Introdução
Perto
do coração selvagem, romance de Clarice Lispector, provocou
um verdadeiro ‘frisson’ no meio acadêmico. Rompendo com os padrões
estéticos que caracterizavam a escritura de outros textos da
época, mais realistas e previsíveis em termos de conteúdo e
forma, esta obra enigmática para muitos, instigante para outros,
revoluciona o universo literário pela força incomum com que
o corpo e os sentidos são evocados e trabalhados no texto, revelando
de modo insólito e impactante, o mergulho da escritora no universo
feminino e sua tentativa de captar e traduzir os mistérios irrevelados
do ser mulher através da relação corpo/saber. Escrito na década
de quarenta, Clarice Lispector já mostrava através de seu romance
de estréia, o feminino em mudança. A análise aqui desenvolvida
tem o propósito de apontar o modo como este romance provoca
certos deslocamentos sociais e ideológicos na medida em que
as inscrições do saber são processadas através do corpo, invertendo,
dessa forma, os paradigmas tradicionais sobre a aquisição de
conhecimento sustentada na e pela razão. Isso implica, necessariamente,
assinalar questões relativas à produção de sentido e às relações
de poder e dominação que marcam tanto os limites como as posições
dos sujeitos na conjuntura social.
Perto
do coração selvagem
O
estudo da personagem central do romance, Joana, revela uma mulher
que se encontra à frente de seu tempo; uma mulher que busca
no corpo e nos sentidos, espaço gerador de conhecimento. Os
pensamentos e atitudes de Joana são próprios de um ser humano
questionador, vibrante, uma mulher que não se sujeita a programações
tradicionais, distanciando-se, desta maneira, do destino pré-concebido
em relação ao sexo feminino. Quase não existem descrições físicas
da personagem ao longo do texto, por outro lado, há uma riqueza
de detalhes em relação aos seus mais profundos sentimentos e
sensações: alegrias, inquietações, anseios e frustrações. Movimentando-se
continuamente entre as várias fases da vida da personagem, o
fluxo narrativo confere ao texto uma dinâmica ímpar permitindo
ao leitor acompanhar a trajetória de Joana da infância à vida
adulta. Desde o início do romance, a personagem de Lispector
demonstra um nível de consciência e de percepção extraordinários.
O capítulo inicial exemplifica essa característica, apontando
a tentativa da personagem de captar a essência dos elementos
e dos seres com os quais ela tem contato no dia-a-dia. Ainda
pequena, a protagonista é uma criança com um desejo incomum
de experimentar novas sensações e participar ativamente do fluxo
da vida. Atenta a tudo o que acontece a sua volta, Joana criança,
é toda sensibilidade e intuição.
A
sinestesia é um traço marcante de sua personalidade. Esta anti-heroína
que deseja “mastigar vermelho”, “morder estrelas”, “engolir
fogo adocicado”, busca através do corpo uma forma de (re)significar
o mundo. Desafiando a ideologia dominante, Joana procura dentro
de si um animal perfeito (que aqui pode ser interpretado como
aquela parte do nosso ser que não se deixa domesticar, que não
se deixa amordaçar pelas instituições sociais) mas o receio
que a personagem demonstra em liberar esse ‘animal’ justifica-se
no sentido de que essa condição representaria uma outra forma
de estar no mundo, que se opõe ao modus operandi tradicional.
Joana é um ser dividido entre os impulsos que a estimulam a
“mergulhar em águas desconhecidas”, a “encontrar o centro luminoso
das coisas”, a comungar com tudo o que pulsa ao seu redor, ou
adequar-se às imposições sociais. Movida por sensações contraditórias,
a ambivalência é, pois, característica recorrente da personagem
como se constata em vários momentos da narrativa. Essa alternância
de sentimentos apresenta-se em forma de metáforas, e paradoxos
tais como “alegria quase horrível”, “alegria quase de chorar”
e “apertamento e afrouxamento do corpo”.
Da
combinação de emoções que se opõem, como dor e felicidade, atração
e repulsa, geradas através do corpo, surge uma linguagem distante
da tradicional, bastante sensorial que faz com que a personagem
não encontre palavras adequadas para traduzir seus sentimentos.
A partir do cruzamento dessas sensações, a escrita se constrói
de uma forma aparentemente ilógica, similar à transcrição de
um sonho – marca inconfundível da obra de Lispector conforme
a crítica literária. Como a narrativa tenta descrever a linguagem
do corpo, a escrita torna-se inevitavelmente carregada de sensualidade.
Na
tentativa de adequar a linguagem ao conteúdo narrado, ou seja,
às emoções, às intuições, ao inconsciente da personagem, a linguagem
deste romance “trai a afirmação da natureza racional da prosa”
como enfatizou Gotlib (1995, p. 184) e, conseqüentemente, provoca
uma ruptura em relação à forma, subvertendo o conceito tradicional
de enredo como uma combinação temporal de causa e efeito. Através
dessas sensações impetuosas, Joana procura conhecer-se intimamente.
O
ritmo crescente dos seus devaneios, a inquietação gerada diante
do mistério irrevelado de seu próprio ser, traz angústia à personagem
que deseja descobrir-se por inteiro. Joana é uma mulher que
espera mais da vida e se recusa a aceitar a rotina, o papel
adotado por tantas mulheres que a rodeiam. Com isso, ela acaba
criando uma atmosfera de distanciamento das pessoas com as quais
convive. Observa-se que a maioria delas não é capaz de entendê-la.
Quando Joana pega escondido um livro na livraria, provoca choque
e desconfiança na tia. Confessando o ato sem demonstrar culpa,
ela desafia regras estabelecidas, num gesto que pode ser interpretado
como um ato de resistência aos mecanismos culturais. “Sim”,
diz ela, “roubei porque quis. Só roubarei quando quiser. Não
faz mal nenhum” (p. 60).
O
silêncio da personagem é outro aspecto marcante de sua personalidade.
Nota-se que a linguagem falada é continuamente substituída pelo
silêncio, que, aqui, significa conhecimento; silêncio que é
sinônimo de aprendizagem, possibilitando a personagem a adquirir
novos ‘insights’ e opiniões sobre a vida. Pode-se afirmar que
o silêncio de Joana é um ‘silêncio fundador’, prenhe de significado.
Ao falar sobre o silêncio fundador, Orlandi (2001, p. 128) argumenta
que ele deve ser visto como “um espaço diferencial que permite
à linguagem significar”. O silêncio fundador é necessário aos
sentidos, ou seja, sem silêncio fundador não haveria sentido
e sim a linguagem incessante. Em Perto do coração selvagem,
a construção da identidade da personagem depende desse silêncio
que serve de mediador entre o seu pensamento, a linguagem e
o mundo. Refletindo sobre questões culturais, Kramsch (1998)
explica que o fenômeno cultural deve ser visto como uma combinação
de sons e silêncios, lugar de conflito, de afirmação do eu e
de aceitação do outro. Dentro dessa ótica, Joana simboliza o
indivíduo que, indo contra o saber oficial, cria estratégias
de resistência às concepções culturais tradicionais e luta pelo
reconhecimento e legitimação de novas formas de sentido.
Algumas
vezes Joana também utiliza a política do silêncio como forma
de se proteger de uma sociedade que não legitima suas práticas
sociais. Joana somente sai desse silêncio quando "subitamente
precisava por à prova seu poder, sentir a admiração das colegas
com quem pouco falava... Do silêncio em que se escondia, saía
para a luta” (162).
A
ausência de linguagem e o olhar direto e inquiridor de Joana
incomodam tanto a tia quanto o marido que não se sentem à vontade
diante do seu jeito calado de ser. Para eles, Joana não precisa
de ninguém e olha como se desejasse pisar as pessoas. Oralandi
(2001) assinala que o indivíduo não suporta a ausência de palavras
porque se torna difícil exercer seu controle e sua disciplina
quando o silêncio não fala. O silêncio assusta porque não está
disponível à visibilidade, não é diretamente observável. No
entanto, a teórica explica que, no silêncio, sentido e sujeito
se movem largamente. Estamos diante de uma anti-heroína que
ousa distanciar-se dos padrões que regulam a vida cotidiana
– uma personagem que experimenta a solidão, vivendo uma vida
que a empurra para um estado de exílio.
Mas
é este estar consigo mesma, esta forma de viver em verticalidade,
buscando refúgio na interioridade, que promove a condição de
libertação de Joana. Na dialética ser-consigo / ser-com-os outros,
Joana se submete de maneira voluntária e consciente a um estado
de introspecção. Seguindo esta linha de pensamento, observa-se
que este é o meio que a protagonista de Lispector encontra para
desfazer, gradativamente, o aprisionamento do sentido no signo
lingüístico, libertando-o para novos significados. Esta condição
de exílio que marca a trajetória da personagem não é sinônimo
de fechamento em relação ao outro, pelo contrário, estes momentos
de isolamento se caracterizam pelo estabelecimento de um embate
de vozes, pelo surgimento de uma tensão entre o pensamento
de Joana e a palavra alheia. Bakhtin (1988, p. 143) postulou
que a palavra é o fenômeno ideológico por excelência, pois está
impregnada de valores culturais que expressam as divergências
e as opiniões da sociedade.
O
texto de Lispector representa essa situação, uma vez que o pensamento
da protagonista se torna, empregando as palavras de Bakhtin,
“um palco ou uma arena de conflitos”; um ponto de encontro de
diferentes visões de mundo. Observa-se que, ao longo da narrativa,
Joana trava um diálogo mental com a palavra alheia, polemizando-a
e contrapondo-a a sua própria palavra. Mas como a sociedade
que está sendo representada no romance não está pronta para
acolher essa nova mulher que se percebe por vezes “forte e bela
como um cavalo solto na campina”, outras vezes, como alguém
“dividindo-se em milhares de partículas vivas (...) andando,
voando”, a protagonista de Lispector se debate entre a impossibilidade
de endossar os princípios norteadores da cultura dominante que
limita o indivíduo, e o desafio de desestabilizar as formas
de valor já sedimentadas. Ao promover deslocamentos em relação
à produção de conhecimento, o texto clariceano propõe reflexões
no que tange à formulação e a circulação do saber.
Fazendo
do corpo, locus privilegiado por onde o conhecimento
é gerado, Perto do coração selvagem apresenta, dessa
maneira, uma narrativa que se textualiza a partir de uma dinâmica
que concede visibilidade a outras possibilidades de ser e de
estar no mundo. A lógica e a apreensão do conhecimento são
engendradas através das leis que regem o corpo. Por isso, a
dificuldade da personagem em expressar as sensações que jorram
em abundância e com urgência do seu ser ‘mulher’ através das
palavras disponíveis no mundo ao seu redor. Estas são palavras
que fazem parte de uma outra linguagem; uma linguagem construída
sobre a experiência e os valores masculinos – ou seja, através
da ‘lógica do pai’. Dessa forma, o corpo de Joana precisa ‘gritar’
para se fazer ouvir, gritar para rejeitar a posição de ‘outro’
e deslocar-se para a posição de ‘centro’.
Os
paradoxos e os conflitos vivenciados pela personagem de Lispector
em sua tentativa de auto-afirmação em um contexto que lhe é
hostil acentuam o movimento de travessia que ela enfrenta entre
o espaço da reprodução da ordem social e manutenção de práticas
recorrentes, e o espaço de resistência que possibilita novas
formas de (re)significar o mundo. Nesse sentido, Perto do
coração selvagem articula questionamentos sobre a sociedade,
assinalando a natureza heterogênea dos diferentes sujeitos que
a integram. O espaço de Joana é o espaço do corpo, espaço privado,
gerador de reflexões muitas vezes imprecisas. É o espaço de
produção de percepções orgânicas demais para serem articuladas
com nitidez. O espaço ocupado por Otávio, a tia, a mulher da
voz, por exemplo, é o espaço socializado, coletivo, que representa
as convenções institucionalizadas. No texto, o espaço privado
e o espaço social são colocados lado a lado e problematizados.
Esses espaços diferenciados representam a própria estrutura
social – lugar caracterizado por relações de poder e de dominação,
lugar de inclusão e exclusão e, por tanto, de divisão e confronto.
A
força narrativa dessa obra, onde as certezas perdem espaço para
as inquietações do espírito e a necessidade urgente de tocar
o coração selvagem das coisas, revela o desejo de Clarice Lispector
de “por em palavras um mundo ininteligível e impalpável” como
certa vez ela observou. Com Perto do coração selvagem,
sua obra de estréia, Lispector parece ter dado um profundo mergulho
na existência, na medida em que procurou captar os seus mistérios,
na fusão e ruptura entre o Eu e o Mundo através de uma linguagem
que gerou estranhamento por parte da crítica literária.
Para
romper o circulo mítico da repetição, Joana precisa, na visão
de Bole (1994, p. 419), transformar-se, recriar-se para o mundo,
e, para isso, é preciso “uma maneira emancipada de lidar com
o passado a partir das necessidades do presente”. À medida que
a personagem se recria para o mundo através da marca da diferença,
ou seja, através de uma forma diferente de significar e colocar-se
no mundo, ela subverte os padrões delineados pelo seu contexto
sociocultural, transgredindo os valores da cultura dominante
e desafiando as relações de poder engendradas a partir dela.
Sob esta perspectiva, pode-se dizer que a “ideóloga” e “esteta”
Lispector, utilizando uma vez mais a terminologia bakhtiniana,
nos convida a uma profunda reflexão sobre o ser humano ao dramatizar
a conflitante relação entre o Eu e o Outro e as formas utilizadas
de produzir conhecimento. Nesse sentido, o espaço narrativo
de Perto do coração selvagem é o espaço onde a
própria vida é encenada.
Considerações
finais
O
texto de Lispector exige mais dos sentidos do que da razão objetiva.
Estamos diante de uma estética inovadora que se textualiza através
de um percurso diferente do dizer e do significar. Para Hélène
Cixous, reconhecida crítica literária feminista francesa, a
escritura feminina é aquela capaz de fazer aflorar formas alternativas
de percepção, expressão e relacionamento, e, nesse sentido,
ela é uma escritura revolucionária. Não só a poética da artista
mulher ultrapassa a lógica binária que nutre nosso sistema atual,
como cria espaço para uma nova linguagem e uma nova cultura.
Ao deslegitimar convenções culturais dicotômicas, a escrita
feminina inicia modificações na esfera social e política, desafiando
os pilares do estado patriarcal e capitalista.
O
texto clariceano sem dúvida ilustra os postulados de Cixous,
na medida em que ele está impregnado de oposição, levando o/a
leitor/a para além do texto, delineando respostas alternativas
que não dependem do estigma da opressão ou da repressão. O modo
diferente de ler e interpretar o mundo da personagem Joana nos
desafia a responder a pergunta final: quem é Joana? Ao falar
sobre sua personagem, Clarice Lispector observou que Joana é
“um feixe vivo de possibilidades que se contradizem e anulam”.
Desse modo, acreditamos que a narrativa finaliza sem conferir
à personagem, um acabamento, uma vez que Joana exibe o traço
da multiplicidade, da divisão, do inconformismo, não se deixando
definir facilmente. Clarice Lispector, através de sua personagem,
grita por todas mulheres sem faces e sem nomes, mulheres sem
passado, sem futuro. Joana convida essa mulher a gritar esse
seu presente que a faz ausente em sua própria carne; gritar
a dor, a indignação, gritar qualquer coisa até o fim da voz.
Referências
bibliográficas
BAKHTIN,
Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria
do romance. Trad. Aurora Bernardi. São Paulo: Martins Fontes,
1988.
BOLE,
Willi. Alegoria, imagens, tableau. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994.
GOTLIB,
Nádia Batella. Clarice: uma vida que se conta.
São Paulo: Ática, 1995.
KRAMSCH,
Claire. Language and culture. Oxford: Oxford University
Press, 1998.
ORLANDI,
Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos
sentidos. 4. ed. Campinas, SP: UNICAMP, 1997.
SANTOS,
Jeana Laura. A estética da melancolia em Clarice Lispector.
Florianópolis: UFSC, 2000.
THOMPSON,
John. Ideology and modern culture. Standford: Standford
University, 1990.