ENTRE
PARÊNTESES:
O
LUGAR DO MURMÚRIO NA FICÇÃO DE TABAJARA RUAS
Rosana
Kohl Bines
Jean-François
Lyotard escreve que devemos estar sempre suscetíveis às turbulências
do pensamento. Havia concebido um outro trabalho para apresentar
hoje aqui, mas dele abro mão, apenas parcialmente, para tentar
enfrentar, em voz alta e na expectativa do diálogo, certo
desconforto que anda assombrando minhas leituras recentes
sobre a produção teórica em torno das literaturas pós-ditatoriais
na América Latina e em particular no Brasil.
O
desconforto de que falo tem a ver com as enormes demandas
que pesam sobre a escrita ficcional pós-64. Assusta-me, por
exemplo, a afirmação categórica de que o imperativo da literatura
pós-ditatorial é o imperativo do luto. A tese, desenvolvida
por Idelber Avelar no influente livro Alegorias da Derrota
[1] , reivindica um modo bastante particular de contar
a experiência ditatorial, elegendo a linguagem alegórica,
de matriz benjaminiana, como única estratégia fecunda de acesso
e nomeação do trauma. A alegoria, segundo Avelar, é a resposta
estética à derrota política das esquerdas latino-americanas.
É uma forma de engajamento com o passado, em sua face de morte,
enfrentando tudo aquilo que não se deu e o que não foi possível
conquistar. Só a partir das ruínas, dos restos produzidos
na esteira da truculência militar, a literatura encontra ressonância
no presente, pelo ato mesmo de pô-lo em crise, quando lembra
ser este um produto das catástrofes do passado. A alegoria
, portanto, cumpre a tarefa fundamental de incorporar a perda
ao relato, fazendo da ferida aberta do passado a alegoria
de um presente em crise
[2] .
Minha
contenda aqui não se refere ao teor da tese propriamente dita,
mas ao movimento seletivo que ela impõe com relação aos textos
literários. O imperativo do luto, via alegoria, acaba por
validar uma forma muito específica de narrar e de lembrar
o passado ditatorial, forçando um modelo por demais purificado
a uma gama enorme e variada de escritos. Cria-se um eixo de
especulação teórica que me parece por vezes deslocado da experiência
concreta de leitura das obras ficcionais. Como se a mão da
rua estivesse invertida. A indagação intelectual não emerge
da leitura cuidadosa dos textos, mas a eles se antecipa. Fecha-se
um cerco teórico apertado, verdadeiro campo de batalha, em
que se exercita a habilidade de promover conflitos, acirrar
disputas, imaginar antinomias dramáticas. Luto ou melancolia?
Símbolo ou alegoria? E a lista segue... Metáfora ou metonímia?
Relato confessional-subjetivo ou realista-documental? Dicção
épica ou lacunar? Bifurcações imaginárias, como as que Flora
Sussekind cria em seu balanço da literatura da década de 70,
no livro Literatura e Vida literária: polêmicas, diários
& retratos [3]
As opções estéticas do período, segundo Flora, se
dividem em duas correntes. A corrente vitoriosa, como ela
nomeia, pautada pela referencialidade biográfica ou social
e escrita à maneira naturalista e a corrente propriamente
literária, composta de “textos mais tensos e capazes de trabalhar
ficcionalmente com silêncios, cortes, risos nervosos” (Sussekind,
1985, p. 12). O impulso classificatório, ainda que útil no
sentido estrito da distinção de modalidades de escrita a
partir de uma visada panorâmica, gera também a ilusão de controle
do corpus de estudo, produzindo chaves de leitura engessadas
e impermeáveis às modulações de cada texto. Regina Dalcastagné
põe o dedo na ferida, ao apontar a leitura esquemática de
Sussekind do livro Incidente em Antares de Erico Veríssimo
[4] . Diante da bifurcação teórica claramente traçada,
Sussekind acomoda a obra de Veríssimo na corrente “vitoriosa,”
reclamando do autoritarismo de sua construção paródica e previsível,
fechada à multiplicidade de interpretações. O comentário apressado,
mesmo se pertinente, perde a força crítica, a meu ver, porque
é proferido num jogo de cartas marcadas a- priori.
Entra-se no texto, sabendo de antemão o que nele não se irá
encontrar.
O
pleito por uma literatura a partir das ruínas ou dos silêncios
configura uma agenda sobreposta aos textos, espécie de exigência,
que alguns cumprem e outros não. E para a classe de textos
que não cumpre o ideário prescrito, sobra uma leitura realizada
com extrema má-vontade. A obra do poeta chileno Pablo Neruda
sofreu também deste mal. Como diz com extrema ironia seu conterrâneo,
o poeta Nicanor Parra, “Existem duas maneiras de ler Neruda:
uma é não lê-lo; a outra, lê-lo de má-fé. Tenho praticado
as duas, mas nenhuma deu resultado.
[5] ”
Penso
que uma leitura atenta da literatura pós-ditatorial apostaria
nas encruzilhadas e não nas bifurcações. Uma aposta nos conectivos:
luto e melancolia. Símbolo e alegoria. Heroísmo e derrota.
Há de fato um emaranhado de linguagens discrepantes e simultâneas
na sondagem do trauma e da crise que acompanham o empenho
de narrar o passado violento. A disparidade coexiste no interior
dos textos e fala a favor das dificuldades e da complexidade
envolvida na tarefa da escrita. Não pretendo sugerir com isto
uma atitude teórica benevolente, que simplesmente acolha a
diversidade, abstendo-se de critérios e juízos de valor. Trata-se
antes de apontar o risco da onipotência de um foco teórico
constritivo, pesando sobre uma constelação vastíssima de textos
e deles exigindo subserviência, na medida em que descartam-se
como ineficazes as obras que não bebem da fonte modelar. A
construção de um paradigma ideal que responda aos dilemas
da escrita pós-ditatorial acaba por reduzir o gesto de leitura
a um simples processo de mensuração dos textos frente ao script
previamente elaborado. O que fica pelo caminho, à espera de
escuta, é justamente a babel de línguas que cada texto encena
em suas formas muito particulares de dizer os impasses da
significação face à tarefa de nomear a catástrofe.
Faço
este longo preâmbulo para chegar ao livro de Tabajara Ruas,
O Amor de Pedro por João [6] , foco da minha proposta inicial de comunicação, que ganha
agora um rumo diferente daquele antecipado no resumo, tendo
em vista as considerações que precederam. Escrito em 1980,
no exílio na Dinamarca, e publicado no Brasil somente 18 anos
depois, o romance narra a luta armada brasileira contra a
ditadura, tensionando-a “na difusa faixa entre o medo e a
audácia”, palavras de Hermes, um dos protagonistas guerrilheiros.
É através das zonas intermediárias que o livro experimenta
os extremos. Tabajara Ruas cria uma moldura bipolar para o
romance, em que o tom épico-heróico, por um lado, e a melancolia,
por outro, fornecem as balizas contra as quais os personagens
se moverão, modulando suas ações e pensamentos numa gama ampla
de tonalidades e dicções.
Duas
citações de Rainer Maria Rilke, cultuado poeta de língua alemã,
dão corpo a esta moldura. Rilke comparece logo na epígrafe
do livro, que antecipa bem a dicção grandiloqüente da trama
guerrilheira que se irá narrar: “orgulha-te: eu levo o estandarte/não
te preocupes; eu levo o estandarte/ama-me: eu levo o estandarte”.
Ao final do romance, já são outros os versos do poeta que
se lêem ao pé de uma velha fotografia dos quatro protagonistas
abraçados numa longínqua manhã de verão na praia – Beatriz,
Mara, Hermes e Marcelo. No momento em que Marcelo olha a foto
junto a Hermes, Beatriz já está morta e Mara, confinada em
um estádio no Chile, aguardando ajuda da ONU. Os dois amigos
se refugiam na embaixada em Santiago, às vésperas de partirem
para o exílio, cada qual para um país distinto. Não carregam
estandarte nesta próxima viagem. Os versos de Rilke escritos
em letra redonda por Beatriz no canto da foto contam uma outra
história: “Quem nos desviou assim para que tivéssemos/Um ar
de despedida em tudo que fazemos?/Como aquele que partindo
se detém na última colina/Para contemplar o vale na distância
– e, ainda uma vez/Se volta, hesitante, e aguarda – assim
vivemos nós/Numa incessante despedida (p. 374).
Há
uma disparidade radical entre os versos da epígrafe, imperativos,
que exigem altivez face à bandeira de guerra pela posse da
história e que marcham firmes, confiantes em direção ao futuro,
e os versos finais, melancólicos, suspensos, entrecortados,
que deitam olhos sobre passado e dele não conseguem se desvencilhar.
Entre estas duas miradas, em tudo opostas, arma-se um amplo
painel de possibilidades para o exercício das formas de dizer
a aventura guerrilheira no Brasil. Uso a palavra “aventura”
sem qualquer ressalva neste contexto, pois a narrativa jamais
se envergonha da grandiloqüência épica com que acompanha a
viagem batida de dois guerrilheiros, Sepé e João Guiné, apartados
entre si por milhares de quilômetros, mas juntos na corrida
contra o tempo e contra os inimigos que enfrentam nas trilhas
que levam ao local do encontro previamente combinado. Local
de morte, como se saberá mais tarde. Sepé parte do norte do
Brasil para chegar a Santa Maria da Boca do Monte. João Guiné
inicia a viagem do extremo sul, em Santiago do Chile, em direção
ao mesmo lugar. A descrição das paisagens, das muitas geografias
e dialetos, dos tipos regionais com que esbarram no caminho,
as muitas peripécias e contratempos da jornada - tudo transcorre
com um fôlego homérico [7] , que infla os personagens e suas ações de um
sentimento de grandeza, dinamizado pelo olhar afetivo com
que Ruas observa a ingenuidade potente dos militantes e dos
anos dourados de chumbo.
Concomitante
à ação guerrilheira, que movimenta os personagens de esconderijo
a esconderijo e que impulsiona também o virar progressivo
das páginas, proliferam os obsessivos parênteses, competindo
por espaço e pela inclusão da memória de uma outra luta –
interior – comprimida entre colchetes e gritada em sussurros.
Os parênteses puxam o freio da ação e introduzem um outro
tempo, mais lento, mais introspectivo e afinado ao ritmo da
meditação e do sofrimento. A linguagem parentética interrompe
o avanço das frases e a conquista do mundo para construir
um espaço acuado pela brutalidade do entorno. Dentro dele,
sobrevive a expressão desse “horror no estômago” (p.329).
É para lá que vão os pensamentos e os medos que não devem
se tornar públicos, sob o risco de trair a identidade e a
fragilidade do militante: “(Será que o cara viu minhas mãos
tremerem?)” (p. 301). O simples ato de dirigir-se a um balcão
para comprar um maço de Hollywood exige que a frase se enuncie
sob a proteção dos parênteses, barreira gráfica que não deixa
vazar o pânico aos demais personagens na cena, mas que é porosa
à entrada do leitor que compartilha do segredo. É como se
pelo buraco apertado do parêntese, espiássemos as anotações
de um diário íntimo, que nos solicita cumplicidade como preço
por nossa indiscrição. Somos tragados para dentro destas subjetividades
murmuradas e assim enlaçados na atmosfera de empatia e carinho
com que Tabajara Ruas descreve as dores de seus heróis. Acompanhamos
a solidão de Marcelo em meio ao tumulto dos refugiados que
se espremem na embaixada em Santiago e nos surpreendemos com
a poesia discreta que ele recolhe entre parênteses:
Passeia
seu olhar; crianças com feições de mapuche chorando brincando
brigando com nervosa energia; pesadas mulheres grávidas sentadas
em cadeiras estofadas remoendo seus fetos; intelectuais de
barba ostentando pose de pensadores; rodas animadas discutindo
com veemência; rapazes com boinas de Che apreciando com ironia;
vários rostos que já viu antes ou pensa que já viu antes;
uma súbita chilena de olhos negros que o encara com interesse
(apanha secretamente o olhar e guarda no bolso vazio).
A
convivência com o mundo subjetivo das personagens, contudo,
não é sempre tão contemplativa, mas faz-se também sob o signo
da desorientação. É difícil submeter-se ao ritmo sincopado
da prosa, às alternâncias bruscas do mundo de fora e de dentro,
às interrupções no andamento da história para dar acesso,
uma vez mais através do parêntese, ao passado espectral que
irrompe no presente e o preenche de sombras, revirando lembranças
antigas dos “verões deslumbrantes” na casa da praia, hoje
fechada, inteiramente vazia, em cujo solo de areia Marcelo
e Hermes enterraram suas armas em cerimônia de adeus. O parêntese
oferece um lugar de enunciação da despedida e de precário
enterro para os mortos que povoam o pesadelo da linguagem,
avolumando as frases em ritmo de avalanche e forçando os limites
da página. Ruas explora a plasticidade do parêntese, adequando
a sua extensão à matéria narrada. O espaço é exíguo quando
se trata de acolher a frase acuada, a percepção de um detalhe
fugidio, ou os pequenos apartes irônicos, breves comentários
sobre o absurdo da realidade do lado de fora. O parêntese
se alarga por pressão da memória incontida, compulsiva, signo
de um passado que resiste ao esquecimento e que não dá fecho
ao trabalho do luto.
O
Amor de Pedro por João fascina por esta estrutura em contracanto,
em que não se estabelece um combate pela posse da palavra
certa para narrar a experiência. O que prevalece é o convívio
não apaziguado entre formas de dizer incompatíveis e ao mesmo
tempo necessárias. A narrativa defende seus estandartes com
altivez, ao mesmo tempo em que deles se despede. As linguagens
da resistência e do adeus se interpelam reciprocamente, ensaiando
parcerias improváveis que nos devolvem a alegria e a surpresa
da leitura. Não encontro expressão mais justa do que a de
José Onofre, na orelha do livro: “É literatura para encher
os olhos.”