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ADORNO E A UTOPIA NEGATIVA DA FORMAÇÃO CULTURAL

Amarildo Luiz Trevisan [1]

Considerações introdutórias

As produções filosóficas recentes sobre o tema da formação cultural (Bildung) falam de um esgotamento do sentido do conceito como reflexo da evolução do capitalismo em sua última etapa. A crise da noção moderna de formação aponta, inclusive, para a incapacidade de se eleger, no tempo presente, alguns critérios que apresentem fundamentos seguros para os procedimentos no campo educativo. O cientificismo colocou na defensiva toda a força contida na tradição cultural, pondo em crise as noções de educação vinculadas ao humanismo, abrindo uma ampla frente para a prevalência dos interesses puramente técnico-científicos no campo da Pedagogia e das licenciaturas.

Para retirar o tema do aprisionamento teórico a que ficou submetido, pretendo, neste artigo, utilizar algumas contribuições da semiótica, através da definição de imagem (da formação cultural) aliada à noção de signo, e da hermenêutica, enfatizando a historicidade da compreensão. Na medida em que a semiótica permite a leitura da imagem como entidade independente do próprio referente, pode então ser estabelecida uma outra configuração da discussão sobre o tema da formação cultural. A nova moldura dada ao problema possibilita uma continuidade da conversação sobre o assunto no campo da educação, porém não mais, é claro, nas mesmas condições propostas originalmente pelo iluminismo. No dizer de Marramao, "o problema então está em captar as razões da exclusão entre a riqueza dos acontecimentos e a angústia e a pobreza de nossa experiência, encontrar a raiz da estreiteza de nossas possibilidades de transformar em evento aquilo que é mero acontecimento" (1995, p. 175).

Em face das dificuldades do estabelecimento de critérios seguros para a correta identificação de um produto cultural autêntico no campo discursivo da Pedagogia, proponho o resgate de potenciais depositados na instância expressiva do conceito de formação cultural nos fundamentos da educação. Esta idéia encontra apoio no projeto de Jürgen Habermas, que iniciou um processo de atualização das discussões da teoria da Escola de Frankfurt de acordo com as novas descobertas dos campos da filosofia da linguagem e da hermenêutica. Acredito que seja possível assim auxiliar a concretização do objetivo maior da teoria da ação comunicativa, que visa a desreprimir as energias semânticas investidas historicamente no discurso da modernidade, mas que necessita de complementações principalmente no âmbito da estética. Deste modo, através da instância expressiva da racionalidade que se faz presente na linguagem, abrem-se novas possibilidades para repensar a necessidade do surgimento de novos critérios de avaliação da prática pedagógica.

Testemunhos da crise do conceito de formação

No mundo da cultura hodierna, existe uma séria dificuldade para buscar a reversão dos efeitos ou impactos gerados pela concepção unidimensional e autoritária da racionalidade no conceito de formação cultural. Para se ter uma idéia mais precisa, Lyotard (1988) chega a argumentar a esse respeito que a transmissão do conhecimento na era pós-moderna, facilitada pelos mecanismos tecnológicos que propiciam a criação e transmissão de dados de forma virtual e instantânea, não necessita mais de uma preparação ou cultivo do "espírito" para prover a veiculação e o recebimento das informações. A formação passa a ser algo obsoleto neste contexto, e é por isso que a crítica desconstrutiva ao conceito, efetuada pelo pós-modernismo, enquadrou o discurso da formação na categoria de metarrelato, ou seja, como uma instância metafísica que ficou pairando alheia às contingências da cultura dominada pela revolução tecno-científica midiática [2] .

Adorno também denuncia a impossibilidade da formação cultural na contemporaneidade, mas por motivos diversos de Lyotard. Seu ponto de partida é semelhante na medida em que ele desconfia de todas as grandes sínteses teóricas – que Lyotard chama de metarrelato – uma vez que elas incorrem no terrorismo do conceito. Devido à paralisação da dialética do Iluminismo no momento da exteriorização do espírito, a totalidade que constrange a particularidade emerge como uma falsa síntese teórica, dando origem à mentalidade responsável pelos campos de concentração da segunda guerra. Pode-se deduzir que pelo seu poder de coerção homogênea do particular ou das identidades plurais, o dado conceitual funciona, comparativamente, como um mini-campo de concentração nazi-fascista arraigado no âmbito da linguagem. O próprio conceito de formação também não é livre desse questionamento, e nem pode ser contraposto como antítese aos totalitarismos de mercado, porque também acabou se curvando aos seus ditames. Em conseqüência, se o conceito é incapaz de veicular uma contra-ofensiva a este estado de coisas, Adorno acaba abrindo mão da dimensão comunicativa da linguagem para buscar exílio nas experiências da arte e da alta cultura. Daí a importância conferida à mímesis como um portal capaz de transformar o real em imaginário estético. A linguagem, para ele, assim como fora para seu grande inspirador Paul Celan e ainda para Kafka, revela-se impotente ou incapaz de manifestar o caráter traumático de certas experiências históricas, como as memórias dos campos de concentração. Em face do caráter reificado da comunicação, há um impedimento da tradução de experiências limites para o plano lingüístico, portanto.

Para Jamenson, “[e]m Adorno, a tirania do conceito, a abstração, a ‘identidade’ podem ser vencidas de várias maneiras, entre as quais a proposta de uma ‘dialética negativa’ funciona como algo semelhante a uma codificação e a um programa estratégico global" (2000, p. 241). Entre as diversas estratégias utilizadas para desconstruir o impacto do autoritarismo do conceito sobre a diversidade do real, na Teoria estética Adorno aposta no poder de sensibilização das imagens estéticas. Apenas a arte é capaz de aludir ao inominado, porque usa o recurso metafórico. Adorno apela então para as contribuições da estética, pois estas não reduzem à esfera de competência da linguagem, uma vez que elas se manifestam no mutismo das obras de artes plásticas por exemplo. Também a literatura é tributária do esforço de revelar aquilo que não pode ser nomeado, ou seja, o irrepresentável e o indizível, como bem ilustra Celan na negatividade contida em seus poemas. Kafka denuncia em várias obras os estreitamentos do sistema que leva os indivíduos a viver situações paradoxais e absurdas no interior de um universo que se pretende racional. Em A metamorfose, o personagem principal manifesta em si próprio o resultado das experiências de apropriação subjetiva de sua vivência familiar e cultural que, realizada de forma solitária, o transforma em um enorme inseto. O ser esquisito ou estranho tem a ver com a idéia do não reconhecimento do eu, devido à degradação de sua condição humana. É a idéia de catástrofe voltando com força pela mão de um literato, questionando a cultura como algo afastado da vida, dado que a sua transformação em uma barata se deu no ambiente fechado de seu quarto. “A técnica literária de Kafka se apega, por associação, às palavras, da mesma forma como a técnica proustiana da lembrança involuntária se apega às sensações, mas com o resultado oposto: em vez da rememoração do humano, há a prova exemplar da desumanização. A sua pressão obriga os sujeitos a uma espécie de regressão biológica, preparando o caminho para as parábolas animais de Kafka. Em sua obra tudo se dirige a um instante crucial, onde os homens tomam consciência de que não são eles mesmos, são coisas”. (Adorno, 1998, p. 251).

Porém, Habermas procura mostrar, em algumas obras (1980, p. 147 e 1987a, p. 487 ss.), que a iniciativa adorniana – de repensar a compulsão do conceito a partir do poder de sensibilização humana pela força das imagens estéticas – acaba sendo uma tentativa paradoxal. Como é sabido, Habermas busca apoio para a teoria da ação comunicativa no campo performativo da linguagem, por isso ele se refere à necessidade de toda argumentação, para ser bem sucedida, não ferir as "condições ideais de fala", guardar "pretensões de veracidade", que são termos derivados do mesmo campo, sob pena de incorrer em auto-contradição performativa. Segundo sua análise, a compreensão da linguagem em Adorno está presa à racionalidade meio e fim, originada pelo paradigma da consciência ou da dominação, e por isso ela não consegue traduzir adequadamente para o mundo da vida as experiências de origem traumáticas. A situação aporética se revela justamente na dificuldade de assimilar a dor causadora do trauma que inviabiliza a normalidade da representação, como um fim a ser atingido através dos mecanismos ou dos meios oferecidos pela linguagem. Assim, a impossibilidade da assimilação do trauma nega a volta do espírito a si mesmo, alienado no momento da exteriorização, impedindo a realização do giro fenomenológico da consciência – o vôo absoluto do pássaro de Minerva – que caracterizaria o ideal da formação cultural para Hegel. Adorno percebe que a transmissão do sofrimento através da linguagem corrente não é possível, porque a linguagem também é um elemento da alçada instrumental da racionalidade. Ele prefere pensar então na hipótese de validar uma utopia negativa da formação cultural, expressa na referência à imagem dos campos de concentração de Auschwitz, em que a presença da imagem destrói a coerção exercida pelo conceito. Se valer este ponto de vista, residiria, na reflexão proposta por Adorno, uma tensão auto-contraditória justamente na dimensão performativa da linguagem. A inviabilidade de seu argumento estaria na recorrência em afirmar algo (pelo uso da linguagem) que nega a própria mensagem do que está sendo veiculado. A situação aporética fica bem evidenciada no seu veredito de que após Auschwitz é impossível escreve um poema. Como foi expresso anteriormente, há uma crença na arte por um lado como a saída para um mundo conceitual administrado, enquanto que, por outro lado, nega-se essa mesma afirmação (da arte) como local de sua realização efetiva.

É neste ponto que Habermas passa a refletir sobre o legado da teoria crítica perspeccionado por Adorno, propondo extrair de sua reflexão as motivações teóricas aludidas em certos conceitos de índole estética. Ao que consta, porém, Habermas não levou adiante esta discussão, mantendo as reflexões sobre a estética na teoria da ação comunicativa ainda em aberto para o seu ulterior desenvolvimento. O aspecto de incompletude num dos pontos vitais de apoio do tripé de sua teoria, que é o domínio da arte, lhe valeu inclusive a acusação de manter a presença do espectro de atuação do cientificismo em sua teoria [3] . Esta acusação é formulada por Albrecht Wellmer, um dos alunos diretos de Habermas, por discordar justamente de sua interpretação das teses de Adorno sobre a estética. Afinal, Adorno procura um ponto de apoio na instância da arte, como uma mímesis espiritualizada, porque trabalha com a hipótese de que é possível ampliar a concepção (de racionalidade) para algo mais complexo do que a racionalidade meios e fins. (Lara, 1994, p. 9). Wellmer passa a defender então, neste sentido, "uma redimensionalização do papel da estética como forma de racionalidade" (Id. Ibid., p. 10), que vai desembocar na correção das posições tanto de Adorno quanto de Habermas. Neste sentido, "é possível vislumbrar uma concepção de racionalidade que se separa completamente dos lastros da instrumentalização da razão", pois Wellmer "concebe um modelo de racionalidades em que não permanecem os vestígios da filosofia da consciência (Adorno), nem de conceitualizações cientificistas acerca da racionalidade comunicativa (Habermas)" (Id. Ibid., p. 11). A teoria habermasiana teria recaído, neste sentido, em sua própria armadilha, porque tenta combater a hegemonia do plano cognitivo-instrumental da racionalidade absolutizando a reflexão sobre o complexo do saber vinculado à discussão da ética. Deste modo, fica evidenciado que falta haver ainda realmente um desdobramento do debate para o campo estético-expressivo. Essa incompletude da teoria deixa inclusive uma zona sombria ou não esclarecida, que serve também de mote para as reivindicações do pós-modernismo. Em geral, para o pós-modernismo, a arte é uma determinada experiência humana refugiada no âmbito da subjetividade, do desvario, do louco e do corpóreo, que representaria uma fuga não apenas dos enquadramentos lingüísticos, mas também do paradigma dominante da modernidade centrado na objetividade metódica.

Resgate dos potenciais da formação para o mundo da vida

A expectativa crítica depositada por Adorno no sentido expressivo do conceito de formação cultural, utilizado como âncora do conhecimento para não sucumbir aos apelos do mundo administrado, propõe uma retomada do programa iluminista com o intuito de averiguar o porquê o conceito não produziu a consciência crítica e transformadora esperada nas massas. Mas como já foi afirmado, não somente esta pretensão é contraditória, mas também a passagem da discussão de Adorno para Habermas, no interior da Escola de Frankfurt, é bastante problemática, porque a discussão não está ainda suficientemente equacionada, merecendo aprofundamentos teóricos adicionais. Trata-se então de discutir um programa de pesquisa concentrado nos fundamentos da teoria da ação comunicativa, especialmente no que concerne à discussão do âmbito da estética. O problema é como enquadrar neste mesmo espectro a discussão sobre o trânsito na linguagem das imagens produzidas pela arte, que essencialmente é mímesis da realidade, ficção, mentira e, portanto, uma instância não performática por excelência.

De fato, depois da crítica de Adorno e Lyotard, mas também Nietzsche e Gadamer, o pássaro de Minerva não pode mais lançar as suas asas em direção ao infinito impunemente, para dizer o que pode ser considerado ou não um produto cultural autêntico. Na tentativa habermasiana de levar adiante o plano de reformulação da razão moderna, através da tarefa de reconstrução do projeto da modernidade, é fundamental fazer a esfera da arte e da estética falar, com vistas à viabilização de sua efetiva participação na comunidade de diálogo. Habermas crê na realização de um projeto interdisciplinar com a aposta no diálogo terapêutico e num pensar complexo, que defenda a pluralidade de vozes da razão e não a sua unidimensionalidade, como uma instância que democratiza a convivência entre as diferentes esferas constitutivas da racionalidade. Ao se pronunciar, a racionalidade estética pode colaborar terapeuticamente para desreprimir as outras esferas, abrindo os olhos da razão científica para a sua unidimensionalidade, que se expressa no cientificismo.

Um dos caminhos produtivos que se apresenta para viabilizar a inclusão das possibilidades da estética no âmbito de ação da racionalidade comunicativa se cumpre através de uma nova forma de investigação da noção de imagem no campo do saber educativo. Pois, se a obra de arte deve sair do silêncio e falar, ainda assim, tanto para compreender o conteúdo do que está sendo expresso, quanto para facilitar o entendimento do está sendo dito, é necessário que a linguagem, para ser efetivamente compreendida, deva ser interpretada. Sem dúvida é necessário o auxílio dos instrumentais reflexivos da semiótica e da hermenêutica para desobstruir a discussão da formação cultural das aporias a que foi submetida, levando a termo o projeto esboçado na teoria da ação comunicativa.

Notas para uma leitura de imagens da formação cultural

O ato de pensar a imagem somente como representação de objetos pode levar a reflexão a recair numa concepção que vulgariza a mimética do signo imagético. Existe, entretanto, uma forma diferente de caracterizar a noção de imagem sugerida pela semiótica do conceito de signo: “[u]m signo representa, mas é, também ele, um objeto (essa é uma implicação direta do processo da semiose). Dito de outra maneira, um signo é uma entidade, um isso e, portanto, uma id-entidade. Ao se mostrar, o signo tanto pode exibir seu objeto (e, assim, ser ícone) ou exibir-se a si mesmo, obscurecendo seu objeto (mostrando-se, neste caso, como um qualissigno)" (Pinto, 1995, p. 26, grifos do autor). A produção de imagens, nesta acepção, incorpora a noção de signo não como algo que reproduz ou promove a clonagem do estabelecido simplesmente e sim como uma instância capaz de produzir realidade e, neste sentido, de exibir a si próprio.

Um exemplo advindo das tradições clássicas que pode ser enquadrado perfeitamente nesta definição (de imagem como signo) é a concepção de sombras ou imagens apresentada no relato feito por Platão, na República. Neste relato, as imagens se projetam nas paredes para um grupo de pessoas que nunca entraram em contato com a luz, uma vez que estiveram amarradas com a visão voltada ao fundo de uma caverna. A estória fala metaforicamente da necessidade que toda pessoa tem de saber como efetuar a distinção entre aparência e realidade, certo e errado, fantasia e ilusão do mundo concreto, o falso do verdadeiro, o ser e o não-ser. Trata-se de um texto que disserta sobre as possibilidades do conhecimento e como podemos nos enganar na busca da verdade.

A semiótica procura combater a idéia de um esquema platônico rígido que separa hierarquicamente luz e sombra, original e cópia, objeto e imagem, referente e signo. Esta relação binária, que supõe uma interdependência recíproca entre dualismos, nega a autonomia do signo e a possibilidade dele exibir-se a si próprio, enquanto uma imagem que pode operar sem a conotação que o identifica como um reflexo ou degradação de algo situado em nível mais profundo. As sombras ou imagens projetadas no fundo da caverna não podem ser apreciadas apenas como formas enganadoras do real, como fez a tradição neoplatônica agostiniana, mas elas também podem ensinar a pensar e descobrir novas verdades. Tanto isso procede que certo dia um dos prisioneiros se libertou das correntes, justamente porque acabou percebendo a ambigüidade do significado das imagens que via desde a mais tenra idade.

Adorno promove uma crítica à indústria cultural, pois esta difunde uma concepção de imagem que reproduz massivamente o campo estético-expressivo até lhe retirar a potencialidade crítica e criativa. Porém, a semiótica da imagem como signo permite distender o problema da relação entre arte, de um lado, e não arte ou artifício criado pela indústria cultural, por outro. Esta é uma anotação importante a ser formulada dado que, se as imagens da formação cultural se reduzem à veiculação ou aplicação de algo pré-estabelecido, então elas passam a operar com uma concepção empobrecida de signo, que vulgariza a noção de mímesis como sinônimo de imitação, recaindo desta forma numa concepção de signo baseada na "estética do realismo". (cf. Pinto, 1995, p. 26). Este é um problema sério para a tese da estética de Adorno baseada no paradigma da representação. Neste sentido, é lógico ele concluir pela impossibilidade da formação cultural em um contexto dominado pela cultura do espetáculo, que vulgariza a imagem estética da obra de arte. Esta cultura pressupõe, certamente, a impossibilidade de se trabalhar com a idéia de modelos ou referentes sólidos, mas com imagens, silhuetas ou simulacros de um real situado de forma distante do alcance de um possível espectador.

Aspectos conclusivos

A proposição de Habermas, que tem como objetivo fazer com que o conteúdo emudecido da obra de arte venha a falar, não abrindo mão do caráter comunicativo da linguagem estética, se confronta com o silêncio das experiências que se expressam em nível monológico. Fiel à virada lingüística, ele compreende, como Wittgenstein, a impossibilidade da linguagem privada, concentrada apenas no monólogo da consciência consigo própria, ou seja, de uma consciência que se pensa escrupulosamente a si mesma em nível transcendental. A força ilocucionária do ato de fala guarda pretensões de veracidade que só podem se manifestar como um compromisso no uso público da razão. Por isso, o tema da formação cultural deve sair da esfera de influência que o prende ao paradigma da consciência e adentrar no universo de compreensão do paradigma da intersubjetividade. Essa situação remete não apenas à tradição kantiana do "uso público da razão", mas também remete à dialética hegeliana do senhor e do escravo, em que o processo de formação é resultado da interação de uma consciência com outras consciências. Por esse caminho, se entende a formulação de Hegel como "precursora da noção de intersubjetividade" (Marcondes, 1994, p. 25).

Uma leitura semiótica e hermenêutica de imagens da formação cultural possibilita entender melhor o trânsito reflexivo de tratamento do tema de um paradigma a outro. As imagens produzidas no âmbito estético da linguagem servem para desvelar estruturas hermenêuticas da comunicação, que podem iluminar, abrir os olhos da razão, das expectativas cognitivas e éticas. Essa iniciativa se constitui numa espécie de opção por um "caminho metafórico de análise", que opera por homologia, para desvendar estruturas aparentemente similares entre discursos distanciados no tempo. A pretensão da análise é revelar os canais de comunicação possível através do resgate de instâncias esquecidas pelos discursos da racionalidade iluminista no campo pedagógico.

Apesar do distanciamento histórico, de um ponto de vista estético e analógico, que trabalha no nível das semelhanças e do parecido, as sombras da caverna guardam uma certa analogia com as imagens produzidas pela indústria cultural, assim como a verdadeira realidade, que se encontra fora do mundo da caverna, tem relação metafórica com o mundo da arte e da alta cultura. No momento em que o signo imagístico exibe a si mesmo, ocultando o objeto primeiro ou referente, ele acaba se tornando um segundo objeto. Com isto, já não é mais possível avaliar o signo a partir da estrutura do primeiro objeto, tornando-se a partir deste momento um objeto independente e com vida própria. Essa autonomia do reino das sombras ou do universo imagístico produzido pela indústria cultural exige uma crítica fora do paradigma representacionista, portanto, que a teoria do agir comunicacional, fortalecida por uma hermenêutica e uma semiótica das imagens, está em melhores condições de realizar.

A formação cultural, posta neste outro paradigma de entendimento, não se reduz simplesmente a uma apropriação subjetiva de conteúdos culturais realizada por indivíduos no âmbito da esfera privada, e sim torna-se algo mais complexo, que se assemelha a um processo interativo de formação da vontade coletiva ou mesmo da opinião pública. Essa idéia é claramente expressa por Apel, quando fala "do postulado de realização da comunidade ideal de comunicação" através da necessidade "de uma reconstrução empírica e normativa da situação histórica, e com isso da "formação" (Bildung) da opinião pública." (2000, p. 490, grifo do autor). A formação de uma mentalidade coletiva voltada para a elaboração teórica dos grandes desafios enfrentados pela humanidade remete, diretamente, à discussão a respeito da política cultural e o destino dado aos investimentos que podem propiciar a formação de pólos irradiadores de cultura ou mesmo de agente produtores e socializadores de capital cultural. A proposta de reformulação da Bildung, como um processo interativo de formação da opinião pública, é um passo importante em direção às solicitações de uma época dominada pelos padrões de gosto impostos pela indústria cultural. Assim, é possível que as populações tenham a capacitação necessária para decodificar a manipulação ideológica de imagens, signos, símbolos e ícones construídos em sociedades dominadas por uma complexidade crescente.

Já a proposição de Adorno, que prevê uma utopia negativa da formação cultural, ou seja, a prevalência da imagem estética com capacidade para a implosão da dominação do conceito, encontra, em certo sentido, uma ressonância na proposta contida na teoria da ação comunicativa. No momento em que passa a existir uma preocupação mais explícita com a formação da vontade coletiva, de uma opinião pública esclarecida, é patente que tal idéia visa a se contrapor ao predomínio desfrutado pela indústria das consciências, a qual está atuando na esfera pública, em muitos casos, sem adversários. A diferença é que a negação do sistema, defendida por Adorno, encontra certa repercussão na teoria do agir comunicativo não a partir de uma crítica total de uma racionalidade amparada no aspecto conceitual. A reformulação da semântica da formação cultural faz jus à necessidade de incorporação da força negativa contida nas imagens estéticas, contrapondo-se, porém, de forma possível e imanente a um sistema reconhecidamente desumano e cruel.

A educação tem um papel ímpar na formação deste novo campo de atuação da Bildung, no sentido de traduzir, para o mundo da vida, conhecimentos que resultem na formação de agentes produtores e socializadores de capital cultural. E, isso passa, necessariamente, por uma reformulação completa dos sistemas de ensino e, conseqüentemente, dos espaços e tempos destinados às áreas comprometidas com a discussão dessas temáticas nos currículos de todos os níveis de ensino. Entre outras medidas inadiáveis, deve-se conferir um aumento do prestígio às ciências humanas e sociais, das artes e letras e à formação de um professor pesquisador, como um agente capaz de repensar, utilizar e gerir criativamente o legado cultural da humanidade.

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[1] Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

[2] A linha de reflexão escolhida por Lyotard se aproxima dos posicionamentos de outros autores, que discutem, com muita desenvoltura e riqueza de detalhes, a situação objetiva da cultura na contemporaneidade, como, entre outros, Jean Baudrillard, Umberto Ecco, Fredric Jamenson e Jean-Pierre Warnier. Os autores que compõem esse grupo pertencem a diferentes perspectivas teóricas, mas a tônica dessas produções não é o se tratamento do tema da formação e suas implicações na educação formal e informal. No máximo se procura justificar a sua inviabilidade teórica no quadro atual, como faz o próprio Lyotard, priorizando-se a discussão sobre a cultura como um fenômeno midiático, globalizado ou mundializado de comportamento. Como se verá posteriormente, Habermas e Apel tomam um caminho diverso de uns e outros, preferindo reformular o conceito baseado na introdução de um novo paradigrna de compreensão, a intersubjetividade. Fiel à idéia dos que pensam o conceito a partir da herança ou legado da Escola de Frankfurt e alguns teóricos de base hermenêutica, como o próprio Gadamer, buscam uma atualização destas posições de acordo com as novas transformações no campo do conhecimento.

[3] É preciso esclarecer que o cientificismo é um produto veementemente combatido pela teoria do agir comunicativo porque, neste caso, a razão se manteria aprisionada apenas a uma das dimensões de autonomia das esferas da ciência, moral ou da arte, incorrendo no estreitamento lingüístico próprio do universo unidimensional e rejeitando assim a polissemia do signo.

 
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