SOBRE
BURACOS NEGROS:
VIOLÊNCIA,
BANDITISMO E A LITERATURA DA EXCLUSÃO
Ricardo
Pinto de Souza - UFRJ
...a
desordem que faz cintilar os fragmentos de um grande número
de ordens possíveis na dimensão, sem lei nem geometria, do
heteróclito; e importa entender esta palavra no sentido mais
próximo da etimologia: as coisas apresentam-se nesta série
“deitadas”, “dispostas” em sítios a tal ponto diferentes que
se torna impossível encontrar para elas um lugar acolhedor,
definir, sob umas e outras, um lugar comum a todas.
... as heterotopias ... dessecam o assunto, detêm as palavras
sobre si mesmas, contestam, desde a raiz,toda a possibilidade
de gramática; desfazem os mitos e tornam estéril o lirismo
das frases.
(Focault,
As palavras e as coisas)
Gostaríamos de introduzir nossa discussão com um conto de
Fernando Bonassi, “Por um buquê”
[1] , exemplar em vários sentidos. Na narrativa nos é
apresentada uma cena comum às grandes cidades:
Um
indivíduo se aproxima com um buquê de flores do campo.Não
é comum flores do campo por aqui, mas você nem liga. O buquê
é cheio de coisinhas, e você nem repara nos detalhes. Você
diz que não quer flores.
O
dono do carro tentará se livrar do florista, tornar seu direito
à indiferença efetivo –nenhuma ironia aqui– para que possa
seguir viagem. Temos aqui o drama público da pobreza e da
riqueza, carência e excesso presentes lado a lado. Este tipo
de representação lida com uma lógica cultural tradicional,
com os sentimentos históricos de culpa ou de desconforto das
classes mais abastadas. No entanto, a conclusão do conto nos
arrasta para outra região, para um novo tipo de sensibilidade,
uma novidade em termos de interpretação cultural da exclusão.
Assim, o florista que insistia em atrapalhar a intimidade
plástica do motorista torna-se uma ameaça.
O
suposto vendedor não insiste. Apenas fica parado, olhando
sua cara indiferente. Então você vê a ponta de um revólver
no meio da confusão colorida. Você pensa duas vezes. Não mais.
Volta a dizer que não quer as malditas flores.
Aperta o botão do vidro elétrico. Você ouve dois barulhos.
O estampido e o vidro que se parte. Agora você nem chega a
ver. Você está morto.
O
conto chama a atenção pela violência sem sentido, mas, para
além do pitoresco do cotidiano de uma cidade violenta, o que
se pode ler no conto de Bonassi?
Há, primeiro, o interesse (prazer?) em apresentar a dura
rotina da exclusão social e a maneira ambígua com que ela
afeta a sensibilidade brasileira (culpa e indiferença, o dever
da consideração e o direito ao sossego, desejo de um espaço
imperturbado e a presença desconfortável do outro in-significante),
e, após criar esta zona de reconhecimento, arrancar-nos para
o pesadelo do risco, da violência, do aniquilamento. O conto
de Bonassi é importante porque constrói a distopia própria
de uma sociedade excludente, o lugar em que seus discursos
típicos não dão conta de um sentido. A seguir, iremos tratar
de alguns aspectos desta fantasia distópica, um tema recorrente
da cultura brasileira nos últimos anos. Iremos especialmente
tentar entender a função polêmica de seu protagonista, o bandido.
DEMOCRACIA
E EXCLUSÃO
Os últimos anos têm obrigado a sociedade brasileira a encarar
um paradoxo: a existência de instrumentos e, especialmente,
de pretensões democráticas e uma contínua e, ao que parece,
recrudescente experiência da exclusão. O significado que a
palavra ‘democracia’ tem no imaginário de um país que passou
por uma longa ditadura vê-se nublado pelo sentimento de que
o período democrático não correspondeu a uma melhoria concreta
das condições de vida da maioria do povo. Há a sensação de
um presente que se esvai e, pior, de um futuro que é vetado.
A questão é que o período democrático não corresponde apenas
ao esforço de construir uma democracia: tão forte quanto o
desejo de maior igualdade é todo o maquinário de exclusão
que tradicionalmente caracteriza as relações sociais no Brasil,
fortalecido nas duas últimas décadas por práticas neoliberais.
Os mecanismos de exclusão se reproduzem e se adaptam, constituindo
algumas das instituições mais sólidas da sociedade brasileira.
Não nos cabe aqui discutir até que ponto a falta de avanços
na consolidação da cidadania está relacionada à longa crise
econômica, até que ponto a estagnação apenas re-edita nossas
mais antigas relações de poder. O fato é que vivemos a contradição
de termos paralelamente pretensões democráticas e práticas
excludentes, sendo o último termo mais característico de uma
paisagem brasileira que o primeiro.
O nosso
período democrático é também, e mais caracteristicamente,
período excludente, era da sociedade excludente. Deste período
o que nos interessa não é tanto o impacto da exclusão, afinal,
sempre presente, mas sim a frustração por um regime democrático
não conseguir redimi-la. Uma sociedade de muitas promessas
e, em certo sentido, muitos compromissos, mas de poucas quitações.
Talvez pela constância da exclusão e sua importância fundamental
para as relações de poder no Brasil, há toda uma tradição
da literatura brasileira que cuidará de entendê-la e criticá-la.
Acreditamos que, atualmente, uma série de autores vem pensando
a forma última desta nossa sociedade da exclusão, mapeando
e criticando seus instrumentos, construindo um corpus
de obras e de temas comuns que aos poucos vai se constituindo
em uma literatura. Possivelmente, esta será a literatura típica
do processo de democratização enquanto dinâmica histórico-social,
pois, mais do que qualquer outra manifestação literária atual,
propõe-se a promover uma ampla revisão de valores da identidade
brasileira. Estes autores devem ser incluídos na longa tradição
de crítica, de negação do existente, que identificamos em
nomes como Euclides da Cunha, Lima Barreto ou Graciliano Ramos.
Como os que os antecedem, os escritores da violência constituirão
seu trabalho como defesa e resistência, acusação e protesto.
Autores que estabelecerão um diálogo constante com a cultura
de massa (a mídia impressa e televisiva, a MPB e o RAP, o
consumismo) e com o caldo teórico que caracterizará a pós-modernidade.
Não devemos considerar estes nomes como representantes de
um realismo clássico, pois perderíamos o foco do funcionamento
cultural destas obras. Representar a violência no seu caso
significa muito mais tensionar polemicamente algumas questões
históricas, valendo-se, primordialmente, da sátira, do exagero
e, especialmente, da ironia. São escritores como Paulo Lins
(“Cidade de Deus”), Ferréz (“Capão Pecado”, “Manual Prático
do Ódio”), Fernado Bonassi (“SãoPaulo/Brasil”, “100 coisas”),
Marçal Aquino (“Cabeça a Prêmio”, “Faroestes”) ou Patrícia
Mello (“O Matador”, “Inferno”), que vêm praticando uma literatura
fundamentalmente preocupada com a exclusão e a violência.
A figura central destas narrativas é o bandido, entendido
como um dos símbolos mais radicais da exclusão.
Jock
Young [2] ,
ao estudar as causas da violência em sociedades mais prósperas,
atribuirá a este déficit entre promessa e realidade
boa parte da responsabilidade pelo aumento da criminalidade.
Poderíamos dizer que, na ausência de esperança, há uma inevitável
transformação da experiência cotidiana em experiência de desumanização
e de violência, seu subproduto mais característico. Segundo
Young
Eles
[homens jovens] são deixados a esmo; irrelevância descartada
trancafiada em uma situação de emprego estrutural sequer disponível...
São impedidos de entrar na pista de corrida da sociedade meritocrática,
ainda que permaneçam colados a aparelhos de televisão e outras
mídias que exibem tentadoramente prêmios e recompensas da
sociedade abastada. Homens jovens que enfrentam uma tal negação
de reconhecimento se voltam, em todo o mundo, no que deve
ser quase uma lei criminológica universal, para a criação
de culturas de machismo, para a mobilização de um dos seus
únicos recursos, a força física, para a formação de gangues
e a defesa de seu próprio “quintal”. Tendo-lhes sido negado
o respeito de outros, eles criam uma subcultura que gira em
torno de poderes masculinos e de “respeito”.(p30-31)
No
caso específico brasileiro, conforme insiste Alba Zaluar
[3] , este caldo de exclusão e de falta de oportunidades
será responsável nas favelas pela cultura do sujeito-homem,da
valorização de atitudes violentas e temerárias, base do banditismo
de gangues e do tráfico.
Antes de continuarmos, seria necessário deixar claro que o
bandido, apesar de protagonista das narrativas que vimos estudando,
tem uma conformação ambígua, uma valência simultaneamente
positiva e negativa: negativa enquanto produto da exclusão,
reforça, através dos horrores que comete, o horror da própria
exclusão; positiva porque, apesar de excluído, confirma e
imita os mecanismos de exclusão que o geraram. Utilizar o
bandido como protagonista é estabelecer uma narrativa de fundo
ético e político sobre os riscos da exclusão, uma espécie
de contabilidade das perdas e dos riscos de nossa experiência
coletiva.
A
CONTABILIDADE DOS RISCOS
Seria bastante injusto, especialmente com as vítimas, atribuir
à exclusão toda a responsabilidade pela violência. Aliás,
o que a relação entre violência e exclusão tem de característico
não é exatamente o fato da violência surgir do excluído enquanto
ser que sofre a pobreza – a justificação tradicional para
a violência urbana – mas sim enquanto ser que é obrigado a
testemunhar a desigualdade. Em outros termos, a exclusão tem
potencial de gerar violência porque institucionaliza e impõe
um largo processo de aniquilamento simbólico. Se nosso argumento
é válido, a possibilidade de um morador dor vários guetos
brasileiros ser agente da violência é maior, mas não por ser
pobre. É maior por ser excluído, ou seja, sujeito que tem
acesso impossibilitado a todas as realidades a que se vincula
positividade: a realidade do consumo, primordialmente, mas
também ao prazer conspícuo, ao respeito e à consideração,
enfim, à significância. O campo existencial do sujeito excluído
é o da negatividade: o não-branco, não-rico, não-instruído,
não-trabalhador. Se concebermos as mídias como uma espécie
de “voz de todos”, ao menos legítimada enquanto reconhecida
como tal, que estabelece os sistemas de identidade e de diferença
e especialmente as políticas de desejo, surge para o sujeito
excluído a seguinte questão: como ser menos que “todos” e
ao mesmo tempo desejar o que “todos” querem? É possível
não desejar o que “todos” desejam?
Repetimos que atribuir à exclusão toda a responsabilidade
pela violência seria uma espécie de miopia ética. Não seria
ético atribuir a violência exclusivamente à exclusão, mas
tampouco o seria desconsiderar esta em uma crítica real àquela.
Já em termos simbólicos, culturais, a instância mais vigorosa
de crítica da violência se dará exatamente com a articulação
de violência e exclusão. Os autores a que nos referimos acima
têm como característica comum – e fundamental – pensar literariamente
esta relação. Na medida em que a exclusão é o maior problema
de nossa sociedade, não só porque revela uma série de incoerências,
mas acima de tudo porque é o grande risco, aquilo que pode
inviabilizar, com a violência, nossa experiência política,
coletiva, esta literatura que crítica a violência e a exclusão
se presta a fazer a defesa de certos valores democráticos,
os mais generosos do Ocidente e o significado final de nossa
aventura histórica. Assim, gostaríamos de chamar de “literatura
da defesa” as obras que, nos últimos anos, vêm fazendo uma
crítica da exclusão.
O personagem
principal desta literatura é o bandido em suas mais diversas
roupagens: o traficante, o assaltante, o assassino profissional,
o exterminador... Sua eleição como protagonista não vem exatamente
do (anti-) clássico prazer pelo grotesco, nem tampouco por
reconhecer nele uma força revolucionária [4] , nem, ao contrário, por uma indignação diante da monstruosidade.
O bandido, nesta literatura, não é demônio, não é herói nem
é bárbaro. Ele é desenhado com um calmo horror e como uma
forma de pensar a realidade brasileira. O bandido é uma espécie
de “contabilidade dos riscos” de uma sociedade excludente,
pois é seu resultado mais radical. A seguir, tentaremos demonstrar
como bandidagem e exclusão se articulam para construir a reflexão
sobre o Brasil contemporâneo.
BANDIDAGEM
E ABANDONO
O bandido é personagem privilegiado porque sua vida é o resultado
mais radical do campo de negatividade em que vive o excluído.
Este se constitui enquanto negatividade na medida em que carece
de todo os atributos vinculados ao êxito: é desempregado,
em oposição ao homem esforçado; negro, em oposição ao branco;
pobre, em oposição ao rico, etc. Toda literatura de Ferréz,
por exemplo, será um exercício de levar até as últimas conseqüências
este jogo de negatividade. A insistência de seus personagens
em desvalorizar as instâncias que vinculam as formas positivas
de existir indicia um projeto crítico, consciente embora geralmente
lhe falte sofisticação. A mídia e a cultura televisiva são
reconhecidos como os inimigos básicos: são ridicularizadas
as celebridades, galãs e namoradinhas (“vagabundas”). Em seguida
a tecnocracia e a jeunesse-dorée (“playboys”), a instituição
religiosa, o trabalho. De certo modo, a perspectiva de êxito
proposta por estas instituições, vetada a princípio aos excluídos,
recebe uma contra-negativa: se o mundo não valoriza a mim,
eu também não o valorizo. Este “eu” só surge publicamente,
como parte ativa e dinâmica da realidade, exatamente através
da contra-negativa. Devemos lembrar que este longo recurso
às negativas é profundamente problemático, já que conclui
na negativa final, a morte. Este sujeito que simultaneamente
nega e é negado, é também sujeito que se põe diante do dom
da morte, seja como vítima, seja como bandido, no limite ambos.
A literatura da defesa irá tratar de ambos personagens,
estabelecendo um vínculo simbólico entre eles através da figura
do bêbado. Tanto bandido quanto bêbado são extremos da exclusão,
mas estão em extremos contrários do espectro. São subordinados
à realidade da mesma forma, mas enquanto o bandido consegue
interiorizá-la, tornando-se parte integrante e ativa dos mecanismos
de jugo e de exclusão, o bêbado é passividade pura, apenas
aprofunda seu aniquilamento. No drama da exclusão, bêbado
e bandido são representados como opostos complementares, membros
privilegiados e que reforçam a máquina da exclusão. Por isso
mesmo são representados tipicamente como pai e filho, o bêbado
produzindo o bandido. Os dois são, conforme um autor que vem
sendo essencial para nossa reflexão, Giorgio Agamben [5] , Homo Sacer, por
estarem em uma relação de bando: fora da proteção da
soberania, abandonados.
Retornando aos bandidos, talvez sua importância esteja no
fato de que funciona como metonímia do campo do abandono:
é uma radicalização, e, em última instância, uma inversão
alienada do excluído. Radicalização porque é o produto mais
assustador, embora normal, das relações de exclusão. Inversão
porque, como no escravo Prudêncio de “Memórias Póstumas de
Brás Cubas”, reproduz as relações de aniquilamento que o fizeram.
Os mecanismos típicos de exclusão, a geração de um campo negativo
em que o outro é tornado subalterno, são levados às últimas
conseqüências pelo bandido. Os que não são aliados, são inimigos
em potencial, mesmo as alianças são transitórias. Assim, em
certo momento, ninguém com exceção do próprio bandido (nem
família, nem amantes) tem dignidade ou mesmo direito à vida.
É fundamental entender que o bandido não é proposto nesta
literatura como algum tipo de proto-revolucionário, que daria
uma resposta exagerada à sociedade excludente. Ao contrário,
ele surge como o resultado acabado desta sociedade e, portanto,
reprodutor de suas mensagens. Em outros termos, o bandido
não é aquele que se opõe à realidade que o produz, mas, ao
contrário, afirma e abraça seus valores, levando-os às últimas
conseqüências. É um excluído que, ao contrário de negar criticamente
a realidade, entra em acordo com a exclusão. A grande descoberta
crítica da literatura da defesa está exatamente no
fato de, ao provocar o horror diante dos atos dos bandidos,
não nos faz sentir o desconforto das boas almas por aqueles
que são “deserdados da terra”, mas sim a sensação de absurdo
que temos diante daqueles espelhos de circo, que nos mostram
um reflexo distorcido. O itinerário crítico que estas obras
propõem acaba com uma espécie de catarse em que, em vez de
lamentarmos a morte de um Zé Miúdo (traficante, personagem
de “Cidade de Deus”), por exemplo, a celebramos com prazer.
A questão é que, antes deste final, afirmamos um pouco confusos,
um pouco consternados, que Zé Miúdo somos nós. Mas turbinado.
Obviamente, a fruição destas obras se dá através da percepção
de sua ironia de fundo. No momento em que esquecemos este
horizonte crítico e não conseguimos mais perceber que o bandido
faz a mímica [6]
da sociedade que o gera, corremos o risco de fazer uma
leitura falseada destas narrativas. Gostaríamos de comentar,
a seguir, as maneiras que a literatura da defesa vai
ligar o bandido aos valores da sociedade excludente. Invariavelmente
este vínculo é construído através de uma crítica econômica:
questionamento do trabalho, questionamento do consumo.
À primeira vista o bandido aparece como um não-trabalhador,
o malandro que se opõe aos “otários” e “manés”. Isto, no entanto,
seria apressado. Na verdade, o não-trabalho, a não-produtividade
seria apenas um estágio inicial da caracterização do bandido.
Apenas inicialmente ele está fora das relações de capital,
seja por uma crítica ao trabalho assalariado (caso típico
em Paulo Lins), seja por uma impossibilidade de se empregar
(típico em Ferréz). No momento em que é feita a escolha pela
bandidagem, o excluído se torna um “trabalhador do crime”.
Será uma afirmação obsessiva da literatura da defesa a
comparação irônica da atividade criminosa com os ramos legítimos
de atividade profissional. Há como que um nivelamento (ético
e existencial) quando, por exemplo, um traficante é comparado
a um empresário, tendo de enfrentar problemas de competitividade,
investimento, promoção, etc. O exemplo mais acabado deste
nivelamento estará em “Matador”, de Patrícia Mello, quando
o protagonista, chefe de um grupo de extermínio a serviço
de empresários, é agraciado com o prêmio “Homem do Ano”.
O romance é exatamente a narrativa da ascensão do matador,
seu reconhecimento pela sociedade produtiva, assim como seu
enriquecimento e a conquista de bens simbólicos que indicam
sucesso: carro, casa, roupas, coisas que, antes de sua queda,
o tornarão desejável para a sociedade que o homenageia, culminando
na conquista de uma jovem bela e “sarada”, uma princesa. O
tema será retomado em outras obras do gênero, em alguns contos
de Bonassi e de Aquino, em “Cidade de Deus” de Lins e, especialmente,
em “Manual prático do Ódio”, de Ferréz, uma longa narrativa
do desemprego e da exclusão em que o “vencer na vida” é invariavelmente
relacionado ao derramamento de sangue.
Em “Cidade de Deus” o bandido-empresário é desenhado em tons
tragicômicos. Através da oposição entre Pardalzinho e Zé Miúdo
podemos perceber com mais clareza o quanto o tratamento do
banditismo está relacionado a uma crítica irônica à ideologia
do sucesso. Pardalzinho é o “bom bandido”, aquele que teve
sua cota de mortes e, após ter adquirido dinheiro e poder,
planeja se aposentar a usufruir da riqueza. Já seu parceiro,
Zé Miúdo, deseja sempre aumentar seus lucros, o que define
suas ações. Sua ambição é análoga à de qualquer empresário
e está por trás da indiferença que demonstra em relação àqueles
que mata. A despreocupação de Pardalzinho e a ambição de Zé
Miúdo geram constantemente atrito entre os dois. Pardalzinho
acabará sendo morto por acidente, em uma manifestação de desorganização
sistêmica que a cultura da violência traz.
A descrição do dia-a-dia dos bandidos constrói uma duplicata
da sociedade que não é excluída. Seus elementos fundamentais
estão todos representados: a alienação do trabalho, a reificação
e a indiferença e, acima de tudo, a importância do consumo.
O bandido é um símbolo da sociedade excludente não só porque
faz a mímica daqueles que a comandam, mas, acima de tudo,
porque em uma comunidade de excluídos é um dos poucos que
pode consumir. Tão importante quanto a brutalidade para a
caracterização dos bandidos é o catálogo de seus bens: suas
motos, seus carros, seus aparelhos, seus churrascos, suas
roupas, e, claro, suas armas. Uma longa lista de posses, geralmente
com nomes em inglês. O bandido faz a mímica da sociedade de
consumo também em outro nível, na medida em que suas relações
e inserção são sempre reificadas: seu poder é baseado nas
armas, de um lado, mas o quinhão de poder legítimo, não violento,
que possui vem exatamente do dinheiro que consegue disponibilizar,
sem o qual não seria uma figura admissível.
Temos consciência de que as idéias expostas neste artigo são
bastante polêmicas, e que o alcance do que afirmamos tem de
ser restringido ao universo da representação, da crítica cultural,
da intervenção na cultura através da revisão de certos universos
simbólicos. O bandido destas narrativas não corresponde necessariamente
à realidade do banditismo. No entanto, os desvios e exageros
que lemos, para além de seus objetivos estéticos, têm um sentido
de crítica à histórica desigualdade da sociedade brasileira.
O bandido, repetimos, é um símbolo acabado da exclusão porque
é seu produto mais perfeito: sua vítima mais sofrida e seu
defensor mais ferrenho. No projeto crítico desta literatura
da defesa falta ainda preencher a lacuna (o abismo) que,
para além da negação do existente, fornecesse também um projeto
para outro mundo. Esperamos ansiosamente pelo desenvolvimento
desta literatura sobre bandidos, para, quem sabe, em algum
momento ver surgir um anti-bandido.
BIBLIOGRAFIA
(Alguns
dos livros que estamos assinalando como “Literatura da Defesa”)
AQUINO,
Marçal. Faroestes. São Paulo: Ciências do Acidente,
2001.
. O amor e outros objetos pontiagudos: contos.
São Paulo: Geração
Editorial, 1999.