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MERA COINCIDÊNCIA

João Luis Pereira Ourique [1]

Este trabalho pretende elaborar uma reflexão acerca do papel da mídia e da manipulação que a mesma sofre por pessoas que veiculam informações de acordo com os interesses de determinados grupos. Muitos destes grupos estão apenas preocupados em manter o seu poder, pouco se preocupando com as suas responsabilidades para com as classes as quais deveriam representar e defender. A política é o principal alvo dessa crítica; ao lado da alienação proporcionada à população, os políticos, na sua ânsia de poder, colaboram para que assessores inescrupulosos coloquem em prática as mais variadas táticas e artimanhas a seu serviço.

O debate aqui proposto não é salientado no intuito de apropriar-se do conceito de ética em função de determinado momento e interesse, mas sim para nortear o pensamento crítico em relação ao comprometimento de manter a coletividade e conservar o meio social, minando estruturas opositoras, mesmo que estas representem um debate positivo e engrandecedor das relações humanas. O processo de construção de teias sociais e as relações que as pessoas fazem entre si para galgar posições de poder entre os seus já foram temas de Theodor Adorno (1995), que critica o processo civilizatório e a coletivização como elementos responsáveis pela ausência da autonomia. 

A ausência de um pensamento autônomo e livre de influências meramente ideológicas acaba por colaborar com a reificação do sujeito, com a inculcação de que numa sociedade cada um deve exercer o seu papel (aquele para o qual está destinado pela sua classe social, profissão ou qualquer outro mecanismo ideológico que o coloque em uma situação de autocontrole em favor da classe dominante) sem questionamentos a não ser aqueles permitidos como uma "válvula de escape" para evitar que uma luta de classes ponha em risco a ordem burguesa.

Muitos destes mecanismos de controle e dominação são empregados de maneira implícita, fazendo com que um olhar despreparado seja incapaz de identificar a manipulação a que está submetido. As imagens exercem um papel relevante e essencial nesse processo, pois educam e determinam comportamentos e atitudes tomadas pela maior parte das pessoas, evidenciando o que muito empiricamente é referido como alienação. No entanto, a alienação salientada é, muito freqüentemente, confundida com desinformação e não com falta de esclarecimento (Cf. Kant, 1974), ou seja, a possibilidade das pessoas questionarem e refletirem sobre os acontecimentos a sua volta é o alvo das imagens educativas a serviço desse controle social. Assim sendo, não é mera coincidência que escândalos, guerras e problemas econômicos sejam usados para confirmar ou minar o poder de determinado grupo, seja ele político-partidário, social e/ou econômico [2]

Nessa mesma linha de raciocínio, o filme Mera Coincidência, baseado no livro "American Hero" de Larry Beinhart, enfoca a eleição presidencial norte-americana. Faltando apenas 15 dias para o pleito, um provável escândalo envolvendo o presidente [3] ameaça a sua reeleição e os interesses de muitas pessoas e grupos ligados a ele. O suposto escândalo sexual envolvendo o presidente e uma menina que fazia uma visita a Casabranca coloca em ação uma espécie de assessor, Connie Brean (personagem de Robert De Niro), capaz de protagonizar uma limpeza necessária para o bom andamento da campanha eleitoral.

Após tomar conhecimento dos fatos, a estratégia é espalhar boatos sobre um provável conflito militar: "onde há guerra? Que guerra? Ninguém sabe exatamente como estas coisas começam...", nas palavras do assessor. É necessário salientar que a curiosidade, que deveria ser veículo para o esclarecimento, aqui é meramente elemento especulativo, não havendo o interesse na verdade e sim, unicamente, na novidade.

A produção de uma guerra de mentira envolve um produtor de Hollywood, Stanley Motss (personagem de Dustin Hoffman), capaz de colocar em prática, simultaneamente, um salvamento da imagem do presidente, um desvio da atenção da imprensa e da opinião pública do escândalo e uma campanha política com a situação de guerra com a Albânia, país escolhido como inimigo. A escolha desse país leva em consideração a distância geográfica e as diferenças culturais, distantes da realidade norte-americana, elementos importantes para validar a luta de grupos daquele país contra o way of life americano. Para evitar maiores problemas diplomáticos, a culpa recai sobre terroristas que detêm a bomba atômica e pretendem, entrando através da fronteira com o Canadá, fazer atentados nos Estados Unidos.

Os boatos correm, ganham amplitude e espaço na mídia, sendo sempre negados pelo porta-voz da presidência. As informações vazadas para a mídia parecem que têm mais força que os fatos reais e, faltando apenas 11 dias para a eleição, conseguem encobrir o escândalo, inflando o ideal patriótico das pessoas e, principalmente, dos eleitores.  Em nenhum momento são questionadas as circunstâncias da relação sexual do presidente com a menina e, nem sequer, se ela ocorreu. Mesmo assim, as explicações sobre este escândalo seriam extremamente desgastantes para a imagem do candidato à reeleição, sendo necessário achar uma alternativa para desviar a atenção da mídia e da opinião pública, no caso, guerra. A guerra é um show, com slogans, publicidade, televisão. A referência à Guerra do Golfo é salientada pelo vídeo de um ataque. Houve ou não uma guerra? Foi visto apenas um filme... Há a necessidade, então, de produzir não uma guerra, mas um espetáculo.

O espetáculo começa com uma imagem de uma garota fugindo de um ataque terrorista na Albânia segurando um gatinho nas mãos; bombardeios, fogo, ruínas e até o próprio gatinho são digitalizados em computador para novamente chegar até a mídia como se o combate realmente estivesse ocorrendo. O vídeo tem o intuito de chegar ao povo com a mensagem de que é ela (a garotinha) que eles (os Estados Unidos) devem salvar e lutar contra os opressores (terroristas). Para compor toda a alegoria [4] dessa superprodução, comidas típicas são pesquisadas, pessoas importantes (supostamente de origem albanesa) são contatadas e até a chuva é levada em consideração quando da chegada do presidente de uma viagem ao exterior, na qual é recebido por uma menina e sua avó albanesa, refugiadas da guerra. Na recepção, o presidente se emociona e tira o seu casaco para proteger da chuva a pobre senhora.

Para dar o pano de fundo, um músico profissional é convocado para compor uma música adequada a todo esse processo. A música começa com "Eu vigio as fronteiras canadenses // Eu vigio o sonho americano...", depois chega a sua versão final com "Nós vigiamos as fronteiras americanas..." no claro intuito de unir o povo no ideal de patriotismo necessários à trégua (que ocorre) do escândalo sexual.

O problema é que a CIA descobre que não está acontecendo nada de estranho nas fronteiras ou na Albânia e interroga o assessor que, por sua vez, indaga para que satélites, para que agentes e toda essa segurança se está tudo bem, se há paz? Convencendo os agentes de que a guerra do futuro é a do terrorismo nuclear e eles não podem negar essa possibilidade, enfim, usa da lábia (exercício de retórica) para evitar que toda a estratégia falhe: "Não há guerra!" diz o agente, "Há sim, passou na TV!", diz o assessor.

Mesmo assim, sem negar a situação de guerra e os problemas internacionais, a oposição "descobre" que a situação na Albânia está controlada e intima o presidente a voltar ao debate da campanha. Quando é questionado sobre o que fazer, o assessor admite o problema: "A guerra acabou! Sim, passou na TV!". O produtor apresenta, então, o segundo ato: há um soldado que não sabia do fim da guerra, um herói esquecido, deixado para trás como um sapato velho. A oito dias da eleição as intenções de voto são de 37%.

Uma nova música é necessária, em tom deprimido pela guerra, com o tema do bom e velho sapato. Depois de composta, a música é gravada em um disco de vinil, dando a impressão de ser antiga (de 1930), com chiados e riscos e colocada na discoteca do congresso para, posteriormente, chegar às mãos da imprensa "ao acaso". Para que isso ocorra, uma das mulheres envolvidas seduz um importante repórter e, após o pronunciamento do presidente sobre o militar perdido, faz referência à música. O nome do militar foi também escolhido de acordo: Shumann, que lembra o som de shoe (sapato) e o título da música "Old Shoe"... e a imprensa cai na história.

Várias manifestações ocorrem pela volta do Old Shoe, iniciadas com o protesto do produtor e do assessor que começaram a jogar sapatos velhos pelas ruas, incitando manifestações homônimas de solidariedade. Uma foto de Shumann, usando um suéter furado com a mensagem em código Morse: Coragem, mamãe, é apresentada, emocionando ainda mais as pessoas envolvidas com todo esse processo. As intenções de voto chegam a 86%. Produtos já são mencionados: Shoeburguer, com molho 303 (identificação do pelotão do Sgt Shumann), o lanche atrás das linhas inimigas.

Faltando 2 dias para a eleição, já há o planejamento da construção de um memorial e também a exigência do retorno, por parte da oposição do herói de guerra. O problema, agora, é que Shumann é um presidiário (o assessor pediu por operações especiais e entenderam prisões especiais – um problema de falha de comunicação) que necessita de medicamentos psicotrópicos para controlar sua agressividade.

O avião em que é transportado cai e eles são socorridos por um fazendeiro. Na fazenda, o "Sgt Shumann" violenta a filha do fazendeiro e é morto por ele. Tudo acabado? Ainda não. O que é melhor que um herói? Um mártir! Com a chegada do "Sgt Shumann", até o cachorrinho que acompanha o caixão foi adestrado pelo assessor para compor a imagem necessária a emoção. Enfim, sucesso. 89% dos votos e a reeleição garantida.

Analistas políticos afirmam que "o sucesso do presidente não vem dos fatos, que não podemos controlar, mas do caráter dado a eles". A TV afirma que o presidente é produto de comerciais (comerciais que o produtor achava ridículos e amadores). Isso faz com que o produtor queira falar sobre o seu maior trabalho: "Eu quero o crédito!". Enquanto o enterro do "mártir" segue, todo o esquema operacional é desmontado e o produtor Stanley Motss é encontrado morto enquanto tomava sol – infarto fulminante.

O que o filme deixa claro é exatamente a falta de clareza nas relações humanas, ainda mais se estas relações envolvem o poder. A população usada como massa de manobra é apresentada logo no início, o título no original em inglês é Wag the dog, que poderia ser entendido como "abane o cachorro". "O cão abana o rabo porque é mais esperto que ele, se o rabo fosse mais esperto, abanaria o cão". Assim é que o filme pretende justificar como a minoria dominante (ou esperta) consegue abanar todo o povo, conduzindo e direcionando até os seus comportamentos mais corriqueiros em função de interesses não percebidos por essa maioria.

O que é importante ressaltar, ainda em relação ao filme, com base no conceito de história de Walter Benjamin, é a incapacidade dos chamados fatos históricos em contar a verdade, ou seja, a dialética histórica nesta perspectiva não permite o enriquecimento proposto por Hegel, no qual uma tese encontra uma antítese, culminando em uma síntese, a qual reelabora conceitos e apresenta evolução. A visão da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, através de vários de seus pensadores, afirma que este processo está submetido às relações de poder, não havendo isenção e nem predisposição para o enriquecimento do espírito, corrompendo a dialética hegeliana pela submissão e/ou inculcação de valores.

A ambivalência (Cf. Bauman, 1999) presente na conduta das personagens do filme é característica da modernidade, na qual o homem não encontra mais um mundo ordenado e pronto, esperando apenas o seu posicionamento de acordo com sua vocação, herança cultural ou social. Não há mais a pergunta o que sou no mundo?, mas sim de que mundo se está falando? ou qual dos meus "eus" deve se posicionar perante cada nova situação vivida? Nesse espaço novo e desafiador é que o homem moderno busca se afirmar como humano, como homem em sua plenitude, enfrentando não mais a natureza, mas a si mesmo. E não mais um homem, mas a afirmação de homem que a coletividade apresenta a ele, sufocando seu comportamento, moldando seu pensamento conforme os interesses da máquina social.

Há muitas lacunas no filme, assim como na história; muitos fatos acabam por ser esclarecidos somente quando já não interferem mais na realidade social. Nessa perspectiva, que é a presente nas relações humanas em nível micro e macro-social, é que se afirma o espaço da crítica não unicamente por ela mesma, mas sim como uma filosofia capaz de apresentar múltiplas visões e possibilidades.

Fazer isso já é uma tarefa árdua, esclarecer as pessoas sobre o que de fato ocorre e alertar para o seu papel no processo histórico implica responsabilidades que talvez não haja ainda alguém capaz de, ao fazê-lo, apresentar alternativas que não tenham seus conceitos desvirtuados e reelaborados à luz de novas perspectivas. Apesar de sempre estarem sendo vinculadas diferentes formas de entendimento, com perspectivas inovadoras em relação às anteriores, não há um conceito uno (e dificilmente haverá), findo e acabado, capaz de unificar o pensamento.

A afirmação que se faz no encerramento deste trabalho é o alerta para a manipulação das imagens, por meio da indústria cultural que, segundo Adorno, conduz o modo de agir e pensar das pessoas, apresentando, como alternativa para este aprisionamento, a necessidade do pensamento autônomo e livre de manipulações. Isso se apresenta como condição primeira para que ocorra evolução aliando humanidade e ciência e não apenas desenvolvimento tecnológico.

Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor. Lírica e sociedade. In: BENJAMIN, Walter et al. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

____. Dialética negativa. Madrid: Taurus, 1986.

____.Educação após Auschwitz. In: ____. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

BENJAMIM, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.

____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.

KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: que é "Esclarecimento"? In: Textos selecionados. Petrópolis: Vozes, 1974.



[1] Doutorando em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bolsista CAPES/CNPq.

[2] É muito difícil haver o isolamento em uma destas categorias; normalmente, os aspectos políticos, econômicos e sociais apresentam-se consolidados em uma determinada ideologia que ora privilegia aspectos necessários à sua manutenção, ora valoriza aqueles do seu interesse.

[3] Nenhum nome real é usado no filme, procurando isentar qualquer relação direta, ampliando, o quanto possível, o debate sobre a manipulação exercida

[4] O conceito de alegoria aqui usado está aliado ao conceito de história, ambos de Walter Benjamin - In: Origem do drama barroco alemão e Magia e técnica, arte e política – e são necessários para a compreensão de todo um processo, de seus fragmentos e dos não-ditos que compõem o quadro final. No filme, estes fragmentos são vislumbrados nos bastidores, ou seja, oportunizam um ângulo diferente, já desvendando muitos aspectos ocultos.

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