s'est passé. Je veux savoir quelles ont été tes souffrances. Tu sais que je n'en ai plus pour longtemps. Pierre, ne garde pas ce secret pour toi tout seul, parle-moi. Dis-moi ce qu'ils t'ont fait.” Je rallumai em silence. Je ne sais plus pourquoi et je ne me rappelle plus quels mots j'utilisai, mas je finis par m'abandonner à la confidence. Ce que je lui dis, c'est ce que l'on a lu ici: mon homosexualité, cette différence si difficile à vivre dans une famille comme la mienne, dans une ville comme Mulhouse. Je lui racontai aussi ma rencontre avec mon ami Jo. Puis j'en vins à mai 1941, ra rafle et les tortures à la Gestapo. Enfin l'assassinat sauvage de mon compagnon, puis ces longs mois d'horreur dans le camp de Schirmeck.21 (SEEL, 1994, p. 120, grifos meus)
Essa foi a única vez que Pierre foi convidado a falar no âmbito familiar. Isso só iria se repetir muito tempo depois, em um contexto não familiar. Assim, em relação aos homossexuais, podemos perceber dois momentos. Um, logo após a guerra, em que eles não eram passíveis de compaixão por parte dos outros, e dessa forma não eram estimulados a narrar suas histórias, inclusive pois o embaraço que menciona Levi, nesse caso, já estava concentrado na questão sexual, no estigma da homossexualidade desses sobreviventes, um assunto tabu e uma diferença ainda condenada por muitos. Em um outro momento, décadas depois, vemos que essa compreensão começou a surgir, porém de maneira ainda muito tímida. Assim, os homossexuais foram estimulados, por outros homossexuais, a narrar, também pela questão do reconhecimento e do resgate dessa memória que esteve ocultada por muitos anos. E foi nesse contexto que Seel foi convidado a falar e passou para esse outro lado. O convite foi feito por Jean-Pierre Joecker, diretor e fundador da revista homossexual francesa Masques.
Seel narra também como foi a sensação de lhe contar:
Pour la première fois depuis plus de trente ans, je me surpris à pouvoir parler, depuis ma mère mourante. Leurs questions relançaient ma mémoire. Je parlais lentement, ayant trop peur de trahir mes souvenir. Pour une chose toutefois, je n'arrivais pas à trouver les mots: mon viol par les nazis au siège de la Gestapo22. (SEEL, 1994, p. 153).
Testemunhar foi algo que lhe fez bem, como afirma:
Je reconnais que tout cela me rassura. Je me sentais soudainement entouré d’un nouveau respect pour mon identité. Et moi-même, je me regardai avec davantage de dignité. Sans doute parce que j’avais désormais un devoir: faire reconnaître la déportation des homosexuels. Pour autant, pouvais-je être confiant en l'avenir? Jusqu’à aujourd'hui en tout cas, dix ans après, je n'ai toujours pas obtenu réparation de l'histoire23” (SEEL, 1994, p. 159).
Houve, portanto, um alívio por ter se livrado desse pesado segredo e uma consequente mudança de percepção em relação a si mesmo. Sobre essa questão, Eribon ressalta:
E o gesto deliberado e libertador pelo qual, um belo dia, alguém decide romper com a obrigação do segredo, o ato pelo qual alguém torna pública sua homossexualidade, marca a recusa de se submeter por mais tempo à violência (interiorizada) exercida pela dicotomia intensamente vivida entre o que pode ser dito em público e o que deve ficar confinado na vida privada ou no íntimo. (ERIBON, 2008, p. 129)
Além disso, o filósofo afirma que a questão de de dizer é central na experiência dos homossexuais e essa possibilidade de falar é primeiramente oferecida pelo encontro com outros homossexuais, como de fato se deu com Seel.
Em todo caso, o que caracteriza o homossexual é que ele é alguém que, um dia ou outro, é confrontado com a decisão de dizer o que ele é, ao passo que um heterossexual não precisa fazer isso, já que presumidamente todos os são. A relação com o “segredo” e com a gestão diferenciada desse “segredo” em situações diferentes é uma das características das vidas homossexuais. (ERIBON, 2008, p. 72).
Em relação a Seel, vemos que esse segredo é ainda mais forte, pois não se trata apenas de dizer que é homossexual, mas de dizer que foi perseguido e deportado por esse motivo. E essa escolha individual de revelar o segredo e se fazer só é tornada possível (com raras exceções) pela existência do contexto social e cultural criado pela “cultura gay” e pela possibilidade de “contra-socialização” que ela instaura, afirma Eribon. “A decisão de não mais se esconder, a escolha de si mesmo abrem para uma nova temporalidade: é todo o futuro que se vê mudado” (Eribon, 2008, p. 134), o que é claramente visível com Seel.
Portanto, poder testemunhar mudou definitivamente a vida de Pierre Seel. Ele pôde, assim, se livrar desse fardo pesado, seu duplo segredo que guardava há décadas, o de sua homossexualidade e de sua deportação. Dessa forma, além de fazer um bem a si mesmo, também contribuiu a esse coletivo homossexual, trazendo a questão da visibilidade, da memória e do reconhecimento desse grupo, que somente foi reconhecido como vítima do nazismo há alguns anos. O governo alemão pediu desculpas em novembro de 2000 pelas deportações e torturas sofridas por eles. (LE BITOUX, p. 151). O estado francês, por sua vez, através do primeiro-ministro Lionel Jospin, reconheceu somente em abril de 2001 as perseguições que os homossexuais enfrentaram durante a Segunda Guerra Mundial. (LE BITOUX, p. 237 e SIBALIS, p. 301)

BIBLIOGRAFIA:

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. São Paulo, Boitempo, 2008.
ERIBON, Didier. Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2008.
LE BITOUX, Jean. Les oubliés de la Mémoire. Paris, Hachette Littératures, 2002.
_____. Citoyen de seconde zone. Trente ans de lutte pour la reconnaissance de l'homosexualité em France (1971-2002) . Paris, Hachette Littératures, 2003.
LEVI, Primo, É isto um homem? Rio de Janeiro, Rocco, 1988.
_____. A trégua. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
_____. Os afogados e os sobreviventes. São Paulo, Paz e Terra, 2004.
POLLAK, Michael. Os Homossexuais e a Aids: sociologia de uma epidemia. São Paulo, Estação Liberdade, 1990.
SEEL, Pierre. Moi, Pierre Seel, déporté homosexuel. Paris, Éditions Calmann-Lévy, 1994.
SIBALIS, Michael. Homophobia, Vichy France, and the "Crime of Homosexuality": The Origins of the Ordinance of 6 August 1942. In: GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies. Volume 8, Número 3, Durham, Duke University Press, 2002, pág. 301-318.


1 Mestrando em Teoria e História Literária. Bolsista CAPES. E-mail: tiagoelidio@gmail.com
2 Holocausto, como afirma Agamben, significa “sacrifício supremo, no marco de uma entrega total a causas sagradas e superiores” (Agamben, 2008, p.39). Desse modo, alguns consideraram o extermínio nazista em relação aos judeus como uma dessas formas de sacrifício do povo judeu, utilizando a palavra com inicial maiúscula. Shoah, por sua vez, significa “'devastação, catástrofe' e, na Bíblia, implica muitas vezes a ideia de uma puniao divina” (Agamben, 2008, p.40). Além disso é uma palavra que vem do hebraico, ou seja, a língua dos judeus, possuindo, assim, um caráter particularista. Portanto, tais termos remetem somente à dimensão judaica, deixando de lado todos os outros perseguidos e mortos. Embora os judeus tenham sido o grupo com o maior número de vítimas, não se deve excluir os outros grupos.
3 Após a Libertação, aliado com os comunistas, o governo provisório de De Gaulle criou uma comissão jurídica encarregada de examinar, para fazer desaparecer, todo o aparelho judiciário da Ocupação. Esse comitê anula os numerosos decretos e leis antissemitas. Mas ninguém proporia a anulação de uma lei perfeitamente homofóbica imaginada por Darlan e promulgada por Pétain. (tradução minha)
4 O medo de uma guerra civil no terrirório nacional pôde conduzir os parlamentários a querer lutar contra todos os “inimigos do interior”, incluídos aqueles que, como os homossexuais, debilitavam o corpo social por seu comportamento desviante. (tradução minha)
5 Assim, esquartejados entre discriminação penal, discriminação civil e discriminação de liberdade de expressão, os homossexuais franceses do pós-guerra não aparecem como cidadãos de segunda zona? (tradução minha)
6 Na Alemanha, a revogação das leis contra os homossexuais se deu um pouco mais cedo. O Parágrafo 175 continuou em vigor no lado oriental até 1967, e, no lado ocidental, até 1969. (LE BITOUX, 2002, p. 146). Na França, a legislatura 1981-1986 adotou outras importantes medidas contra a discriminação enfrentada pelos homossexuais. Em 1981, por exemplo, o Ministro da Saúde deixou de adotar a classificação da OMS (Organização Mundial de Saúde) que considerava a homossexualidade como uma doença mental. E, em 1985, a lei de discriminações também começou a levar em consideração a orientação sexual. (LE BITOUX, 2003, p. 301-303)
7 Eu, ao ouvir o discurso desse bispo da minha terra natal, me dirigi à minha cama. Assustado, aterrotizado, indignado. Os homossexuais, doentes? Eu tinha que reagir. A cólera me submergia. Era preciso acabar para sempre com tais discursos. E para isso, testemunhar, dizer tudo, exigir reabilitação do meu passado, desse passado que é também o de muitos outros, esquecidos, ocultos nas horas negras da Europa. Testemunhar para proteger o futuro, testemunhar para acabar com a amnésia dos meus contemporâneos. Romper de uma vez por todas meu anonimato: fazer uma carta aberta ao monsenhor Elchinger. (tradução e grifos meus)
8 Os acampamentos eram constituídos por redes segundo afinidades diversas, políticas, às vezes, o que diminuía um pouco o isolamento e a dureza do cotidiano. Eu não fazia parte de nenhuma dessas redes de solidariedade. Com minha faixa azul, rapidamente compreendida por meus companheiros de infortúnio, eu tinha consciência de que eu não tinha nada a esperar deles: o delito sexual é uma carga adicional na identidade carcerária. Eu pude verificar isso mais tarde, quando passei um tempo visitando uma prisão em Rouen. No universo dos detentos, eu era um elemento completamente desprezível, uma minúcia ameaçada de ser sacrificada a todo o momento, sem alma, segundo as exigências aleatórias dos nossos carcerários. (tradução e grifos meus)
9 Eles não eram ligados nem por uma prática religiosa, nem por uma convicção política, e não tinham a mesma origem social ou nacional. O estigma racista não era uma particularidade, e a exposição ao risco de extermínio bloqueava qualquer possibilidade de desenvolver uma consciência de grupo coerente. (tradução minha)
10 Estando entre os mais jovens do campo, eu temia que a atenção se focalizasse em mim. Por isso, entre as pausas do trabalho, eu me esforçava para não falar com ninguém e me fechava numa solidão desesperada pela qual não passava nenhum desejo sexual. A própria ideia de desejo não tinha lugar nenhum nesse espaço. Um fantasma não possui nem fantasia, nem sexualidade. (tradução e grifos meus)
11 Um dia, infelizmente, como era de se esperar, eu me deparei com um combatente no desvio de um caminho íngreme. Estávamos muito perto para um atirar no outro. Com a culatra de seu fuzil, ele me destroçou a mandíbula. Mas eu não perdi a consciência, e consegui contra-atacar. Nesse corpo a corpo fatídico, só podia ser ele ou eu. Dado que continuo vivo, pode-se adivinhar o resultado do combate. Os nazistas nos haviam ensinado a matar, depois obrigado a matar: eles haviam feito de nós assassinos. (tradução minha)
12 Os rumores de batidas policiais de homossexuais deviam ter circulado a cidade. E desde que eu a havia deixado, minha família havia se informado de que eu era um "Schweinhund". Católicos e preocupados com sua boa reputação, como meus pais iriam reagir? Iriam eles me acolher ou não? E como? Mas o que lhes explicar, como me explicar, já que eu estava obrigado a fazer silêncio? Eu me dizia que provavelmente a família toda se alinharia com a atitude de meu pai. (tradução minha)
13 Minha família estava jantando. Meu pai se levantou da mesa. Enquanto eu avançava, ele tirou seu relógio de ouro do bolso do seu colete e o estendeu a mim dizendo: "Aqui está, meu filho, meu presente de boas-vindas. Tome um lugar entre nós. Não falemos nada mais. E depois você irá descansar." A governanta acrescentou um assento e um talher. Eu pude me sentar entre os meus. A refeição se seguiu em silêncio. Do outro lado da mesa, eu percebi minha mãe que procurava conter suas lágrimas. Ninguém rompeu o silêncio. (tradução e grifos meus)
14 Nós estávamos em 6 de novembro de 1941. Um duplo segredo acabava de se selar de uma só vez: o do horror nazista e o da vergonha de minha homossexualidade. De vez em quando, um olhar caía sobre mim, cheio de interrogações sobre meu aspecto famélico. Em que eu havia me transformado em seis meses? Eu era, portanto, homossexual? Que me haviam feito passar os nazistas? Por que haviam me libertado? Essas questões naturais, ninguém as colocava. Mas se alguém tivesse feito, eu não teria respondido: eu estava preso ao meu duplo segredo. E a esses olhares silenciosos, eu levei quarenta anos para responder. (tradução e grifos meus)
15 O pacto de silêncio imposto pelo meu pai na volta do campo de Schirmeck, em relação à minha homossexualidade, continuava a ser lei na minha família: nenhuma confidência da minha parte, nenhuma pergunta da deles. Nós todos fazíamos como se nada tivesse acontecido. Mas minha etiqueta de homossexual girava em torno da minha família. Na casa dos mais raivosos ou dos mais sensíveis à imagem pública, minha "reintegração" familiar incomodava. (tradução minha)
16 Os grandes burgueses homossexuais da minha cidade haviam todos voltado. Eles pareciam não ter tido nenhum sofrimento durante a Ocupação. Eles não falavam de nada, não faziam nenhuma declaração. Nenhuma discussão pública sobre o que havia se passado com os homossexuais acontecia. Nada vinha socorrer meu mutismo. (tradução e grifo meu)
17 Eu estava indignado, pois se eles talvez não tivessem sido submetidos à tortura, eles deviam ter constatado o desaparecimento de alguns de seus conhecidos. Eles talvez não tivessem vivido entre as cercas de um campo, mas eles deviam ter ouvido falar das batidas policiais contra os homossexuais na Alsácia. Eles talvez não tivessem sido obrigados a assistir ao massacre de seu amigo, mas eles deviam saber ao menos que os homossexuais, sob esse solo anexado por quatro anos, haviam sido indesejáveis e que eles haviam sido torturados, expulsos e alguns assassinados. Os arquivos de polícia colocados em dia ano após ano antes da chegada dos nazistas, com a ajuda da delação durante a ocupação, haviam, no entanto, feito seu trabalho com centenas de nós. (tradução minha)
18 Tendo conhecimento da existência dessa lei, eu compreendi também que ao falar, eu corria o risco de ser ameaçado do lado dos tribunais, e acusado de fazer apologia de uma sexualidade "contra-natureza". Essa disposição judicial explicava talvez o silêncio dos burgueses homossexuais de Mulhouse. Mas seu silêncio não parecia da mesma natureza que o meu. Eu lhes debandei, portanto. Quanto a frequentar as praças, isso havia se tornado muito perigosos, pois as violências noturnas haviam se multiplicado. De onde podia vir esse novo ódio aos homossexuais? Talvez do lado daqueles que ficaram furiosos com a vitória dos Aliados. Com a ajuda da cerveja, rastreavam Mulhouse em plena noite, cruzando sem dificuldade, como baderneiros e vigaristas, com vítimas idôneas. Eu me isolei, portanto. (tradução minha)
19 Eu já comecei a censurar minhas lembranças e percebi que, apesar das minhas expectativas, apesar de tudo que eu havia imaginado, da emoção do retorno tão esperado, a verdadeira Libertação era para os outros. (tradução e grifo meu)
20 Minha mãe foi a única da minha família a tentar, em várias ocasiões, que eu fizesse confidências para quebrar meu silêncio e aliviar minha tristeza. Que me haviam feito em Schirmeck para que eu voltasse tão machucado, tão taciturno, tão mudado? Parecia que eu me arrastava sem vontade de encontrar gosto pela vida. Por que eu não lhe falava? Ela me jurava que ela não diria nada a ninguém. Toda vez, então, eu lhe dava às costas para esconder as lágrimas que surgiam nos meus olhos, e colocava as mãos diante da boca para não sofrer a tentação de responder sua imploração. (tradução minha)
21 Uma noite, logo que apaguei a luz e lhe desejei boa noite, ela aproximou sua mão da minha cama e, deslizando seus dedos entre meus lençóis, ela apertou meu ombro dizendo: "Pierre, diga-me o que aconteceu. Eu quero saber quais foram seus sofrimentos. Você sabe que eu não estarei aqui por muito tempo. Pierre, não guarde esse segredo para si, fale comigo. Diga-me o que eles te fizeram." Eu acendi a luz em silêncio. Eu não sei mais porque e não lembro mais quais palavras eu utilizei, mas eu acabei me abandonando à confidência. O que eu lhe disse é o que se leu aqui: minha homossexualidade, essa diferença tão difícil de viver em uma família como a minha, em uma cidade como Mulhouse. Eu lhe contei também meu encontro com meu amigo Jo. Depois, sobre maio de 1941, a batidas policiais e as torturas na Gestapo. Enfim, o assassinato selvagem de meu companheiro, seguido desses longos meses de horror no campo de Schirmeck. (tradução e grifos meus)
22 Pela primeira vez após quase trinta anos, desde que minha mãe morreu, eu me surpreendi por poder falar. Suas perguntas reavivaram minha memória. Eu falava lentamente, com muito medo de trair minhas lembranças. Para uma coisa, no entanto, eu não consegui encontrar palavras: meu estupro pelos nazistas na sede da Gestapo. (tradução minha)
23 Eu reconheço que tudo isso me tranquilizou. Eu me senti subitamente rodeado de um novo respeito pela minha identidade. E eu mesmo me olhei com mais dignidade. Sem dúvida porque eu tinha desse momento em diante um dever: fazer reconhecer a deportação dos homossexuais. No entanto, eu podia confiar no futuro? Até hoje, em todo caso, dez anos depois, eu ainda não obtive reparação da história. (tradução minha)
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