Capa | Editorial | Sumário | Apresentação   Revista nº 5
 

O ESPAÇO DO CORPO EM PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM:

RESIGNIFICANDO O MUNDO

Vera Lucia Lenz Vianna [1]


Introdução

Perto do coração selvagem, romance de Clarice Lispector, provocou um verdadeiro ‘frisson’ no meio acadêmico. Rompendo com os padrões estéticos que caracterizavam a escritura de outros textos da época, mais realistas e previsíveis em termos de conteúdo e forma, esta obra enigmática para muitos, instigante para outros, revoluciona o universo literário pela força incomum com que o corpo e os sentidos são evocados e trabalhados no texto, revelando de modo insólito e impactante, o mergulho da escritora no universo feminino e sua tentativa de captar e traduzir os mistérios irrevelados do ser mulher através da relação corpo/saber. Escrito na década de quarenta, Clarice Lispector já mostrava através de seu romance de estréia, o feminino em mudança. A análise aqui desenvolvida tem o propósito de apontar o modo como este romance provoca certos deslocamentos sociais e ideológicos na medida em que as inscrições do saber são processadas através do corpo, invertendo, dessa forma, os paradigmas tradicionais sobre a aquisição de conhecimento sustentada na e pela razão. Isso implica, necessariamente, assinalar questões relativas à produção de sentido e às relações de poder e dominação que marcam tanto os limites como as posições dos sujeitos na conjuntura social.

Perto do coração selvagem

O estudo da personagem central do romance, Joana, revela uma mulher que se encontra à frente de seu tempo; uma mulher que busca no corpo e nos sentidos, espaço gerador de conhecimento. Os pensamentos e atitudes de Joana são próprios de um ser humano questionador, vibrante, uma mulher que não se sujeita a programações tradicionais, distanciando-se, desta maneira, do destino pré-concebido em relação ao sexo feminino. Quase não existem descrições físicas da personagem ao longo do texto, por outro lado, há uma riqueza de detalhes em relação aos seus mais profundos sentimentos e sensações: alegrias, inquietações, anseios e frustrações. Movimentando-se continuamente entre as várias fases da vida da personagem, o fluxo narrativo confere ao texto uma dinâmica ímpar permitindo ao leitor acompanhar a trajetória de Joana da infância à vida adulta. Desde o início do romance, a personagem de Lispector demonstra um nível de consciência e de percepção extraordinários. O capítulo inicial exemplifica essa característica, apontando a tentativa da personagem de captar a essência dos elementos e dos seres com os quais ela tem contato no dia-a-dia. Ainda pequena, a protagonista é uma criança com um desejo incomum de experimentar novas sensações e participar ativamente do fluxo da vida. Atenta a tudo o que acontece a sua volta, Joana criança, é toda sensibilidade e intuição.

A sinestesia é um traço marcante de sua personalidade. Esta anti-heroína que deseja “mastigar vermelho”, “morder estrelas”, “engolir fogo adocicado”, busca através do corpo uma forma de (re)significar o mundo. Desafiando a ideologia dominante, Joana procura dentro de si um animal perfeito (que aqui pode ser interpretado como aquela parte do nosso ser que não se deixa domesticar, que não se deixa amordaçar pelas instituições sociais) mas o receio que a personagem demonstra em liberar esse ‘animal’ justifica-se no sentido de que essa condição representaria uma outra forma de estar no mundo, que se opõe ao modus operandi tradicional. Joana é um ser dividido entre os impulsos que a estimulam a “mergulhar em águas desconhecidas”, a “encontrar o centro luminoso das coisas”, a comungar com tudo o que pulsa ao seu redor, ou adequar-se às imposições sociais. Movida por sensações contraditórias, a ambivalência é, pois, característica recorrente da personagem como se constata em vários momentos da narrativa. Essa alternância de sentimentos apresenta-se em forma de metáforas, e paradoxos tais como “alegria quase horrível”, “alegria quase de chorar” e “apertamento e afrouxamento do corpo”.

 Da combinação de emoções que se opõem, como dor e felicidade, atração e repulsa, geradas através do corpo, surge uma linguagem distante da tradicional, bastante sensorial que faz com que a personagem não encontre palavras adequadas para traduzir seus sentimentos. A partir do cruzamento dessas sensações, a escrita se constrói de uma forma aparentemente ilógica, similar à transcrição de um sonho – marca inconfundível da obra de Lispector conforme a crítica literária. Como a narrativa tenta descrever a linguagem do corpo, a escrita torna-se inevitavelmente carregada de sensualidade.

Na tentativa de adequar a linguagem ao conteúdo narrado, ou seja, às emoções, às intuições, ao inconsciente da personagem, a linguagem deste romance “trai a afirmação da natureza racional da prosa” como enfatizou Gotlib (1995, p. 184) e, conseqüentemente, provoca uma ruptura em relação à forma, subvertendo o conceito tradicional de enredo como uma combinação temporal de causa e efeito. Através dessas sensações impetuosas, Joana procura conhecer-se intimamente.

O ritmo crescente dos seus devaneios, a inquietação gerada diante do mistério irrevelado de seu próprio ser, traz angústia à personagem que deseja descobrir-se por inteiro. Joana é uma mulher que espera mais da vida e se recusa a aceitar a rotina, o papel adotado por tantas mulheres que a rodeiam. Com isso, ela acaba criando uma atmosfera de distanciamento das pessoas com as quais convive. Observa-se que a maioria delas não é capaz de entendê-la. Quando Joana pega escondido um livro na livraria, provoca choque e desconfiança na tia. Confessando o ato sem demonstrar culpa, ela desafia regras estabelecidas, num gesto que pode ser interpretado como um ato de resistência aos mecanismos culturais. “Sim”, diz ela, “roubei porque quis. Só roubarei quando quiser. Não faz mal nenhum” (p. 60).

O silêncio da personagem é outro aspecto marcante de sua personalidade. Nota-se que a linguagem falada é continuamente substituída pelo silêncio, que, aqui, significa conhecimento; silêncio que é sinônimo de aprendizagem, possibilitando a personagem a adquirir novos ‘insights’ e opiniões sobre a vida. Pode-se afirmar que o silêncio de Joana é um ‘silêncio fundador’, prenhe de significado. Ao falar sobre o silêncio fundador, Orlandi (2001, p. 128) argumenta que ele deve ser visto como “um espaço diferencial que permite à linguagem significar”. O silêncio fundador é necessário aos sentidos, ou seja, sem silêncio fundador não haveria sentido e sim a linguagem incessante.  Em Perto do coração selvagem, a construção da identidade da personagem depende desse silêncio que serve de mediador entre o seu pensamento, a linguagem e o mundo. Refletindo sobre questões culturais, Kramsch (1998) explica que o fenômeno cultural deve ser visto como uma combinação de sons e silêncios, lugar de conflito, de afirmação do eu e de aceitação do outro. Dentro dessa ótica, Joana simboliza o indivíduo que, indo contra o saber oficial, cria estratégias de resistência às concepções culturais tradicionais e luta pelo reconhecimento e legitimação de novas formas de sentido.

Algumas vezes Joana também utiliza a política do silêncio como forma de se proteger de uma sociedade que não legitima suas práticas sociais. Joana somente sai desse silêncio quando "subitamente precisava por à prova seu poder, sentir a admiração das colegas com quem pouco falava... Do silêncio em que se escondia, saía para a luta” (162).

A ausência de linguagem e o olhar direto e inquiridor de Joana incomodam tanto a tia quanto o marido que não se sentem à vontade diante do seu jeito calado de ser. Para eles, Joana não precisa de ninguém e olha como se desejasse pisar as pessoas. Oralandi (2001) assinala que o indivíduo não suporta a ausência de palavras porque se torna difícil exercer seu controle e sua disciplina quando o silêncio não fala. O silêncio assusta porque não está disponível à visibilidade, não é diretamente observável. No entanto, a teórica explica que, no silêncio, sentido e sujeito se movem largamente. Estamos diante de uma anti-heroína que ousa distanciar-se dos padrões que regulam a vida cotidiana – uma personagem que experimenta a solidão, vivendo uma vida que a empurra para um estado de exílio.

 Mas é este estar consigo mesma, esta forma de viver em verticalidade, buscando refúgio na interioridade, que promove a condição de libertação de Joana. Na dialética ser-consigo / ser-com-os outros, Joana se submete de maneira voluntária e consciente a um estado de introspecção. Seguindo esta linha de pensamento, observa-se que este é o meio que a protagonista de Lispector encontra para desfazer, gradativamente, o aprisionamento do sentido no signo lingüístico, libertando-o para novos significados. Esta condição de exílio que marca a trajetória da personagem não é sinônimo de fechamento em relação ao outro, pelo contrário, estes momentos de isolamento se caracterizam pelo estabelecimento de um embate de vozes, pelo surgimento  de uma tensão entre o pensamento de Joana e a palavra alheia. Bakhtin (1988, p. 143) postulou que a palavra é o fenômeno ideológico por excelência, pois está impregnada de valores culturais que expressam as divergências e as opiniões da sociedade.

O texto de Lispector representa essa situação, uma vez que o pensamento da protagonista se torna, empregando as palavras de Bakhtin, “um palco ou uma arena de conflitos”; um ponto de encontro de diferentes visões de mundo. Observa-se que, ao longo da narrativa, Joana trava um diálogo mental com a palavra alheia, polemizando-a e contrapondo-a a sua própria palavra. Mas como a sociedade que está sendo representada no romance não está pronta para acolher essa nova mulher que se percebe por vezes “forte e bela como um cavalo solto na campina”, outras vezes, como alguém “dividindo-se em milhares de partículas vivas (...) andando, voando”, a protagonista de Lispector se debate entre a impossibilidade de endossar os princípios norteadores da cultura dominante que limita o indivíduo, e o desafio de desestabilizar as formas de valor já sedimentadas. Ao promover deslocamentos em relação à produção de conhecimento, o texto clariceano propõe reflexões no que tange à formulação e a circulação do saber.

Fazendo do corpo, locus privilegiado por onde o conhecimento é gerado, Perto do coração selvagem apresenta, dessa maneira, uma narrativa que se textualiza a partir de uma dinâmica que concede visibilidade a outras possibilidades de ser e de estar no mundo.  A lógica e a apreensão do conhecimento são engendradas através das leis que regem o corpo. Por isso, a dificuldade da personagem em expressar as sensações que jorram em abundância e com urgência do seu ser ‘mulher’ através das palavras disponíveis no mundo ao seu redor. Estas são palavras que fazem parte de uma outra linguagem; uma linguagem construída sobre a experiência e os valores masculinos – ou seja, através da ‘lógica do pai’.  Dessa forma, o corpo de Joana precisa ‘gritar’ para se fazer ouvir, gritar para rejeitar a posição de ‘outro’ e deslocar-se para a posição de ‘centro’.  

 Os paradoxos e os conflitos vivenciados pela personagem de Lispector em sua tentativa de auto-afirmação em um contexto que lhe é hostil acentuam o movimento de travessia que ela enfrenta entre o espaço da reprodução da ordem social e manutenção de práticas recorrentes, e o espaço de resistência que possibilita novas formas de (re)significar o mundo. Nesse sentido, Perto do coração selvagem articula questionamentos sobre a sociedade, assinalando a natureza heterogênea dos diferentes sujeitos que a integram. O espaço de Joana é o espaço do corpo, espaço privado, gerador de reflexões muitas vezes imprecisas. É o espaço de produção de percepções orgânicas demais para serem articuladas com nitidez. O espaço ocupado por Otávio, a tia, a mulher da voz, por exemplo, é o espaço socializado, coletivo, que representa as convenções institucionalizadas. No texto, o espaço privado e o espaço social são colocados lado a lado e problematizados. Esses espaços diferenciados representam a própria estrutura social – lugar caracterizado por relações de poder e de dominação, lugar de inclusão e exclusão e, por tanto, de divisão e confronto.   

A força narrativa dessa obra, onde as certezas perdem espaço para as inquietações do espírito e a necessidade urgente de tocar o coração selvagem das coisas, revela o desejo de Clarice Lispector de “por em palavras um mundo ininteligível e impalpável” como certa vez ela observou. Com Perto do coração selvagem, sua obra de estréia, Lispector parece ter dado um profundo mergulho na existência, na medida em que procurou captar os seus mistérios, na fusão e ruptura entre o Eu e o Mundo através de uma linguagem que gerou estranhamento por parte da crítica literária.

 Para romper o circulo mítico da repetição, Joana precisa, na visão de Bole (1994, p. 419), transformar-se, recriar-se para o mundo, e, para isso, é preciso “uma maneira emancipada de lidar com o passado a partir das necessidades do presente”. À medida que a personagem se recria para o mundo através da marca da diferença, ou seja, através de uma forma diferente de significar e colocar-se no mundo, ela subverte os padrões delineados pelo seu contexto sociocultural, transgredindo os valores da cultura dominante e desafiando as relações de poder engendradas a partir dela. Sob esta perspectiva, pode-se dizer que a “ideóloga” e “esteta” Lispector, utilizando uma vez mais a terminologia bakhtiniana, nos convida a uma profunda reflexão sobre o ser humano ao dramatizar a conflitante relação entre o Eu e o Outro e as formas utilizadas de produzir conhecimento. Nesse sentido, o espaço narrativo de Perto do coração selvagem é o espaço onde a própria vida é encenada.

Considerações finais

O texto de Lispector exige mais dos sentidos do que da razão objetiva. Estamos diante de uma estética inovadora que se textualiza através de um percurso diferente do dizer e do significar. Para Hélène Cixous, reconhecida crítica literária feminista francesa, a escritura feminina é aquela capaz de fazer aflorar formas alternativas de percepção, expressão e relacionamento, e, nesse sentido, ela é uma escritura revolucionária. Não só a poética da artista mulher ultrapassa a lógica binária que nutre nosso sistema atual, como cria espaço para uma nova linguagem e uma nova cultura. Ao deslegitimar convenções culturais dicotômicas, a escrita feminina inicia modificações na esfera social e política, desafiando os pilares do estado patriarcal e capitalista.

O texto clariceano sem dúvida ilustra os postulados de Cixous, na medida em que ele está impregnado de oposição, levando o/a leitor/a para além do texto, delineando respostas alternativas que não dependem do estigma da opressão ou da repressão. O modo diferente de ler e interpretar o mundo da personagem Joana nos desafia a responder a pergunta final: quem é Joana? Ao falar sobre sua personagem, Clarice Lispector observou que Joana é “um feixe vivo de possibilidades que se contradizem e anulam”. Desse modo, acreditamos que a narrativa finaliza sem conferir à personagem, um acabamento, uma vez que Joana exibe o traço da multiplicidade, da divisão, do inconformismo, não se deixando definir facilmente. Clarice Lispector, através de sua personagem, grita por todas mulheres sem faces e sem nomes, mulheres sem passado, sem futuro. Joana convida essa mulher a gritar esse seu presente que a faz ausente em sua própria carne; gritar a dor, a indignação, gritar qualquer coisa até o fim da voz.

Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Bernardi. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

BOLE, Willi. Alegoria, imagens, tableau. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

GOTLIB, Nádia Batella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.

KRAMSCH, Claire. Language and culture. Oxford: Oxford University Press, 1998.

ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 4. ed. Campinas, SP: UNICAMP, 1997.

SANTOS, Jeana Laura. A estética da melancolia em Clarice Lispector. Florianópolis: UFSC, 2000.

THOMPSON, John. Ideology and modern culture. Standford: Standford University, 1990.



[1] Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).





Copyright 2002© - Todos os Direitos reservados - All rights reserved - Web Designer: Fabiano Mantelli