MEMÓRIAS DO CÁRCERE:
UMA POSSIBILIDADE DE RELEITURA DA HISTÓRIA
Joselaine
Brondani Medeiros
[1]
A
obra Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, publicada
em 1953, após a sua morte, retrata o período em que o escritor
esteve preso em 1936, vítima da ditadura estado-novista em vias
de instauração. As quatro partes que compõem a obra – Viagens,
Pavilhão dos primários, Colônia correcional e
Casa de correção – dão uma visão aprofundada da realidade
do país e da situação do preso na década de 30. O cárcere, na
obra, desnuda-se, sendo sinônimo de desumanização e desrespeito
à vida humana. O ser humano, nesse ambiente, é despersonalizado,
degradado e coibido dos seus direitos. Daí se depreende o viés
de denúncia e de crítica social presente na obra, à medida que
faz referência direta à opressão política, e o cunho testemunhal,
abrindo um espaço para os silenciados e mostrando uma outra
versão da História. A obra, desse modo, torna-se uma forma de
questionamento da historiografia oficial, uma vez que abre sulcos
de tensões sociais e políticas muitas vezes não revelados e
aponta novos olhares à sociedade e ao próprio ser humano. Ela,
usando uma expressão de Walter Benjamin, tenta escovar a História
“a contrapelo”.
Para
viver ou conviver em sociedade, as pessoas precisam se relacionar,
trocar experiências, comunicar-se, no sentido de manterem um
diálogo e serem compreendidas. É necessário, para o ser humano
social, a interação, pois, aparentemente, ninguém consegue viver
sozinho ou isolado. Quando há essa comunicação e essa troca
de vivências, há crescimento, há aprendizado e há reflexão sobre
determinado assunto ou problema.
Metaforicamente,
pode-se pensar que a Literatura sofre um processo semelhante,
enriquecendo-se à medida que dialoga com outras áreas do conhecimento,
como, por exemplo, com a História e com a Sociologia. Em muitas
obras literárias, de modo implícito ou explícito, há uma articulação
entre o texto e o contexto. Isso quer dizer que as obras tentam
reordenar certos aspectos da realidade ou do contexto social.
A
questão social, desse modo, é importante e representativa nas
obras literárias. No entanto, a obra literária também é relevante
para se entender a sociedade, uma vez que talvez não haja equilíbrio
social sem a literatura. Em meio a todas essas questões sociais,
como afirma Rosenfeld (1976, p. 57), não se pode esquecer que
“de modo algum a obra literária pode ser reduzida a condicionamentos
sociais”. Os valores estéticos são imprescindíveis para a garantia
da literariedade, que, de uma maneira ou outra, facilita o caráter
transcendental de uma obra. Não ocorre, desse modo, um jogo
de exclusão, no qual se escolhe “cara ou coroa”, “texto ou contexto”.
No “jogo” entre a arte e a sociedade, não há perdedores, porque
ambas estão concatenadas e se inter-relacionam, sendo, portanto,
indissociáveis.
“[A]ntes se procurava mostrar
que o valor e o significado de uma obra dependiam de ela exprimir
ou não certo aspecto da realidade, e que este aspecto constituía
o que ela tinha de essencial. Depois, chegou-se à posição oposta,
procurando-se mostrar que a matéria de uma obra é secundária,
e que sua importância deriva das operações formais postas em
jogo, conferindo-lhe uma peculiaridade que a torna de fato independente
de quaisquer condicionamentos, sobretudo social. Hoje sabemos
que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas
visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto
e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra.” (Candido,
1973, p. 4).
A
partir das idéias de Candido (1973), expressas na citação, nota-se
que o equilíbrio entre a forma e o conteúdo é essencial, pois
resulta numa maior valoração da obra literária. Monteiro (1987
p. 269) confirma que o romance não pode ser uma transcrição
fiel da realidade, mas sim uma depuração dela, sendo, então,
“o amadurecimento duma experiência e não a tradução das aspirações
que irão formar, quando realizadas, a nova fisionomia da nação”.
A prosa não pode ficar em uma estufa, como se estivesse vegetando,
porque cairia na superficialidade: ela tem de ser uma recriação
a partir da vida, do contexto, sem fórmulas pré-concebidas ou
repetições, não condizentes com a realidade do país.
Ao
integrar a sociedade e as áreas afins, dependendo, obviamente,
do autor e de sua ideologia, pode acontecer uma reconstrução
da História, que não será mais a dos vencedores e sim a dos
vencidos: a dos que foram esquecidos ou ficaram mergulhados
no passado. E, quando se resgata essa História, vindo à tona
a barbárie, o massacre e o autoritarismo do passado, entende-se,
com mais clareza, os acontecimentos presentes, questionando-os
e assumindo uma postura mais crítica e reflexiva.
A
obra Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, possibilita
uma maior reflexão e questionamento da sociedade brasileira,
porque há fortes amarras direcionadas à justiça social, à crítica
social e, sobretudo, à crítica à ditadura, que em 1936 estava
em vias de implantação.
“A minha educação estúpida não
admitia que o ser humano fosse batido e pudesse conservar qualquer
vestígio de dignidade (...) era a degradação irremediável. Lembrava
o eito, a senzala, o tronco, o feitor, o capitão-do-mato. O
relho, a palmatória, sibilando, estalando no silêncio da meia-noite,
chumaço de pano sujo na boca de um infeliz, cortando-lhe a respiração.
E nenhuma defesa: um infortúnio sucumbido, de músculos relaxados,
a vontade suspensa, miserável trapo. Em seguida o aviltamento.”
(Ramos, 1994, p. 141, v. 1).
A
crítica ao sistema é bastante explícita, tanto que o narrador
equipara o que está vivenciando à época da escravidão, onde
os negros eram açoitados e maltratados pelos capitães-do-mato,
a mando dos senhores. A escravidão denota ausência de liberdade,
violência, submissão e degradação do ser humano. O preso não
passa de um escravo, porém sob os olhos de novos algozes, a
polícia e o governo. Para se fazer essa leitura, deve-se buscar
sustentações na História e na Sociologia, daí a necessidade
desse entrecruzar de olhares.
O
autor-narrador Graciliano Ramos é um prisioneiro, que sente
na pele o horror e a incivilidade do cárcere. E, ao relatar
esse evento, ele não poupa críticas ao sistema vigente, que
avilta e inferioriza o ser humano, não compartilhando e, sobretudo,
rechaçando o discurso preconizado pela elite. A ditadura e o
governo são totalmente desmascarados na obra, e as lacunas vendadas
pela História tornam-se conhecidas, evidenciam-se de tal forma
que as injustiças e os terrorismos passam a protagonizar no
cenário:
“Entre
um chamado e a última palavra uma pausa se alargara, talvez
com o intuito perverso de dar ao infeliz uma esperança tênue.
Pata macia de gato acariciando um rato. Em horas assim este
se encolhe cheio de pavor, agarra-se a ilusões fugitivas, busca
imaginar ocorrências vulgares: ida à secretaria, visita inesperada,
uma carta improvável. Engana-se voluntariamente, esforça-se
por afastar a lembrança das torturas, ali visíveis na pele,
desalenta-se ouvindo as sílabas fatais, e a significação delas
surge clara: perguntas invariáveis multiplicadas, a exigir denúncia,
a teimosia do paciente punida com sevícias: golpe de borracha,
alicate nas unhas, o fogo do maçarico destruindo carnes.” (Ramos,
1994, p. 358, v. 1).
Muitos
discursos (da época ou, até mesmo, da atualidade) não esclarecem
o que aconteceu com os presos políticos. Em apenas uma passagem
dessa obra, já se pode imaginar as atrocidades praticadas pela
polícia e a dor (exterior e interior) suportada pelos prisioneiros.
Eles são como ratos na toca do gato (representantes da ordem),
e os ratos são devorados pelo gato. Por trás da pele macia do
gato, na verdade, há garras afiadas, prontas para atacar.
É
oportuno diferenciar, neste momento, o historicismo e o materialismo
histórico, sendo que neste há uma abordagem dos problemas sociais,
sem camuflagem da realidade, que é vista como um processo de
constante transformação; já naquele há uma apresentação mecânica
da História, com o obscurecimento de determinados fatos a fim
de evitar a crítica social. O autor historicista, segundo Gagnebin
(1982, p. 65), “descreve o vasto espetáculo universal, mas não
o questiona; está, conseqüentemente, bem longe de poder discernir
por detrás da história dos vencedores as tentativas de uma outra
história que fracassou”. O materialista, por sua vez, tem a
tarefa de “saber ler e escrever uma outra história, uma espécie
de anti-história, uma história a ‘contrapelo’” (Gagnebin, 1982,
p. 66).
Acredita-se
que é preciso, antes de qualquer coisa, ver criticamente como
a sociedade foi gerada e como as revoluções, geralmente encabeçadas
por grandes líderes, como, por exemplo, Getulio Vargas, o sempre
lembrado “pai dos pobres”, ocorreram: com sangue de muitas vítimas
não lembradas pela História. Ou seja, houve (e há), na sociedade,
exclusão social, violência, miséria e inúmeras formas de discriminação,
e essa História não pode passar despercebida.
A
nossa sociedade nasceu sob a égide do autoritarismo, porém nem
sempre essa História de opressão, de destruição e de violência
é lembrada. Então, é preciso lutar para desmascarar os vencedores,
aqueles que continuam esmagando os corpos dos que estão prostrados
no chão. Da formação até a consolidação da sociedade, há um
acúmulo de mortes que servem de aresta de sustentação para o
exercício da dominação e, se não se “escovar a história a contrapelo”
(Benjamin, [s.d.], p. 225), a elite sempre triunfará. A Literatura
pode exercer a função de escovar a história a contrapelo, sendo,
metaforicamente, semelhante ao anjo do quadro de Klee, visto
por Benjamin ([s.d.]: “[s]eus olhos estão escancarados, sua
boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter
esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós
vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única,
que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa
a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos
e juntar os fragmentos.” (p. 226).
Segundo
Rosenfield (2001), esses aspectos não são tão visíveis a olho
nu ou a um olho despercebido, visto que, no quadro, a figura
parece estática e sem a expressão suposta por Benjamin. É preciso
ter um olhar tridimensional, que, de alguma forma, capte o que
há por trás dele. Olhando através do quadro, volta-se para o
passado, e o passado é marcado pelo horror. Como o ser humano
é fruto desse passado catastrófico, os olhos estão arregalados.
Benjamin como que dramatiza o quadro, “vendo com o olho da mente,
da memória e da imaginação” (Rosenfield, 2001). Essa espécie
de encenação traduz o drama apocalíptico que se estende do início
ao fim da História.
Como
aponta Gagnebin (1999), a Literatura sempre se preocupou com
o ato de contar, mas afinal o que é contar uma história e qual
a sua importância, o seu significado? A partir desse questionamento,
e associando a imagem vista por Benjamin do quadro de Klee,
pode-se imaginar (assumindo uma postura benjaminiana) que o
narrador deve ser como o anjo, supostamente rico em experiências
para contar. No entanto, o anjo está com os olhos arregalados,
como que temeroso, e daí, infere-se que nem tudo ele pode contar,
porque há uma incapacidade crescente de contar, “porque nunca
houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência
estratégica pela guerra de trincheira, a experiência econômica
pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência
moral pelos governantes” (Benjamim, [s.d.], p. 115). A maioria
das experiências, após acontecimentos, como a guerra e a industrialização,
passam a ser incomunicáveis.
Assim,
“a única experiência que pode ser ensinada hoje é a de sua própria
impossibilidade, da interdição da partilha, da proibição da
memória e dos rastros” (Gagnebin, 1999, p. 61). Mas o que isso
tem a ver com o narrador? O narrador acaba sendo privado da
“faculdade de intercambiar experiências” (Benjamin, [s.d.],
p. 198). A narração na modernidade, segundo Benjamin [s.d.],
acaba substituída pela informação, que já vem deglutida, interpretada.
Daí resulta o empobrecimento da experiência.
Conclui-se
que o narrador, semelhantemente ao historiador materialista,
enfrenta uma situação paradoxal: “narrar o inarrável”. Sob esse
prisma, “o que se opõe a essa tarefa de retomada salvadora do
passado não é somente o fim de uma tradição e de uma experiência
compartilhada; mais profundamente, é a realidade do sofrimento,
de um sofrimento tal que não pode depositar-se em experiências
comunicáveis, que não pode dobrar-se à junção, à sintaxe de
nossas proposições” (Gagnebin, 1999 p. 63). É preciso resgatar
o passado, colar os seus cacos, porém não é tão fácil como parece
a princípio, uma vez que, ao resgatá-lo, depara-se com sofrimento
e com dor.
Em
meio a essa situação paradoxal, o que deve ficar claro é que
a narração é relevante para “a constituição do sujeito” (Gagnebin,
1999, p. 3) e que o narrador deve tentar vencer a dificuldade
de narrar, porque o passado deve ser retomado para não ser sufocado
pelo silêncio e pelo esquecimento.
Em
Memória do cárcere, é possível dizer que o autor-narrador
tenta “olhar com olhos bem abertos” a História; olha, como Benjamin,
com o olho da mente, da memória e da imaginação, mostrando a
ruína do ser humano e a barbárie que acomete a civilização carcerária
no período ditatorial, apesar da dificuldade e do esquecimento.
Assim como o anjo se volta para o passado, o narrador rememora
uma parte do passado, vendo os escombros contidos nela.
Pode-se,
então, inferir que Graciliano Ramos é como um historiador materialista,
que aborda os problemas sociais, sem camuflagem da realidade.
Graciliano Ramos, através da voz do narrador de Memórias
do cárcere, tenta resgatar um passado (ou, pelo menos, parte
dele) caótico e fragmentado, tanto que, segundo Facioli (1993,
p. 68), este romance “produziu cadáveres desse mundo em dissociação”.
O próprio autor afirma que, como se vive sob as sepulturas,
é preciso relatar cadáveres. Aí está a causa dele estar voltado
para o passado e para a barbárie.
O
autor-narrador de Memórias do cárcere sopra o vento da
denúncia, da contestação, fazendo com que o leitor seja arrastado
para o passado, e, junto com ele, vivencie as arbitrariedades
da polícia, que representa a lei e o Estado. Nas quatro partes
que compõe a obra – Viagens, Pavilhão dos primários,
Colônia correcional e Casa de correção – há amostras
de como eram tratados os presos, ou seja, nada significavam
para o Estado, não eram mais pessoas, “mas um embrulho que rola
em direção a um destino desconhecido” (Viñar, 1992, p. 21).
Nelas, há o percurso, ou melhor, o calvário do narrador-personagem
que sai de sua terra natal, Alagoas, para os cárceres do Rio
de Janeiro.
Na
primeira parte, Viagens, ele narra sua prisão, em Maceió,
sem interrogatório, acusação ou processo formal e suas posteriores
“viagens”: de trem para Recife e de navio para o Rio de Janeiro.
Desde o início, percebe que o intuito dos militares é “vilipendiar
os seus hóspedes”. No porão do navio Manaus, os presos
conviviam diariamente com a promiscuidade, com sujeira, com
o fedor e com o calor. Os homens dormiam em redes ou no chão
junto a cascas de laranjas, vômitos e urina. As pessoas eram
semelhantes a cadáveres, sonâmbulas, a passar pelo cemitério:
“era como se me achasse numa vala, único sobrevivente no meio
de cadáveres, e nas grades do cemitério surgia de quando em
quando um rosto de demônio, a vigiar-nos” (Ramos, 1994, p. 198,
v. 1). A degradação anunciava-se.
Na
segunda parte, Pavilhão dos primários, o narrador conhece
muitas pessoas, faz novas amizades, porém o clima de opressão
é intenso: os policias freqüentemente abusavam da tortura física
e da pressão psicológica. O dia de amanhã era uma incerteza.
A luta pela sobrevivência, na prisão, torna-se uma caçada, “cheia
de tocaias e mundéus traiçoeiros” (Ramos, 1994, p. 260, v. 1).
E, nessa caçada, “a eliminação de uma vida pouco influiria no
cadastro policial: uma vida a menos” (Ramos, 1994, p. 330, v.
1). Como resultado disso, os nervos dos presos ficavam em frangalhos.
Na terceira parte,
Colônia correcional, ocorre o ápice da degradação do
ser humano. Lá os presos conviviam com a sujeira, com a fome,
com a dor, enfim, com a morte. Quando morriam, eram enterrados
em valas, como lixo. Os homens vivem a se contorcer de dor,
porque, no feijão, misturava-se excrementos de ratos e potassa,
que provocam cólicas violentas, decompondo fisionomias. “A educação
desaparecera completamente, sumiam-se os últimos resquícios
de compostura, e os infelizes procediam como selvagens. Na verdade,
éramos selvagens” (Ramos, 1994, p. 77, v. 2). O próprio narrador
passa mal e depara-se com quatro ou seis latrinas “sem vasos,
buracos apenas, lavados por freqüentes descargas rumorosas”
(Ramos, 1994, p. 80, v. 2). Era um quadro inverossímil, tanto
que ele se sente como se estivesse tendo uma visão de pesadelo:
“As pessoas agachadas
contorciam-se em longos tenesmos, retardavam-se arfando; limpavam-se
em farrapos, lenços, fraldas de camisas, erguiam-se exaustas,
e ao cabo de minutos várias iam de novo contrair-se numa cauda
de fila. Passariam a noite a arrastar-se na viagem de alguns
metros, nas horríveis estações. Os sucessivos jatos de água
lavavam nádegas. Apesar disso, havia filetes de sangue, às margens
das latrinas, coágulos de sangue.” (Ramos, 1994, p. 81, v. 2).
Na
última parte, Casa de correção, Graciliano e outros presos
que conseguiram sobreviver à Colônia, são transferidos novamente
para a Casa de Detenção. Lá observam a desfiguração, eram fantasmas,
cadavéricos em decorrência da dor suportada. Graciliano, por
exemplo, “estava medonho, magro, barbado, covas no rosto cheio
de pregas, os olhos duros encovados” (Ramos, 1994, p. 191, v.
2). O narrador efetuou uma descida gradual às trevas; a prisão,
na verdade, é um enfrentamento com as trevas.
Na
prisão, a impressão do narrador é “de que apenas desejam esmagar-nos,
pulverizar-nos, suprimir o direito de nos sentarmos ou dormir
se estamos cansados” (Ramos, 1994, p. 63, v. 1) e, a partir
dessa situação, ele se questiona da necessidade da despersonalização.
Ela é necessária, pois o Estado quer homens pulverizados, esmagados,
anulados, justamente para não questionarem os rumos políticos
do país. Mas, mesmo assim, com íntima identidade ética e estética,
Graciliano Ramos consegue fazer uma autópsia do país.
“O
congresso apavorava-se, largava bambo as leis de arrocho – vivíamos
de fato numa ditadura sem freio. Esmorecida a resistência, dissolvidos
os últimos comícios, mortos ou torturados operários e pequeno-burgueses
comprometidos, escritores e jornalistas a desdizer-se, a gaguejar,
todas as poltronices a inclinar-se para a direita, quase nada
poderíamos fazer perdidos na multidão de carneiros.” (Ramos,
1994, p. 51, v.1).
A
imagem da população como um rebanho de carneiros simboliza a
submissão, pois os carneiros são animais facilmente domesticados,
dóceis e aparentemente desprotegidos. Os cidadãos, nesse contexto,
tornam-se uma espécie de marionete nas mãos dos aliados do governo
(policiais, mídia). O narrador afirma que esse governo constantemente
simula conjunturas, grandes perigos para poder usar a estratégia
de que só ele é capaz de salvar o país:
“A
pequena burguesia ainda se arrepiava, imaginando os perigos
de que se livraria em noite de bombardeio e sangueira, e os
vencedores lhe surgiam como heróis, a monopolizar a gratidão
nacional. Um governo corrupto disfarçava as mazelas e restaurava-se,
coloria-se de novo, expunha-se à luz favorável. Todos os meios
de publicidade a articular-se contra nós, nenhuma defesa”. (Ramos,
1994, p. 288, v. 1).
Volta
a questão da manutenção da tradição, e a expressão “coloria-se
de novo” pode ser interpretada, como disfarçar-se, maquiar-se,
e, diante disso, o novo sempre continua surgindo como desdobramento
do velho. O governo e a classe dominante não têm interesse em
uma maior abertura da ordem social, por isso aumentam “a eficácia
dos mecanismos de segurança da ordem ou repressão policial-militar”
(Fernandes, 1974, p. 48). As Memórias do cárcere acabam
sendo, então, uma forma de se ter contato com a realidade da
década de 30, elas são um “testemunho da truculência, da violência
e do atraso político-social em que as classes hegemônicas têm,
via repressão, mantido o país, a fim de assegurar sua dominação”
(Facioli, 1987, p. 59).
Desde
o início da narração, percebe-se que o escritor sente uma “antipatia
visceral pelo estado prepotente, pela polícia brutal” (Bosi,
1995, p. 311). Além disso, ele tem consciência dos “estragos”
do capitalismo, que monopoliza e sufoca o trabalhador:
“Os homens do primado espiritual
vivem bem, tratavam do corpo, mas nós, desgraçados materialistas,
alojados em um quarto de pensão, como ratos em tocas, a pão
e laranja, como se diz na minha terra, quase nos reduzimos a
simples espíritos. E como outros espíritos miúdos dependiam
de nós e era preciso calçá-los, vesti-los, alimentá-los (...),
abandonamos as tarefas de longo prazo, caímos na labuta diária,
contando linhas, fabricamos artigos, sapecamos traduções, consertamos
engulhando produtos alheios. De certa forma nos acanalhamos.”
(Ramos, 1994, p. 34, v. 1).
O
escritor, como uma peça da engrenagem capitalista, vê-se aprisionado
pela rotina e pela necessidade de produzir para poder viver.
Isso se estende ao narrador que também é impedido de narrar
“pelo mundo administrado, pela estandartização e pela mesmice”
(Adorno, 1983, p. 270). O ser humano torna-se como um “lubrificante
para o andamento macio da maquinaria” (Idem, ibidem), ou seja,
“o embrutecimento era necessário. Sem ele, como se poderia agüentar
políticos safados e generais analfabetos?” (Ramos, 1994, p.
41, v. 1).
Pode-se
subtrair o comprometimento do narrador (e aí se pode dizer que
está também a voz de Graciliano Ramos cidadão e escritor), pois
ele assume uma postura favorável à justiça e aos direitos humanos.
A obra é bastante revolucionária, porque, como diz Gonçalves
(1987, p. 254), pinta a sociedade sem máscaras, mostrando-a
como uma estrutura esclerosada, viciada nas origens, que não
aceita “as possibilidades de evolução e libertação do homem”.
Em muitos momentos, como se verificou, o narrador, nas suas
digressões, reflete sobre questões sociais e expressa a sua
repulsa ao Sistema, achando injustas essas discrepâncias.
Sendo
assim, através das reminiscências do narrador, o leitor tem
a oportunidade de saber o que representou o período ditatorial,
sendo sinônimo de estagnação da nação e de um retrocesso, em
termos de humanização. Além do mais, ele pode apreender a situação
do prisioneiro, subjugado e degradado, em face a um Estado de
Exceção. A partir dessa experiência demonstrada em Memórias
do cárcere, provavelmente ficará mais fácil elaborar o seu
julgamento e compreender melhor o presente, já que ainda há
muitos resquícios do conservadorismo e da manipulação exercida
pelos meios de comunicação.
Para
se entender o passado, é preciso ir além da história difundida
pelo senso comum, pois esta, muitas vezes, é uma história “cega”,
que tem como meta a alienação e a manutenção da tradição. Gagnebin
(1982, p. 70), reforça que o passado deve ser revisto, sob o
prisma do presente, porém “a coincidência do passado com o presente
não deve (...) liberar o indivíduo do jugo do tempo, mas operar
uma espécie de condensação que permita ao presente reencontrar,
reativar um aspecto perdido do passado, e retomar, por assim
dizer, o fio de uma história inacabada, para tecer-lhe a continuação”.
O que deve acontecer é uma releitura do passado, de modo a que
se forme uma leitura plausível da realidade. Ilustrativamente,
pode-se reportar para uma das idéias de Benjamin [s.d.], a de
que o homem contemporâneo deve-se deitar como um recém-nascido
nas fraldas sujas da sua época. As fezes representam a decomposição
do presente, erigido com a morte de muitas vítimas do passado.
Em
Memórias do cárcere, como se evidenciou, Graciliano Ramos
tece o testemunho de uma época, fazendo essa releitura do passado.
É também o testemunho de um homem que viu e sentiu o horror
de perto. Diante disso, como lembrar? Como esquecer? O certo
é que a política da memória é vital contra a política do esquecimento.
A memória, desse modo, deve constitui-se como construção e alteração
da verdade.
A
rememoração de Graciliano Ramos é entrecortada por lapsos, lacunas,
vestígios de memória, e a sua escrita perfaz um caminho semelhante
ao da memória, cujo resultado “são as idas-e-vindas, interrupções
e retomadas da matéria narrada, as anexações parciais e nunca
integrais dos conteúdos da experiência, as reminiscências arredias
a articulações definitivas” (Miranda, 1992, p. 121). Em decorrência
disso, é possível dizer que ele é uma espécie de “escritor –
Penélope”, semelhantemente à Penélope, esposa de Ulisses, que
costurava a mortalha para Laertes durante o dia e descosturava
durante a noite, pois fia e desfia suas reminiscências, fragmenta-as,
tece pelo viés da lembrança ou do esquecimento. Como complementa
Seligmann-Silva (1999, p. 45), esquecer e lembrar estão muito
próximos: “a memória só existe ao lado do esquecimento: um completa
e alimenta o outro”.
Portanto,
esta obra possibilita esse entrecruzar de olhares, a História
é resgatada, revista, restando também para o leitor um trabalho
de tecelão, ou seja, unir os fios do passado esquecido com os
do presente para tecer uma continuação. A obra oferece os instrumentos,
a linha e agulha, basta alinhavar os acontecimentos para se
compreender melhor a História e a própria sociedade.
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