O
PONTO CEGO DA EXPERIÊNCIA: AS
NOÇÕES DE GUERRA E DE MORTE EM A EXPOSIÇÃO DAS ROSAS: DUAS
NOVELAS, DE ISTVÁN ÖRKÉNY
Leonardo
Francisco Soares (UFMG)
Se
uma cobra (coisa rara) devora a si própria, será que em seu
lugar fica um vácuo do tamanho de uma cobra?
Existe,
por outro lado, uma força tão poderosa a ponto de fazer um
homem devorar a sua natureza humana? Existe? Inexiste? Existe?
Isto é um charada!
István
Örkény
Com essa colocação enigmática
do escritor húngaro István Örkény começamos a nossa leitura
de seu livro A exposição das rosas: duas novelas [1] . Salientamos que, ao escolher um enigma como
porta de entrada ao universo ficcional de Örkény, não almejamos
o deciframento, a solução, a interpretação definitiva do problema.
Ao contrário, queremos marcar a contradição, o paradoxo, a
aporia como caminhos possíveis para percorrer a sua obra –
"a insistência diante do enigma" [2] , para retomarmos um mote adorniano.
Na epígrafe acima, István Örkény
pergunta a respeito da força capaz de levar o homem a devorar
a sua própria natureza. Manifestação do real que nos invade
e nos reduz à condição de coisa, essa força é o tema das duas
novelas de que trataremos aqui – "A família Thót"
e "A exposição das rosas". Na primeira, pelas vias
do absurdo com que a guerra – e tudo aquilo que com ela se
relaciona – é tratada, constrói-se uma lúcida advertência
a respeito da ação da força sobre os seres humanos; já em
"A exposição das rosas", o tema da força traduz-se
através da experiência da morte e da questão de sua representação.
Também é dessa força que submete
os homens que nos fala a filósofa francesa Simone Weil no
texto "A Ilíada ou o poema da força", escrito em
1940, depois da queda da França frente a investida do Eixo.
A partir do poema homérico, a filósofa demonstra como a força
esteve sempre no centro da história humana:
A
força é o que transforma todo aquele que se vê sujeito a ela
em uma coisa. Exercida até o limite, ela converte o ser humano
em uma coisa no sentido mais literal da palavra: transforma-o
em um cadáver. (...) Do poder de transformar um homem em coisa,
matando-o, surge outro poder, mais prodigioso ainda: o de
transformar em coisa um homem que ainda vive. [3]
Podemos ler, tanto o texto de
Simone Weil quanto as novelas de István Örkény, como reflexões
indiretas dos trágicos eventos que marcaram o século XX. A
aniquilação dos corpos, a violação da dignidade humana em
seu aspecto primordial de pertencente ao vivo chegou a extremos,
aparentemente, impensáveis. Tal intensidade levou diferentes
autores, como Walter Benjamin, Theodor Adorno, Eric Hobsbawm,
em diferentes contextos, a caracterizar esse século como a
"era das catástrofes".
István Örkény vivenciou de forma
premente essa experiência do cotidiano materializar-se como
catástrofe. Nascido em 1912 – às vésperas da Primeira Guerra
Mundial e do esfacelamento do Império Austro-húngaro – e falecido
em 1979 - dez anos antes da queda do Muro de Berlim –, o autor
testemunhou não menos que quatro diferentes regimes políticos,
duas guerras mundiais e uma malfadada tentativa de revolução.
Em 1942, um ano depois de publicar o seu primeiro volume de
contos, Örkény , sendo judeu, foi enviado à frente russa,
não como combatente, mas em um batalhão de trabalhos forçados.
Logo, seria tomado prisioneiro de guerra pelos soviéticos
e conheceria a fundo a vida nos campos de concentração russos,
o que marcaria profundamente o seu trabalho como escritor.
De volta à Hungria, ele experimentaria, ainda, do variado
cardápio de barbarismo oferecidos pelo "breve século",
o silêncio forçado, depois da fracassada revolução de 1956;
quando ficou seis anos proibido de publicar suas obras. [4]
Apesar de – e contra –tudo isso,
István Örkény escreveu uma longa seqüência de textos, exercitando
os mais diversos gêneros. Em sua bibliografia incluem-se romances,
novelas, contos, peças de teatro e roteiros de cinema. As
questões pelas quais sua escritura é atravessada são semelhantes
às de outros escritores do século XX: como narrar horror?
Como manifestar o valor da experiência e não só informar sobre
ela? O que significa acertar as contas com o passado?
Tais questões desenham uma tarefa
paradoxal: a necessidade irredutível de narrar aquilo que
não pode ser esquecido, ao mesmo tempo em que se tem a consciência
angustiante de que a linguagem não consegue expressar completamente
tal experiência. [5] Estaríamos diante de um confim: o limite da representação.
Certos acontecimentos – como os campos de concentração, o
genocídio, a repressão ditatorial – são muito difíceis, quase
impossíveis de se transmitir, de se representar, supõem, assim,
uma relação nova com a linguagem dos limites através de uma
experiência que se encontra além da linguagem: "há um
ponto , um lugar – digamos – ao qual parece impossível aproximar-se
através da linguagem. Como se a linguagem fosse um território
com uma fronteira, depois da qual está o silêncio."
[6]
Como atravessar ou pelo menos
aproximar-se dessa fronteira? Como ultrapassar a barreira
do silêncio? Um caminho possível seria questionar a própria
topologia, a gramática da representação, indo além do significado,
ao buscar a invenção de linguagens e sintaxes capazes de verter,
em palavras e imagens, formas e conceitos, o sentido da experiência
a níveis de legibilidade capazes de revelar os nós da violência,
que antes figurava sem rosto nem expressão.
[7]
Nessa busca de construir técnicas
de reinvenção da memória, em meio a uma história de violações
e violentações, István Örkény, durante o seu período de "descanso
forçado", cria um gênero literário específico, pelo qual
se tornaria conhecido: o que ele chamou de "estórias
de um minuto": "narrativas instantâneas" feitas
para serem lidas em não mais que um minuto ou, nas palavras
do autor, "durante o tempo em que se leva para cozinhar
um ovo, atender ao telefone, esperar o ônibus."
[8] As "estórias de um minuto" borram os limites
entre a prosa e a poesia, o cômico e o trágico, a ficção e
o discurso dito sério, o que denuncia uma das conseqüências
da experiência do cotidiano como catástrofe: o questionamento
de um discurso autônomo sobre a realidade.
É também em torno desse questionamento
que se constróem as novelas "A família Thót" e "A
exposição das rosas". Escrita em 1964, "A família
Thót" – que também possui uma versão teatral –narra a
chegada de um major do exército húngaro, aliado da Alemanha,
ao pequeno vilarejo de Matraszentanna, durante a Segunda Guerra
Mundial. Na esperança de render benefícios ao filho mais velho
que se encontra na frente de batalha, sob as ordens do enlouquecido
major, a família Thót [9] o hospeda com muito sacrifício.
Durante a sua estada no pequeno vilarejo, o major irá submeter
os Thót às mais absurdas exigências.
Tudo é narrado de forma irônica,
hilariante e perversa. O absurdo e o grotesco são utilizados
como elementos de demolição e desconstrução. A história já
começa com um inusitado diálogo entre Lajos Thót, o chefe
da família, e um doutor em direito, mas que "ganha duas
vezes mais com a limpeza das privadas"(FT, p.86); a conversa
gira em torno do cheiro da privada dos Thót. A preocupação
de Lajos Thót explica-se pelo fato de o major encontrar-se
com os nervos abalados, estando sensível a alguns odores.
Ao longo da narrativa, a doença do major, causada pelos desdobramentos
da guerra, vai ganhando contornos cada vez mais sombrios,
chegando à completa insanidade; tal gradação também é acompanhada
pelo tom da narrativa que do burlesco encaminha-se para o
tragicômico.
Graças ao humor grotesco de Örkény,
o mundo converte-se em algo exterior, terrível e injustificado.
Os contornos absurdos ganham nitidez logo nas primeiras páginas
da novela, quando somos informados de que Gyula Thót, o primogênito
da família, que supostamente estaria sob as ordens do major
na frente russa, já morreu no campo de batalha. Os únicos
a saber desse fato somos nós leitores e Tio Gyuri, uma personagem
paradigmática do universo de István Örkény. Com o estouro
da guerra, o carteiro do pequeno vilarejo foi convocado e
quem o substituiu foi esse sujeito corcunda, meio apalermado
e meio gago a quem todos chamam de Tio Gyuri. O único problema
dessa personagem – e que segundo o narrador "não chegava
a ser grave"(FT, p.91) – é um total senso de simetria.
Ele enxerga todas as coisas a partir de uma harmonia ilusória
e detesta tudo o que possa vir a perturbá-la. Tal senso de
simetria desempenhará um importante papel na entrega das correspondências:
para as pessoas consideradas representantes da simetria humana,
ele só entrega as notícias boas da frente de batalha; enquanto
os "assimétricos" só recebem as más notícias ou
não recebem notícia nenhuma. Assim, Lajos Thót, considerado
por Tio Gyuri o "superlativo da simetria humana"(FT,
p.91), não receberá o telegrama comunicando a "morte
heróica"(FT, p.90) do filho.
Como podemos perceber, o humor,
através do riso, com seu caráter ambivalente: alegre mas ao
mesmo tempo burlador e satírico, ocupa lugar privilegiado
em "A família Thót". Por outro lado, como nos adverte
Arthur Nestrovski, em Örkény, esse sentido de demolição do
humor ganha uma coloração menos simples de se interpretar:
Basta
chegar ao fim da primeira linha para experimentar o que ele
mesmo chama de 'ferrão da ironia' queimando. Mas também basta
a leitura dessa mesma linha para se perceber que o humor,
aqui, é uma última arma, uma última chance , ou a última face
apresentável do desespero. A corrosão se espalha por todos
os lados, incluindo o próprio escritor, e seu maior esforço,
então, é afirmar a presença de algum objetivo além da mera
desmistificação.
[10]
Nesse sentido, faz-se interessante
demonstrar como a questão dos judeus do pequeno vilarejo é
trazida na novela. Os nossos conhecimentos dos fatos nos levam
a crer que eles foram deportados e, quiçá, exterminados, entretanto,
não há nenhuma referência direta a esse fato no texto. István
Örkény conta essa experiência extrema, vivenciada por ele
mesmo, e transmite esse acontecimento impossível por via do
deslocamento e do distanciamento. Os judeus não estão mais
lá, temos apenas alusões a eles na fala das personagens. Assim,
em dado momento do texto, alguém se refere a um estabelecimento
– um cinema, um restaurante – que pertencia a uma família
tal, mencionando um sobrenome judeu. Como no momento em que
a senhora Thót visita o Cine Apolo e conversa com o "novo
proprietário"; ao longo do curto diálogo teremos repetidas
exaustivamente as expressões: "ainda no tempo do Senhor
Berger"; "Trabalhei doze anos para a família do
senhor Berger"; "Antigamente, no tempo da família
Berger"; "No tempo da família Berger"; "O
vaporizador estava lá, pendurado sobre o mesmo prego dos
tempos da família Berger" (FT, p.87-88); tais afirmações
são intercaladas por uma espécie de estribilho: "Novo
proprietário". A repetição excessiva da ausência dos
Berger tem a tarefa de, para dizermos com Gilles Deleuze,
apontar o retorno de algo que não pode ser substituído. [11]
Ao optar pelo deslocamento e pelo
distanciamento, ancorado pela ambivalência difusa da ironia,
István Örkény decide-se também por uma ética específica que
consiste em implicar o leitor na construção do sentido do
texto. Assim, em vez de apenas se identificar – ou se intoxicar
– emocionalmente com o narrado, esse leitor é provocado a
se envolver de forma critica e continuar, pelas vias do pensamento,
o duro trabalho da escrita.
Todavia, provocar a identificação
emocional do espectador é o objetivo do jovem e inexperiente
diretor-assistente Iron Korom, protagonista da novela "A
exposição das rosas" (1977). Realizar um documentário
sobre as horas finais de três pacientes desenganados, com
o intuito de ajudar seus contemporâneos a compreender que
a morte faz parte também da vida, é o seu grande projeto.
A ambivalência aqui já começa na estrutura da narrativa. A
novela, que foi o último trabalho de Örkény, constrói-se como
uma espécie de making of do documentário de
Iron Korom. É preciso esclarecer que esse making of não
é um "diário de filmagem" tradicional, pois, ao
longo da leitura, podemos perceber um embate sutil entre a
voz narrativa e a ética que perpassa a filmagem do documentário
de Iron Korom.
Tal embate é evidenciado logo
nas duas epígrafes da novela. Na primeira, retirada dos escritos
de Wittgenstein, "A morte não é uma das experiências
da vida; a morte não pode ser vivida", o sentido do vivido
é colocado à prova diante da morte, e vice-versa. István Örkény
parece perguntar: se a experiência da morte está além do vivido,
ela pode ser representada? A segunda epígrafe, do escritor
húngaro Dezsö Kosztolanyi, por sua vez, complexifica ainda
mais essa questão: "A morte é a única musa". Filhas
de Zeus e de Mnemosýne, as musas são potência de evocação.
Elas podem dizer tudo: "sabemos muitas mentiras dizer
símeis aos fatos e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações."
[12] Sob sua inspiração o aedo vê o que nunca viu e se
lembra do que nunca conheceu. Potência de evocação ou experiência
para além da vivência? Estaríamos, assim, diante da tensão
dialética entre memória e esquecimento, necessidade e impossibilidade
da representação de situações limite.
Por seu turno, a personagem Iron
Korom não vê problemas ou tensões em seu projeto de filmar
no limite da morte. Afinal, para ele a câmara é um instrumento
privilegiado para retratar esse tema:
Estou
convencido da importância de meu filme. A televisão é o primeiro
veículo da História das Artes que nos oferece a possibilidade
de apresentar, aos espectadores, pacientes que sofrem de doenças
incuráveis, de tal modo que a filmagem de seus momentos mais
dramáticos pode tornar-se um bem público para milhões de pessoas.
Gostaria de levar minha tarefa a cabo com tato suficiente
para evitar todos e quaisquer efeitos chocantes, sem ofender
a sensibilidade ou o bom gosto dos espectadores. (ER, p.14)
O jovem diretor demonstra uma
crença, ingênua no poder da imagem-movimento em provocar uma
"impressão de realidade", "um sopro de autenticidade",
sem se ocupar, entretanto, em pensar se tal representação
"imediata" é desejável. Além disso, dentro do recorte
proposto pela personagem, não há lugar para a representação
da dor extrema, para além de sua contenção estóica. Esses
e outros impasses do projeto de Iron Korom serão colocados
em questão pela voz narrativa. Se o diretor procura, o tempo
todo, marcar a objetividade documental de sua realização,
o narrador, muitas vezes nas entrelinhas, desvela a falácia
de tal empreendimento, denunciando a construção e manipulação
das cenas: filma-se, corta-se, monta-se como numa ficção,
há o caráter de repetição para câmara de muitas passagens;
a morte transmuta-se em pose. Enfim, o poder de objetividade
documental da imagem-movimento revela-se mais um logro que
um ganho.
Talvez seja por isso que a novela
de István Örkény assuma a forma de um making of, um
documentário do documentário: o filme, a narrativa em processo
e em julgamento, e não o formato de algo concluso, como a
constatação de um veredicto. Assim, a própria conformação
da narrativa, ao colocar a representação hiper-realista em
xeque, alude a uma possibilidade outra de representação da
experiência da morte.
Tomado como marca registrada das
narrativas de Örkény, o humor também se encontra presente
em "A exposição das rosas". Mas, diferente do humor
irônico e corrosivo de "A família Thót", aqui, ele
é perpassado por um tom melancólico. Na verdade, alegria e
melancolia convivem justapostas na novela, o que nos leva
a retomar a noção de "alegria melancólica", desenvolvida
por Idelber Avelar:
Pois
é a alegria na melancolia – a alegria que deriva de que ainda
nos melancolizemos ante a barbárie política – que prova que
ainda não fomos narcotizados pela pilha de catástrofes a ponto
de tomá-las como naturais; pela mesma razão, é a melancolia
na alegria, o reconhecimento de um limite, uma impotência
fundamental da afirmação gaia o que evita que a alegria caia
na felicidade complacente própria dos que são cegos à catástrofe. [13]
Longe da felicidade complacente
dos cegos e dos crentes em finais redentores, István Örkény
arrisca-se a responder às questões colocadas no início desta
reflexão: como narrar horror? Como transmitir o ponto cego
de uma experiência para além da simples informação? O que
significa acertar as contas com o passado? Através do humor,
ora irônico, ora melancólico, do distanciamento e da invenção,
a sua literatura é um exercício lúcido de reinvenção da memória
como restituição, tarefa impossível, mas necessária.