Convém
traçar uma diferença básica entre a Arte e a Ciência. Convencionalmente,
enquanto essa última está preocupada em encontrar soluções imediatas
para os problemas que surgem no seio da sociedade, aquela, em inúmeros
casos, propõe-se a demonstrar as falhas humanas com um intuito marcado:
advertir os homens dos perigos sociais para que eles se armem contra
tais ameaças.
Os
estudos contidos na presente Revista Eletrônica não visam a um fim prático
imediato; ao contrário, eles se propõem a esclarecer, embora modestamente,
alguns pontos de vista críticos ou mesmo conservadores que ainda perpassam
na consciência social. Seu objetivo, portanto, é chamar a atenção para
certas inconsistências e desajustes que os homens, na sociedade contemporânea,
carregam.
Esta
Revista foi organizada por membros do Grupo de Pesquisa Literatura e
Autoritarismo e apresenta inúmeros tópicos de abordagem condizentes
ao núcleo temático apregoado pelo Projeto. Este número conta com artigos
de oito colaboradores cujos interesses radicam em torno da denúncia
de um sistema social marcado por práticas ou ideologias autoritárias.
A
Revista inicia com um artigo de autoria de Amarildo Luiz Trevisan. Nele,
o autor propõe-se a investigar os impactos gerados pela concepção unidimensional
da racionalidade na formação cultural (Bildung) e suas perspectivas
de reversão, analisando o ponto de vista de Theodor Adorno, segundo
o qual o poder de sensibilização humana se daria pelas imagens estéticas.
Com isso, o autor – através de uma análise realizada a partir de uma
leitura semiótica e hermenêutica de imagens que enfatizam o sentido
expressivo do conceito de formação cultural nos fundamentos da Educação
– aposta nas Ciências Sociais, nas Artes e nas Letras, para se produzirem
conhecimentos que resultem na formação de agentes produtores e socializadores
de capital cultural. Do seu ponto de vista, isso propiciaria um sistema
menos desumano e cruel.
A
aludida idéia de que a formação cultural está impregnada por elementos
ideológicos autoritários fica reforçada no artigo de Juliana Beatriz
Klein. Segundo ela, é a cultura de determinada comunidade e a disseminação
dessa cultura que promovem e privilegiam atitudes fascistas. A arte,
frente a esse imperativo, deveria promover a reflexão dessas formações
culturais em cujo alicerce estão presentes elementos autoritários. A
autora elege uma canção de Renato Russo para, dentre outros aspectos,
manifestar o caráter crítico e de denúncia aí veiculado.
Segue-se
a esse trabalho, o artigo de João Luis Pereira Ourique. Através da análise
do filme Mera coincidência, o autor pretende demonstrar a manipulação
que a mídia sofre e de que faz uso para atender aos pressupostos ideológicos
elaborados pela elite dominante. Em seus apontamentos, João Luis procura
defender a hipótese de que tal manipulação é determinante nas formas
de controle e organização social, convergindo, assim, para experiências
limites associadas ao autoritarismo.
O
artigo de Joselaine Brondani Medeiros volta a sua atenção para a obra
Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, publicada em 1953,
depois dos acontecimentos da ditadura do Estado Novo (1937-1945). A
sua leitura centra-se, dentre outros aspectos, nas formas de violência
sofrida pelos presos políticos, ou seja, aqueles sujeitos considerados
subversivos ao sistema autoritário, para, com isso, revisar o conceito
de história tradicional. Através da análise do romance, a autora procura
enfatizar a necessidade de se formular um novo conceito de história,
que se pauta não nos grandes feitos da humanidade, mas na exclusão social,
na violência e nas inúmeras formas de discriminação.
Na
mesma linha argumentativa, está o artigo de Luziane Boemo Mozzaquatro.
Ela analisa os contos Os sobreviventes e Eu, tu, ele,
ambos extraídos do livro Morangos mofados, de Caio Fernando Abreu.
Tematizando acerca das relações dos indivíduos com os acontecimentos
ocorridos na Ditadura Militar brasileira, os textos buscam elaborar
temática e formalmente aspectos vinculados ao autoritarismo vivido na
época. Assim, marcas de opressão coletiva, torturas e massacres filiam-se
a uma forma de composição estética fragmentada e desestruturada. Tudo
isso sugeriria a representação do estado psicológico dos sujeitos sociais.
Uma
abordagem semelhante é desenvolvida por Maria Isabel Londero. O seu
artigo discute os entrelaçamentos não somente entre texto literário
e contexto social, mas também os vínculos existentes entre o tema da
obra artística e a sua forma de estruturação. Tomando como referência
o romance Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva, que narra
a imersão do narrador-protagonista no contexto violento e opressor dos
anos 1970 e 1980, a autora tenta defender a idéia de que o estilo fragmentário
de composição, dosado com um conteúdo crítico, visa a resistir às acomodações
em lógica linear causal ou a esquemas positivistas, propondo, assim,
uma representação da história enquanto uma sucessão de catástrofes e
ruínas.
Vera
Lúcia Lenz Vianna e Lizandro Carlos Calegari dedicam seus artigos à
produção de Clarice Lispector. A primeira, com base no romance Perto
do coração selvagem, acompanha a trajetória de vida da personagem
Joana, com o intuito de enfatizar a premissa de que o corpo é um meio
onde se processam saberes. Com isso, segundo a autora, ter-se-ia a subversão
da idéia de que os paradigmas tradicionais sobre a aquisição de conhecimento
estariam sustentados na e pela razão. Assim, conforme Vera Lúcia, “isso
implica, necessariamente, assinalar questões relativas à produção de
sentido e às relações de poder e dominação que marcam tanto os limites
como as posições dos sujeitos na conjuntura social”. O segundo – através
da análise do conto Amor, da obra Laços de família –
pretende demonstrar que a humilhação, a inferioridade, a marginalização
e a violência enfrentadas pelas mulheres na sociedade brasileira estão
associadas à ideologia patriarcalista autoritária que permeia as relações
sociais.
Gostaríamos
de agradecer a contribuição de todos pela disponibilização dos presentes
artigos, o que veio a enriquecer as possibilidades de debates a respeito
de tópicos que necessitam de atenção e constante revisão.
Com
isso, portanto, a Revista, mais uma vez, é um esforço no sentido de
reunir trabalhos que buscam aumentar as condições para reflexão acerca
do impacto do autoritarismo na produção cultural e, particularmente,
no âmbito da Literatura.