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UM OLHAR MELANCÓLICO: O CONTO DE CAIO FERNANDO ABREU

Luana Teixeira Porto

1. O conceito de melancolia

O conceito de melancolia já recebeu muitas definições ao longo do tempo e entre os autores que se voltaram para o tema nem sempre é possível apontar um ponto convergente. Nesse estudo, não pretendemos apresentar uma abordagem exaustiva sobre as concepções antigas e modernas sobre a melancolia nem eleger um único conceito de melancolia por considerarmos produtiva a referência a teorias diversas sobre o fenômeno para compreensão de imagens e formas narrativas no conto de Caio Fernando Abreu. Com isso, pretendemos assinalar que a “adoção” de um conceito unívoco de melancolia não dá conta da criação literária do escritor. Assim como o conceito, também seus contos sugerem nuances e traços específicos que apontam para uma perspectiva melancólica singular.

O termo melancólico vem do grego melas, que significa negro, e chole, que designa bile. Se considerarmos a etimologia da palavra, teremos bile negra. A bile negra, aliás, desde os primeiros tratados sobre a melancolia foi associada a esse estado espiritual. Os melancólicos, segundo alguns estudiosos, eram dominados pela bile negra, que, para uns, era considerada a responsável pelo estado mórbido e, para outros, a causa da doença. Doença ou uma forma de condição existencial? Um histórico do conceito mostra que não há um ponto final no debate.

Nos diferentes períodos históricos encontramos tratados sobre a melancolia. São textos de áreas como a filosofia, as artes, a medicina que deram impulso ao exame das condições melancólicas tanto do ser humano quanto da representação desse estado emocional nas criações artísticas [1] . De acordo com Moacyr Scliar, as acepções sobre melancolia assumem conotações diversificadas e a reflexão sobre ela é uma constante também por haver uma “espécie de contágio psíquico” que emoldura o pensamento de uma época e de um lugar, conduzindo a uma conjuntura emocional representada nas artes e na literatura.

Na Antigüidade ou período clássico, Hipócrates e Aristóteles formularam proposições acerca do conceito de melancolia. Considerado o pai da medicina, Hipócrates de Cós privilegiava os fatores naturais ao tratar da gênese das enfermidades, associando as doenças a humores e temperamentos. Os quatro humores básicos do corpo - o sangue, a linfa, a bile amarela e a bile negra – correspondiam aos quatro temperamentos: sangüíneo, fleumático, colérico e melancólico. O equilíbrio destes elementos asseguraria a saúde mental e física, sendo que um distúrbio de humores provocaria distúrbio mental. A melancolia, para o autor, ao mesmo tempo que era desencadeada por uma irregularidade no processamento da bile negra, era também vista como o resultado da “perda do amor pela vida, uma situação na qual a pessoa aspira à morte como se fosse uma bênção” (Scliar, 2003: 70). A visão hipocrática tendia a perceber a melancolia como doença, já que também considerava a situação patológica.

Aristóteles estudou o fenômeno melancólico entre os homens de gênio, ou homens de exceção, aqueles que se mostravam excelentes no campo das artes e da filosofia. Aristóteles, bem como seus contemporâneos, acreditava que um dos humores predominava no temperamento das pessoas, e as influenciava determinantemente. Para ele, “O gênio surgiria pela ação da própria bile negra, que, como o vinho, teria poderosa ação sobre a mente.” (Scliar, 2003: 70). Segundo Kristeva, Aristóteles evocava a melancolia não como uma doença de filósofos, mas como “sua própria natureza, o seu ethos” (1989: 14), ou seja, seu traço distintivo. O temperamento melancólico propiciava a criação na filosofia, na poesia, nas artes, mas os melancólicos pagariam um alto preço: o talento os arrastaria pela vida como um barco desgovernado.

Ainda no período clássico, surgiram outras teorias sobre a melancolia, merecendo destaque a de Constantinus Africanus, médico árabe que viu a melancolia como algo associado ao mal do amor, resultante de uma paixão não correspondida ou da busca de um ideal amoroso impossível de se atingir. Esta acepção seria depois retomada para a compreensão das obras dos poetas românticos no século XVIII. Foram os médicos árabes que, de acordo com Scliar, propuseram a correlação astrológica entre humores e planetas: Humor sangüíneo – Júpiter, Colérico – Marte, Fleumático – Vênus, Melancólico – Saturno.

Durante a Idade Média, as proposições dos árabes ganharam força e a melancolia foi vista sob a influência maléfica do planeta Saturno. A identificação de Saturno com a inconstância melancólica é justificada pela história do deus Saturno na mitologia, o qual é ao mesmo tempo o senhor de todos os deuses e o deus desterrado, poderoso e impotente. Seu correspondente na mitologia grega, Cronos, o senhor do tempo, também contribui para a consolidação dessa perspectiva. Ele é o deus do tempo, que consome e cria, devora seus filhos, causa a morte, mostra a racionalidade como vaidade, e vê o ser humano como ser fadado à morte assim como todas as coisas que existem e desaparecem com o tempo. Essa percepção sobre a vida e o homem leva ao abatimento do corpo e do espírito, o que gera melancolia. Nessa época o estado de tristeza era também associado ao demônio e visto como pecado pela teologia cristã, que entendia o pecado como parte do conceito de melancolia exposto por João Cassiano. Ter o coração taciturno denotava ter perdido Deus, sendo os melancólicos uns fracos e insignificantes diante de Deus.

O cenário do Renascimento foi marcado por profundas modificações psicológicas e tecnológicas que reativaram a visão da melancolia. Nesse período instituiu-se um paradoxo: o avanço nos planos científico e tecnológico, sinônimo de progresso, trouxe a imagem do labirinto à tona, ou seja, uma visão de mundo perturbada, que foi motivo de produções no campo das artes e da filosofia. Essa perturbação também foi evidenciada pela quebra dos antigos paradigmas no campo da fé, através da Reforma Protestante, e pelo surgimento de doenças como a sífilis e a Peste Negra. Estas doenças asseguraram uma intensificação na idéia de morte e finitude, inspirando terror e discussões sobre suicídio, visto como uma atitude melancólica resultante de uma miséria moral e humana. Esse mundo que oscilou entre idealismo e corrupção, entre riqueza e pobreza, otimismo e desespero e que também começou a conhecer o capitalismo e assistir à ascensão do individualismo, viu esse dualismo com culpa, uma culpa que gera depressão e melancolia (Scliar, 2003: 23).

O quadro Melancolia I, de Albrecht Dürer, até hoje considerado um dos melhores expoentes da criação melancólica, representa a efervescência do pensamento intelectual da época renascentista por sua mensagem sombria. Tirso de Molina e William Shakespeare também abordaram a melancolia em suas obras de ficção. Neste período, a descoberta sobre o corpo humano ganhou destaque e foram vários os estudiosos interessados em dissecar cadáveres. Robert Burton, sob o pseudônimo de Demócritus Júnior, publicou então o livro A anatomia da melancolia, no qual a melancolia é vista como doença e como característica intrínseca ao ser humano. Era um livro que atendia aos interesses de uma geração de melancólicos na Europa. No Renascimento, a visão sobre melancolia oscila entre a sua manifestação como estado emocional ou condição existencial e como doença. Admirada entre os intelectuais e intolerada entre as pessoas comuns, a melancolia passava a ser vista como característica de bruxas e judeus, os quais passaram a ser perseguidos e vítimas de violência.

É a partir do Renascimento, conforme Scliar, que podemos pensar a melancolia no Brasil. Como ponto central de discussão, o autor questiona se a melancolia tem um caráter cíclico e ignora fronteiras espaciais e culturais ou se é um fato isolado de uma determinada comunidade. A resposta é afirmativa para a primeira hipótese. Diante desta premissa, o autor vê a melancolia no Brasil. Passada de um país europeu a outro, ela chegou a Portugal. E os portugueses chegaram ao Brasil trazendo uma carga de tristezas decorrentes da mudança cultural ocorrida naquele país: “Por que haveriam de ser tristes os portugueses chegados ao Brasil?”, pergunta Scliar, que responde “O ‘português heróico’ do século XV desaparecera: a derrota na África, a morte de dom Sebastião, a união com a Espanha, a crescente influência da Inquisição, os governos despóticos e incapazes, o luxo, a desmoralização de costumes, a corrupção (...) Tudo isso alterara o perfil dos colonizadores.” (2003: 190). A chegada de portugueses com essa imagem de fracasso e com o sentimento melancólico resultante do desaparecimento de Dom Sebastião, aliada a outras tristezas brasileiras e latino-americanas, são motivos para se projetar a tristeza no trópico. A partir disso, podemos pensar que o Brasil, enquanto país colonizado, nasce melancólico.

Para Scliar a melancolia é uma constante na sociedade brasileira, embora nosso país tenha criado antídotos, como o Carnaval, o futebol, o humor e outras festas populares, para minimizar a tristeza. O autor defende a tese de que o sentimento melancólico no Brasil instituiu-se, além da influência portuguesa, graças a um conjunto de traços sombrios: pestes (sífilis, cólera, febre amarela), transformações sócio-políticas turbulentas, condição de “inferioridade” brasileira (caracterizadas pela difusão de idéias racistas), tristeza indígena (considerados bons e maus selvagens e o próprio genocídio das tribos), tristeza dos negros (intensificada pela escravidão), tristeza latino-americana (situação de dominação). Toda essa conjuntura, aliada à pobreza e à precariedade da condição humana, expressam uma visão desanimada, pessimista e antiufanista do Brasil. Tal perspectiva, segundo Scliar, aparece em Lima Barreto e Machado de Assis. E, em nossa leitura, também caracterizara a produção literária de Caio Fernando Abreu.

Se, por um lado, temos nas proposições de Scliar uma forma de se pensar a melancolia como resultado de circunstâncias histórico-político-sociais, por outro, vemos nas formulações de Julia Kristeva um caminho para associar a perspectiva sombria de textos literários à sua forma narrativa ou poética. Tal teoria sobre a melancolia ajuda-nos a pensar uma melancolia moderna, que é representada nas artes com a associação de forma e conteúdo. Agora, cabe-nos ver os textos literários enquanto criações literárias melancólicas dotadas de recursos e estratégias artísticas capazes aliarem tristeza e dor è uma forma de comunicação da dor.

Em Sol negro, Julia Kristeva aponta a melancolia como forma de melhor compreender a crise de valores da sociedade. Considerando que em nossa vida social há uma “lista de desgraças que nos oprimem todos os dias” (1989: 11), a autora postula que “uma existência desvitalizada” conduz a um esforço para a morte e que a melancolia é resultante da não assimilação de uma perda, especialmente da perda amorosa: “Conscientes de estarmos destinados a perder nossos amores, ficamos talvez ainda mais enlutados ao perceber no amante a sombra de um objeto amado, outrora perdido.’ (1989: 12).

Afora esse conceito de melancolia como “perda do objeto”, interessa-nos da obra de Kristeva a relação estabelecida entre contexto social e melancolia: “As épocas que vêem o desmoronamento de ídolos religiosos e políticos, as épocas de crise são particularmente propícias ao humor negro. É verdade que um desempregado é menos suicida do que uma mulher apaixonada e abandonada mas, em tempos de crise, a melancolia se impõe, é expressa, faz sua arqueologia, produz suas representações e seu saber.” (1989: 15). O excerto aponta, tal como Scliar, que é possível refletir manifestações melancólicas como resultantes de um período de exceção ou de crise.

Julia Kristeva também associa o estado depressivo a uma fragmentação do ego (pulsão de morte), que, por sua vez, conduz a uma fragmentação da fala do sujeito: “Lembre-se da palavra do deprimido: repetitiva e monótona. Na impossibilidade de encadear, a frase se interrompe, esgota-se, pára.” (1989: 39). O discurso do melancólico, destaca Kristeva, é desprovido de encadeamento lógico: “o depressivo, (...), preso à sua dor, não encadeia mais e, por conseguinte, não age, nem fala”. (1989: 39-40).

A autora admite a possibilidade de se apontar relacionamentos entre o “substrato biológico e o nível das representações” (explicação médica do uso da linguagem e do discurso do depressivo, e criação artística, respectivamente) num estudo de ressonâncias de um sobre outro e de modificações de um em relação ao outro. Tal premissa assegura-nos a associação entre obras literárias e perspectiva melancólica, já que enquanto representação o texto literário faz referência à condição psíquica do sujeito, atreves do discurso. Nesse sentido, a análise da forma e estrutura de produções literárias, como os textos de Caio Fernando Abreu, pode ser articulada a uma visão melancólica na medida em que sugere traumas históricos decorrentes de um contexto sócio-político autoritário marcado por experiências de violência e repressão, os quais condicionam um sentimento de tristeza e depressão.

Podemos formular a partir disso que a fragmentação da forma narrativa e, por conseguinte, do discurso de narradores e personagens de obras literárias, seria então motivada por um reconhecimento de perda e de dor, cabendo à linguagem a “tradução” dessas perdas. Assim, considerando o sentimento de perda e de tristeza, seria lícito observar nos discursos e estruturas não “normais” das representações literárias que os encadeamentos estranhos são recursos utilizados para problematizar experiências de sofrimento e desespero. Talvez por isso, Kristeva fala do melancólico como “um estrangeiro na sua língua materna” (1989: 55).

As reflexões modernas sobre a melancolia relacionam-se a algumas proposições antigas. O pensamento de Kristeva acerca da experiência da perda já havia sido exposto por Constantinus Africanus e a avaliação da melancolia como resultado de uma conjuntura social desfavorável, proposta por Scliar, já havia sido postulada no Renascimento. Cabe-nos, então, fazer uma leitura da literatura brasileira contemporânea e examinar como a condição melancólica aparece nos textos.

2. O conto de Caio Fernando Abreu

A narrativa de Caio Fernando Abreu pode ser vista como uma literatura que marca uma visão negativa da experiência social no Brasil, especialmente se considerarmos a representação da situação social e humana durante os anos de chumbo e da repressão sexual estimulada num país em que idéias liberais são colocadas ao lado de um pensamento conservador. Contos da antologia Morangos mofados exploram nuances de nosso processo histórico-social recente, convidando-nos a refletir não só sobre nossos episódios violentos, mas também sobre nossos valores humanos.

O conto Os sobreviventes assinala a “cidadania de ficção” a que alude José Antônio Segatto ao se referir à condição humana na sociedade autoritária brasileira. Como sobreviventes de um grupo de militantes contrários ao sistema ditatorial brasileiro, os personagens do conto apresentam-nos um cenário literário que nos causa estranhamento numa leitura inicial. O texto, construído com um diálogo ininterrupto entre um homem e uma mulher, que sufoca a voz do companheiro ao desabar suas angústias e desilusões, rompe com a forma clássica de narrativa. A repressão e as implicações psicológicas resultantes da violência física e moral forçam a substituição da narrativa linear (em que sempre há um narrador que nos conta uma história e nos apresenta os personagens com contornos nítidos, indicando caminhos de leitura e apontando circunstâncias, cenários e temporalidades que configuram o universo ficcional) por uma fragmentada. Em Os sobreviventes o narrador desaparece, os personagens são estranhos, o espaço é irreconhecível e o tempo é indefinido. O texto é denso, embora curto, e exige uma constante interação do leitor.

No conto, descrições da crise dos personagens são entrelaçadas a lembranças de um passado recente e a perspectivas do tempo porvir. O discurso dos personagens é desprovido, aparentemente, de coerência. Nesse sentido, as falas parecem emergir diretamente da consciência, num fluxo contínuo que oscila entre convicções e idéias, discurso e pensamento:

você vai curtir os seus nativos em Sri Lanka depois me manda um cartão-postal contando qualquer coisa como ontem à noite, na beira do rio, deve haver uma porra de rio por lá, um rio lodoso, cheio de juncos sombrios, mas ontem na beira do rio, sem planejar nada, de repente, sabe, por acaso, encontrei um rapaz de tez azeitonada e olhos oblíquos que. Hein? claro que deve haver alguma espécie de dignidade nisso tudo, a questão é onde, não nesta cidade escura, não neste planeta podre e pobre, dentro de mim? (grifos nossos) (1995: 19-20)

A referência ao mundo imperfeito neste fragmento é significativa da tendência melancólica de Caio Fernando Abreu, como sublinharemos posteriormente. Essa forma de representação da fala e do pensamento do personagem implica na limitação do trabalho de um narrador que, tradicionalmente, ocupava-se em relatar as experiências psíquicas dos personagens e em transmitir seus pensamentos. Além disso, esta fala é um indício do estado melancólico que tinge os personagens.

A eliminação do narrador clássico confere ao texto uma outra particularidade. A seqüência lógica perde-se em meio aos relatos e diálogos dos personagens, o princípio de causa e efeito e o encadeamento de início, meio e fim tomam outros contornos e a estrutura do conto revela-se fragmentária e transgressora. As declarações e as falas dos personagens são sinal dessa fragmentação, uma vez que não há uma ligação lógica de ordenação das idéias e os assuntos são misturados numa espécie de caos:

não é plágio do Pessoa, mas em cada canto do meu quarto tenho uma imagem de Buda, uma mãe de Oxum, outra de Jesuzinho, um poster de Freud, às vezes acendo velas, faço reza, queimo incenso, tomo banho de arruda, jogo sal grosso nos cantos, não te peço solução nenhuma, você vai curtir os seus nativos de Sri Lanka depois você me manda um cartão-postal contando qualquer coisa como ontem à noite, à beira do rio, deve haver um rio por lá. (1995: 18)

A ausência de uma explicação sobre os motivos que desencadearam a crise dos personagens também contribui para essa descontinuidade dos elementos de causa e efeito. A perda de uma seqüência lógica dos fatos narrados é intensificada na narrativa através da suspensão do padrão lingüístico de escrita e da supressão de parágrafos. Nesse caso, são abolidas vírgulas, algumas frases são terminadas de modo a deixar incompleta uma idéia e o texto é apresentado em um único bloco. No entanto, essas rupturas com o modo clássico da narrativa não implicam a perda da lei de causa e efeito, como sublinha Rosenfeld ao falar do romance moderno e de suas rupturas com os modelos clássicos de narrativa, já que a “coerência” se dá justamente pela suposta falta de logicidade.

A transgressão característica da forma narrativa do texto manifesta-se não só na eliminação do narrador clássico e do encadeamento lógico, mas também na sua estrutura formal e linguagem. O texto é constituído em um só parágrafo, contém efeitos lingüísticos, como o uso de hífens separando sílabas de uma palavra e alongamento de uma sílaba sonora pela repetição de letra (claaaaaaaro), e mescla vocábulos cultos e vulgares. Estes recursos contribuem para um efeito de estranhamento que pode ser explicado na relação entre discurso e melancolia.

A situação apresentada em Os sobreviventes dirige-nos para a percepção da dor, da violência e da vontade de resistência de dois militantes cuja força para contestação política e social foi enfraquecendo com o tempo e especialmente com a imposição vigorosa da repressão ditatorial. Alusões a formas de exercício do poder e da opressão marcam o diálogo dos personagens, principalmente o da mulher, que desabafa suas angústias, seus medos e também parte de sua história de forma a cortar a fala do companheiro. É através do discurso do personagem feminino que a problematização da experiência de violência e da impossibilidade de superação da crise atinge um ponto de intensa dramaticidade:

Eu peço um cigarro e ela me atira o maço na cara como quem joga um tijolo, ando angustiada demais, meu amigo, palavrinha antiga essa, a velha angst, saco, mas ando, ando, mais de duas décadas de convívio cotidiano, tenho uma coisa apertada aqui no meu peito, um sufoco, uma sede, um peso, ah não me venha com essas histórias de atraiçoamos-todos-os-nossos-ideais, eu nunca tive porra de ideal nenhum, eu só queria era salvar a minha, veja só que coisa mais individualista elitista capitalista, eu só queria era ser feliz, cara, gorda, alienada e completamente feliz. (...) eu te olhava entupida de mandrix e babava soluçando perdi minha alegria, anoiteci, roubaram minha esperança enquanto você, solitário & positivo, apertava meu ombro com sua mão apesar de tudo viril repetindo reage, companheira, reage, a causa precisa dessa tua cabecinha privilegiada, teu potencial criativo, tua lucidez libertária e bababá bababá. As pessoas se transformavam em cadáveres decompostos à minha frente,  minha pele era triste e suja, as noites não terminavam nunca, ninguém me tocava, mas eu reagi, despirei, voltei a isso que dizem que é normal, e cadê a causa, meu, cadê a luta, cadê o pó-ten-ci-al criativo? (1995: 19-20)

O excerto sintetiza a perspectiva frustrada que assola os personagens no decorrer da narrativa, já que eles são, como o título do conto indica, sobreviventes de uma elite intelectual consciente de seus “fracassos”. Nesse sentido, a voz da mulher sublinha uma tentativa malograda de resistir, pois, como ela diz, “tem coisa mais autodestrutiva do que insistir sem fé nenhuma?” (199+5: 21). O reconhecimento da impotência em subverter a ordem vigente acentua o impacto da experiência, que é traumática para os personagens, e indica uma visão pessimista da vida social.

A fragmentação do discurso e a dificuldade dos personagens em organizar logicamente a sua fala denotam uma visão melancólica. Como seres em crise, a condição para elaboração de um discurso com encadeamento ordenável é estrita e a segmentação torna-se inevitável. Nesta linha de raciocínio, a perspectiva teórica de Kristeva ajuda a elucidar a fragmentação do discurso em Os sobreviventes: como os personagens vivem um “estado-limite”, não têm condições de elaborar uma fala cuja seqüência seja ordenável; logo, a representação dessa condição não pode se apresentar lógica e linearmente.

A temática homoerótica é o eixo central em outras narrativas de Morangos mofados, cujos personagens aberta ou supostamente mantêm relações sexuais condenadas pela sociedade como um todo. Esses contos propõem um (des)mascaramento social na medida em que questionam o poder e a mediocridade social em virtude da repressão a tudo e a todos os contrários a uma ideologia ou a uma postura pré-estabelecida.

Terça-feira gorda, narrado em primeira pessoa, põe em destaque a voz de um personagem masculino que vivencia uma experiência erótica com um homem. Ao relatar sua própria história, o personagem carrega de subjetividade o texto, acentuando o impacto de, ao mesmo tempo, sentir um grande prazer, resultado de seu envolvimento afetivo e sexual, e assistir a uma condenação social, representada pela ação dos “outros” que agridem os dois e repreendem a sua relação.

A cena de envolvimento entre os personagens é relatada logo no início do conto, quando é sugerido um “reconhecimento” entre os dois futuros amantes:

De repente ele começou a sambar bonito e veio vindo para mim. Me olhava nos olhos quase sorrindo, uma ruga tensa entre as sobrancelhas, pedindo confirmação. Confirmei, quase sorrindo também, a boca gosmenta de tanta cerveja morna, vodca com coca-cola, uísque nacional, gostos que eu nem identificava mais, passando de mão em mão dentro dos copos de plástico. (1995: 50)

A identificação entre os personagens se dá tanto no plano do prazer quanto no do sexual. Ambos vivenciam uma relação homoerótica em meio a uma festa de carnaval:

Na minha frente, ficamos nos olhando. Eu também dançava agora, acompanhando o movimento dele. Assim: quadris, coxas, pés, onda que desce, olhar para baixo, voltando pela cintura até os ombros, onda que sobe, então sacudir os cabelos molhados, levantar a cabeça e encarar sorrindo. (...) Eu queria aquele corpo de homem sambando suado bonito ali na minha frente. Quero você, ele disse. Eu disse quero você também. (1995: 51)

A postura dos personagens permite reconhecer que não há nenhum tipo de preconceito quanto a envolvimentos entre pessoas do mesmo sexo, o que nos direciona a pensar numa total liberdade de opção sexual. Esta liberdade é melhor apreendida nesta passagem do conto:

Tínhamos pêlos, os dois. Os pêlos molhados se misturavam. Ele estendeu a mão aberta, passou no meu rosto, falou qualquer coisa. O quê, perguntei. Você é gostoso, ele disse. E não parecia bicha nem nada: apenas um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o meu, que por acaso era de homem também. Eu estendi a mão aberta, passei no rosto dele, falei qualquer coisa. O quê, perguntou. Você é gostoso, eu disse. Eu era apenas um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o dele, que por acaso era de homem também. (grifos nossos) (1995: 51)

Se, por um lado, a postura dos personagens desestabiliza qualquer tipo de pensamento conservador, por outro lado, o comportamento dos “outros” manifesta uma tentativa de impor regras de conduta baseadas na oposição binária homem/mulher como padrão legítimo de relação sexual. Esses outros, cujas vozes aparecem embutidas na fala do próprio narrador, representam uma voz social da estrutura de macro-poder, já que é dela que partem as regras. O fragmento a seguir ilustra o “olhar” desses que julgam e condenam: “Passou a mão pela minha barriga. Passei a mão pela barriga dele. Apertou, apertamos. As nossas carnes duras tinham pêlos na superfície e músculos sob as peles morenas de sol. Ai-ai, alguém falou em falsete, olha as loucas, e foi embora. Em volta, olhavam.” (1995: 51)

As vozes que, irônicas e maldosas, manifestam indignação e preconceito revelam também uma incapacidade de aceitar uma ruptura com códigos repressivos e conservadores, fazendo com que numa festa onde o “desregramento” é a tônica maior, como no carnaval, a postura de liberdade e ousadia, própria da cultura carnavalesca, seja abolida. Esse rompimento com tudo o que, à primeira vista, é permitido no carnaval leva à constatação de um paradoxo de nossa sociedade, uma vez que aceita um desregramento nas festas e condena atitudes de liberdade, no caso a sexual. Nesse sentido, a proposição de Arnaldo Franco Jr. é bastante elucidativa: “O carnaval, em ‘Terça-feira Gorda’, alegoriza a própria tessitura de violência sombria mesclada a explosões circunstanciais de euforia e aparente desregramento que caracterizam um modo de ser ‘alegre’, irresponsável e brutal.”(2000: 92)

O lado avesso da sociedade é reconhecido pela ironia de a repressão acontecer justamente no carnaval. Para Franco Jr., “o carnaval torna-se, no conto, signo de uma ironia amarga: a intolerância tropical manifesta-se nele e, mais, por meio dele. Repressiva e dissimulada, a sociedade que celebra o Momo é a mesma que, ambivalente com a identificação de limites, reage violentamente quando, por alguma razão, os limites tornam-se claros.” (2000: 92). A representação da repressão sexual no carnaval torna a narrativa ainda mais crítica porque questiona o conservantismo social e também uma liberdade previamente garantida nas festas populares do Carnaval. O fragmento a seguir ilustra tal característica do conto, ao propor a inversão de máscaras:

Veados, a gente ouviu, recebendo na cara o vento frio do mar. A música era só um tumtumtum de pés e tambores batendo. Eu olhei para cima e mostrei olha lá as Plêiades, só o que eu sabia ver, que nem raquete de tênis suspensa no céu. Você vai pegar um resfriado, ele falou com a mão no meu ombro. Foi então que percebi que não usávamos máscara. Lembrei que tinha lido em algum lugar que a dor é a única emoção que não usa máscara. Não sentíamos dor, mas aquela emoção daquela hora ali sobre nós, eu nem sei se era alegria, também não usava máscara. Então pensei devagar que era proibido ou perigoso não usar máscara, ainda mais no carnaval. (1995: 52)

A imposição de regras de comportamento implica também a exclusão do ser diferente ou do ser que não se adecua às normas. No conto, um dos personagens é espancado e morto pelos ”outros”, por aqueles que não toleram a relação homoerótica. O narrador descreve da seguinte forma o espancamento:

Quis tomá-lo pela mão, protegê-lo com meu corpo, mas sem querer estava sozinho e nu correndo pela areia molhada, os outros todos em volta, muito próximos. Fechando os olhos então, como um filme contra as pálpebras, eu consegui ver três imagens se sobrepondo. Primeiro o corpo suado dele, sambando, vindo em minha direção. Depois as Plêiades, feito uma raquete de tênis suspensa no céu lá em cima. E finalmente a queda lenta de um figo muito maduro, até esborrachar-se contra o chão em mil pedaços sangrentos. (1995: 53).

A representação da morte através da metáfora da fruta que se despedaça no chão conduz ao desnudamento de uma “política da sexualidade” contrária às relações homoeróticas. A morte do personagem impossibilita a transcendência e assegura uma finitude provocada pela agressão violenta de um grupo de pessoas. O final trágico do relacionamento entre os dois homens deixa transparecer uma visão negativa da percepção da sociedade sobre as sexualidades excêntricas, acentuando um sentimento de desconforto e isolamento daqueles que sofrem a repressão. Há possibilidade ou garantia de liberdade sexual? O conto mostra que não e, por isso, percebemos uma perspectiva melancólica na narrativa. Uma leitura do conto indica que há motivos para se projetar uma tristeza, só que neste caso não são motivos de crise existencial, mas razões de cunho moral, social, ideológico.

A imagem do corpo morto na areia também sugere falta de humanidade. Separado de seu companheiro e esmagado por “os outros todos que estavam em volta”, o suplício enfrentado pelo personagem ultrapassa os limites da tolerância. Nós, supostamente humanos, somos os espectadores de uma dor, que mais do que física é moral. Somos conduzidos via dramaticidade narrativa ao desabafo do horror da violência e da ruptura com o sonho. Carnaval como expoente da liberdade? Não. O conto sugere uma inversão do constructo ideológico que associa uma de nossas festas mais populares à liberdade em suas múltiplas formas. A opção por representar a repressão sexual no carnaval é também significativa para a percepção do teor melancólico do conto. O carnaval no Brasil, segundo Scliar, é um dos antídotos para a melancolia, serve de instrumento para neutralizar a tristeza. O conto de Caio Fernando Abreu situa nossa percepção sobre a moralidade burquesa, que considera intolerável a adoção de papéis sexuais contrários ao padrão dominante imposto. O carnaval brasileiro é uma festa em que as “moralidades brasílicas” supostamente desaparecem: o culto à liberdade sexual e ao despojamento comportamental são as tônicas desse movimento popular. Seria então necessário questionar: derrotados pelas circunstâncias sociais e pelas posições ideológicas, os personagens de Terça-feira gorda ajudam a consolidar que imagem de nossa situação social?

Considerando a conjuntura sócio-histórica brasileira, é possível reconhecer na mensagem sombria do conto um outro indício de melancolia, que agora aparece em decorrência de uma experiência problematizada pelo próprio protagonista do texto. A narrativa de Caio Fernando Abreu pinta uma morte sofrida, mas o faz dez maneira a reavaliar a vida. O corpo morto do personagem contrastando com o corpo vivo de nós, leitores, pelo convite à reflexão. Como nosso olhar deve elaborar essa representação da dor? A banalidade da morte nesse conto direciona a uma visão triste do homem e de sua relação com a sexualidade marginal. Poderíamos falar em mal do amor, como propunha Constantinus Africanus? Não diretamente, mas alegoricamente, já que o conto sugere a perda de um ideal de relacionamento entre sujeitos do mesmo sexo, a qual é intensificada pela não aceitação dessa condição.

A leitura dos contos analisados pode direcionar a uma interpretação da obra de Caio Fernando Abreu: o sujeito (expresso pelos personagens que fazem parte das histórias dos contos), descentrado de um ambiente social “normal” (ou convencional?) e impossibilitado de exercer sua liberdade individual e assumir ostensivamente suas posições, lamenta a impossibilidade de concretização dos ideais de resistência e liberdade. Os contos marcam a distância entre o mundo projetado pelos personagens e o mundo experimentado por eles. O desconforto com a situação vigente é manifestado por declarações dos próprios personagens, como é possível perceber na referência à “cidade escura”, ao “planeta pobre e podre” em que habita o sujeito e à imagem de um figo maduro caído em mil pedaços sangrentos para descrever a morte do personagem no conto de teor homoerótico. Essas expressões são sintomáticas da mensagem sombria dos contos e da perspectiva melancólica. Uma melancolia que é conseqüência de experiências problemáticas e conflitos da sociedade brasileira e que revela a possibilidade de a literatura elaborar criticamente uma visão sobre nossos traumas históricos e também sobre nossos valores. Seria Caio Fernando Abreu um homem de exceção como propunha Aristóteles ao falar dos melancólicos?

Referências bibliográficas

ABREU, Caio Fernando. Morangos mofados. 9.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

ARENAS, Fernando. Estar entre o lixo e a esperança: Morangos Mofados de Caio Fernando Abreu. Brasil/ Brazil. Porto Alegre, Ano 5. nº 8, 1992.

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[1] Neste artigo, as referências a textos e autores que abordaram a melancolia estão baseadas nas obras de Moacyr Scliar e Julia Kristeva.




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