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A LITERATURA E O DISCURSO CRÍTICO: SERGIO SANT’ANNA EM DEBATE

Ana Paula Teixeira Porto (bolsista CAPES – Mestrado em Letras da UFRGS)

Do interesse no estudo sobre obras literárias produzidas em contextos autoritários e da necessidade de aprofundamento de reflexões subjacentes a elas nasce este trabalho, que parte de uma leitura da obra Confissões de Ralfo – uma autobiografia imaginária, discutindo a fragmentação narrativa e a perspectiva social do texto de Sérgio Sant’Anna, e examina caminhos do discurso crítico referente à ficção romanesca dos anos 70, na qual se insere a obra do autor. Tomando como ponto de referência o texto de Sant’Anna, cuja construção evidencia um trabalho intenso com a linguagem, de modo a dar à narrativa significados múltiplos e mostrar a combinação de variados procedimentos estéticos, são discutidas algumas afirmações dos estudos críticos, especialmente as que procuram fórmulas para a interpretação das obras e as que investem na produção do período um julgamento de valor pejorativo.

A narrativa de Sant’Anna concentra-se na autobiografia imaginária de um jovem intelectual, Ralfo, que se propõe a contar “fragmentos selecionados de uma existência” que resultam num livro que “trata da vida real de um homem imaginário ou da vida imaginária de um homem real” (CR, 1995: 6), como explica o autor no prólogo da obra. Explorando níveis de significação que passam da ironia e da paródia ao elemento fantástico, o texto apresenta as aventuras do personagem-título numa contínua viagem, mostrando o envolvimento do narrador-personagem com solteironas, a diversão em cassinos, o confinamento em um manicômio etc, através de um tempo e um espaço não definidos à exceção das referências a Paris e São Paulo. Paralelas às peripécias de Ralfo, estão incluídas discussões sobre temas político-sociais, como o dogma comunista cubano, a indiferença do homem que não se importa com o ferido pois “as pessoas queriam ver apenas as tripas, o espetáculo, e não o homem, que mereceu umas poucas linhas amareladas de um jornal. No entanto, era um homem muito importante, uma personalidade. Para si mesmo.” (CR, 1995: 14), e o caráter paradoxal da sociedade americana acusada de, ao mesmo tempo, ser avançada tecnologicamente exibir características universais que se estendem desde a intolerância, passando pela tortura política até o apreço por esportes sanguinários.

Construída por um prólogo, nove livros (subdivididos em trinta e dois sub-capítulos), um epílogo e uma nota final, a narrativa de Sant’Anna pode ser lida tanto como unidades independentes quanto como um conjunto de fragmentos aparentemente desarticulados, mas que apresenta uma rede de significação amarrada. Enquanto o prólogo e a nota final são do autor (Sant’Anna), as demais partes do texto são de seu narrador-escritor Ralfo. Numa referência à linguagem cinematográfica, o roteiro da obra sinaliza dados que explicam a estrutura do texto, sugerindo a autonomia dos episódios que compõem as trinta e duas partes divididas nos nove livros:

“Além do prólogo, epílogo e nota final, as Confissões de Ralfo compõem-se de nove pequenos livros. Possuindo muitas vezes um tênue e até suspeito relacionamento entre si, possivelmente esses livrinhos serão melhor desfrutados como unidades distintas, que se subdividem, por sua vez, em outras unidades ou episódios, em número de trinta e dois.” (CR, 1995: 7)

 Para Rosa Carvalho, ao assegurar uma relativa autonomia das partes, a presença do roteiro no texto de Sant’Anna “Assegura a desautomatização de uma perspectiva romanesca tradicional, centrada em uma trama contínua e fortemente armada” (1981: 38). O roteiro não é o único elemento que rompe com os padrões convencionais do romance: a construção de um personagem movediço, sem contornos nítidos, e a recorrência a formas diversificadas de linguagem são fatores que contribuem para configuração de uma obra com características distintas das de um romance tradicional. Rosa Carvalho acrescenta que a posição de Confissões é a de criticar a literatura tradicional, pois

“Gerando um espaço de indagação, a autenticidade é buscada nas fontes de discordância, investigando o possível da liberdade narrativa. (...) A obra anuncia-se, neste plano, como uma narrativa escandalosa, na medida em que procura subverter padrões literários aceitos. Mais ainda, busca retirar a capa de aparência que recobre os procedimentos contaminados pela utilização constante, e usa-os farsescamente para revigorá-los. Trabalha sobre estereótipos, de linguagem ou de construção, em um percurso perturbado.” (1981: 75-6)

 Como exemplo da recusa aos padrões, a autora cita o uso das formas fixas (relatório, contos e fada etc) “disassociadas, pervertidas pelo conteúdo” (1981: 78) e a linguagem do narrador/personagem, a qual redimensiona os padrões da narrativa tradicional. A intercalação de gêneros literários na obra, composta pelo estilo narrativo, dramático e lírico acentua não apenas uma estratégia que afasta o texto literário dos padrões tradicionais do romance, mas também ressalta o tom fragmentário da obra de Sant’Anna na medida em que o hibridismo, ao pôr lado a lado diferentes discursos, mostra a segmentação formal do universo da obra e a impossibilidade de manter um discurso uno. Ao referir-se a imbricação de gêneros, Liane Bonato afirma que

“A mistura de gêneros usada como recurso literário na composição do texto de Sérgio Sant’Anna vem enfatizar traços da poética da pós-modernidade, apontando a expansão do gênero romanesco e trazendo à tona problemas relativos à literatura e à vida literária, atacando regras de uma estética prestigiada ao mesmo tempo que desmistifica a aura que cerca o ofício de escritor.” (1998: 100)

   A elaboração fragmentária do texto, construído por capítulos autônomos mas que mantém uma interdependência no conjunto, é decisiva para a interpretação do significado da obra. Considerada por Janete Gaspar Machado (1981) como uma das constantes da ficção dos anos 70, a fragmentação formal predomina no romance de modo a dificultar a apreensão do sentido do texto e a expressar esteticamente a segmentação do contexto, que se mostra dilacerado e com alto nível de degradação cultural e política. Além disso, o discurso fragmentário da narrativa de Sant’Anna sugere a impossibilidade de se apresentar uma visão totalizante da realidade, que não é considerada como algo provido de harmonia e organicidade.

Explorada sob diversas formas, estendendo desde a segmentação entre os capítulos da obra até a fragmentação do discurso, em que a continuidade narrativa das cenas é quebrada, a construção de um discurso fragmentado traz indícios para configuração de questões mais amplas que as do universo estrutural do texto, já que a opção narrativa articula-se a perspectivas sociais e políticas que transparecem em meio a odisséia da vida de Ralfo. A segmentação da personalidade do narrador-escritor Ralfo, que, num jogo de identidades, expressa diversos papéis, faz alusão à configuração do sujeito num contexto perturbado. A cada capítulo uma identidade do personagem é apresentada de modo que a unidade identitária seja dificultada: cavaleiro, ladrão, ator são alguns dos “eus” que aparecem na autobiografia do personagem:

“Ralfo, o homem sem pai e sem pátria. Cavaleiro andante de boas e péssimas intenções.” (CR, 1995: 13)

“Revolvendo os armários como um ladrão vulgar. Ralfo, o ladrão sem casaca, seria um bom título para as minhas memórias. Por isso é que juro, neste exato momento, nunca mais roubar.” (CR, 1995: 25)

“Eles varrem ainda máscaras, dores, sorrisos, lágrimas, gritos selvagens, gargalhadas, insultos, fantasias e, finalmente, varrem a mim, Ralfo, o Magnífico. Todo o fantástico lixo que se acumula depois dos espetáculos de teatro.” (CR, 1995: 225)

A impossibilidade de uma definição unívoca do personagem transparece na forma fragmentária de identificá-lo, na medida em que aos poucos, no andamento das peripécias do narrador, é que vai sendo apresentado o caráter multifacetado e antagônico de sua personalidade. A polivalência do narrador-personagem, sintetizada pela projeção de vários eus em Ralfo, permite uma alusão à complexidade da constituição do sujeito, tão ambivalente quanto à narrativa. No jogo para encontrar sua personalidade, definida por vários papéis temporários, Ralfo incorpora traços positivos e negativos e constrói uma personalidade múltipla com características vagas. O sobrenome (Silva) inventado e a idade aproximada exemplificam a indefinição da identidade do personagem, cujo perfil “é uma brincadeira de faz de conta”, pois “Quanto mais se procuram elementos que o identificariam, mais a procura vira ao avesso. Os dados que formariam uma carteira de identidade do personagem – o prenome, o sobrenome, a idade, a nacionalidade – tornando o sujeito uno, individual e exclusivo transformam-no em um ser múltiplo e incapturável.” (Hilbert, 1990: 11).

A sobreposição de vozes, em primeira e em terceira pessoa, é outro fator decisivo da fragmentação discursiva da obra. Conforme as formulações de Bakhtin (1988) quanto ao aspecto interacional da linguagem, o estudo do discurso que considera a dialogicidade oportuniza a identificação, no texto literário, de posicionamentos acerca de questões socio-políticas, reproduzidas no mundo diegético da obra. As variações do ponto de vista do narrador e do próprio discurso narrativo da obra acentuam os conflitos vividos pelos personagens (em especial Ralfo), dando mais plasticidade e dramaticidade às cenas, já que as tensões se revelam na e pela linguagem estratificada, que por vezes impede a definição da pessoa que fala no texto. O excerto a seguir exemplifica esta ambivalência da voz narrativa: a de Ralfo em primeira pessoa e uma outra em terceira, que comenta a cena:

“Artistas famosas, todas as duas, é o que elas se tornaram. Lágrimas sinceras em meus olhos, quando as vejo, em retrato, pela última vez. Adeus, Dulcinéias minhas. Prometo invocar-voz diante de todos os moinhos de vento contra os quais me defrontarei. Lágrimas para elas e para Ralfo, por ter descido tão baixo. Mas é preciso descer aos infernos para depois subir aos céus. Encarnar-se não só em Cristo, mas também em Judas. Com altos e baixos, canalhices e bem-aventuranças, Ralfo tem de incorporar-se em seu destino. Judas também deve ter perguntado ao Criador: __ Pai, por que não afastas de mim este cálice?” (CR, 1995: 26)

A multiplicidade de vozes que ecoam na narrativa conduz a uma percepção elaborada das situações que são matéria de ficção, pois, quanto maior for o número de vozes, maior será também a possibilidade de o texto literário referenciar suas discussões. Nesse sentido, a obra está aberta, mantendo a pluralidade de pontos de vista e não tendo uma redução do horizonte plural da linguagem literária. Para Liane Bonato, o romance de Sant’Anna, ao trabalhar com o discurso polifônico, constrói um artifício para expressar os impasses do contexto sócio-político dos anos de repressão, uma vez que a obra se opõe ao monologismo oficial de modo a “remeter às fraturas históricas e às arbitrariedades do regime militar de 1964, subvertendo o discurso histórico hegemônico ao mesmo tempo que também desmistifica as estruturas sociais, através da análise contundente e irônica de valores de um universo burguês em decadência” (1998:94).

A fragmentação do texto literário também indica a impossbilidade de o personagem narrar de modo direto o inenarrável, como a experiência de violência e tortura a que Ralfo foi submetido. No capítulo dedicado ao interrogatório policial-militar, Ralfo apresenta uma descrição das cenas de tortura:

“Eles me arrancaram de dentro do carro e me empurraram, aos bofetões, para uma cela imunda e infestada de pequeninos insetos sobre um chão de cimento, onde havia vestígios de sangue, mijo e vômitos. E quando fecharam a porta atrás de mim, eu era só no mundo; só, de um modo que nunca antes experimentara ou imaginara possível acontecer.” (CR, 1995: 114)

No excerto, Ralfo descreve o início da experiência no interrogatório de modo que a narração seja aproximada de um depoimento de um preso político, por exemplo. A partir disso, a expectativa que se tem é a de que Ralfo continue narrando como aconteceu o interrogatório; no entanto, as cenas seguintes da obra quebram a expectativa inicial e mostram um diálogo sem questões típicas de uma situação de interrogatório político:

“__ E qual era a profissão de Dostoievski?

__ Escritor.

__ E o que é um escritor?

__ Aquele que escreve livros?

__ Assim como vós?

__ Assim como eu, senhores.

Duas chibatadas por ser um escritor.

(...)

__O que é arbitrariedade?

__ Despotismo e capricho daqueles que julgam com direito a arbítrio.

__ Assim como nós?

__ Assim como vós senhores.

__ Então nos diga por isso mesmo, o que aconteceu a 13 de outubro de 1915.

__ A cidade de Londres é bombardeada por um zepelim.

__ E o que é um Zepelim?” (CR, 1995: 128-9)

O diálogo entre Ralfo e o interrogador faz referência a uma prova oral de conhecimentos, cujas perguntas não exigem muita reflexão, já que são questões de cunho empírico. A “conversa” é interrompida por chibatadas e petelecos e, em muitos momentos, revela um nonsense, pois as questões exigem que Ralfo discorra sobre diversos fatos perguntados aleatoriamente pelo interrogador, sem que haja uma referência lógica entre as perguntas. Para Flora Sussekind, estes diálogos “funcionam como caricaturas meio bufas do tipo de informação que efetivamente se costuma exigir de um preso político. Ninguém costuma torturar ninguém para saber a receita de uma rosca doce ou ouvir mais uma vez que foi Pedro Álvares Cabral quem descobriu o Brasil” (1985: 51).

A construção das cenas de violência no interrogatório revela, através do nonsense das questões, o nonsense também dos interrogatórios constantes no período militar, pois Ralfo é submetido a uma situação irracional na medida em que as questões apresentadas não se propõem a discutir fatos políticos. Nesse sentido, a representação desta cena sugere a gratuidade da violência imposta ao perseguidos pelo regime ditatorial, mas não no sentido de despertar lágrimas do leitor, mas sim para despertá-lo quanto à perspectiva da política da tortura. Ao trazer para o centro da cena um personagem que se situa à margem e que é violentado e ao sublinhar a violência imposta aos perseguidos pelo regime ditatorial, a obra marca um “espaço da dor”, como define Regina Dalcastagnè ao estudar textos literários que se propõem a representar “o desespero daqueles que foram massacrados por acreditarem que podiam fazer alguma coisa pela história do país” (1996: 15).

Ao destacar episódios que marcam a degradação da condição humana e aludir ao dilaceramento do contexto sócio-político dos anos 70, pois “o mundo vai mal, como sempre, e o país vai nada”, a obra apresenta reflexões sobre o poder dirigente, explícito na seção sobre o interrogatório, e critica a importação de valores de outras culturas, além de acentuar questões de violência urbana e social. Nesta linha, a recorrência a estes temas assegura o tom crítico do texto em relação aos problemas emergentes na década, os quais, aliados ao trabalho com a linguagem, marcam a perspectiva social do texto literário, na medida em que viabilizam uma narrativa plural e complexa, ressaltando uma tendência em associar ao modo de elaboração do texto literário questões sociais que afligiam o Brasil e o mundo nos anos 70. Como nesta década o Brasil atravessava um momento conturbado política e socialmente, em que problemas econômicos faziam-se notáveis, além de questões políticas emergentes, antagonismos sociais mostravam-se evidentes. Nesse sentido, a obra de Sant’Anna incorpora à sua estrutura estes antagonismos, pois se nega a uma narrativa linear e à representação da violência como um documentário ou depoimento biográfico.

Com uma elaboração estética complexa que renega um fluxo de informações explicativas que, segundo Benjamin (1993), é o fator responsável pelo declínio da arte da narrativa, a obra de Sant’Anna constrói-se através do discurso plurilíngüe e fragmentário que permite a apresentação de diferentes vozes sobrepostas. Estas podem ser entendidas como uma estratégia narrativa que visa também a camuflar uma outra história a partir da própria voz narrativa. Sob este ponto de vista, algumas formulações de Benjamin podem ser associadas à obra do autor, pois, para usar as palavras do crítico alemão, a narrativa não “está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso” (1993: 205).

A configuração do texto de Sant’Anna, por articular de modo singular procedimentos estéticos variados e por acentuar uma perspectiva sócio-política de modo criativo, suscita o questionamento de interpretações propostas para o entendimento da literatura brasileira produzida após o golpe de 64. Surgidas no início dos anos 80, as tentativas de compreensão dos textos literários da década anterior formuladas por Flora Sussekind (1985) e Silviano Santiago (1982) apontam para a sintetização da produção do período a partir de fórmulas como a literatura verdade (para a prosa) e literatura do eu (para a poesia), e realismo mágico e romance-reportagem, respectivamente. Na perspectiva dos críticos, o maior interesse da literatura pós-64 é o de “Preencher lacunas de informação dos jornais e veículos de massa” e “dizer o que a censura impedia o jornal de dizer, fazendo em livro as reportagens proibidas nos meios de comunicação de massa” (Sussekind, 1985: 57), além de mostrar mais afinidade com o jornal do que como a literatura, como acentua Silviano Santiago. Associando  a construção de Confissões de Ralfo às interpretações apresentados pelos pesquisadores, é possível discutir se o que a crítica tem apontado como tendência dominante dá conta dos objeto e se ela tem avaliado suficientemente os conteúdos desta literatura para emitir um julgamento de valor às obras da década.

Uma reflexão sobre a obra de Sérgio Sant’Anna mostra que o autor rompe com os padrões do romance reportagem ou da literatura-verdade, como definem os pesquisadores, e apresenta uma certa transgressão da estética convencional ao combinar gêneros literários diversos e entrecruzar vozes narrativas de modo a construir um discurso plurivocal com alcance crítico. As tendências universalizadoras da literatura da década de 70 não se adaptam a leitura das Confissões, uma vez que a identificação da obra a uma das “correntes” não permite contemplar a especificidade artística do texto nem observar a complexidade de sua elaboração. Em Confissões de Ralfo não se restringe ao preenchimento de vazios que os jornais não podiam expressar e não se detém em um viés predominantemente informativo, indo além destas preocupações, pois apresenta outras reflexões que ultrapassam representações de resposta à censura do governo.

A formalização de categorias uniformes para a literatura do período exemplifica não apenas a tendência da crítica em apresentar uma visão panorâmica que sirva como uma leitura de conjunto, como também reforça o interesse de enquadramento da literatura em categorias estanques cujo fim é o de “preencher lacunas” do relato oficial e apresentar cenas de um “flagrante jornalismo”. Modelos como “literatura-verdade” (formulado por Flora Sussekind) e “romance-reportagem” (defendido por Silviano Santiago) permitem apreender um traço geral da obra, mas não possibilitam a interpretação da obra em sua especificidade, relegando para segundo plano as artimanhas não apenas temáticas mas também estéticas desenvolvidas nos textos. Essas “fórmulas” constituem uma vertente que visa a apontar a “função informativa” da literatura como um meio de denúncia e não como uma forma de expressão cultural que opera nos níveis temáticos e estéticos para esboçar uma reflexão sobre o sistema autoritário, por exemplo.

A incorporação nos romances de técnicas jornalísticas, do estilo cinematográfico, e da estética do fragmentário, entre outros rumos apontados pela crítica, é analisada pelo discurso crítico a partir de uma visão conservadora que vê na exploração destes artifícios uma tendência simplista no sentido de não apresentar avanços estilísticos embora seja reconhecida a complexidade de algumas obras. Tânia Pellegrini (1996) considera que a interpretação das obras dos anos 70 apresentada pelo discurso crítico impõe valor negativo aos acréscimos estéticos formulados pela literatura da década e ignora a necessidade de novas estratégias formais para a produção literária daquele contexto:

“O que a crítica comumente tem interpretado como negativo nos romances do período que se utilizam das técnicas da reportagem jornalística e dos meios da indústria cultural, ao mesmo tempo que conservam traços da tradição narrativa realista, dando a tais recursos o caráter de subtração ao ‘intocável’ gênero romanesco, na verdade são acréscimos que reformulam a forma-romance, pois a pureza simbólica da linguagem não dá mais conta de narrar um mundo que se tornou inenarrável; não são perdas, são adendos, ao mesmo tempo origem e explicação das transformações pelas quais passa a narrativa. Tais transformações devem ser repensadas em função dos fatos técnicos da situação da época, que exigia formas de expressão adequadas às novas energias literárias.” (1996: 178).

Um caminho fecundo para o estudo dos textos literários produzidos em década de repressão e censura, como a de 70, parece não ser o da crítica normativa, que tenta enquadrar as obras em categorias estanques e em instituir um valor menor ao minimizar os artifícios estéticos e ao sublinhar a significação histórica. Antes de se procurar “classificações” e enquadramentos de uma obra numa tendência literária, um estudo pertinente deve ser o exame atento da obra, com a consideração de seus elementos constitutivos e atribuição de sentido ao texto, subtraindo-se de pré-noções e predisposições de leituras e discursos críticos cuja autoridade científica é reconhecida. É a partir desse método de análise que se torna possível ver em Sant’Anna um amplo painel de leitura através da diversidade de temas e uma alternância formas estéticas.

Conforme Telma Hilbert, a obra de Sant’Anna não se limita a representar a circunstância local, porque suas referências sociais e históricas estendem-se a um panorama mais amplo, apresentando “um universo impregnado de crítica e denúncia a um desequilíbrio no processo cultural em nível planetário.” (1990: 45). Sob este ponto de vista, é necessário discutir se os estudos críticos como os de Flora Sussekind e de Silviano Santiago têm considerado suficientemente os conteúdos veiculados pelos textos literários produzidos após 64, já que os pesquisadores assinalam nesta literatura a efervescência de temas sobre o período militar, especialmente censura, repressão e violência. Assegurar uma identidade à literatura do período requer uma atitude ponderada que encare os pontos convergentes dos textos, mas ao mesmo tempo não ignore as particularidades de cada um, pois a partir deste método é possível observar procedimentos e soluções múltiplas da produção romanesca.

Embora a referência ao momento sócio-político do Brasil seja evidente e significativa para o desenvolvimento do texto de Sant’Anna, a obra não se restringe a este contexto específico, pois aborda contingências mais amplas que ultrapassam os limites de denúncia ou reportagem de um momento específico. Nesse sentido, é pertinente a afirmação de Tânia Pellegrini ao afirmar que

“Parece simplista, portanto, submeter a produção romanesca do período em análise ao grifo específico da situação política e social brasileira, sem levar em conta contingências mas amplas que dizem respeito ao desenvolvimento ao capitalismo como um todo. Nessa linha, o romance brasileiro da década de 70 está inserido num contexto muito maior, e, por isso, apresenta traços de transformação, de renovação, de inovação, que se referem à sua especificidade brasileira e à sua generalidade universal.” (1996: 14).

Ao concentrar-se nas estratégias formais da ficção de 70, os estudos críticos minimizam os efeitos do trabalho com a linguagem feito pelos escritores e enfatizam a referencialidade das obras associada à precariedade de recursos estéticos, cuja síntese é a “síndrome da prisão”, conforme afirma Flora Sussekind (1985). Nesse sentido, o discurso crítico, além de não reconhecer a impotência das convenções usuais da narrativa para o contexto de 70, mostra a ausência do caráter de relativização na interpretação das obras da década, já que as coloca num mesmo nível de significação ignorando muitas vezes o potencial criativo de cada texto e sobrepondo uma visão geral da obra.

Referências bibliográficas

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