MELANCOLIA E
FINITUDE OU ÓDIO E COMPAIXÃO
EM CONTOS DE
SAMUEL RAWET [1]
Alamir
Aquino Corrêa (UEL) [2]
No grande
contexto de 1956, ano crucial para ficção brasileira, quando
ocorre a publicação de Grande Sertão: Veredas de Guimarães
Rosa, O Encontro Marcado de Fernando Sabino, Vila
dos Confins de Mário Palmério e Doramundo de Geraldo
Ferraz, surge também o polonês/brasileiro/judeu Samuel Rawet
(1929-1984), autor de vários textos importantes, tais como
Contos do Imigrante (1956), Os Sete Sonhos (1967),
Viagens de Ahasverus à Terra Alheia (1970) e Que
os mortos enterrem seus mortos (1981). Sua obra, onde
predominam os contos, esquecida do público, tem sido objeto
de raras análises, embora reconhecido pela crítica militante
(caso de Tavares Rodrigues, Hélio Pólvora, Fausto Cunha, Almeida
Fisher, Esdras do Nascimento) e por leituras acadêmicas (Nelson
H. Vieira, Renata Igel e Lúcia Helena). Recentemente, duas
dissertações uspianas (Tânia Fortes e Saul Kirshbaum) mapearam
nortes em Contos do Imigrante e, Viagens de Ahasverus
à Terra Alheia. Parece ser uma tônica de sua obra a presença
de uma certa reflexão identitária, percebida por Fausto Cunha
já em Contos do Imigrante, obra carregada de um necessário
pensar sobre um desespero surdo.
Talvez por
uma visita nostálgica e virtual a Brasília, onde cresci e
me formei, retorno inicialmente ao seu livro O terreno
de uma polegada quadrada
[3] (1969), lido na metade do curso de Letras em
1977 por tratar também da cidade de Brasília, ou seja, havia
uma busca de traços que pudessem me fazer entender a própria
cidade em que vivia. Muito da obra de Rawet, como em Abama
(1964) está pautado por este contexto – a solidão urbana perpassando
os detalhes citadinos, como se houvesse a necessidade de a
personagem compreender o mundo no rol de referências espaciais.
Ou seja, há nas personagens de Rawet uma angústia, ou desespero
na palavra de Fausto Cunha, em focalizar o seu modo de pensar
em diapasão com o contexto urbano, onde prevalecem a multitude
e a solitude. A seguir, buscando compreender ainda esta angústia,
onde há um largo jogo entre ódio e compaixão, farei uma proposta
parcial de leitura do último livro de Rawet, Que os mortos
enterrem seus mortos.
Composta por
uma novela e dez contos, além de um prefácio, O terreno
de uma polegada quadrada deixou-me à época desconcertado,
na leitura ainda adolescente, talvez pela violência de sua
linguagem e personagens. A novela que dá nome ao livro, por
exemplo, é metaficcionalmente uma outra obra mencionada na
trama, e acaba o terreno de uma polegada quadrada sendo definido
no próprio raciocínio da personagem Jano: “A interseção do
real com o irreal, Paulo, compreendeu, o ponto concreto de
nosso contacto entre o objeto e os nossos sonhos, eis o terreno
de uma polegada quadrada” (TQP 30). A presença de homossexualismo,
racismo, catolicismo, judaísmo – tudo acabava por me deixar
intranqüilo sem saber o que pensar ou dizer sobre Rawet.
A leitura
amadurecida (e fica ainda a dúvida sobre esta maturidade em
face da minha superficial compreensão da tradição judaica)
fez-me ver outras coisas, além da qualidade ambígua de sua
desidentidade enquanto escritor de múltiplas formas e vertentes.
À luz de uma identidade brasileira que se busca, mas que anula
inúmeros (o tal do canibalismo cultural), vejo doloridamente
a voz judaica a interagir com um viés católico, sem encontrar-se
verdadeira ou factível. O professor Nelson Vieira, da Brown
University, tem argumentado que há uma certa dificuldade para
a construção de uma voz judaica na literatura brasileira,
em seu artigo “Ethnicity and Cultural Identity in Latin American
Literature” [4]
(1998). Para Vieira, os contos de Rawet tratam da dificuldade
de reconciliar as crenças e cultura judaicas com as normas
culturais e nacionalistas brasileiras
[5] , ou seja, ser ou não judeu em Rawet é uma problemática
que acaba por estar permeada pela ideologia nacional de desidentificação,
ou ideologia assimilacionista, como se houvesse um largo prejuízo
na afirmação das identidades regionais. As questões levantadas
por Vieira são importantíssimas, neste caso, pois colocam
como ponto de reflexão o discurso das identidades (racial,
regional, nacional ou cultural), a memória como forma de formação
e/ou recuperação da tradição individual/grupal, as relações
dicotômicas grupo/indivíduo, marginais/centrais ou minorias/maioria,
e popular/elite; um outro problema maior é aquele de uma nova
etnicidade (na esteira do argumento de Stuart Hall), que contemplaria
múltiplas experiências a despeito das dimensões espaço-temporais.
Agora,
procurarei compreender as nuanças do conflito entre o ódio
e a compaixão, ao lado da visão melancólica e abulicamente
consciente da finitude nos contos “Ainda uma vez morto”, “Sob
um belo céu de Maio”, “Uma tarde de Abril” , “ Reinvenção
de Lázaro” e “ Lisboa à noite” ; o meu viés de observação
será aquele da busca de compreensão do conflito entre indivíduo
e grupo social ou entre construtos sociais e atitudes individuais
ou grupais. Em outras palavras, discutir a violência social
decorrente do autoritarismo presente em qualquer regime social.
O conto “Ainda
uma vez morto” é a história de um condenado à forca, aguardando
sua execução. É um homem em conflito com os outros, aliás,
tônica de quase todos os contos em tela. Sua atitude de preparo
para a morte é lenta e serena; toda a primeira parte do conto
está pautada pela noção do pouco movimento. O narrador coloca
a personagem recém-acordada de um sono sereno e curto contemplando
o dia que nasce; mas esta situação está modulada pelo advérbio
lentamente, que ocorre duas vezes no mesmo parágrafo. A noção
da pequenez está presente nas seguintes expressões: “pouco
depois”, “ainda noite”, “principiou” , “pequenas figuras”.
Este ambiente quase estático de contemplação do dia que amanhece
através das barras da abertura para o pátio é quebrado “quando
a lâmina de uma voz cortou a transparência de um sólido”
(TQP 101; grifo meu) – a personagem perde “o medo do
medo da morte”, sente que está pronta. Mais adiante, ela demonstra
“com a serenidade de um objeto” ao frade que lhe acompanha
que está pronto para a hora derradeira.
Este processo
de acomodação do medo da morte (ou pavor) faz-se através do
isolamento, como se buscasse a personagem compreender as possibilidades
anteriores: “ele se ia isolando do tempo e do espaço, numa
cristalização de reminiscências congeladas sob o sopro da
eternidade”. O achamento da finitude próxima em contraste
com a infinitude só parece ser viável quando não mais se quer,
quando somente resta a imaginação para ativar o infinito,
talvez na esteira de Kierkegaard em sua A doença para a
morte. Por outro lado, o frade não está preocupado com
a finitude próxima do condenado, mas com a sua própria, diferentes
entre si – o frade preocupado com a recusa atinge o condenado
com o seu ódio, por fazê-lo sentir-se egoísta e incapaz. O
condenado faz-se calmo, pois já não tem desejo de agir, após
refletir sobre todos os fatos anteriores, acomodado ou familiarizado:
“Parecia que nunca fizera outra coisa a não ser esperar e
repetir a mesma cena” (TQP 102).
O conflito
com os outros se acentua na caminhada da cela até a praça.
Há insultos, com “uma voz de ódio com acentos de boçalidade”;
os frades (irmãos da misericórdia) que o acompanham nesta
última caminhada irritam-se; os balcões ao longo do trajeto
repletos; difícil a caminha, pois “o povo não se continha
e perturbava o cortejo” (TQP 103). Há momentos singulares
que ensejam lembranças dentro do repertório cultural brasileiro:
o tropeço, o avanço contido por três vezes, uma mulher que
lhe estende um pano para enxugar-lhe o suor do rosto (“renovação
de um gesto antigo”), a atitude do condenado que respondia
aos insultos “com uma contração irônica de pálpebras numa
coincidência de compreensão e desprezo” – todas imagens que
remetem à paixão de Cristo.
Em certo instante
deste conflito, a personagem acaba por aceitar uma idéia cruel
que passa a dominá-lo: “a indiferença no cômputo geral pela
existência deste ou daquele indivíduo” (TQP 104). Esta
indiferença tem semelhanças com a Weltüberdruss freudiana,
ou seja, uma aversão dolorosa ao mundo, rompendo com ele,
gerando uma apatia resultante de uma vontade de agredir a
si mesmo – o condenado aceita o que lhe foi imposto: “durante
a tortura e interrogatório que precederam sua condenação lhe
comunicaram que se algo lhe acontecesse a culpa seria exclusivamente
sua” (TQP 104); aceita melancolicamente a culpa porque
nada mais lhe interessa, os impulsos externos não têm mais
importância. A ironia torna-se aqui ferina: “se no início
ainda se importou com as ameaças e os aspectos sombrios que
certos episódios de sua vida adquiriram sob os narizes que
de um bando que defendia a eternidade, em pouco recolheu-se
ao silêncio e iniciou a própria identificação” (TQP 104).
Este
novo conflito religioso ao longo de um processo de compreensão
de si mesmo, de sua função, de sua efemeridade, tudo justificado
pela fatalidade, cresce em intensidade ao fim do conto. Os
partícipes do espetáculo cumprem todos sua função – o escrivão,
o juiz, o carrasco, o povo, os cavalos, tormentosa assistência
– ódio perfilado. No condenado, surge o oposto – a melancolia,
a consciência de que deve pagar por todos, já não sucumbindo
aos ditames externos e à pressão social, mas justificando
sua acomodação à finitude pelos destemperos da ilogicidade
grupal. O frade lhe estende o crucifixo (ícone conflitante
com as atitudes do grupo) – a identificação maior acontece,
não há inutilidade de seu gesto, mas perde-se o grupo pela
inutilidade de suas atitudes. O condenado rejeita a imagem,
pois há nela uma semelhança assustadora, compreendendo que
não poderia mostrar aos outros a evidência do absurdo.
Em “Sob um
belo céu de maio”, Rawet mantém seu interesse sobre a culpa
como motivador da melancolia. A trama é de uma espécie de
julgamento ou seqüência de acareações, na qual parece a personagem
principal figurar como traidora. O tom geral do discurso é
o da imobilidade, enquanto vários passam pela presença do
protagonista: “vira desfilar à sua frente naquela manhã todos
os seus amigos, conhecidos, ou aqueles que por um ou outro
motivo tiveram contato com ele num encontro ocasional” (TQP
109). Aqueles com quem se alinha parecem interessados
em obsequiar a personagem,ávidos de sua cumplicidade: “os
policiais em torno cercavam-no amigavelmente e lhe batiam
nas costas em evidente camaradagem. Outros, que entravam e
saíam da sala, cumprimentavam-no com um entusiasmo que só
uma amizade espontânea forja” (TQP 112). A circunstância
de percepção dos fatos vai do asco ao ódio.
Mas o interessante,
neste formato maniqueísta entre acusados e acusadores auxiliados
pelo traidor, é que a atuação da personagem é a da contemplação
do absurdo, da inutilidade de seus atos, de sua justificativa.
A sua simples presença basta, como, aliás, adianta a epígrafe
do conto acerca do problema do choque: “Impossível não te
causar dano com a minha simples presença” (734_ 109). Exageradamente
lúcido, a personagem também contempla, como no conto sobre
o condenado, através da janela o mundo exterior, abúlico acerca
do que lhe cerca, buscando o belo céu de maio. O protagonista
encarna a concepção de que tudo era demais e inútil, manifestando
“um profundo desinteresse por tudo aquilo [que] lhe veio com
a súbita noção das infinitas possibilidades da estupidez,
e uma outra confusa, a de que podia continuar só. Aceitava
o Mal” (TQP 113). A personagem deixa de interrogar-se,
oferecendo até mesmo ao antigo e bom amigo “um olhar frio,
levemente ironizado pela situação”. A melancolia aqui resulta
de uma ausência de sentido, pelo absurdo que é o absurdo,
restando à personagem um olhar para o indefinido longe e incapaz
de defini-lo, como se não fosse necessário um espelho ou um
outro para lhe dar uma identidade.
Em “Uma tarde
de abril”, a trama tem a técnica narrativa mais elaborada,
pois a personagem lida com a propositura fantasiosa de criar
um momento não vivido como real. A personagem lida com o problema:
“até que ponto um homem é capaz de construir seu passado,
construí-lo em detalhes que conservem a densidade da recordação,
o sabor de um episódio amargo não vivido, a alegria de uma
flutuação melancólica tecida em trama ilusória que se desconhece
como ilusão” (TQP 118).
Algumas articulações
já encontradas anteriormente voltam à cena; a personagem lida
conflituosamente com os outros: “ao transmitir a idéia aos
outros responderam com uma gargalhada”, mas a reação da personagem
é nula: “nada ocorreu” ; o protagonista procura evitar a circunstância:
“um esforço para se desvincular dos presentes, do qual não
está ausente um certo rilhar de dentes, já que eles representavam
um empecilho à elaboração dessa tarde de quinta-feira, de
uma segunda semana de abril de 1961” (TQP 118-19).
Um certo ódio e uma certa dor motivam a personagem a fugir
do meio circundante.
Narcisicamente,
a personagem funda sua contemplação no objeto desejado e não
mais no mundo factível, uma totalidade com maior significado:
“mas uma totalidade desprovida da dolorosa fuga alienante,
desse mergulho esquizofrênico que se identifica com o nada
de uma contemplação que é pura imersão nos limites da dor,
e que é já ausência de dor” (TQP 119). Este gozo buscado
pela personagem melancólica tem um quê de compreensão de si
mesmo: “o real só é implacável diante do sonho. Por que se
refugiar na ilusão? Teria algum valor o esforço para desfazer
o equívoco e provar que não se trata de ilusão propriamente”
(TQP 120). O dono da casa, onde está o protagonista,
argumenta que há uma realidade inexorável a rodear-nos, exceto
feito ao momento em que enfrentamos a esfinge, quando buscamos
o feitiço da representação das palavras. Esta proposição faz
evidenciar em Rawet a compreensão do mundo como dividido entre
o que tem e o que se deseja, entre a satisfação e a frustração.
Mas o melancólico protagonista consegue suplantar o real vivido
pelo real imaginado – “pensamento vinculado à ação” (TQP
118) – estipulando a tarde pensada como uma lembrança
extraordinariamente nítida, com detalhes marginais, episódio
ínfimo, mas completo: “eu estava diante do Lamas, no Largo
do Machado, hesitando entre pêssegos, pêras, maçãs, nêsperas,
ameixas e alcachofras, quando me decidi por pêssegos. A água
ainda me vem à boca. Eram realmente gostosos, dourados, aveludados
... Belos pêssegos!” (TQP 121-22).
O conto “Reinvenção
de Lázaro” mantém uma preocupação de Rawet – escrever sobre
o escrever. A personagem principal, Yehuda Bitterman, quer
narrar o episódio de Tião, com o prazer de distanciar-se do
objeto, manipulando a situação, procurando harmonia nas palavras;
ao buscar realizar o impulso, levanta-se e vai à janela contemplar
o mundo exterior, reiterando o processo contemplativo já evidenciado
em outros contos. Caminhando pela cidade, o escritor Yehuda
lida com as possibilidades da escrita, com as imagens que
pode reconstruir, observa as notas que fez sobre a história
a ser narrada: “procurar transmitir todos os sentimentos confusos,
as idéias contraditórias, difusas, a expressão inarticulada,
a impossibilidade de verbalização, a inconsciência de certos
problemas...” (TQP 131). Finalmente, Yehuda dá-se conta
de que pode e dever contar a história de Tião, ao perceber
que ele era Tião.
Assim, dentro
do conto há um outro conto – a “Reinvenção de Lázaro” – cuja
estrutura o leitor vai apreendendo enquanto processo criador
engendrado pelo escritor Yehuda. A trama envolve alguns homens
que transportam um bloco de mármore para um galpão onde são
esculpidas figuras que adornarão covas no cemitério São João
Batista, no Rio de Janeiro. Tião, ajudante de caminhão, preto,
alto e musculoso, cansado pelo esforço do transporte contempla
e busca entender o ambiente em que está, deslocado, meio abobalhado.
Dois homens esculpem seus blocos de mármore, cada um lidando
com uma parte da anatomia de um anjo. Lembrando do passado
infantil, quando fazia bonecos de barro, Tião percebe que
a obra em mármore é a obra que fica, é o trabalho que suplanta
a vida ou vence a efemeridade. Mas as estátuas perfeitas em
sua beleza seriam para um cemitério – algo absurdo, embora
perene, que sobrava, que permanecia. O trabalho dele, Tião,
era ínfimo: “Dele mesmo o que é que fica?” (TQP 138).
Tião vai aos
poucos perdendo as forças, estremecendo, tonteando, e vai
pensando sobre o seu papel e dos seus iguais, todos marginalizados.
Chega até mesmo a pensar nos ricos, mas “rico era rico porque
era rico e estava acabado” (TQP 136). Tião pensa na
inutilidade ou no absurdo do enfeite funerário, as palavras
embaralhadas – toda a perfeição do anjo com a cara lisinha,
o manto, as asas, mas “tudo aquilo feito por um homem que
morre, para outro, que já morreu” (TQP 139). A crítica
social faz-se evidente no conto, mordazmente equilibrando
as coisas na hora da morte de cada um.
“Lisboa à
noite” é a história do encontro do judeu brasileiro Isac,
querendo ser escritor sobre a Inquisição (embora admita ser
assunto remoto e até certo ponto infantil), com Johansen,
que se apresenta como homem de negócios nascido na Holanda.
O ambiente em que se encontram é o de quase bas fond,
bar de fim de noite do Cais do Sodré, onde perambulam marujos
e prostitutas. O encontro é uma descoberta mútua de qualidades
e de ódios. Isac acompanha Johansen pela noite lisboeta, freqüentando
várias casas noturnas, bebendo muito. O holandês busca a simpatia
de Isaac, elogiando os judeus: “Você é judeu, Johansen? Não,
mas gostaria de ser” (TQP 178).
O conflito,
entretanto, explode quando Johansen afirma estar, ironicamente,
sendo perseguido pelos judeus, com medo, com ódio: “Eu o odeio,
Isac, odeio os judeus! Eles me perseguem” (TQP 180).
Isac argumenta que sabe o que é o medo e o que é ódio. Johansen
diz: “O ódio fica, mas o medo cansa, pulveriza, e num instante
de fraqueza a gente mesmo se destrói, se entrega” (TQP
180); os dois riem muito e Johansen revela-se aos berros
nazista e alemão. Inesperadamente, Isac o protege: “reprimiu
com violência um jorro de idéias vagas e nítidas, de sentimentos
confusos e paixões bem definidas, toda uma torrente a girar
em torno de um nome apenas” (TQP 181). A amargura de
uma tragédia vira em Isac a consciência de que o indivíduo
é menor do que o grupo – “na sua inocência, ou pretensa inocência,
recompôs várias infâncias e fundiu tudo em um mundo que deu
aquele tipo a seu lado, em um mundo que tudo permitiu e que
em vez de acordar do pesadelo, trocava de pesadelos, apenas”
(TQP 181-82).
Nos contos
de O Terreno de Uma Polegada Quadrada aqui analisados,
Samuel Rawet consegue evidenciar uma larga preocupação com
a identidade do indivíduo e com o absurdo das relações humanas.
Os constructos sociais amoldam o comportamento dos homens,
mas efetivam também a dúvida individual sobre o valor de cada
um, sobre a validade das tradições, sobre a impiedade dos
piedosos, sobre a violência dos violentados. As condições
que fazem dos seres humanos amigos ou inimigos, companheiros
ou perseguidores, estão eivadas de incompreensão e de inadequação
– o mito se torna inconseqüente para este homem melancólico,
perdido na contemplação de sua pequenez e de sua inutilidade
diante das outras coisas bem mais prementes – como vislumbrou
Tião e de certa forma é repetido por Isac ao fim do conto:
“Nunca faria o trabalho sobre a Inquisição”.
O outro livro
de contos de Rawet, Que os Mortos enterrem Seus Mortos [6] , que li graças aos préstimos
de Rosana Kohl Bines, é composto de dezoito contos, geralmente
curtos, exceto feito ao último “BRRKZNG: Pronúncia – Bah!”;
a editora paulistana Vertente, pequena e artesanal, acaba
por tornar o exemplar que li um tanto confuso, pelos erros
de paginação. A capa é uma foto de pedras nuas ponteadas por
seis urubus. A acidez da imagem corresponde em larga monta
ao contexto dos contos, extremadamente intimistas, lidando
com momentos de grande dúvida ou de grande desilusão das personagens.
Talvez sinal
de sua insatisfação com o ser humano, em três contos, aparece
a figura do rato: “O riso do rato” , “Um homem morto, um cavalo
morto, um rato morto” e “O rato e o pombo”. A longa seqüência
de corpos mortos é uma imagem que acompanha a personagem ao
longo de sua ambulação observada pelo narrador onisciente.
Frases curtas, judicativa, raramente hipotaxe ou parataxe.
Diferentemente, os outros dois contos mostram-se duais – ou
seja, o narrador toma a perspectiva de cada personagem e narra
os fatos, como se as duas partes fossem como ângulos complementares.
Em “O riso do rato”, há a história de dois vizinhos, mas inimigos
por uma circunstância talvez perversa, talvez mórbida, repleta
de ódio – o filho de um deles surpreende os vizinhos em atividades
libidinosas. Há então duas versões de um episódio ligado a
abuso sexual presenciado por um menor – o pai desesperado
e o vizinho que pede a proteção da polícia para evitar que
o vizinho o ataque. Usando do espelho na churrascaria, o pai
do menor hospitalizado observa do lavatório Eliezer Kugelman,
seu objeto de ódio e vingança. Extremamente articulado, em
termos de técnica narrativa, o conto mistura vários nós distantes
entre si em tempo e espaço. A tessitura narrativa acaba por
iludir o leitor, que precisa estar atento à mudança de foco
de interesse do narrador. O riso da personagem Eliezer é o
que faz o pai mudar de vontade; antes completamente exausto
pela circunstância, percebe no seu companheiro de almoço (o
que dá à cena um caráter mais que inusitado – almoço entre
inimigos e vizinhos) a figura de um rato: “Teve a impressão
de que a vingança só tinha sentido quando envolvia a condição
humana” (QMEM 11).
Em “O rato
e o pombo”, a mesma estrutura dual, organizando o foco narrativo,
duas partes envolvidas, dois raciocínios, onde prevalece uma
certa agonia diante do problema. Dois amigos de infância discutem
uma dívida. Um é escultor, o outro incorporador imobiliário.
A origem do conflito era uma escultura vendida a um condomínio,
trabalho de um, produto a ser partilhado por ambos. O escultor,
o pombo, defende-se da sua inadimplência no pagamento do material
usado, devida a doença; o outro, o rato, o despreza, o odeia,
aliás, odeia tudo, a mulher, o amigo, a casa, a mãe, o pai,
a irmã, o fétido sobrado onde estudavam juntos... Ele passa
do ódio ao desprezo, e a consciência de que não teria outro
sentimento; o escultor, intranqüilo, mantém-se sabedor de
que havia o improvável, o impossível, o que chamou de dramalhão
de terceira, a sensação da perda de tempo. Sua única possibilidade
de compreensão do mundo está na avaliação das formas artísticas
– usando do casal com quem passa este momento de angústia,
vê neles as formas simples que procurava nos últimos trabalhos,
“qualquer acréscimo era uma espécie de psicologismo barato,
um lixo de sua imaginação” (QMEM 64).
Uma
espécie de nojo que marca o escultor também é encontrável
em “O casamento de Bluma Schwartz”. A personagem central mostra-se
seca, perdida ou perdedora, tentando recuperar um momento
em que ao envolver-se com um homem casado, dele engravida
e depois aborta o filho. Este episódio marca a sensibilidade
da personagem, que passa a ver tudo com desencantamento. Sua
atitude “quase picaresca” dá-se por “uma pisadela e um beliscão”,
lembrando a malandragem de um sargento de milícias. Por meio
de uma gravidez conseguida com “relações diárias com todos
os homens que lhe era possível encontrar nos intervalos de
trabalho” (QMEM 16), convence o futuro marido, impotente
até em relação homossexual, que é ele o responsável pela gravidez
e se casam. Após o casamento, reduz o marido a um trapo, desmoralizado
por “laxantes de ação rápida, soporíferos no café da manhã
e no almoço, estimulantes e antihipnóticos à noite” (QMEM
16). A vida prossegue, ela à frente dos negócios, ele gemendo
no quarto. Teatralmente, vive “voluptuosamente, sem volúpia
alguma”, os gestos estudados, a decoração orientada, sua ânsia
por algo perdido é produto da mais absoluta indiferença por
qualquer coisa que possa querer – como é o caso do uso da
campainha para chamar a empregada: “ouviu o som da campainha
e espantou-se com a própria mão . . . Nada programara, nada
desejara.” (QMEM 14).
As
personagens de Rawet parecem sofrer visceralmente com o estar
social. Tudo se torna uma convivência difícil, quase tormentosa.
No conto “A oração”, a personagem sente-se indisposta com
tudo e todos. Convidado para jantar com o sócio, deve escrever
para ele e a mulher uma oração. Envergonhado, faz o texto
pedido, com imensa dificuldade: “a impressão de que cometia
um crime ao ceder alguma coisa à sua sensibilidade”, que lhe
é pago com consideração, bom vinho, bom jantar e boa sobremesa
(lembrança da esposa do sócio, torta de maçãs, sua preferida).
O ambiente doméstico, antes de tornar as coisas mais fáceis,
fazia-as mais vulgares. O fim do jantar, talvez abrupto, leva-o
a consciência de que deve voltar para casa, para sua mulher;
isso o leva ao desespero, como se a realidade fosse tão abjeta
que vivê-la fosse como na oração: “como quem desperta de um
sonho”. Vai pra um hotel, onde passa mal e compreende a si
mesmo, suas ânsias, seu desespero – o estar com alguém.
Rawet constrói
seu livro de contos com estas personagens angustiadas, impressionantemente
dilaceradas, para quem a realidade é desesperante ou a própria
impossibilidade. Talvez neste sentido, o seu conto “Moira”
recupera o absurdo da existência, através de referências ao
drama absurdo “Who’s afraid of Virginia Woolf?” de
Edward Albee. O texto dramático agride a sociedade americana,
em suas bases patrióticas, mas entre várias leituras sobressai
também aquela que dá título ao texto – quem tem medo de viver
sem ilusão? Afinal, a ilusão dá sentido um sentido falso à
realidade, na visão de Albee. A obra está dividida entre dois
compassos, o passado e o futuro, a história e a biologia,
a aparência e a essência, o ser e o poder ser, o querer ser
e o ser. A personagem de Rawet também em busca de compreender
o que é e o que deve ser, anseia por respostas. O suicídio
parece momentaneamente ser a saída, “oscilando entre criação
e destruição, vinculando ao fundo mais fundo de sua condição
ou GD condição?” (QMEM 22). Mas uma outra saída, uma
terceira, torna-se viável. Rawet consegue desestruturar o
absurdo proposto por Albee. A personagem é um ator, que representa
o papel de George, na peça. Mas cansado no mundo real, como
está cansada a personagem na peça, velha, antiga, conservadora,
incapaz, o ator também em símile com as atitudes de George,
irrita-se, jogando com a peça, interrompendo-a, destruindo
as relações anteriores. Se George ultrapassa os limites, matando
o filho imaginário de Martha, o ator ultrapassa os limites,
querendo ver a platéia, querendo ser a platéia. Conjuga em
si mesmo os dois papéis, ator e platéia. Ao fazer isso, complica
a estrutura – não mais o ser o que se é e o que se quer ser,
mas também o que se deve ser. O desfazer de si, a destruição,
gera um outro conjunto de realidades, três e não dois contrapontos,
realidade e ilusão. A artificialidade esperável no mundo da
representação – o ator vai encontrá-la no dia-a-dia, pois
há de simular a convivência, o outro. Esta consciência de
que há de buscar na realidade e não no palco a saída, a ilusão,
invertendo o pólo de Albee, dá a ele a sensação de si, a anagnórise
grega, e em simulacro com Édipo, nome de uma fantasia, percebe-se
grande e horrorizado, monstro impossível para o comum de nós:
“Um nome. A descarga atravessou-lhe o corpo, sente-se imenso,
imenso em sua grandeza e horror” (QMEM 23). Passa a
representar ou era? E quem? Eu? Ele? Tu? O final do conto
é de uma assustadora revelação de seu próprio destino: “Olhou-se
no espelho. Abriu a porta da rua. A rua. Personagem perfeita”
(QMEM 23).
Esta
ansiedade um tanto melancólica perpassa boa parte deste livro
de contos. Tanto em “Trio”, história de Pedro, Paulo e Pedro
Paulo, analfabetos que sofrem, criam e pensam o mundo, quanto
em “Marinha” , onde a personagem nervosamente interage com
a água, as personagens mostram-se nauseadas diante do mundo,
quer pela rotina em “Marinha” , quer pela constância do mundo
apesar da transgressão em “Trio” . Em ambos os textos, o narrador
insere-se “neutramente” no pensamento das personagens, mas
observador dos contornos físicos e palpáveis. Em todos uma
certa aversão ao mundo real, buscando o passado ou a fantasia
como formas absurdas de compreensão. A urbanidade degrada-os,
necessitados de uma válvula de escape, seja ela o mar, o choro,
a criação artística, ou simplesmente o pensar.
Rawet aproveita-se
da relação especular do indivíduo com o mundo, para organizar
os instantes precisos em que as personagens acabam por revelar-se
para o leitor. A fórmula dual já identificada acima ocorre
também em “A trajetória”. Usando de um pombo e de um pardal,
em circunstâncias de luminosidade sombreada (“sem a presença
de sol”, “ num verde de sombra definida por luz intensa de
nascente” ), aliás, os espaços de Rawet dão-se de forma cinzenta,
opaca ou mesmo amortecida (no caso da noite, por vezes perpassada
pelo branco artificial de uma reforma arquitetônica), a personagem
vai traçando movimentos de cada ave. Em símile, descreve a
si mesmo, e aqui aparece outro elemento constante na prosa
de Rawet, o espelho. As relações óticas organizam a perspectiva,
talvez denotando a formação técnico-formal de Rawet, engenheiro
de estruturas. O pombo, o pardal, o automóvel do outro e o
seu automóvel, a mulher, a filha, choque, mortas. Esta economia
árida de construção, mínima, “arcabouçal” , dá ao texto de
Rawet a explosividade das cenas superpostas: “ Entre um telhado
e outro, a grama entre as palmeiras. Seu rosto em todos os
rostos – espelhos. Um homem se senta no banco e acende um
cigarro. Duas mulheres se encaminham em direção à areia” (QMEM
26). Circularmente, as matérias repetem-se, como
se fossem uma continuada revisitação, algo que em suma análise
elimina o tempo, pela onipresença da matéria: “O automóvel
surgiu bruscamente à frente do seu. Hospital. O rosto da mulher.
O rosto da filha. O vôo do pombo. O deslocamento do pardal.
Entre um telhado e outro. Entre tufo de grama e tufo de grama.
Olho aceso. Ouvido a proclamar o silêncio do movimento. O
tempo abolido pela culpa – a única maneira de continuar a
amá-las” (QMEM 26). A personagem mantém o acidente
vivo, reiterado, e de certa forma nesta trajetória circular
mantém vivas a mulher e a filha.
Em “A linha”,
Rawet permanece vinculado a sua leitura geométrica do mundo.
Aparentemente decalque bem elaborado de Der Kaukasische
Kreidekreis de Bertolt Brecht, a narrativa observa uma
personagem em face de uma linha de giz. A transgressão da
linha, ultrapassá-la, é decidir algo, em analogia com a lei
salomônica; a personagem com marcas de pobreza (lembrança
da sopa de beterrabas, a falta do botão acima do cinto, estar
à noite ao relento, onde a água da chuva ainda marca a calçada
na calçada) lembra Azdak, especialmente por sua condição judicativa
em face do risco do giz – ela pergunta: “ O corpo de aqui?
Que aqui? O de antes do corpo ou depois do corpo? O de antes
do corpo ou depois do corpo? O de aqui caminha. O de antes
caminhou?” (QMEM 44). Estas dúvidas acumulam-se em
razão da impossibilidade do ser, pela consciência da incerteza:
“E os pés se aproximam de uma promessa de um ir além de, entre
riscos desencontrados, não de giz, fraturas paralelas normais
ao meio-fio. . . . A nostalgia de um afeto futuro, a esperança
de um passado que se modifique.” (QMEM 45). Sobra-lhe,
entretanto, apenas não saber.
Retomando
a temática da homossexualidade, já usada em narrativas de
O Terreno de uma Polegada Quadrada, algo talvez forte
para a época em que escrevia, Samuel Rawet trata a opção sexual
sem o obtuso valor do palavrão, identificando práticas sociais
de homoerotismo, em cinemas, mictórios, saunas e ruas conhecidas
pela presença de michês. As aproximações, os relatos de desejo,
a descrição do corpo masculino – tudo se torna integrado ao
contexto, sem a ruptura própria da agressão; ou seja, Rawet
não faz apologia da homossexualidade, tampouco a torna motivo
de extremado interesse, como forma de chamar a atenção ou
para agredir o leitor. Óbvio que para o leitor desavisado,
pode acontecer o embate puritano ou a expectativa do invulgar.
Tanto em “As palavras” quanto em “Nem mesmo um anjo é entrevisto
no terror”, uma revelação consciente da bissexualidade masculina
ocorre: “Conhecia estes tipos. Era casado, tinha mulher, e
filhos, tudo isso arrotado com meneios de macheza duvidosa
e terror” (QMEM 37); “Quando um colega do trabalho
o surpreendeu na sauna abraçado a um homem julgou ver ameaçada
qualquer coisa. Encarou-o sem hesitação e beijou o companheiro.
Sabia que contava a seu favor com um aspecto viril, e nunca
se deixou iludir pelo lugar-comum do efeminado” (QMEM 47).
A personagem de “As palavras” tem cinqüenta anos, mulher,
dois filhos, pais, amigos, sogros e um amante: “nunca se preocupou
com as conseqüências de uma vida dupla ao se apaixonar por
uma vizinha”. Esta vida dupla lembra o processo especular,
já elencado antes. Como se houvesse sempre duas partes, duas
coisas, dois corpos.
Essa dualidade
é negada, como se viu, em “Moira” , ao surgirem três realidades.
A personagem mantém-se perdida em dois pólos: o silêncio,
o ruído, o silêncio, o riso e o filme, a imagem anterior no
espelho e a outra, atual. O julgamento das coisas mantém sua
atenção, pela sua fragmentação – ao escutar um pedaço de frase
(“um homem deve”), toma repentinamente consciência da ponte
entre os dois pólos, talvez o terceiro: “Toma o café entre
um careca, gordo, de camisa aberta, e um crioulo de calça
estampada e blusa vermelha. Ao atravessar a Rua do Catete
percebe um certo desligamento de coisa de fora e coisa de
dentro. Olha em frente entre luzes e sons. Há” (QMEM 48).
É como se percebesse que há um entre-lugar, aproveitando o
conceito de Homi Babbha. Sua identidade é construída de forma
particular, no entre das coisas, sem ser uma coisa ou outra,
precisa de uma terceira via, perguntando: “ Era isso? Importante
o resto? Desimportante o princípio?” (QMEM 48). A terceira
realidade ou plana tem pouco de consistência, exatamente por
lhe faltar a referência da oposição, por estar na continuidade
cinzenta entre dois pólos.
A ligação
entre duas partes faz pressupor que algo é até que seja outra
coisa; ou seja, onde começa a margem e termina o rio? A vida
e termina a não-vida, a vida e a morte? Há um instante indefinível
que separa as identidades, mas exatamente por sua localização
ser imprecisa, há o homem de precisar iludir sua racionalidade
e abrandar sua emotividade. Em “O Alquimista”, há um homem
que olha um movimento, talvez lagarto, mas vê apenas o muro,
a grade, as fatias do casario. A sua busca tem como fiel a
demonstração do enunciado clássico: “ a soma dos quadrados
dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa”. Figura essencial,
o triângulo retângulo dá origem a compreensão da irracionalidade.
Deixa-se a compreensão racional pitagórica, em que há uma
correspondência exata, para a percepção platônica, em que
as coisas não refletem necessariamente o absoluto, o mensurável,
mas sim e também o incomensurável, o indefinido. O alquimista,
na tradição medieval da prática experimental, busca relacionar
letras, números, linhas, oscilando entre amor e ódio, talvez
o infinito circular, sem uma escala possível de medição. Observa
as coisas, tentando encontrar o indefinível:
“Sem
mover a cabeça, riscou um fósforo e ergueu a chama ao nível
dos olhos sem fazer esforço para observá-la. Ao notar os movimentos
do fogo compreendeu vagamente algo a respeito de um movimento
interior, sem necessidade de definir, porém. Um movimento
em relação a um movimento que se situa num movimento relacionado
com outro movimento, em sucessão.” (QMEM 50).
Na arte real,
dentro da tradição maçônica, o ternário é a única proporção
resultante da continuidade dos termos, afinal os três termos
são dois que são um. A relação entre eles decorre da não-diferença,
pois a percepção e o percebido são partes ininterruptas da
mesma compreensão total. A personagem busca enxergar uma xícara,
mas entre a xícara e a vontade vê-la reside uma continuidade,
que chama de poalha, algo não claro, pois a xícara é xícara,
mas há que torná-la xícara, a dupla consistência de ser e
não ser. O alquimista não busca somente a transformação das
coisas, mas a transformação de si mesmo, evoluindo, sem deixar
de ser e passando a não-ser, em continuidade: “E a xícara?
Rasgou a folha. Os lagartos reaparecem. A voz se fez ouvir.
O instante de espanto deixou de causar espanto. A xícara se
deixou ver” (QMEM 51).
A
discussão da identidade permeia os contos de Rawet, tanto
através da compreensão do indivíduo diante da coletividade,
quanto nos instantes de efetivação das relações grupais ou
interativas dentro dos grupos. Retomando a proposição do professor
Vieira, citada no início deste trabalho, há um largo conflito
na obra de Rawet, perdido entre discutir o ser judeu e o ser
brasileiro, com mitos aqui e ali perpassando a confusa estrutura
relacional brasileira. No conto que dá título ao livro, como
também em “A lenda do abacate” e em “Prisioneiro da nuvem”,
surge novamente a questão da identidade, quer baseada em mitos
ancestrais e multiétnicos, quer aquela problemática que parece
tanto afetar Rawet – a convivência com valores católicos fortes.
O conto “Que os mortos enterrem seus mortos” é uma referência
bíblica, encontrável no Evangelho de Lucas (9: 60) e no de
Mateus (8: 22), quando Jesus diz que cabe aos mortos a tarefa
de enterrar os mortos a alguém que pede tempo para enterrar
o pai, ele deveria anunciar o reino de Deus. Interessantemente,
esta é uma das passagens mais estranhas, pois como haveria
um morto de enterrar seus mortos? A explicação mais aceita
é de que há um pressuposto – aquele que está morto é aquele
que vive para a matéria, para o mundo terreno; logo aquele
que há de se preocupar com os mortos ainda não estaria preparado
para o viver em/com Deus. O conto trabalha essa dicotomia
morte-vida transplantada para o ódio-compaixão.
A personagem
à espera da vítima de sua vingança passa a refletir sobre
o que sente e como conciliar com o instante anterior. Está
no mesmo dilema do filho que deve enterrar o pai e quer seguir
Jesus. As relações a partir de, com, por tornam-se essenciais
– a personagem indaga: “O que faria de seu ódio? O que faria
com seu ódio? O que faria por seu ódio? Precisava de seu ódio?”
(QMEM 27). As razões que levam à vingança não são explicitadas,
mas reitera-se a necessidade de matar. Ele se sente aniquilado,
despojado, chorando, culpando o outro por estar naquela situação.
A ameaça da vingança surge-lhe como alternativa, mas os caminhos
afirmativos de si mesmo só o levam a querer matar o outro.
Entretanto, surge a vítima acompanhada de uma criança, que
teria a idade do ódio. Há uma epifania no abraço da criança,
que se enrola em seus joelhos. A beleza da criança equipara-se
aos anos de dor sofrida. O ódio cede espaço.
Ler Rawet
é entrar em choque com qualquer horizonte de expectativa,
pois o narrador consegue, dentro das planas urbanas, elencando
as variáveis expressivas ou inexpressivas das ruas, levar
o leitor a não ser, ou seja, desidentificar-se, corporificar
a não-essência. Os conflitos todos particulares tornam-se
universais, prosaicos, imediatos, como se houvesse ali o retrato
ou o espelho da vida. Cabe talvez ainda buscar compreender
esta relação ótica de construção do mundo em Rawet. O que
apavora é talvez restar, no sentido aritmético, apenas o fim
do conto “Prisioneiro da nuvem”: “A morte, uma ficção” (QMEM
67).