ADORNO
E A UTOPIA NEGATIVA DA FORMAÇÃO CULTURAL
Amarildo Luiz Trevisan
[1]
Considerações
introdutórias
As produções filosóficas recentes
sobre o tema da formação cultural (Bildung) falam de um
esgotamento do sentido do conceito como reflexo da evolução do
capitalismo em sua última etapa. A crise da noção moderna de formação
aponta, inclusive, para a incapacidade de se eleger, no tempo
presente, alguns critérios que apresentem fundamentos seguros
para os procedimentos no campo educativo. O cientificismo colocou
na defensiva toda a força contida na tradição cultural, pondo
em crise as noções de educação vinculadas ao humanismo, abrindo
uma ampla frente para a prevalência dos interesses puramente técnico-científicos
no campo da Pedagogia e das licenciaturas.
Para retirar o tema do aprisionamento
teórico a que ficou submetido, pretendo, neste artigo, utilizar
algumas contribuições da semiótica, através da definição
de imagem (da formação cultural) aliada à noção de signo, e da
hermenêutica, enfatizando a historicidade da compreensão. Na medida
em que a semiótica permite a leitura da imagem como entidade independente
do próprio referente, pode então ser estabelecida uma outra configuração
da discussão sobre o tema da formação cultural. A nova moldura
dada ao problema possibilita uma continuidade da conversação sobre
o assunto no campo da educação, porém não mais, é claro, nas mesmas
condições propostas originalmente pelo iluminismo. No dizer de
Marramao, "o problema então está em captar as razões da exclusão
entre a riqueza dos acontecimentos e a angústia e a pobreza de
nossa experiência, encontrar a raiz da estreiteza de nossas possibilidades
de transformar em evento aquilo que é mero acontecimento"
(1995, p. 175).
Em
face das dificuldades do estabelecimento de critérios seguros
para a correta identificação de um produto cultural autêntico
no campo discursivo da Pedagogia, proponho o resgate de potenciais
depositados na instância expressiva do conceito de formação cultural
nos fundamentos da educação. Esta idéia encontra apoio no projeto
de Jürgen Habermas, que iniciou um processo de atualização das
discussões da teoria da Escola de Frankfurt de acordo com as novas
descobertas dos campos da filosofia da linguagem e da hermenêutica.
Acredito que seja possível assim auxiliar a concretização do objetivo
maior da teoria da ação comunicativa, que visa a desreprimir as
energias semânticas investidas historicamente no discurso da modernidade,
mas que necessita de complementações principalmente no âmbito
da estética. Deste modo, através da instância expressiva da racionalidade
que se faz presente na linguagem, abrem-se novas possibilidades
para repensar a necessidade do surgimento de novos critérios de
avaliação da prática pedagógica.
Testemunhos da
crise do conceito de formação
No mundo da cultura hodierna, existe
uma séria dificuldade para buscar a reversão dos efeitos ou impactos
gerados pela concepção unidimensional e autoritária da racionalidade
no conceito de formação cultural. Para se ter uma idéia mais precisa,
Lyotard (1988) chega a argumentar a esse respeito que a transmissão
do conhecimento na era pós-moderna, facilitada pelos mecanismos
tecnológicos que propiciam a criação e transmissão de dados de
forma virtual e instantânea, não necessita mais de uma preparação
ou cultivo do "espírito" para prover a veiculação e
o recebimento das informações. A formação passa a ser algo obsoleto
neste contexto, e é por isso que a crítica desconstrutiva ao conceito,
efetuada pelo pós-modernismo, enquadrou o discurso da formação
na categoria de metarrelato, ou seja, como uma instância metafísica
que ficou pairando alheia às contingências da cultura dominada
pela revolução tecno-científica midiática
[2] .
Adorno também denuncia a impossibilidade
da formação cultural na contemporaneidade, mas por motivos diversos
de Lyotard. Seu ponto de partida é semelhante na medida em que
ele desconfia de todas as grandes sínteses teóricas – que Lyotard
chama de metarrelato – uma vez que elas incorrem no terrorismo
do conceito. Devido à paralisação da dialética do Iluminismo no
momento da exteriorização do espírito, a totalidade que constrange
a particularidade emerge como uma falsa síntese teórica, dando
origem à mentalidade responsável pelos campos de concentração
da segunda guerra. Pode-se deduzir que pelo seu poder de coerção
homogênea do particular ou das identidades plurais, o dado conceitual
funciona, comparativamente, como um mini-campo de concentração
nazi-fascista arraigado no âmbito da linguagem. O próprio conceito
de formação também não é livre desse questionamento, e nem pode
ser contraposto como antítese aos totalitarismos de mercado, porque
também acabou se curvando aos seus ditames. Em conseqüência, se
o conceito é incapaz de veicular uma contra-ofensiva a este estado
de coisas, Adorno acaba abrindo mão da dimensão comunicativa
da linguagem para buscar exílio nas experiências da arte e
da alta cultura. Daí a importância conferida à mímesis como
um portal capaz de transformar o real em imaginário estético.
A linguagem, para ele, assim como fora para seu grande inspirador
Paul Celan e ainda para Kafka, revela-se impotente ou incapaz
de manifestar o caráter traumático de certas experiências históricas,
como as memórias dos campos de concentração. Em face do caráter
reificado da comunicação, há um impedimento da tradução de experiências
limites para o plano lingüístico, portanto.
Para Jamenson, “[e]m Adorno, a tirania
do conceito, a abstração, a ‘identidade’ podem ser vencidas de
várias maneiras, entre as quais a proposta de uma ‘dialética negativa’
funciona como algo semelhante a uma codificação e a um programa
estratégico global" (2000, p. 241). Entre as diversas estratégias
utilizadas para desconstruir o impacto do autoritarismo do conceito
sobre a diversidade do real, na Teoria estética Adorno
aposta no poder de sensibilização das imagens estéticas. Apenas
a arte é capaz de aludir ao inominado, porque usa o recurso metafórico.
Adorno apela então para as contribuições da estética, pois estas
não reduzem à esfera de competência da linguagem, uma vez que
elas se manifestam no mutismo das obras de artes plásticas por
exemplo. Também a literatura é tributária do esforço de revelar
aquilo que não pode ser nomeado, ou seja, o irrepresentável e
o indizível, como bem ilustra Celan na negatividade contida em
seus poemas. Kafka denuncia em várias obras os estreitamentos
do sistema que leva os indivíduos a viver situações paradoxais
e absurdas no interior de um universo que se pretende racional.
Em A metamorfose, o personagem principal manifesta
em si próprio o resultado das experiências de apropriação subjetiva
de sua vivência familiar e cultural que, realizada de forma solitária,
o transforma em um enorme inseto. O ser esquisito ou estranho
tem a ver com a idéia do não reconhecimento do eu, devido à degradação
de sua condição humana. É a idéia de catástrofe voltando com força
pela mão de um literato, questionando a cultura como algo afastado
da vida, dado que a sua transformação em uma barata se deu no
ambiente fechado de seu quarto. “A técnica literária de Kafka
se apega, por associação, às palavras, da mesma forma como
a técnica proustiana da lembrança involuntária se apega às
sensações, mas com o resultado oposto: em vez da rememoração do
humano, há a prova exemplar da desumanização. A sua pressão obriga
os sujeitos a uma espécie de regressão biológica, preparando o
caminho para as parábolas animais de Kafka. Em sua obra tudo
se dirige a um instante crucial, onde os homens tomam consciência
de que não são eles mesmos, são coisas”. (Adorno, 1998, p. 251).
Porém, Habermas procura mostrar, em
algumas obras (1980, p. 147 e 1987a, p. 487 ss.), que a iniciativa
adorniana – de repensar a compulsão do conceito a partir do poder
de sensibilização humana pela força das imagens estéticas – acaba
sendo uma tentativa paradoxal. Como é sabido, Habermas busca apoio
para a teoria da ação comunicativa no campo performativo da linguagem,
por isso ele se refere à necessidade de toda argumentação, para
ser bem sucedida, não ferir as "condições ideais de fala",
guardar "pretensões de veracidade", que são termos derivados
do mesmo campo, sob pena de incorrer em auto-contradição performativa.
Segundo sua análise, a compreensão da linguagem em Adorno está
presa à racionalidade meio e fim, originada pelo paradigma
da consciência ou da dominação, e por isso ela não consegue
traduzir adequadamente para o mundo da vida as experiências de
origem traumáticas. A situação aporética se revela justamente
na dificuldade de assimilar a dor causadora do trauma que inviabiliza
a normalidade da representação, como um fim a ser atingido
através dos mecanismos ou dos meios oferecidos pela linguagem.
Assim, a impossibilidade da assimilação do trauma nega a volta
do espírito a si mesmo, alienado no momento da exteriorização,
impedindo a realização do giro fenomenológico da consciência –
o vôo absoluto do pássaro de Minerva – que caracterizaria o ideal
da formação cultural para Hegel. Adorno percebe que a transmissão
do sofrimento através da linguagem corrente não é possível, porque
a linguagem também é um elemento da alçada instrumental da racionalidade.
Ele prefere pensar então na hipótese de validar uma utopia negativa
da formação cultural, expressa na referência à imagem dos campos
de concentração de Auschwitz, em que a presença da imagem
destrói a coerção exercida pelo conceito. Se valer este ponto
de vista, residiria, na reflexão proposta por Adorno, uma tensão
auto-contraditória justamente na dimensão performativa da linguagem.
A inviabilidade de seu argumento estaria na recorrência em afirmar
algo (pelo uso da linguagem) que nega a própria mensagem do que
está sendo veiculado. A situação aporética fica bem evidenciada
no seu veredito de que após Auschwitz é impossível escreve
um poema. Como foi expresso anteriormente, há uma crença na
arte por um lado como a saída para um mundo conceitual
administrado, enquanto que, por outro lado, nega-se essa mesma
afirmação (da arte) como local de sua realização efetiva.
É neste ponto que Habermas passa a
refletir sobre o legado da teoria crítica perspeccionado por Adorno,
propondo extrair de sua reflexão as motivações teóricas aludidas
em certos conceitos de índole estética. Ao que consta, porém,
Habermas não levou adiante esta discussão, mantendo as reflexões
sobre a estética na teoria da ação comunicativa ainda em aberto
para o seu ulterior desenvolvimento. O aspecto de incompletude
num dos pontos vitais de apoio do tripé de sua teoria, que é o
domínio da arte, lhe valeu inclusive a acusação de manter a presença
do espectro de atuação do cientificismo em sua teoria
[3] . Esta acusação é formulada por Albrecht Wellmer, um dos
alunos diretos de Habermas, por discordar justamente de sua interpretação
das teses de Adorno sobre a estética. Afinal, Adorno procura um
ponto de apoio na instância da arte, como uma mímesis espiritualizada,
porque trabalha com a hipótese de que é possível ampliar a concepção
(de racionalidade) para algo mais complexo do que a racionalidade
meios e fins. (Lara, 1994, p. 9). Wellmer passa a defender então,
neste sentido, "uma redimensionalização do papel da estética
como forma de racionalidade" (Id. Ibid., p. 10), que vai
desembocar na correção das posições tanto de Adorno quanto de
Habermas. Neste sentido, "é possível vislumbrar uma concepção
de racionalidade que se separa completamente dos lastros da instrumentalização
da razão", pois Wellmer "concebe um modelo de racionalidades
em que não permanecem os vestígios da filosofia da consciência
(Adorno), nem de conceitualizações cientificistas acerca da racionalidade
comunicativa (Habermas)" (Id. Ibid., p. 11). A teoria habermasiana
teria recaído, neste sentido, em sua própria armadilha, porque
tenta combater a hegemonia do plano cognitivo-instrumental da
racionalidade absolutizando a reflexão sobre o complexo do saber
vinculado à discussão da ética. Deste modo, fica evidenciado que
falta haver ainda realmente um desdobramento do debate para o
campo estético-expressivo. Essa incompletude da teoria deixa inclusive
uma zona sombria ou não esclarecida, que serve também de mote
para as reivindicações do pós-modernismo. Em geral, para o pós-modernismo,
a arte é uma determinada experiência humana refugiada no âmbito
da subjetividade, do desvario, do louco e do corpóreo, que representaria
uma fuga não apenas dos enquadramentos lingüísticos, mas também
do paradigma dominante da modernidade centrado na objetividade
metódica.
Resgate dos potenciais
da formação para o mundo da vida
A expectativa crítica depositada por
Adorno no sentido expressivo do conceito de formação cultural,
utilizado como âncora do conhecimento para não sucumbir aos apelos
do mundo administrado, propõe uma retomada do programa iluminista
com o intuito de averiguar o porquê o conceito não produziu a
consciência crítica e transformadora esperada nas massas. Mas
como já foi afirmado, não somente esta pretensão é contraditória,
mas também a passagem da discussão de Adorno para Habermas, no
interior da Escola de Frankfurt, é bastante problemática, porque
a discussão não está ainda suficientemente equacionada, merecendo
aprofundamentos teóricos adicionais. Trata-se então de discutir
um programa de pesquisa concentrado nos fundamentos da teoria
da ação comunicativa, especialmente no que concerne à discussão
do âmbito da estética. O problema é como enquadrar neste mesmo
espectro a discussão sobre o trânsito na linguagem das imagens
produzidas pela arte, que essencialmente é mímesis da realidade,
ficção, mentira e, portanto, uma instância não performática por
excelência.
De fato, depois da crítica de Adorno
e Lyotard, mas também Nietzsche e Gadamer, o pássaro de Minerva
não pode mais lançar as suas asas em direção ao infinito impunemente,
para dizer o que pode ser considerado ou não um produto cultural
autêntico. Na tentativa habermasiana de levar adiante o plano
de reformulação da razão moderna, através da tarefa de reconstrução
do projeto da modernidade, é fundamental fazer a esfera da arte
e da estética falar, com vistas à viabilização de sua efetiva
participação na comunidade de diálogo. Habermas crê na realização
de um projeto interdisciplinar com a aposta no diálogo terapêutico
e num pensar complexo, que defenda a pluralidade de vozes da razão
e não a sua unidimensionalidade, como uma instância que democratiza
a convivência entre as diferentes esferas constitutivas da racionalidade.
Ao se pronunciar, a racionalidade estética pode colaborar terapeuticamente
para desreprimir as outras esferas, abrindo os olhos da razão
científica para a sua unidimensionalidade, que se expressa no
cientificismo.
Um dos caminhos produtivos que se
apresenta para viabilizar a inclusão das possibilidades da estética
no âmbito de ação da racionalidade comunicativa se cumpre através
de uma nova forma de investigação da noção de imagem no
campo do saber educativo. Pois, se a obra de arte deve sair do
silêncio e falar, ainda assim, tanto para compreender o conteúdo
do que está sendo expresso, quanto para facilitar o entendimento
do está sendo dito, é necessário que a linguagem, para ser efetivamente
compreendida, deva ser interpretada. Sem dúvida é necessário o
auxílio dos instrumentais reflexivos da semiótica e da hermenêutica
para desobstruir a discussão da formação cultural das aporias
a que foi submetida, levando a termo o projeto esboçado na teoria
da ação comunicativa.
Notas
para uma leitura de imagens da formação cultural
O ato de pensar a imagem somente como
representação de objetos pode levar a reflexão a recair numa concepção
que vulgariza a mimética do signo imagético. Existe, entretanto,
uma forma diferente de caracterizar a noção de imagem sugerida
pela semiótica do conceito de signo: “[u]m signo representa, mas
é, também ele, um objeto (essa é uma implicação direta do processo
da semiose). Dito de outra maneira, um signo é uma entidade,
um isso e, portanto, uma id-entidade. Ao se mostrar, o
signo tanto pode exibir seu objeto (e, assim, ser ícone) ou exibir-se
a si mesmo, obscurecendo seu objeto (mostrando-se, neste caso,
como um qualissigno)" (Pinto, 1995, p. 26,
grifos do autor). A produção de imagens, nesta acepção, incorpora
a noção de signo não como algo que reproduz ou promove a clonagem
do estabelecido simplesmente e sim como uma instância capaz de
produzir realidade e, neste sentido, de exibir a si próprio.
Um exemplo advindo das tradições clássicas
que pode ser enquadrado perfeitamente nesta definição (de imagem
como signo) é a concepção de sombras ou imagens apresentada no
relato feito por Platão, na República. Neste relato,
as imagens se projetam nas paredes para um grupo de pessoas que
nunca entraram em contato com a luz, uma vez que estiveram amarradas
com a visão voltada ao fundo de uma caverna. A estória fala metaforicamente
da necessidade que toda pessoa tem de saber como efetuar a distinção
entre aparência e realidade, certo e errado, fantasia e ilusão
do mundo concreto, o falso do verdadeiro, o ser e o não-ser. Trata-se
de um texto que disserta sobre as possibilidades do conhecimento
e como podemos nos enganar na busca da verdade.
A semiótica procura combater a idéia
de um esquema platônico rígido que separa hierarquicamente luz
e sombra, original e cópia, objeto e imagem, referente e signo.
Esta relação binária, que supõe uma interdependência recíproca
entre dualismos, nega a autonomia do signo e a possibilidade dele
exibir-se a si próprio, enquanto uma imagem que pode operar sem
a conotação que o identifica como um reflexo ou degradação de
algo situado em nível mais profundo. As sombras ou imagens projetadas
no fundo da caverna não podem ser apreciadas apenas como formas
enganadoras do real, como fez a tradição neoplatônica agostiniana,
mas elas também podem ensinar a pensar e descobrir novas
verdades. Tanto isso procede que certo dia um dos prisioneiros
se libertou das correntes, justamente porque acabou percebendo
a ambigüidade do significado das imagens que via desde a mais
tenra idade.
Adorno promove uma crítica à indústria
cultural, pois esta difunde uma concepção de imagem que reproduz
massivamente o campo estético-expressivo até lhe retirar a potencialidade
crítica e criativa. Porém, a semiótica da imagem como signo permite
distender o problema da relação entre arte, de um lado, e não
arte ou artifício criado pela indústria cultural, por outro. Esta
é uma anotação importante a ser formulada dado que, se as imagens
da formação cultural se reduzem à veiculação ou aplicação de algo
pré-estabelecido, então elas passam a operar com uma concepção
empobrecida de signo, que vulgariza a noção de mímesis como
sinônimo de imitação, recaindo desta forma numa concepção de signo
baseada na "estética do realismo". (cf. Pinto, 1995,
p. 26). Este é um problema sério para a tese da estética de Adorno
baseada no paradigma da representação. Neste sentido, é lógico
ele concluir pela impossibilidade da formação cultural em um contexto
dominado pela cultura do espetáculo, que vulgariza a imagem estética
da obra de arte. Esta cultura pressupõe, certamente, a impossibilidade
de se trabalhar com a idéia de modelos ou referentes sólidos,
mas com imagens, silhuetas ou simulacros de um real situado de
forma distante do alcance de um possível espectador.
Aspectos
conclusivos
A proposição de Habermas, que tem
como objetivo fazer com que o conteúdo emudecido da obra de arte
venha a falar, não abrindo mão do caráter comunicativo da linguagem
estética, se confronta com o silêncio das experiências que
se expressam em nível monológico. Fiel à virada lingüística, ele
compreende, como Wittgenstein, a impossibilidade da linguagem
privada, concentrada apenas no monólogo da consciência consigo
própria, ou seja, de uma consciência que se pensa escrupulosamente
a si mesma em nível transcendental. A força ilocucionária do ato
de fala guarda pretensões de veracidade que só podem se manifestar
como um compromisso no uso público da razão. Por isso, o tema
da formação cultural deve sair da esfera de influência que o prende
ao paradigma da consciência e adentrar no universo de compreensão
do paradigma da intersubjetividade. Essa situação remete não apenas
à tradição kantiana do "uso público da razão", mas também
remete à dialética hegeliana do senhor e do escravo, em que o
processo de formação é resultado da interação de uma consciência
com outras consciências. Por esse caminho, se entende a formulação
de Hegel como "precursora da noção de intersubjetividade"
(Marcondes, 1994, p. 25).
Uma leitura semiótica e hermenêutica
de imagens da formação cultural possibilita entender melhor o
trânsito reflexivo de tratamento do tema de um paradigma a outro.
As imagens produzidas no âmbito estético da linguagem servem para
desvelar estruturas hermenêuticas da comunicação, que podem iluminar,
abrir os olhos da razão, das expectativas cognitivas e éticas.
Essa iniciativa se constitui numa espécie de opção por um "caminho
metafórico de análise", que opera por homologia, para desvendar
estruturas aparentemente similares entre discursos distanciados
no tempo. A pretensão da análise é revelar os canais de comunicação
possível através do resgate de instâncias esquecidas pelos discursos
da racionalidade iluminista no campo pedagógico.
Apesar do distanciamento histórico,
de um ponto de vista estético e analógico, que trabalha no nível
das semelhanças e do parecido, as sombras da caverna guardam uma
certa analogia com as imagens produzidas pela indústria cultural,
assim como a verdadeira realidade, que se encontra fora do mundo
da caverna, tem relação metafórica com o mundo da arte e da alta
cultura. No momento em que o signo imagístico exibe a si mesmo,
ocultando o objeto primeiro ou referente, ele acaba se tornando
um segundo objeto. Com isto, já não é mais possível avaliar o
signo a partir da estrutura do primeiro objeto, tornando-se a
partir deste momento um objeto independente e com vida própria.
Essa autonomia do reino das sombras ou do universo imagístico
produzido pela indústria cultural exige uma crítica fora do paradigma
representacionista, portanto, que a teoria do agir comunicacional,
fortalecida por uma hermenêutica e uma semiótica das imagens,
está em melhores condições de realizar.
A formação cultural, posta neste outro
paradigma de entendimento, não se reduz simplesmente a uma apropriação
subjetiva de conteúdos culturais realizada por indivíduos no âmbito
da esfera privada, e sim torna-se algo mais complexo, que se assemelha
a um processo interativo de formação da vontade coletiva ou
mesmo da opinião pública. Essa idéia é claramente expressa
por Apel, quando fala "do postulado de realização da comunidade
ideal de comunicação" através da necessidade "de
uma reconstrução empírica e normativa da situação histórica, e
com isso da "formação" (Bildung) da opinião
pública." (2000, p. 490, grifo do autor). A formação de uma
mentalidade coletiva voltada para a elaboração teórica dos grandes
desafios enfrentados pela humanidade remete, diretamente, à discussão
a respeito da política cultural e o destino dado aos investimentos
que podem propiciar a formação de pólos irradiadores de cultura
ou mesmo de agente produtores e socializadores de capital cultural.
A proposta de reformulação da Bildung, como um processo
interativo de formação da opinião pública, é um passo importante
em direção às solicitações de uma época dominada pelos padrões
de gosto impostos pela indústria cultural. Assim, é possível que
as populações tenham a capacitação necessária para decodificar
a manipulação ideológica de imagens, signos, símbolos e ícones
construídos em sociedades dominadas por uma complexidade crescente.
Já a proposição de Adorno, que prevê
uma utopia negativa da formação cultural, ou seja, a prevalência
da imagem estética com capacidade para a implosão da dominação
do conceito, encontra, em certo sentido, uma ressonância na proposta
contida na teoria da ação comunicativa. No momento em que passa
a existir uma preocupação mais explícita com a formação da vontade
coletiva, de uma opinião pública esclarecida, é patente que tal
idéia visa a se contrapor ao predomínio desfrutado pela indústria
das consciências, a qual está atuando na esfera pública, em muitos
casos, sem adversários. A diferença é que a negação do sistema,
defendida por Adorno, encontra certa repercussão na teoria do
agir comunicativo não a partir de uma crítica total de
uma racionalidade amparada no aspecto conceitual. A reformulação
da semântica da formação cultural faz jus à necessidade de incorporação
da força negativa contida nas imagens estéticas, contrapondo-se,
porém, de forma possível e imanente a um sistema reconhecidamente
desumano e cruel.
A educação tem um papel ímpar na formação
deste novo campo de atuação da Bildung, no sentido de traduzir,
para o mundo da vida, conhecimentos que resultem na formação de
agentes produtores e socializadores de capital cultural. E, isso
passa, necessariamente, por uma reformulação completa dos sistemas
de ensino e, conseqüentemente, dos espaços e tempos destinados
às áreas comprometidas com a discussão dessas temáticas nos currículos
de todos os níveis de ensino. Entre outras medidas inadiáveis,
deve-se conferir um aumento do prestígio às ciências humanas e
sociais, das artes e letras e à formação de um professor pesquisador,
como um agente capaz de repensar, utilizar e gerir criativamente
o legado cultural da humanidade.
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