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MEMÓRIAS DO CÁRCERE
: UMA POSSIBILIDADE DE RELEITURA DA HISTÓRIA

Joselaine Brondani Medeiros [1]

 

 

A obra Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, publicada em 1953, após a sua morte, retrata o período em que o escritor esteve preso em 1936, vítima da ditadura estado-novista em vias de instauração. As quatro partes que compõem a obra – Viagens, Pavilhão dos primários, Colônia correcional e Casa de correção – dão uma visão aprofundada da realidade do país e da situação do preso na década de 30. O cárcere, na obra, desnuda-se, sendo sinônimo de desumanização e desrespeito à vida humana. O ser humano, nesse ambiente, é despersonalizado, degradado e coibido dos seus direitos. Daí se depreende o viés de denúncia e de crítica social presente na obra, à medida que faz referência direta à opressão política, e o cunho testemunhal, abrindo um espaço para os silenciados e mostrando uma outra versão da História. A obra, desse modo, torna-se uma forma de questionamento da historiografia oficial, uma vez que abre sulcos de tensões sociais e políticas muitas vezes não revelados e aponta novos olhares à sociedade e ao próprio ser humano. Ela, usando uma expressão de Walter Benjamin, tenta escovar a História “a contrapelo”.

Para viver ou conviver em sociedade, as pessoas precisam se relacionar, trocar experiências, comunicar-se, no sentido de manterem um diálogo e serem compreendidas. É necessário, para o ser humano social, a interação, pois, aparentemente, ninguém consegue viver sozinho ou isolado. Quando há essa comunicação e essa troca de vivências, há crescimento, há aprendizado e há reflexão sobre determinado assunto ou problema.

Metaforicamente, pode-se pensar que a Literatura sofre um processo semelhante, enriquecendo-se à medida que dialoga com outras áreas do conhecimento, como, por exemplo, com a História e com a Sociologia. Em muitas obras literárias, de modo implícito ou explícito, há uma articulação entre o texto e o contexto. Isso quer dizer que as obras tentam reordenar certos aspectos da realidade ou do contexto social. 

A questão social, desse modo, é importante e representativa nas obras literárias. No entanto, a obra literária também é relevante para se entender a sociedade, uma vez que talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Em meio a todas essas questões sociais, como afirma Rosenfeld (1976, p. 57), não se pode esquecer que “de modo algum a obra literária pode ser reduzida a condicionamentos sociais”. Os valores estéticos são imprescindíveis para a garantia da literariedade, que, de uma maneira ou outra, facilita o caráter transcendental de uma obra. Não ocorre, desse modo, um jogo de exclusão, no qual se escolhe “cara ou coroa”, “texto ou contexto”. No “jogo” entre a arte e a sociedade, não há perdedores, porque ambas estão concatenadas e se inter-relacionam, sendo, portanto, indissociáveis.

“[A]ntes se procurava mostrar que o valor e o significado de uma obra dependiam de ela exprimir ou não certo aspecto da realidade, e que este aspecto constituía o que ela tinha de essencial. Depois, chegou-se à posição oposta, procurando-se mostrar que a matéria de uma obra é secundária, e que sua importância deriva das operações formais postas em jogo, conferindo-lhe uma peculiaridade que a torna de fato independente de quaisquer condicionamentos, sobretudo social. Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra.” (Candido, 1973, p. 4).

A partir das idéias de Candido (1973), expressas na citação, nota-se que o equilíbrio entre a forma e o conteúdo é essencial, pois resulta numa maior valoração da obra literária. Monteiro (1987 p. 269) confirma que o romance não pode ser uma transcrição fiel da realidade, mas sim uma depuração dela, sendo, então, “o amadurecimento duma experiência e não a tradução das aspirações que irão formar, quando realizadas, a nova fisionomia da nação”. A prosa não pode ficar em uma estufa, como se estivesse vegetando, porque cairia na superficialidade: ela tem de ser uma recriação a partir da vida, do contexto, sem fórmulas pré-concebidas ou repetições, não condizentes com a realidade do país.

Ao integrar a sociedade e as áreas afins, dependendo, obviamente, do autor e de sua ideologia, pode acontecer uma reconstrução da História, que não será mais a dos vencedores e sim a dos vencidos: a dos que foram esquecidos ou ficaram mergulhados no passado. E, quando se resgata essa História, vindo à tona a barbárie, o massacre e o autoritarismo do passado, entende-se, com mais clareza, os acontecimentos presentes, questionando-os e assumindo uma postura mais crítica e reflexiva.

A obra Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, possibilita uma maior reflexão e questionamento da sociedade brasileira, porque há fortes amarras direcionadas à justiça social, à crítica social e, sobretudo, à crítica à ditadura, que em 1936 estava em vias de implantação.

“A minha educação estúpida não admitia que o ser humano fosse batido e pudesse conservar qualquer vestígio de dignidade (...) era a degradação irremediável. Lembrava o eito, a senzala, o tronco, o feitor, o capitão-do-mato. O relho, a palmatória, sibilando, estalando no silêncio da meia-noite, chumaço de pano sujo na boca de um infeliz, cortando-lhe a respiração. E nenhuma defesa: um infortúnio sucumbido, de músculos relaxados, a vontade suspensa, miserável trapo. Em seguida o aviltamento.” (Ramos, 1994, p. 141, v. 1).

A crítica ao sistema é bastante explícita, tanto que o narrador equipara o que está vivenciando à época da escravidão, onde os negros eram açoitados e maltratados pelos capitães-do-mato, a mando dos senhores. A escravidão denota ausência de liberdade, violência, submissão e degradação do ser humano. O preso não passa de um escravo, porém sob os olhos de novos algozes, a polícia e o governo. Para se fazer essa leitura, deve-se buscar sustentações na História e na Sociologia, daí a necessidade desse entrecruzar de olhares.

O autor-narrador Graciliano Ramos é um prisioneiro, que sente na pele o horror e a incivilidade do cárcere. E, ao relatar esse evento, ele não poupa críticas ao sistema vigente, que avilta e inferioriza o ser humano, não compartilhando e, sobretudo, rechaçando o discurso preconizado pela elite. A ditadura e o governo são totalmente desmascarados na obra, e as lacunas vendadas pela História tornam-se conhecidas, evidenciam-se de tal forma que as injustiças e os terrorismos passam a protagonizar no cenário:

“Entre um chamado e a última palavra uma pausa se alargara, talvez com o intuito perverso de dar ao infeliz uma esperança tênue.  Pata macia de gato acariciando um rato.  Em horas assim este se encolhe cheio de pavor, agarra-se a ilusões fugitivas, busca imaginar ocorrências vulgares: ida à secretaria, visita inesperada, uma carta improvável. Engana-se voluntariamente, esforça-se por afastar a lembrança das torturas, ali visíveis na pele, desalenta-se ouvindo as sílabas fatais, e a significação delas surge clara: perguntas invariáveis multiplicadas, a exigir denúncia, a teimosia do paciente punida com sevícias: golpe de borracha, alicate nas unhas, o fogo do maçarico destruindo carnes.” (Ramos, 1994, p. 358, v. 1).

Muitos discursos (da época ou, até mesmo, da atualidade) não esclarecem o que aconteceu com os presos políticos. Em apenas uma passagem dessa obra, já se pode imaginar as atrocidades praticadas pela polícia e a dor (exterior e interior) suportada pelos prisioneiros. Eles são como ratos na toca do gato (representantes da ordem), e os ratos são devorados pelo gato. Por trás da pele macia do gato, na verdade, há garras afiadas, prontas para atacar.

É oportuno diferenciar, neste momento, o historicismo e o materialismo histórico, sendo que neste há uma abordagem dos problemas sociais, sem camuflagem da realidade, que é vista como um processo de constante transformação; já naquele há uma apresentação mecânica da História, com o obscurecimento de determinados fatos a fim de evitar a crítica social. O autor historicista, segundo Gagnebin (1982, p. 65), “descreve o vasto espetáculo universal, mas não o questiona; está, conseqüentemente, bem longe de poder discernir por detrás da história dos vencedores as tentativas de uma outra história que fracassou”. O materialista, por sua vez, tem a tarefa de “saber ler e escrever uma outra história, uma espécie de anti-história, uma história a ‘contrapelo’” (Gagnebin, 1982, p. 66).

Acredita-se que é preciso, antes de qualquer coisa, ver criticamente como a sociedade foi gerada e como as revoluções, geralmente encabeçadas por grandes líderes, como, por exemplo, Getulio Vargas, o sempre lembrado “pai dos pobres”, ocorreram: com sangue de muitas vítimas não lembradas pela História. Ou seja, houve (e há), na sociedade, exclusão social, violência, miséria e inúmeras formas de discriminação, e essa História não pode passar despercebida.

A nossa sociedade nasceu sob a égide do autoritarismo, porém nem sempre essa História de opressão, de destruição e de violência é lembrada. Então, é preciso lutar para desmascarar os vencedores, aqueles que continuam esmagando os corpos dos que estão prostrados no chão. Da formação até a consolidação da sociedade, há um acúmulo de mortes que servem de aresta de sustentação para o exercício da dominação e, se não se “escovar a história a contrapelo” (Benjamin, [s.d.], p. 225), a elite sempre triunfará. A Literatura pode exercer a função de escovar a história a contrapelo, sendo, metaforicamente, semelhante ao anjo do quadro de Klee, visto por Benjamin ([s.d.]: “[s]eus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos.” (p. 226).

Segundo Rosenfield (2001), esses aspectos não são tão visíveis a olho nu ou a um olho despercebido, visto que, no quadro, a figura parece estática e sem a expressão suposta por Benjamin. É preciso ter um olhar tridimensional, que, de alguma forma, capte o que há por trás dele. Olhando através do quadro, volta-se para o passado, e o passado é marcado pelo horror. Como o ser humano é fruto desse passado catastrófico, os olhos estão arregalados. Benjamin como que dramatiza o quadro, “vendo com o olho da mente, da memória e da imaginação” (Rosenfield, 2001). Essa espécie de encenação traduz o drama apocalíptico que se estende do início ao fim da História.

Como aponta Gagnebin (1999), a Literatura sempre se preocupou com o ato de contar, mas afinal o que é contar uma história e qual a sua importância, o seu significado? A partir desse questionamento, e associando a imagem vista por Benjamin do quadro de Klee, pode-se imaginar (assumindo uma postura benjaminiana) que o narrador deve ser como o anjo, supostamente rico em experiências para contar.  No entanto, o anjo está com os olhos arregalados, como que temeroso, e daí, infere-se que nem tudo ele pode contar, porque há uma incapacidade crescente de contar, “porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheira, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes” (Benjamim, [s.d.], p. 115). A maioria das experiências, após acontecimentos, como a guerra e a industrialização, passam a ser incomunicáveis.

Assim, “a única experiência que pode ser ensinada hoje é a de sua própria impossibilidade, da interdição da partilha, da proibição da memória e dos rastros” (Gagnebin, 1999, p. 61). Mas o que isso tem a ver com o narrador? O narrador acaba sendo privado da “faculdade de intercambiar experiências” (Benjamin, [s.d.], p. 198). A narração na modernidade, segundo Benjamin [s.d.], acaba substituída pela informação, que já vem deglutida, interpretada. Daí resulta o empobrecimento da experiência.

Conclui-se que o narrador, semelhantemente ao historiador materialista, enfrenta uma situação paradoxal: “narrar o inarrável”. Sob esse prisma, “o que se opõe a essa tarefa de retomada salvadora do passado não é somente o fim de uma tradição e de uma experiência compartilhada; mais profundamente, é a realidade do sofrimento, de um sofrimento tal que não pode depositar-se em experiências comunicáveis, que não pode dobrar-se à junção, à sintaxe de nossas proposições” (Gagnebin, 1999 p. 63). É preciso resgatar o passado, colar os seus cacos, porém não é tão fácil como parece a princípio, uma vez que, ao resgatá-lo, depara-se com sofrimento e com dor.

Em meio a essa situação paradoxal, o que deve ficar claro é que a narração é relevante para “a constituição do sujeito” (Gagnebin, 1999, p. 3) e que o narrador deve tentar vencer a dificuldade de narrar, porque o passado deve ser retomado para não ser sufocado pelo silêncio e pelo esquecimento.

Em Memória do cárcere, é possível dizer que o autor-narrador tenta “olhar com olhos bem abertos” a História; olha, como Benjamin, com o olho da mente, da memória e da imaginação, mostrando a ruína do ser humano e a barbárie que acomete a civilização carcerária no período ditatorial, apesar da dificuldade e do esquecimento. Assim como o anjo se volta para o passado, o narrador rememora uma parte do passado, vendo os escombros contidos nela.

Pode-se, então, inferir que Graciliano Ramos é como um historiador materialista, que aborda os problemas sociais, sem camuflagem da realidade. Graciliano Ramos, através da voz do narrador de Memórias do cárcere, tenta resgatar um passado (ou, pelo menos, parte dele) caótico e fragmentado, tanto que, segundo Facioli (1993, p. 68), este romance “produziu cadáveres desse mundo em dissociação”. O próprio autor afirma que, como se vive sob as sepulturas, é preciso relatar cadáveres. Aí está a causa dele estar voltado para o passado e para a barbárie.

O autor-narrador de Memórias do cárcere sopra o vento da denúncia, da contestação, fazendo com que o leitor seja arrastado para o passado, e, junto com ele, vivencie as arbitrariedades da polícia, que representa a lei e o Estado. Nas quatro partes que compõe a obra – Viagens, Pavilhão dos primários, Colônia correcional e Casa de correção – há amostras de como eram tratados os presos, ou seja, nada significavam para o Estado, não eram mais pessoas, “mas um embrulho que rola em direção a um destino desconhecido” (Viñar, 1992, p. 21). Nelas, há o percurso, ou melhor, o calvário do narrador-personagem que sai de sua terra natal, Alagoas, para os cárceres do Rio de Janeiro.

Na primeira parte, Viagens, ele narra sua prisão, em Maceió, sem interrogatório, acusação ou processo formal e suas posteriores “viagens”: de trem para Recife e de navio para o Rio de Janeiro. Desde o início, percebe que o intuito dos militares é “vilipendiar os seus hóspedes”. No porão do navio Manaus, os presos conviviam diariamente com a promiscuidade, com sujeira, com o  fedor e com o calor. Os homens dormiam em redes ou no chão junto a cascas de laranjas, vômitos e urina. As pessoas eram semelhantes a cadáveres, sonâmbulas, a passar pelo cemitério: “era como se me achasse numa vala, único sobrevivente no meio de cadáveres, e nas grades do cemitério surgia de quando em quando um rosto de demônio, a vigiar-nos” (Ramos, 1994, p. 198, v. 1). A degradação anunciava-se.

Na segunda parte, Pavilhão dos primários, o narrador conhece muitas pessoas, faz novas amizades, porém o clima de opressão é intenso: os policias freqüentemente abusavam da tortura física e da pressão psicológica. O dia de amanhã era uma incerteza. A luta pela sobrevivência, na prisão, torna-se uma caçada, “cheia de tocaias e mundéus traiçoeiros” (Ramos, 1994, p. 260, v. 1). E, nessa caçada, “a eliminação de uma vida pouco influiria no cadastro policial: uma vida a menos” (Ramos, 1994, p. 330, v. 1). Como resultado disso, os nervos dos presos ficavam em frangalhos.

Na terceira parte, Colônia correcional, ocorre o ápice da degradação do ser humano. Lá os presos conviviam com a sujeira, com a fome, com a dor, enfim, com a morte. Quando morriam, eram enterrados em valas, como lixo. Os homens vivem a se contorcer de dor, porque, no feijão, misturava-se excrementos de ratos e potassa, que provocam cólicas violentas, decompondo fisionomias. “A educação desaparecera completamente, sumiam-se os últimos resquícios de compostura, e os infelizes procediam como selvagens. Na verdade, éramos selvagens” (Ramos, 1994, p. 77, v. 2). O próprio narrador passa mal e depara-se com quatro ou seis latrinas “sem vasos, buracos apenas, lavados por freqüentes descargas rumorosas” (Ramos, 1994, p. 80, v. 2). Era um quadro inverossímil, tanto que ele se sente como se estivesse tendo uma visão de pesadelo:

“As pessoas agachadas contorciam-se em longos tenesmos, retardavam-se arfando; limpavam-se em farrapos, lenços, fraldas de camisas, erguiam-se exaustas, e ao cabo de minutos várias iam de novo contrair-se numa cauda de fila. Passariam a noite a arrastar-se na viagem de alguns metros, nas horríveis estações. Os sucessivos jatos de água lavavam nádegas. Apesar disso, havia filetes de sangue, às margens das latrinas, coágulos de sangue.” (Ramos, 1994, p. 81, v. 2).

Na última parte, Casa de correção, Graciliano e outros presos que conseguiram sobreviver à Colônia, são transferidos novamente para a Casa de Detenção. Lá observam a desfiguração, eram fantasmas, cadavéricos em decorrência da dor suportada. Graciliano, por exemplo, “estava medonho, magro, barbado, covas no rosto cheio de pregas, os olhos duros encovados” (Ramos, 1994, p. 191, v. 2). O narrador efetuou uma descida gradual às trevas; a prisão, na verdade, é um enfrentamento com as trevas.

Na prisão, a impressão do narrador é “de que apenas desejam esmagar-nos, pulverizar-nos, suprimir o direito de nos sentarmos ou dormir se estamos cansados” (Ramos, 1994, p. 63, v. 1) e, a partir dessa situação, ele se questiona da necessidade da despersonalização. Ela é necessária, pois o Estado quer homens pulverizados, esmagados, anulados, justamente para não questionarem os rumos políticos do país. Mas, mesmo assim, com íntima identidade ética e estética, Graciliano Ramos consegue fazer uma autópsia do país.

“O congresso apavorava-se, largava bambo as leis de arrocho – vivíamos de fato numa ditadura sem freio. Esmorecida a resistência, dissolvidos os últimos comícios, mortos ou torturados operários e pequeno-burgueses comprometidos, escritores e jornalistas a desdizer-se, a gaguejar, todas as poltronices a inclinar-se para a direita, quase nada poderíamos fazer perdidos na multidão de carneiros.” (Ramos, 1994, p. 51, v.1).

A imagem da população como um rebanho de carneiros simboliza a submissão, pois os carneiros são animais facilmente domesticados, dóceis e aparentemente desprotegidos. Os cidadãos, nesse contexto, tornam-se uma espécie de marionete nas mãos dos aliados do governo (policiais, mídia). O narrador afirma que esse governo constantemente simula conjunturas, grandes perigos para poder usar a estratégia de que só ele é capaz de salvar o país:

“A pequena burguesia ainda se arrepiava, imaginando os perigos de que se livraria em noite de bombardeio e sangueira, e os vencedores lhe surgiam como heróis, a monopolizar a gratidão nacional. Um governo corrupto disfarçava as mazelas e restaurava-se, coloria-se de novo, expunha-se à luz favorável. Todos os meios de publicidade a articular-se contra nós, nenhuma defesa”. (Ramos, 1994, p. 288, v. 1).

Volta a questão da manutenção da tradição, e a expressão “coloria-se de novo” pode ser interpretada, como disfarçar-se, maquiar-se, e, diante disso, o novo sempre continua surgindo como desdobramento do velho. O governo e a classe dominante não têm interesse em uma maior abertura da ordem social, por isso aumentam “a eficácia dos mecanismos de segurança da ordem ou repressão policial-militar” (Fernandes, 1974, p. 48). As Memórias do cárcere acabam sendo, então, uma forma de se ter contato com a realidade da década de 30, elas são um “testemunho da truculência, da violência e do atraso político-social em que as classes hegemônicas têm, via repressão, mantido o país, a fim de assegurar sua dominação” (Facioli, 1987, p. 59).

Desde o início da narração, percebe-se que o escritor sente uma “antipatia visceral pelo estado prepotente, pela polícia brutal” (Bosi, 1995, p. 311). Além disso, ele tem consciência dos “estragos” do capitalismo, que monopoliza e sufoca o trabalhador:

“Os homens do primado espiritual vivem bem, tratavam do corpo, mas nós, desgraçados materialistas, alojados em um quarto de pensão, como ratos em tocas, a pão e laranja, como se diz na minha terra, quase nos reduzimos a simples espíritos. E como outros espíritos miúdos dependiam de nós e era preciso calçá-los, vesti-los, alimentá-los (...), abandonamos as tarefas de longo prazo, caímos na labuta diária, contando linhas, fabricamos artigos, sapecamos traduções, consertamos engulhando produtos alheios. De certa forma nos acanalhamos.” (Ramos, 1994, p. 34, v. 1).

O escritor, como uma peça da engrenagem capitalista, vê-se aprisionado pela rotina e pela necessidade de produzir para poder viver. Isso se estende ao narrador que também é impedido de narrar “pelo mundo administrado, pela estandartização e pela mesmice” (Adorno, 1983, p. 270). O ser humano torna-se como um “lubrificante para o andamento macio da maquinaria” (Idem, ibidem), ou seja, “o embrutecimento era necessário. Sem ele, como se poderia agüentar políticos safados e generais analfabetos?” (Ramos, 1994, p. 41, v. 1).

Pode-se subtrair o comprometimento do narrador (e aí se pode dizer que está também a voz de Graciliano Ramos cidadão e escritor), pois ele assume uma postura favorável à justiça e aos direitos humanos. A obra é bastante revolucionária, porque, como diz Gonçalves (1987, p. 254), pinta a sociedade sem máscaras, mostrando-a como uma estrutura esclerosada, viciada nas origens, que não aceita “as possibilidades de evolução e libertação do homem”. Em muitos momentos, como se verificou, o narrador, nas suas digressões, reflete sobre questões sociais e expressa a sua repulsa ao Sistema, achando injustas essas discrepâncias.

Sendo assim, através das reminiscências do narrador, o leitor tem a oportunidade de saber o que representou o período ditatorial, sendo sinônimo de estagnação da nação e de um retrocesso, em termos de humanização. Além do mais, ele pode apreender a situação do prisioneiro, subjugado e degradado, em face a um Estado de Exceção. A partir dessa experiência demonstrada em Memórias do cárcere, provavelmente ficará mais fácil elaborar o seu julgamento e compreender melhor o presente, já que ainda há muitos resquícios do conservadorismo e da manipulação exercida pelos meios de comunicação.

Para se entender o passado, é preciso ir além da história difundida pelo senso comum, pois esta, muitas vezes, é uma história “cega”, que tem como meta a alienação e a manutenção da tradição. Gagnebin (1982, p. 70), reforça que o passado deve ser revisto, sob o prisma do presente, porém “a coincidência do passado com o presente não deve (...) liberar o indivíduo do jugo do tempo, mas operar uma espécie de condensação que permita ao presente reencontrar, reativar um aspecto perdido do passado, e retomar, por assim dizer, o fio de uma história inacabada, para tecer-lhe a continuação”. O que deve acontecer é uma releitura do passado, de modo a que se forme uma leitura plausível da realidade. Ilustrativamente, pode-se reportar para uma das idéias de Benjamin [s.d.], a de que o homem contemporâneo deve-se deitar como um recém-nascido nas fraldas sujas da sua época. As fezes representam a decomposição do presente, erigido com a morte de muitas vítimas do passado.

Em Memórias do cárcere, como se evidenciou, Graciliano Ramos tece o testemunho de uma época, fazendo essa releitura do passado. É também o testemunho de um homem que viu e sentiu o horror de perto. Diante disso, como lembrar? Como esquecer? O certo é que a política da memória é vital contra a política do esquecimento. A memória, desse modo, deve constitui-se como construção e alteração da verdade.

A rememoração de Graciliano Ramos é entrecortada por lapsos, lacunas, vestígios de memória, e a sua escrita perfaz um caminho semelhante ao da memória, cujo resultado “são as idas-e-vindas, interrupções e retomadas da matéria narrada, as anexações parciais e nunca integrais dos conteúdos da experiência, as reminiscências arredias a articulações definitivas” (Miranda, 1992, p. 121). Em decorrência disso, é possível dizer que ele é uma espécie de “escritor – Penélope”, semelhantemente à Penélope, esposa de Ulisses, que costurava a mortalha para Laertes durante o dia e descosturava durante a noite, pois fia e desfia suas reminiscências, fragmenta-as, tece pelo viés da lembrança ou do esquecimento. Como complementa Seligmann-Silva (1999, p. 45), esquecer e lembrar estão muito próximos: “a memória só existe ao lado do esquecimento: um completa e alimenta o outro”.

Portanto, esta obra possibilita esse entrecruzar de olhares, a História é resgatada, revista, restando também para o leitor um trabalho de tecelão, ou seja, unir os fios do passado esquecido com os do presente para tecer uma continuação. A obra oferece os instrumentos, a linha e agulha, basta alinhavar os acontecimentos para se compreender melhor a História e a própria sociedade.

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[1] Mestre em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).



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