BAUDELAIRE E A ASTÚCIA DO DIABO
Marcelo Jacques de Moraes (UFRJ /
CNPq)
Ah, as coisas influentes
da vida chegam assim sorrateiras, ladroalmente.
Grande Sertão:
Veredas. Guimarães Rosa
Como
todos o sabemos há tempos e continuamos a constatar diariamente,
as condições de produção e a expansão do público na era da cultura
de massa levaram à exploração crescente da miséria e da violência
humanas como objeto do fazer estético – e, conseqüentemente,
como objeto de consumo. Se nos pusermos a pensar nas obras que
representam essa tendência, veremos que a imensa maioria delas,
longe de levar cada um de nós à confrontação radical com o mal-estar
da cultura em meio à experiência do horror e à consciência do
mal inerentes a nossa humana condição, tendem antes a despertar
uma certa “enfatuação humana” (para usar desde já uma expressão
de Baudelaire), uma certa intumescência orgulhosa desta (má-)
consciência que se regozija consigo mesma quando, induzida por
um certo modo de apresentação, identifica em um outro a causa
da miséria humana, demonizando-o e figurando-o, ao mesmo tempo,
como domesticável. Contrapostos a toda humanidade, encarnada
no limite pela dor e pelo sofrimento, o mal e o horror assim
reconhecidos parecem facilmente erradicáveis – “falta vontade
política”, dizemos, por exemplo, com freqüência, razoáveis e
indignados.
Nesse
sentido, “estetizar” a miséria freqüentemente se traduz em eleger
os “agentes do mal” – sejam eles encarnados por personagens
ou por um sistema, por um modo de usar a vida – e em eliminar
destes agentes todo traço de estranheza e, portanto, de familiaridade
– sabe-se bem, depois de Freud o quanto o estranho deve ao familiar.
Assim, enquanto leitores-espectadores, somos impelidos a demarcar
nossa diferença em relação a eles e a projetar nos “miseráveis”
uma sensibilidade que acreditamos pertencer-lhes e com a qual
podemos, narcisicamente, nos sensibilizar. Como interpretar
de outra maneira, por exemplo, as lágrimas que discretamente
ostentamos na penumbra da sala de cinema ao nos identificarmos
com os “miseráveis” humanizados à nossa medida? Assim, no mais
das vezes, é com nossa própria sensibilidade que nos sensibilizamos,
deliciamo-nos com “nossos” próprios valores, aderindo então
a eles plenamente sem nenhum pudor, quando os vemos encarnados
num outro – que, na verdade, neste caso, não passa de modulação
imaginária do mesmo...
Talvez
possamos com esse ponto de partida esboçar uma reflexão sobre
certos limites impostos à diabólica imaginação moderna
– diabólica, como veremos, precisamente por apresentar o mundo
em sua radical e familiar estranheza, sem qualquer limpidez
simbólica –, imaginação que, desde o Renascimento, começara
a ser provocada pela descoberta do outro num mundo em que as
geografias de interação física e subjetiva se haviam tornado
cada vez mais permeáveis. Limites necessários, justamente, para
preservar esta outra invenção da Era Moderna que fora a interioridade
como refúgio, esta interioridade hipertrofiada que se oferecia
como resposta consistente a um mundo que se tornava inconsistente,
e de que Deus, com toda a sua solidez, se retirava aos poucos.
Interioridade estanque de que uma das traduções contemporâneas
mais recorrentes reside perigosamente na noção de identidade.
Que vem tendendo a se sobrepor cada vez mais a uma noção que
me parece mais produtiva, que é a de experiência
A
expressão “astúcia do diabo”, citada no título desta intervenção,
foi retirada do poema em prosa O jogador generoso. [1] Nele, o poeta narra uma longa noite de jogo
e de prosa com o diabo, na qual este afirma em certo momento
que só temeu a perda de seu poder quando ouviu de um “sutil
pregador” as seguintes palavras:
“Meus
caros irmãos, jamais vos esqueçais, quando ouvirdes exaltar
o progresso das luzes, de que a mais bela das astúcias do diabo
é a de vos persuadir de que ele não existe!”
Com
efeito, para Baudelaire, o diabo não apenas existe como preside
à lógica da existência humana: como já escrevia o poeta desde
o poema Ao leitor, que prefacia suas Flores do mal,
“é o diabo que segura o fio que nos move”.
[2] Ou seja, o diabo existe e vive em nós. Entretanto,
ao nos persuadir do contrário, ele nos faz crer que somos nós
mesmos por inteiro, que é por nós mesmos que nos movemos na
existência, que todos caminhamos na direção que imaginamos caminhar.
Mas não é essa a única ilusão que ele pode engendrar. Ao final
da audiência narrada no poema em prosa, o poeta ouve ainda do
diabo a promessa de que “a perda irremediável de sua alma” naquela
noite seria compensada com “a possibilidade de vencer, durante
toda a sua vida, esta estranha afecção que é o Tédio, fonte
de todas as suas doenças e de todos os seus miseráveis progressos.”
“Jamais formareis um desejo formulado que eu não vos ajude a
realizar; [...] vós vos embriagareis de volúpias sem lassidão”,
assegura-lhe o diabo. Ou seja, o diabo é também aquele que,
ao nos prometer o gozo absoluto e em permanência, nos condena
justamente ao Tédio de que se propõe a nos livrar, uma vez que
a alteridade do mundo jamais se dobra a essa promessa. De fato,
como se pode ler ainda em Ao leitor, Baudelaire também
apresenta o Tédio como a fonte do maior dos vícios, já que implica
o desejo em sua dimensão de vazio: desejo que deseja desejar
mas que não se sustenta diante do se lhe apresenta. Trata-se
de uma espécie de embriaguez sem objeto, mas que pode dispor
quem o experimenta a qualquer coisa: à criação como à violência,
uma vez que termina por forçar à ação – quando mais não seja
a de “num bocejo [engolir] o mundo”
[3] – e não à mera contemplação. Voltaremos a isso.
O
diabo baudelairiano se figura, portanto, como algo da ordem
de uma espectralidade excêntrica que vem pôr em questão toda
interioridade, toda identidade a si de um sujeito, incutindo-lhe
o gosto do infinito e enredando-o na alteridade. Essa lógica
diabólica se exprime em Baudelaire por meio de imagens alegóricas
daquilo que o poeta define em Meu coração desnudado como
“o gosto invencível da prostituição no coração do homem”.
[4] “Gosto” alegorizado na cidade moderna, por exemplo,
no início do poema Os Sete velhos, em que o passante
é abordado por um “sonho”, um “mistério”, do mesmo modo que
o seria por uma prostituta:
Fervilhante cidade,
cidade cheia de sonhos,
Onde o espectro,
em pleno dia, agarra o passante!
Os mistérios em
toda parte correm como seivas
Nos canais estreitos
do colosso poderoso. [5]
A
questão que se coloca a seguir no poema, de certo modo paradoxalmente
em relação a esta primeira estrofe, diz respeito à crise de
indiferenciação que assalta o indivíduo na modernidade. Para
resumir rapidamente o poema – e o problema –, cito a leitura
que dele é feita por Walter Benjamin. Diz ele:
Trata-se
do aparecimento sete vezes reiterado de um velho de aspecto
repelente. O indivíduo que é assim apresentado em sua multiplicação
como sempre o mesmo dá testemunho da angústia do citadino de
não mais poder, a despeito de suas singularidades mais excêntricas,
romper o círculo mágico do tipo. [6]
Pois
os “sonhos” e “mistérios”, na lógica imposta pela circulação
de artigos de massa, se deixam realizar por objetos dispostos
segundo o princípio da substituição, encarnados de modo emblemático
pela prostituta, princípio que Benjamin ilustra comparando esta
última às dançarinas de music-hall:
A
revista de music-hall [...] introduziu de maneira explícita
o artigo de massa na vida pulsional dos habitantes das grandes
cidades, ao expor girls vestidas de modo estritamente
idêntico. [7]
É
a antecipação benjaminiana-baudelairiana da lógica do que um
Philippe Sollers define em nosso tempo como “desejo-mercadoria”,
[8] para o qual nossa Sociedade do Espetáculo – Sollers
usa a expressão consagrada por Guy Debord – receita incessantemente
outras alternativas de satisfação. Escreve Sollers:
O
desejo? Todo mundo agora se propõe a me incitar a ele, a adaptar-me
a ele, a me explicar ele. Sou cotidianamente assediado com conselhos,
injunções, slogans, imagens, receitas médicas ou químicas, sugestões
surrealistas ou psicanalíticas retomadas em propaganda. Em que
situação me encontro? A que corresponde meu sexo? Ele é normal,
desviante, conformista, audacioso, bem regulado? Será que ele
conhece verdadeiramente seu objeto? Que não tem a intenção,
sem que eu o saiba, de mudar de objeto? Como empregá-lo, sustentá-lo,
encorajá-lo, aclimatá-lo, economizá-lo, investi-lo, gastá-lo?
A Sociedade do Espetáculo tem resposta para tudo.
[9]
Catalisando
e capitalizando os interesses imediatos dos indivíduos no seio
da situação, a lógica da mercadoria acelera assim a repetição
do mesmo pelo princípio da substituição incessante, roubando
ao sujeito o tempo do Tédio – esvaziamento da dimensão simbólica
da existência, sem o qual não há, para Baudelaire, subversão
diabólica –, e antecipando-se à sua faculdade de, criticamente,
“escolher, julgar, comparar, fugir a isso, buscar aquilo”, como
afirmara o poeta a respeito do homem dotado de imaginação.
[10] Este não simplesmente acolhe os “sonhos” e “mistérios”
que o “agarram”, mas apropria-se deles ativamente, fazendo uma
alegoria da origem do seu tempo, permitindo a este fundar-se
e ler-se enquanto presente. Poderíamos aqui evocar uma outra
famosa flânerie, a do poema O Sol, em que o poeta,
ao passear pela cidade, “[exerce] sozinho [sua] estranha esgrima”
“farejando [...] rimas”, “tropeçando nas palavras”, “esbarrando
por vezes em versos há muito sonhados”.
[11] O princípio da substituição inerente à lógica da mercadoria
é, ao contrário, sem tropeços. Como bem o sabemos, é ele que
regula “o tempo homogêneo e vazio” de uma certa concepção da
história baseada na noção de progresso. Para ir adiante com
Baudelaire na crítica a essa noção e na postulação de uma diabolicidade
infinita, transcrevo aqui uma longa passagem de um artigo de
André Hirt, autor atual cuja leitura da obra do poeta me parece
bastante intensificadora:
O
presente moderno é movimento, na verdade passagem, “forma”
da passagem. Ele nem mesmo é “figurável” a não ser unicamente
na imagem paradigmática e crucial da “passante”. (...) “Assim
ele vai, ele corre, ele busca. O que ele busca? (...) Ele busca
este algo que nos permitirão chamar de modernidade. Trata-se,
para ele, de retirar da moda o que ela pode conter de poético
no histórico, de tirar o eterno do transitório” [Le peintre
de la vie moderne]. Ele busca o que já ocorreu; ele busca
nomeá-lo como verdade. Ele busca frasear aquilo que,
refugiado no vazio da situação, já ocorrera.
Assim o Moderno é movimento. Baudelaire
busca uma figura e encontra apenas o movimento tremido da forma
na passagem. Pois a forma, diferentemente da figura, é passagem.
A esse respeito, a consciência é movimento da forma, sempre
em atraso em relação à figura. Dizendo de outro modo, toda figura
do sujeito, como da substância, ainda mais da substância-sujeito,
é inadequada e apenas pressuposta. Na verdade, a consciência
e o sujeito percebem, na inquietude e na angústia, sua infinidade.
É por isso que o sujeito manifesta o paradoxo de sua satisfação
vã e finita e de sua insatisfação infinita. A idéia do sujeito
absoluto, preenchido, é certamente sensata (necessariamente
pressuposta pelo entendimento), mas falsa. A infinidade, ao
contrário, no movimento da forma, abre para a verdade: é ela
que solicita a consciência poética na afirmação da superpotência
da imaginação que escava e fratura os critérios do entendimento.
[12]
Interessa-me
especialmente aqui esse “movimento tremido da forma na passagem”
que Baudelaire encontra em sua busca da figura – ou do símbolo,
se preferirem. Pois é ele que expõe
[13] a “figura” que Baudelaire “não encontra” em sua
concretude infinita de coisa, concretude pacificada, opacificada
justamente pelo entendimento, para usar o conceito de Hegel
com que Hirt dialoga aqui. Ou, para recolocarmos a questão em
termos da alegoria tal como a define Benjamin, o que se expõe,
com o “movimento tremido”, é, como diz o filósofo, “o fundo
obscuro [eu diria diabólico] sobre o qual se devia destacar
claramente o mundo do símbolo”, símbolo que, na tradição clássica,
operava como “unidade” perfeita entre “o objeto sensível” e
“o objeto metafísico”.
[14] Unidade instantânea sintética e plena de um sentido
ao qual a alegoria baudelairiana irá contrapor uma temporalidade
outra, diabólica, a da “catástrofe em permanência” do spleen,
[15] de um sentido que não cessa de se interromper, de
se curto-circuitar. Nos termos de Origem do drama barroco
alemão:
A
unidade de tempo da experiência simbólica é o instante místico,
no qual o símbolo recolhe o sentido no local oculto, na floresta,
se se pode dizer, que está no interior de si mesmo. Por outro
lado, a alegoria não está isenta de uma dialética que lhe corresponde,
e a serenidade contemplativa com a qual ela mergulha no abismo
que separa a imagem e a significação nada tem desta suficiência
indiferente, inerente à intenção do signo, que parece a ele
aparentada. [16]
A
imagem alegórica dilata, pois, o instante que ela vem materializar
por meio da suspensão insolúvel de seu sentido, como neste encontro
com a passante, que sempre já ocorreu sem jamais ter ocorrido.
Lembro-lhes o final do poema:
Um
raio... depois a noite! – fugitiva beleza
Cujo
olhar me fez subitamente renascer,
Não
te verei mais senão na eternidade?
Alhures,
bem longe daqui! Tarde demais! Jamais, talvez!
Pois
ignoro para onde foges, não sabes aonde vou,
Ó
tu que eu teria amado, ó tu que o sabias!
[17]
É
justamente ao desejo de restituir em sua dimensão infinita a
experiência disso que se vive sem viver – uma vez que, cito
Benjamin, “o conhecimento e a verdade jamais são idênticos” [18] – é a esse desejo que responde em Baudelaire a lógica diabólica
de sua reflexão estética
[19] , seja em sua vertente propriamente poética, seja em
sua vertente crítica.
Concluindo,
talvez um pouco rapidamente demais, eu diria que, para Baudelaire,
o que está em jogo é a diabolização não do outro, mas desta
“suficiência indiferente” da “experiência simbólica” de que
fala Benjamin. Diabolização que põe em cena o abismo infinito
entre mim e minha experiência. Abismo inescapável como Baudelaire
o demonstra desde o início das Flores do mal ao irmanar-se
a seu “hipócrita leitor”. [20] Nesse sentido, identificar o mal significa
também a presunção de um lugar de inocência possível, contra
o qual, justamente, a sentença do pregador já nos prevenira:
o diabo está sempre aí. Para o poeta, toda inocência é hipócrita
– ou então não sabe o que diz.
Antes
de terminar, quero lembrar que isso tudo não significa, como
muito se quis fazer valer, uma insensibilidade social da parte
de Baudelaire. Um exemplo talvez mais claro: em um outro poema
em prosa com o sugestivo título de Espanquemos os pobres!,
[21] ele encena ironicamente uma espécie de tese de erradicação
da miséria, murmurada ao ouvido do poeta – num momento de Tédio
– por “um Demônio de ação”, “um Demônio de combate”. Ao incitar
o poeta a espancar o mendigo até a revolta, despertando o lado
subversivo e destruidor deste último, o Demônio em questão combate
justamente o senso comum daquele burguês do século XIX, que
não é tão diferente de nós quanto gostaríamos e que aplaude
a miséria convenientemente estetizada. Nas palavras de Adorno,
tais textos “golpeiam frontalmente a simpatia social burguesa”. [22] Como diz Dolf Oehler em sua análise desse
texto, “seu antimodelo revolucionário baseia-se na reflexão
de que o desejo de mudança das relações só há de ser mobilizado
sob a pressão das próprias relações.” [23] Ou seja, no limite, o ato
diabólico é aquele em que o sujeito é levado a agir para
além de seu saber. É somente a partir daí que se pode abalar
a ordem do mesmo.
No
campo próprio da produção estética, à astúcia do diabo responde
a diabólica astúcia do poeta: se, como escreve Baudelaire em
Meu coração desnudado, “a glória [...] é se prostituir
de uma maneira particular”, [24] sua obra faz do poema um espaço
irônico de “unidade entre mercadoria e verdade”: [25] “um falso acorde/ Na divina sinfonia”, como ele escreve no
poema O Heautontimoroumenos. [26]
Baudelaire
demonstra, assim, que, ao contrário do que queria Hegel, o diabo
não é uma figura esteticamente inutilizável. O poeta, que jamais
aparta a arte da vida, mostra com seu satanismo que o diabo
põe em cena o infinito que nos determina em sua opacidade de
presente. Que o diabo é o desejo, sempre aquém ou além de nossas
boas intenções, incalculavelmente a fonte e o antídoto de todo
mal.