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MELANCOLIA E FINITUDE OU ÓDIO E COMPAIXÃO

EM CONTOS DE SAMUEL RAWET [1]

Alamir Aquino Corrêa (UEL) [2]

No grande contexto de 1956, ano crucial para ficção brasileira, quando ocorre a publicação de Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, O Encontro Marcado de Fernando Sabino, Vila dos Confins de Mário Palmério e Doramundo de Geraldo Ferraz, surge também o polonês/brasileiro/judeu Samuel Rawet (1929-1984), autor de vários textos importantes, tais como Contos do Imigrante (1956), Os Sete Sonhos (1967), Viagens de Ahasverus à Terra Alheia (1970) e Que os mortos enterrem seus mortos (1981). Sua obra, onde predominam os contos, esquecida do público, tem sido objeto de raras análises, embora reconhecido pela crítica militante (caso de Tavares Rodrigues, Hélio Pólvora, Fausto Cunha, Almeida Fisher, Esdras do Nascimento) e por leituras acadêmicas (Nelson H. Vieira, Renata Igel e Lúcia Helena). Recentemente, duas dissertações uspianas (Tânia Fortes e Saul Kirshbaum) mapearam nortes em Contos do Imigrante e, Viagens de Ahasverus à Terra Alheia. Parece ser uma tônica de sua obra a presença de uma certa reflexão identitária, percebida por Fausto Cunha já em Contos do Imigrante, obra carregada de um necessário pensar sobre um desespero surdo.

Talvez por uma visita nostálgica e virtual a Brasília, onde cresci e me formei, retorno inicialmente ao seu livro O terreno de uma polegada quadrada [3] (1969), lido na metade do curso de Letras em 1977 por tratar também da cidade de Brasília, ou seja, havia uma busca de traços que pudessem me fazer entender a própria cidade em que vivia. Muito da obra de Rawet, como em Abama (1964) está pautado por este contexto – a solidão urbana perpassando os detalhes citadinos, como se houvesse a necessidade de a personagem compreender o mundo no rol de referências espaciais. Ou seja, há nas personagens de Rawet uma angústia, ou desespero na palavra de Fausto Cunha, em focalizar o seu modo de pensar em diapasão com o contexto urbano, onde prevalecem a multitude e a solitude. A seguir, buscando compreender ainda esta angústia, onde há um largo jogo entre ódio e compaixão, farei uma proposta parcial de leitura do último livro de Rawet, Que os mortos enterrem seus mortos.

Composta por uma novela e dez contos, além de um prefácio, O terreno de uma polegada quadrada deixou-me à época desconcertado, na leitura ainda adolescente, talvez pela violência de sua linguagem e personagens. A novela que dá nome ao livro, por exemplo, é metaficcionalmente uma outra obra mencionada na trama, e acaba o terreno de uma polegada quadrada sendo definido no próprio raciocínio da personagem Jano: “A interseção do real com o irreal, Paulo, compreendeu, o ponto concreto de nosso contacto entre o objeto e os nossos sonhos, eis o terreno de uma polegada quadrada” (TQP 30). A presença de homossexualismo, racismo, catolicismo, judaísmo – tudo acabava por me deixar intranqüilo sem saber o que pensar ou dizer sobre Rawet.

A leitura amadurecida (e fica ainda a dúvida sobre esta maturidade em face da minha superficial compreensão da tradição judaica) fez-me ver outras coisas, além da qualidade ambígua de sua desidentidade enquanto escritor de múltiplas formas e vertentes. À luz de uma identidade brasileira que se busca, mas que anula inúmeros (o tal do canibalismo cultural), vejo doloridamente a voz judaica a interagir com um viés católico, sem encontrar-se verdadeira ou factível. O professor Nelson Vieira, da Brown University, tem argumentado que há uma certa dificuldade para a construção de uma voz judaica na literatura brasileira, em seu artigo “Ethnicity and Cultural Identity in Latin American Literature” [4] (1998). Para Vieira, os contos de Rawet tratam da dificuldade de reconciliar as crenças e cultura judaicas com as normas culturais e nacionalistas brasileiras [5] , ou seja, ser ou não judeu em Rawet é uma problemática que acaba por estar permeada pela ideologia nacional de desidentificação, ou ideologia assimilacionista, como se houvesse um largo prejuízo na afirmação das identidades regionais. As questões levantadas por Vieira são importantíssimas, neste caso, pois colocam como ponto de reflexão o discurso das identidades (racial, regional, nacional ou cultural), a memória como forma de formação e/ou recuperação da tradição individual/grupal, as relações dicotômicas grupo/indivíduo, marginais/centrais ou minorias/maioria, e popular/elite; um outro problema maior é aquele de uma nova etnicidade (na esteira do argumento de Stuart Hall), que contemplaria múltiplas experiências a despeito das dimensões espaço-temporais.

Agora, procurarei compreender as nuanças do conflito entre o ódio e a compaixão, ao lado da visão melancólica e abulicamente consciente da finitude nos contos “Ainda uma vez morto”, “Sob um belo céu de Maio”, “Uma tarde de Abril” , “ Reinvenção de Lázaro” e “ Lisboa à noite” ; o meu viés de observação será aquele da busca de compreensão do conflito entre indivíduo e grupo social ou entre construtos sociais e atitudes individuais ou grupais. Em outras palavras, discutir a violência social decorrente do autoritarismo presente em qualquer regime social.

O conto “Ainda uma vez morto” é a história de um condenado à forca, aguardando sua execução. É um homem em conflito com os outros, aliás, tônica de quase todos os contos em tela. Sua atitude de preparo para a morte é lenta e serena; toda a primeira parte do conto está pautada pela noção do pouco movimento. O narrador coloca a personagem recém-acordada de um sono sereno e curto contemplando o dia que nasce; mas esta situação está modulada pelo advérbio lentamente, que ocorre duas vezes no mesmo parágrafo. A noção da pequenez está presente nas seguintes expressões: “pouco depois”, “ainda noite”, “principiou” , “pequenas figuras”. Este ambiente quase estático de contemplação do dia que amanhece através das barras da abertura para o pátio é quebrado “quando a lâmina de uma voz cortou a transparência de um sólido” (TQP 101; grifo meu) – a personagem perde “o medo do medo da morte”, sente que está pronta. Mais adiante, ela demonstra “com a serenidade de um objeto” ao frade que lhe acompanha que está pronto para a hora derradeira.

Este processo de acomodação do medo da morte (ou pavor) faz-se através do isolamento, como se buscasse a personagem compreender as possibilidades anteriores: “ele se ia isolando do tempo e do espaço, numa cristalização de reminiscências congeladas sob o sopro da eternidade”. O achamento da finitude próxima em contraste com a infinitude só parece ser viável quando não mais se quer, quando somente resta a imaginação para ativar o infinito, talvez na esteira de Kierkegaard em sua A doença para a morte. Por outro lado, o frade não está preocupado com a finitude próxima do condenado, mas com a sua própria, diferentes entre si – o frade preocupado com a recusa atinge o condenado com o seu ódio, por fazê-lo sentir-se egoísta e incapaz. O condenado faz-se calmo, pois já não tem desejo de agir, após refletir sobre todos os fatos anteriores, acomodado ou familiarizado: “Parecia que nunca fizera outra coisa a não ser esperar e repetir a mesma cena” (TQP 102).

O conflito com os outros se acentua na caminhada da cela até a praça. Há insultos, com “uma voz de ódio com acentos de boçalidade”; os frades (irmãos da misericórdia) que o acompanham nesta última caminhada irritam-se; os balcões ao longo do trajeto repletos; difícil a caminha, pois “o povo não se continha e perturbava o cortejo” (TQP 103). Há momentos singulares que ensejam lembranças dentro do repertório cultural brasileiro: o tropeço, o avanço contido por três vezes, uma mulher que lhe estende um pano para enxugar-lhe o suor do rosto (“renovação de um gesto antigo”), a atitude do condenado que respondia aos insultos “com uma contração irônica de pálpebras numa coincidência de compreensão e desprezo” – todas imagens que remetem à paixão de Cristo.

Em certo instante deste conflito, a personagem acaba por aceitar uma idéia cruel que passa a dominá-lo: “a indiferença no cômputo geral pela existência deste ou daquele indivíduo” (TQP 104). Esta indiferença tem semelhanças com a Weltüberdruss freudiana, ou seja, uma aversão dolorosa ao mundo, rompendo com ele, gerando uma apatia resultante de uma vontade de agredir a si mesmo – o condenado aceita o que lhe foi imposto: “durante a tortura e interrogatório que precederam sua condenação lhe comunicaram que se algo lhe acontecesse a culpa seria exclusivamente sua” (TQP 104); aceita melancolicamente a culpa porque nada mais lhe interessa, os impulsos externos não têm mais importância. A ironia torna-se aqui ferina: “se no início ainda se importou com as ameaças e os aspectos sombrios que certos episódios de sua vida adquiriram sob os narizes que de um bando que defendia a eternidade, em pouco recolheu-se ao silêncio e iniciou a própria identificação” (TQP 104).

Este novo conflito religioso ao longo de um processo de compreensão de si mesmo, de sua função, de sua efemeridade, tudo justificado pela fatalidade, cresce em intensidade ao fim do conto. Os partícipes do espetáculo cumprem todos sua função – o escrivão, o juiz, o carrasco, o povo, os cavalos, tormentosa assistência – ódio perfilado. No condenado, surge o oposto – a melancolia, a consciência de que deve pagar por todos, já não sucumbindo aos ditames externos e à pressão social, mas justificando sua acomodação à finitude pelos destemperos da ilogicidade grupal. O frade lhe estende o crucifixo (ícone conflitante com as atitudes do grupo) – a identificação maior acontece, não há inutilidade de seu gesto, mas perde-se o grupo pela inutilidade de suas atitudes. O condenado rejeita a imagem, pois há nela uma semelhança assustadora, compreendendo que não poderia mostrar aos outros a evidência do absurdo.

Em “Sob um belo céu de maio”, Rawet mantém seu interesse sobre a culpa como motivador da melancolia. A trama é de uma espécie de julgamento ou seqüência de acareações, na qual parece a personagem principal figurar como traidora. O tom geral do discurso é o da imobilidade, enquanto vários passam pela presença do protagonista: “vira desfilar à sua frente naquela manhã todos os seus amigos, conhecidos, ou aqueles que por um ou outro motivo tiveram contato com ele num encontro ocasional” (TQP 109). Aqueles com quem se alinha parecem interessados em obsequiar a personagem,ávidos de sua cumplicidade: “os policiais em torno cercavam-no amigavelmente e lhe batiam nas costas em evidente camaradagem. Outros, que entravam e saíam da sala, cumprimentavam-no com um entusiasmo que só uma amizade espontânea forja” (TQP 112). A circunstância de percepção dos fatos vai do asco ao ódio.

Mas o interessante, neste formato maniqueísta entre acusados e acusadores auxiliados pelo traidor, é que a atuação da personagem é a da contemplação do absurdo, da inutilidade de seus atos, de sua justificativa. A sua simples presença basta, como, aliás, adianta a epígrafe do conto acerca do problema do choque: “Impossível não te causar dano com a minha simples presença” (734_ 109). Exageradamente lúcido, a personagem também contempla, como no conto sobre o condenado, através da janela o mundo exterior, abúlico acerca do que lhe cerca, buscando o belo céu de maio. O protagonista encarna a concepção de que tudo era demais e inútil, manifestando “um profundo desinteresse por tudo aquilo [que] lhe veio com a súbita noção das infinitas possibilidades da estupidez, e uma outra confusa, a de que podia continuar só. Aceitava o Mal” (TQP 113). A personagem deixa de interrogar-se, oferecendo até mesmo ao antigo e bom amigo “um olhar frio, levemente ironizado pela situação”. A melancolia aqui resulta de uma ausência de sentido, pelo absurdo que é o absurdo, restando à personagem um olhar para o indefinido longe e incapaz de defini-lo, como se não fosse necessário um espelho ou um outro para lhe dar uma identidade.

Em “Uma tarde de abril”, a trama tem a técnica narrativa mais elaborada, pois a personagem lida com a propositura fantasiosa de criar um momento não vivido como real. A personagem lida com o problema: “até que ponto um homem é capaz de construir seu passado, construí-lo em detalhes que conservem a densidade da recordação, o sabor de um episódio amargo não vivido, a alegria de uma flutuação melancólica tecida em trama ilusória que se desconhece como ilusão” (TQP 118).

Algumas articulações já encontradas anteriormente voltam à cena; a personagem lida conflituosamente com os outros: “ao transmitir a idéia aos outros responderam com uma gargalhada”, mas a reação da personagem é nula: “nada ocorreu” ; o protagonista procura evitar a circunstância: “um esforço para se desvincular dos presentes, do qual não está ausente um certo rilhar de dentes, já que eles representavam um empecilho à elaboração dessa tarde de quinta-feira, de uma segunda semana de abril de 1961” (TQP 118-19). Um certo ódio e uma certa dor motivam a personagem a fugir do meio circundante.

Narcisicamente, a personagem funda sua contemplação no objeto desejado e não mais no mundo factível, uma totalidade com maior significado: “mas uma totalidade desprovida da dolorosa fuga alienante, desse mergulho esquizofrênico que se identifica com o nada de uma contemplação que é pura imersão nos limites da dor, e que é já ausência de dor” (TQP 119). Este gozo buscado pela personagem melancólica tem um quê de compreensão de si mesmo: “o real só é implacável diante do sonho. Por que se refugiar na ilusão? Teria algum valor o esforço para desfazer o equívoco e provar que não se trata de ilusão propriamente” (TQP 120). O dono da casa, onde está o protagonista, argumenta que há uma realidade inexorável a rodear-nos, exceto feito ao momento em que enfrentamos a esfinge, quando buscamos o feitiço da representação das palavras. Esta proposição faz evidenciar em Rawet a compreensão do mundo como dividido entre o que tem e o que se deseja, entre a satisfação e a frustração. Mas o melancólico protagonista consegue suplantar o real vivido pelo real imaginado – “pensamento vinculado à ação” (TQP 118) – estipulando a tarde pensada como uma lembrança extraordinariamente nítida, com detalhes marginais, episódio ínfimo, mas completo: “eu estava diante do Lamas, no Largo do Machado, hesitando entre pêssegos, pêras, maçãs, nêsperas, ameixas e alcachofras, quando me decidi por pêssegos. A água ainda me vem à boca. Eram realmente gostosos, dourados, aveludados ... Belos pêssegos!” (TQP 121-22).

O conto “Reinvenção de Lázaro” mantém uma preocupação de Rawet – escrever sobre o escrever. A personagem principal, Yehuda Bitterman, quer narrar o episódio de Tião, com o prazer de distanciar-se do objeto, manipulando a situação, procurando harmonia nas palavras; ao buscar realizar o impulso, levanta-se e vai à janela contemplar o mundo exterior, reiterando o processo contemplativo já evidenciado em outros contos. Caminhando pela cidade, o escritor Yehuda lida com as possibilidades da escrita, com as imagens que pode reconstruir, observa as notas que fez sobre a história a ser narrada: “procurar transmitir todos os sentimentos confusos, as idéias contraditórias, difusas, a expressão inarticulada, a impossibilidade de verbalização, a inconsciência de certos problemas...” (TQP 131). Finalmente, Yehuda dá-se conta de que pode e dever contar a história de Tião, ao perceber que ele era Tião.

Assim, dentro do conto há um outro conto – a “Reinvenção de Lázaro” – cuja estrutura o leitor vai apreendendo enquanto processo criador engendrado pelo escritor Yehuda. A trama envolve alguns homens que transportam um bloco de mármore para um galpão onde são esculpidas figuras que adornarão covas no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. Tião, ajudante de caminhão, preto, alto e musculoso, cansado pelo esforço do transporte contempla e busca entender o ambiente em que está, deslocado, meio abobalhado. Dois homens esculpem seus blocos de mármore, cada um lidando com uma parte da anatomia de um anjo. Lembrando do passado infantil, quando fazia bonecos de barro, Tião percebe que a obra em mármore é a obra que fica, é o trabalho que suplanta a vida ou vence a efemeridade. Mas as estátuas perfeitas em sua beleza seriam para um cemitério – algo absurdo, embora perene, que sobrava, que permanecia. O trabalho dele, Tião, era ínfimo: “Dele mesmo o que é que fica?” (TQP 138).

Tião vai aos poucos perdendo as forças, estremecendo, tonteando, e vai pensando sobre o seu papel e dos seus iguais, todos marginalizados. Chega até mesmo a pensar nos ricos, mas “rico era rico porque era rico e estava acabado” (TQP  136). Tião pensa na inutilidade ou no absurdo do enfeite funerário, as palavras embaralhadas – toda a perfeição do anjo com a cara lisinha, o manto, as asas, mas “tudo aquilo feito por um homem que morre, para outro, que já morreu” (TQP  139). A crítica social faz-se evidente no conto, mordazmente equilibrando as coisas na hora da morte de cada um.

“Lisboa à noite” é a história do encontro do judeu brasileiro Isac, querendo ser escritor sobre a Inquisição (embora admita ser assunto remoto e até certo ponto infantil), com Johansen, que se apresenta como homem de negócios nascido na Holanda. O ambiente em que se encontram é o de quase bas fond, bar de fim de noite do Cais do Sodré, onde perambulam marujos e prostitutas. O encontro é uma descoberta mútua de qualidades e de ódios. Isac acompanha Johansen pela noite lisboeta, freqüentando várias casas noturnas, bebendo muito. O holandês busca a simpatia de Isaac, elogiando os judeus: “Você é judeu, Johansen? Não, mas gostaria de ser” (TQP 178).

O conflito, entretanto, explode quando Johansen afirma estar, ironicamente, sendo perseguido pelos judeus, com medo, com ódio: “Eu o odeio, Isac, odeio os judeus! Eles me perseguem” (TQP 180). Isac argumenta que sabe o que é o medo e o que é ódio. Johansen diz: “O ódio fica, mas o medo cansa, pulveriza, e num instante de fraqueza a gente mesmo se destrói, se entrega” (TQP 180); os dois riem muito e Johansen revela-se aos berros nazista e alemão. Inesperadamente, Isac o protege: “reprimiu com violência um jorro de idéias vagas e nítidas, de sentimentos confusos e paixões bem definidas, toda uma torrente a girar em torno de um nome apenas” (TQP 181). A amargura de uma tragédia vira em Isac a consciência de que o indivíduo é menor do que o grupo – “na sua inocência, ou pretensa inocência, recompôs várias infâncias e fundiu tudo em um mundo que deu aquele tipo a seu lado, em um mundo que tudo permitiu e que em vez de acordar do pesadelo, trocava de pesadelos, apenas” (TQP 181-82).

Nos contos de O Terreno de Uma Polegada Quadrada aqui analisados, Samuel Rawet consegue evidenciar uma larga preocupação com a identidade do indivíduo e com o absurdo das relações humanas. Os constructos sociais amoldam o comportamento dos homens, mas efetivam também a dúvida individual sobre o valor de cada um, sobre a validade das tradições, sobre a impiedade dos piedosos, sobre a violência dos violentados. As condições que fazem dos seres humanos amigos ou inimigos, companheiros ou perseguidores, estão eivadas de incompreensão e de inadequação – o mito se torna inconseqüente para este homem melancólico, perdido na contemplação de sua pequenez e de sua inutilidade diante das outras coisas bem mais prementes – como vislumbrou Tião e de certa forma é repetido por Isac ao fim do conto: “Nunca faria o trabalho sobre a Inquisição”.

O outro livro de contos de Rawet, Que os Mortos enterrem Seus Mortos [6] , que li graças aos préstimos de Rosana Kohl Bines, é composto de dezoito contos, geralmente curtos, exceto feito ao último “BRRKZNG: Pronúncia – Bah!”; a editora paulistana Vertente, pequena e artesanal, acaba por tornar o exemplar que li um tanto confuso, pelos erros de paginação. A capa é uma foto de pedras nuas ponteadas por seis urubus. A acidez da imagem corresponde em larga monta ao contexto dos contos, extremadamente intimistas, lidando com momentos de grande dúvida ou de grande desilusão das personagens.

Talvez sinal de sua insatisfação com o ser humano, em três contos, aparece a figura do rato: “O riso do rato” , “Um homem morto, um cavalo morto, um rato morto” e “O rato e o pombo”. A longa seqüência de corpos mortos é uma imagem que acompanha a personagem ao longo de sua ambulação observada pelo narrador onisciente. Frases curtas, judicativa, raramente hipotaxe ou parataxe. Diferentemente, os outros dois contos mostram-se duais – ou seja, o narrador toma a perspectiva de cada personagem e narra os fatos, como se as duas partes fossem como ângulos complementares. Em “O riso do rato”, há a história de dois vizinhos, mas inimigos por uma circunstância talvez perversa, talvez mórbida, repleta de ódio – o filho de um deles surpreende os vizinhos em atividades libidinosas. Há então duas versões de um episódio ligado a abuso sexual presenciado por um menor – o pai desesperado e o vizinho que pede a proteção da polícia para evitar que o vizinho o ataque. Usando do espelho na churrascaria, o pai do menor hospitalizado observa do lavatório Eliezer Kugelman, seu objeto de ódio e vingança. Extremamente articulado, em termos de técnica narrativa, o conto mistura vários nós distantes entre si em tempo e espaço. A tessitura narrativa acaba por iludir o leitor, que precisa estar atento à mudança de foco de interesse do narrador. O riso da personagem Eliezer é o que faz o pai mudar de vontade; antes completamente exausto pela circunstância, percebe no seu companheiro de almoço (o que dá à cena um caráter mais que inusitado – almoço entre inimigos e vizinhos) a figura de um rato: “Teve a impressão de que a vingança só tinha sentido quando envolvia a condição humana” (QMEM 11).

Em “O rato e o pombo”, a mesma estrutura dual, organizando o foco narrativo, duas partes envolvidas, dois raciocínios, onde prevalece uma certa agonia diante do problema. Dois amigos de infância discutem uma dívida. Um é escultor, o outro incorporador imobiliário. A origem do conflito era uma escultura vendida a um condomínio, trabalho de um, produto a ser partilhado por ambos. O escultor, o pombo, defende-se da sua inadimplência no pagamento do material usado, devida a doença; o outro, o rato, o despreza, o odeia, aliás, odeia tudo, a mulher, o amigo, a casa, a mãe, o pai, a irmã, o fétido sobrado onde estudavam juntos... Ele passa do ódio ao desprezo, e a consciência de que não teria outro sentimento; o escultor, intranqüilo, mantém-se sabedor de que havia o improvável, o impossível, o que chamou de dramalhão de terceira, a sensação da perda de tempo. Sua única possibilidade de compreensão do mundo está na avaliação das formas artísticas – usando do casal com quem passa este momento de angústia, vê neles as formas simples que procurava nos últimos trabalhos, “qualquer acréscimo era uma espécie de psicologismo barato, um lixo de sua imaginação” (QMEM 64).

Uma espécie de nojo que marca o escultor também é encontrável em “O casamento de Bluma Schwartz”. A personagem central mostra-se seca, perdida ou perdedora, tentando recuperar um momento em que ao envolver-se com um homem casado, dele engravida e depois aborta o filho. Este episódio marca a sensibilidade da personagem, que passa a ver tudo com desencantamento. Sua atitude “quase picaresca” dá-se por “uma pisadela e um beliscão”, lembrando a malandragem de um sargento de milícias. Por meio de uma gravidez conseguida com “relações diárias com todos os homens que lhe era possível encontrar nos intervalos de trabalho” (QMEM 16), convence o futuro marido, impotente até em relação homossexual, que é ele o responsável pela gravidez e se casam. Após o casamento, reduz o marido a um trapo, desmoralizado por “laxantes de ação rápida, soporíferos no café da manhã e no almoço, estimulantes e antihipnóticos à noite” (QMEM 16). A vida prossegue, ela à frente dos negócios, ele gemendo no quarto. Teatralmente, vive “voluptuosamente, sem volúpia alguma”, os gestos estudados, a decoração orientada, sua ânsia por algo perdido é produto da mais absoluta indiferença por qualquer coisa que possa querer – como é o caso do uso da campainha para chamar a empregada: “ouviu o som da campainha e espantou-se com a própria mão . . . Nada programara, nada desejara.” (QMEM 14).

As personagens de Rawet parecem sofrer visceralmente com o estar social. Tudo se torna uma convivência difícil, quase tormentosa. No conto “A oração”, a personagem sente-se indisposta com tudo e todos. Convidado para jantar com o sócio, deve escrever para ele e a mulher uma oração. Envergonhado, faz o texto pedido, com imensa dificuldade: “a impressão de que cometia um crime ao ceder alguma coisa à sua sensibilidade”, que lhe é pago com consideração, bom vinho, bom jantar e boa sobremesa (lembrança da esposa do sócio, torta de maçãs, sua preferida). O ambiente doméstico, antes de tornar as coisas mais fáceis, fazia-as mais vulgares. O fim do jantar, talvez abrupto, leva-o a consciência de que deve voltar para casa, para sua mulher; isso o leva ao desespero, como se a realidade fosse tão abjeta que vivê-la fosse como na oração: “como quem desperta de um sonho”. Vai pra um hotel, onde passa mal e compreende a si mesmo, suas ânsias, seu desespero – o estar com alguém.

Rawet constrói seu livro de contos com estas personagens angustiadas, impressionantemente dilaceradas, para quem a realidade é desesperante ou a própria impossibilidade. Talvez neste sentido, o seu conto “Moira” recupera o absurdo da existência, através de referências ao drama absurdo “Who’s afraid of Virginia Woolf?” de Edward Albee. O texto dramático agride a sociedade americana, em suas bases patrióticas, mas entre várias leituras sobressai também aquela que dá título ao texto – quem tem medo de viver sem ilusão? Afinal, a ilusão dá sentido um sentido falso à realidade, na visão de Albee. A obra está dividida entre dois compassos, o passado e o futuro, a história e a biologia, a aparência e a essência, o ser e o poder ser, o querer ser e o ser. A personagem de Rawet também em busca de compreender o que é e o que deve ser, anseia por respostas. O suicídio parece momentaneamente ser a saída, “oscilando entre criação e destruição, vinculando ao fundo mais fundo de sua condição ou GD condição?” (QMEM 22). Mas uma outra saída, uma terceira, torna-se viável. Rawet consegue desestruturar o absurdo proposto por Albee. A personagem é um ator, que representa o papel de George, na peça. Mas cansado no mundo real, como está cansada a personagem na peça, velha, antiga, conservadora, incapaz, o ator também em símile com as atitudes de George, irrita-se, jogando com a peça, interrompendo-a, destruindo as relações anteriores. Se George ultrapassa os limites, matando o filho imaginário de Martha, o ator ultrapassa os limites, querendo ver a platéia, querendo ser a platéia. Conjuga em si mesmo os dois papéis, ator e platéia. Ao fazer isso, complica a estrutura – não mais o ser o que se é e o que se quer ser, mas também o que se deve ser. O desfazer de si, a destruição, gera um outro conjunto de realidades, três e não dois contrapontos, realidade e ilusão. A artificialidade esperável no mundo da representação – o ator vai encontrá-la no dia-a-dia, pois há de simular a convivência, o outro. Esta consciência de que há de buscar na realidade e não no palco a saída, a ilusão, invertendo o pólo de Albee, dá a ele a sensação de si, a anagnórise grega, e em simulacro com Édipo, nome de uma fantasia, percebe-se grande e horrorizado, monstro impossível para o comum de nós: “Um nome. A descarga atravessou-lhe o corpo, sente-se imenso, imenso em sua grandeza e horror” (QMEM 23). Passa a representar ou era? E quem? Eu? Ele? Tu? O final do conto é de uma assustadora revelação de seu próprio destino: “Olhou-se no espelho. Abriu a porta da rua. A rua. Personagem perfeita” (QMEM 23).

Esta ansiedade um tanto melancólica perpassa boa parte deste livro de contos. Tanto em “Trio”, história de Pedro, Paulo e Pedro Paulo, analfabetos que sofrem, criam e pensam o mundo, quanto em “Marinha” , onde a personagem nervosamente interage com a água, as personagens mostram-se nauseadas diante do mundo, quer pela rotina em “Marinha” , quer pela constância do mundo apesar da transgressão em “Trio” . Em ambos os textos, o narrador insere-se “neutramente” no pensamento das personagens, mas observador dos contornos físicos e palpáveis. Em todos uma certa aversão ao mundo real, buscando o passado ou a fantasia como formas absurdas de compreensão. A urbanidade degrada-os, necessitados de uma válvula de escape, seja ela o mar, o choro, a criação artística, ou simplesmente o pensar.

Rawet aproveita-se da relação especular do indivíduo com o mundo, para organizar os instantes precisos em que as personagens acabam por revelar-se para o leitor. A fórmula dual já identificada acima ocorre também em “A trajetória”. Usando de um pombo e de um pardal, em circunstâncias de luminosidade sombreada (“sem a presença de sol”, “ num verde de sombra definida por luz intensa de nascente” ), aliás, os espaços de Rawet dão-se de forma cinzenta, opaca ou mesmo amortecida (no caso da noite, por vezes perpassada pelo branco artificial de uma reforma arquitetônica), a personagem vai traçando movimentos de cada ave. Em símile, descreve a si mesmo, e aqui aparece outro elemento constante na prosa de Rawet, o espelho. As relações óticas organizam a perspectiva, talvez denotando a formação técnico-formal de Rawet, engenheiro de estruturas. O pombo, o pardal, o automóvel do outro e o seu automóvel, a mulher, a filha, choque, mortas. Esta economia árida de construção, mínima, “arcabouçal” , dá ao texto de Rawet a explosividade das cenas superpostas: “ Entre um telhado e outro, a grama entre as palmeiras. Seu rosto em todos os rostos – espelhos. Um homem se senta no banco e acende um cigarro. Duas mulheres se encaminham em direção à areia” (QMEM 26). Circularmente, as matérias repetem-se, como se fossem uma continuada revisitação, algo que em suma análise elimina o tempo, pela onipresença da matéria: “O automóvel surgiu bruscamente à frente do seu. Hospital. O rosto da mulher. O rosto da filha. O vôo do pombo. O deslocamento do pardal. Entre um telhado e outro. Entre tufo de grama e tufo de grama. Olho aceso. Ouvido a proclamar o silêncio do movimento. O tempo abolido pela culpa – a única maneira de continuar a amá-las” (QMEM 26). A personagem mantém o acidente vivo, reiterado, e de certa forma nesta trajetória circular mantém vivas a mulher e a filha.

Em “A linha”, Rawet permanece vinculado a sua leitura geométrica do mundo. Aparentemente decalque bem elaborado de Der Kaukasische Kreidekreis de Bertolt Brecht, a narrativa observa uma personagem em face de uma linha de giz. A transgressão da linha, ultrapassá-la, é decidir algo, em analogia com a lei salomônica; a personagem com marcas de pobreza (lembrança da sopa de beterrabas, a falta do botão acima do cinto, estar à noite ao relento, onde a água da chuva ainda marca a calçada na calçada) lembra Azdak, especialmente por sua condição judicativa em face do risco do giz – ela pergunta: “ O corpo de aqui? Que aqui? O de antes do corpo ou depois do corpo? O de antes do corpo ou depois do corpo? O de aqui caminha. O de antes caminhou?” (QMEM 44). Estas dúvidas acumulam-se em razão da impossibilidade do ser, pela consciência da incerteza: “E os pés se aproximam de uma promessa de um ir além de, entre riscos desencontrados, não de giz, fraturas paralelas normais ao meio-fio. . . . A nostalgia de um afeto futuro, a esperança de um passado que se modifique.” (QMEM 45). Sobra-lhe, entretanto, apenas não saber.

Retomando a temática da homossexualidade, já usada em narrativas de O Terreno de uma Polegada Quadrada, algo talvez forte para a época em que escrevia, Samuel Rawet trata a opção sexual sem o obtuso valor do palavrão, identificando práticas sociais de homoerotismo, em cinemas, mictórios, saunas e ruas conhecidas pela presença de michês. As aproximações, os relatos de desejo, a descrição do corpo masculino – tudo se torna integrado ao contexto, sem a ruptura própria da agressão; ou seja, Rawet não faz apologia da homossexualidade, tampouco a torna motivo de extremado interesse, como forma de chamar a atenção ou para agredir o leitor. Óbvio que para o leitor desavisado, pode acontecer o embate puritano ou a expectativa do invulgar. Tanto em “As palavras” quanto em “Nem mesmo um anjo é entrevisto no terror”, uma revelação consciente da bissexualidade masculina ocorre: “Conhecia estes tipos. Era casado, tinha mulher, e filhos, tudo isso arrotado com meneios de macheza duvidosa e terror” (QMEM 37); “Quando um colega do trabalho o surpreendeu na sauna abraçado a um homem julgou ver ameaçada qualquer coisa. Encarou-o sem hesitação e beijou o companheiro. Sabia que contava a seu favor com um aspecto viril, e nunca se deixou iludir pelo lugar-comum do efeminado” (QMEM 47). A personagem de “As palavras” tem cinqüenta anos, mulher, dois filhos, pais, amigos, sogros e um amante: “nunca se preocupou com as conseqüências de uma vida dupla ao se apaixonar por uma vizinha”. Esta vida dupla lembra o processo especular, já elencado antes. Como se houvesse sempre duas partes, duas coisas, dois corpos.

Essa dualidade é negada, como se viu, em “Moira” , ao surgirem três realidades. A personagem mantém-se perdida em dois pólos: o silêncio, o ruído, o silêncio, o riso e o filme, a imagem anterior no espelho e a outra, atual. O julgamento das coisas mantém sua atenção, pela sua fragmentação – ao escutar um pedaço de frase (“um homem deve”), toma repentinamente consciência da ponte entre os dois pólos, talvez o terceiro: “Toma o café entre um careca, gordo, de camisa aberta, e um crioulo de calça estampada e blusa vermelha. Ao atravessar a Rua do Catete percebe um certo desligamento de coisa de fora e coisa de dentro. Olha em frente entre luzes e sons. Há” (QMEM 48). É como se percebesse que há um entre-lugar, aproveitando o conceito de Homi Babbha. Sua identidade é construída de forma particular, no entre das coisas, sem ser uma coisa ou outra, precisa de uma terceira via, perguntando: “ Era isso? Importante o resto? Desimportante o princípio?” (QMEM 48). A terceira realidade ou plana tem pouco de consistência, exatamente por lhe faltar a referência da oposição, por estar na continuidade cinzenta entre dois pólos.

A ligação entre duas partes faz pressupor que algo é até que seja outra coisa; ou seja, onde começa a margem e termina o rio? A vida e termina a não-vida, a vida e a morte? Há um instante indefinível que separa as identidades, mas exatamente por sua localização ser imprecisa, há o homem de precisar iludir sua racionalidade e abrandar sua emotividade. Em “O Alquimista”, há um homem que olha um movimento, talvez lagarto, mas vê apenas o muro, a grade, as fatias do casario. A sua busca tem como fiel a demonstração do enunciado clássico: “ a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa”. Figura essencial, o triângulo retângulo dá origem a compreensão da irracionalidade. Deixa-se a compreensão racional pitagórica, em que há uma correspondência exata, para a percepção platônica, em que as coisas não refletem necessariamente o absoluto, o mensurável, mas sim e também o incomensurável, o indefinido. O alquimista, na tradição medieval da prática experimental, busca relacionar letras, números, linhas, oscilando entre amor e ódio, talvez o infinito circular, sem uma escala possível de medição. Observa as coisas, tentando encontrar o indefinível:

“Sem mover a cabeça, riscou um fósforo e ergueu a chama ao nível dos olhos sem fazer esforço para observá-la. Ao notar os movimentos do fogo compreendeu vagamente algo a respeito de um movimento interior, sem necessidade de definir, porém. Um movimento em relação a um movimento que se situa num movimento relacionado com outro movimento, em sucessão.” (QMEM 50).

Na arte real, dentro da tradição maçônica, o ternário é a única proporção resultante da continuidade dos termos, afinal os três termos são dois que são um. A relação entre eles decorre da não-diferença, pois a percepção e o percebido são partes ininterruptas da mesma compreensão total. A personagem busca enxergar uma xícara, mas entre a xícara e a vontade vê-la reside uma continuidade, que chama de poalha, algo não claro, pois a xícara é xícara, mas há que torná-la xícara, a dupla consistência de ser e não ser. O alquimista não busca somente a transformação das coisas, mas a transformação de si mesmo, evoluindo, sem deixar de ser e passando a não-ser, em continuidade: “E a xícara? Rasgou a folha. Os lagartos reaparecem. A voz se fez ouvir. O instante de espanto deixou de causar espanto. A xícara se deixou ver” (QMEM 51).

A discussão da identidade permeia os contos de Rawet, tanto através da compreensão do indivíduo diante da coletividade, quanto nos instantes de efetivação das relações grupais ou interativas dentro dos grupos. Retomando a proposição do professor Vieira, citada no início deste trabalho, há um largo conflito na obra de Rawet, perdido entre discutir o ser judeu e o ser brasileiro, com mitos aqui e ali perpassando a confusa estrutura relacional brasileira. No conto que dá título ao livro, como também em “A lenda do abacate” e em “Prisioneiro da nuvem”, surge novamente a questão da identidade, quer baseada em mitos ancestrais e multiétnicos, quer aquela problemática que parece tanto afetar Rawet – a convivência com valores católicos fortes. O conto “Que os mortos enterrem seus mortos” é uma referência bíblica, encontrável no Evangelho de Lucas (9: 60) e no de Mateus (8: 22), quando Jesus diz que cabe aos mortos a tarefa de enterrar os mortos a alguém que pede tempo para enterrar o pai, ele deveria anunciar o reino de Deus. Interessantemente, esta é uma das passagens mais estranhas, pois como haveria um morto de enterrar seus mortos? A explicação mais aceita é de que há um pressuposto – aquele que está morto é aquele que vive para a matéria, para o mundo terreno; logo aquele que há de se preocupar com os mortos ainda não estaria preparado para o viver em/com Deus. O conto trabalha essa dicotomia morte-vida transplantada para o ódio-compaixão.

A personagem à espera da vítima de sua vingança passa a refletir sobre o que sente e como conciliar com o instante anterior. Está no mesmo dilema do filho que deve enterrar o pai e quer seguir Jesus. As relações a partir de, com, por tornam-se essenciais – a personagem indaga: “O que faria de seu ódio? O que faria com seu ódio? O que faria por seu ódio? Precisava de seu ódio?” (QMEM 27). As razões que levam à vingança não são explicitadas, mas reitera-se a necessidade de matar. Ele se sente aniquilado, despojado, chorando, culpando o outro por estar naquela situação. A ameaça da vingança surge-lhe como alternativa, mas os caminhos afirmativos de si mesmo só o levam a querer matar o outro. Entretanto, surge a vítima acompanhada de uma criança, que teria a idade do ódio. Há uma epifania no abraço da criança, que se enrola em seus joelhos. A beleza da criança equipara-se aos anos de dor sofrida. O ódio cede espaço.

Ler Rawet é entrar em choque com qualquer horizonte de expectativa, pois o narrador consegue, dentro das planas urbanas, elencando as variáveis expressivas ou inexpressivas das ruas, levar o leitor a não ser, ou seja, desidentificar-se, corporificar a não-essência. Os conflitos todos particulares tornam-se universais, prosaicos, imediatos, como se houvesse ali o retrato ou o espelho da vida. Cabe talvez ainda buscar compreender esta relação ótica de construção do mundo em Rawet. O que apavora é talvez restar, no sentido aritmético, apenas o fim do conto “Prisioneiro da nuvem”: “A morte, uma ficção” (QMEM 67).



[1] A primeira parte deste texto foi apresentada ao IX Congresso Internacional da ABRALIC, realizado na UFRGS, em 2004.

[2] alamir@uel.br.

[3] RAWET, Samuel. O terreno de uma polegada quadrada. Rio de Janeiro: Orfeu, 1969. As referências ao livro serão identificadas por TPQ.

[4] Disponível em http://www.brown.edu/Faculty/Faculty_Governance/facbulletin/98FacBulHtml/vieira.html. Acessado em 10 de junho de 2004.

[5] “Rawet's stories address the difficulties of reconciling Jewish beliefs and culture with Brazilian nationalist and cultural norms.”

[6] RAWET, Samuel. Que os Mortos enterrem Seus Mortos. São Paulo: Vertente, 1981. As referências ao livro serão identificadas por QMEM.






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