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Literatura e Autoritarismo
Dossiê "Escritas da Violência II"
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê  

AS VIOLÊNCIAS EM PARQUE INDUSTRIAL E A FAMOSA REVISTA, DE PATRÍCIA GALVÃO

Larissa Satico Ribeiro Higa1
Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar os projetos ideológicos das principais obras ficcionais de Patrícia Galvão: Parque Industrial (1933 – publicada com o pseudônimo Mara Lobo) e A Famosa Revista (1945 – escrita em parceira com Geraldo Ferraz). Acredita-se, pela análise temática dos textos, que esses projetos sejam moldados pela exposição e crítica a algumas violências que Pagu queria denunciar em sua escrita. Assim, no romance proletário são trabalhadas as violências de gênero e as de classe, imprimidas pelo Estado burguês, principalmente, e no segundo livro a violência explícita é aquela cometida pela direção stalinista do Partido Comunista e pela própria Internacional Comunista (IC) da época.
Palavras-chave: Violência; Patrícia Galvão; Partido Comunista Brasileiro (PCB)
Abstract: This article aims to present the ideological projects of Patrícia Galvão’ s major ficcional works: Parque Industrial (1933 - published under the pseudonym Mara Lobo) and A Famosa Revista (1945 - written in partnership with Geraldo Ferraz). By the thematic analysis of texts, it is believed that these projects are shaped by the exposure and criticism of the violence which Pagu would like to denounce in her writing. Therefore, in the "proletarian novel" she workes with the violence of gender and class, engendered especially by the bourgeois State, and in the second book the explicit violence is the one committed by the Stalinist Communist Party and by the Communist International (CI) of that time.
Keywords: Violence; Patrícia Galvão; Brazilian Communist Party (PCB)

1. Introdução
As principais obras literárias de Patrícia Galvão, mais conhecida como Pagu, sempre estiveram impregnadas dos questionamentos sócios-políticos em que a autora estava imersa no momento em que as concebia. Assim ocorre com Parque Industrial, que trata da vida das trabalhadoras do Brás, no início de sua industrialização, e A Famosa Revista, cujo tema central é a crítica ao Stalinismo, traçada a partir da desilusão de uma das personagens principais com a militância, tratada metaforicamente.
O contexto de produção explicado pela própria autora mostra a importância concedida à sua matéria. Com relação ao primeiro romance, Patrícia afirma, na autobiografia2 publicada postumamente: “Pensei em escrever um livro revolucionário. Assim nasceu a idéia de ‘Parque Industrial’. Ninguém havia feito literatura nesse gênero. Faria novela de propaganda com pseudônimo, esperando que as coisas melhorassem” (p.112). Afastada do PCB dada à política de depuração dos elementos pequeno-burgueses, Pagu resolveu trabalhar intelectualmente, com o pseudônimo Mara Lobo, fazendo apologia ao partido.
Em relação ao livro escrito a quatro mãos, declarações posteriores dos autores evidenciam suas pretensões. Patrícia, em artigo publicado na seção no jornal A Tribuna de Santos explicita que em A Famosa Revista: “O tema permanece com todas as suas linhas marcantes, no mesmo plano em que foi lançado sobre a história de um partido político, de uma corrupção, de uma distorção ideológica...E há uma história de amor à margem, heróica e transcendente, tramada em imagens que não raro ocupam capítulos inteiros.” (Campos, 1987, p. 114). Além desse depoimento, Geraldo Ferraz, em entrevista concedida à escritora Edla Van Steen já em 1981 esclarece: “Nós combinamos de escrever um livro porque queríamos produzir uma sátira contra o partido, de uma forma romanciada, com incidências no plano nacional e no plano internacional” (Campos, 1987, p. 115)3.
A guinada ideológica da autora - expressa também na fatura dos livros, dada a aproximação e posterior distanciamento ao realismo socialista - pode ser mais bem entendida com as considerações traçadas em Paixão Pagu. Nesse sentido, faz-se importante uma leitura dos textos ficcionais que leve em conta suas relações com a história de vida de Patrícia Galvão e a História política do Brasil, em especial a do Partido Comunista Brasileiro.

2. As violências em Parque Industrial
Parque Industrial inicia-se com uma notícia sobre a “ESTATÍSTICA INDUSTRIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO”, no ano de 1930: devido à crise econômica de 1929, os lucros da produção fabril haviam decaído a partir de outubro daquele mesmo ano.4 Esse anúncio apresenta o momento histórico, de fragilidade da economia capitalista, em que se baseará a narrativa do romance. A partir desse pressuposto, o narrador aponta mais especificamente para os enredos e personagens de que se ocupará seu livro panfleto, com a seguinte declaração: “A ESTATÍSTICA E A HISTÓRIA DA CAMADA HUMANA QUE SUSTENTA O PARQUE INDUSTRIAL DE SÃO PAULO E FALA A LÍNGUA DESTE LIVRO ENCONTRAM-SE, SOB REGIME CAPITALISTA, NAS CADEIAS E NOS CORTIÇOS, NOS HOSPITAIS E NOS NECROTÉRIOS.”(Galvão, 2006, p.16)
O conjunto dos elementos - a notícia sobre a crise, e o esclarecimento de um narrador enfático, cujo discurso se dá em caixa alta - que antecede a ficção em si é importante para que o leitor atente-se à conexão que se pretende entre a realidade histórica e a representação artística. Além disso, outras três questões sobre o próprio livro são esclarecidas: ele versará sobre a história de violência e opressão sofrida pela “CAMADA HUMANA QUE SUSTENTA O PARQUE INDUSTRIAL”; utilizará uma linguagem ao mesmo tempo coloquial, já que essa população “FALA A LÍNGUA DESSE LIVRO”, e panfletária, dada a postura de delação do narrador, e apontará para a importância da cidade de São Paulo e dos diversos espaços que ela comporta (“CADEIAS”, “CORTIÇOS”, “HOSPITAIS” e “NECROTÉRIOS”) para construção da trama.
A apresentação do livro é sintoma da consciência de Pagu em relação ao papel do intelectual frente à conjuntura do momento, marcada pela crise do liberalismo e ascensão do fascismo em âmbito mundial e principalmente pelo Varguismo em âmbito nacional. Muitos de seus contemporâneos escritores tiveram a semelhante percepção, representando em suas obras os marginalizados da sociedade, revoltados (como é o caso de Cacau (1933), de Jorge Amado) ou não (como Os Corumbas (1933), de Amando Fontes) com sua condição social. De acordo com Bueno (2006, p. 159), é justamente com a publicação quase simultânea desses dois últimos livros e de Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, que se dará o início do debate sobre o gênero romance proletário.
Diferente do romance tradicional, o proletário de Patrícia Galvão tem como personagem principal uma coletividade de trabalhadores, com especial ênfase às mulheres desse estrato social. Nos dezesseis capítulos que compõe o texto, o narrador se aproxima dos personagens pela linguagem coloquial utilizada e focaliza cenas de exploração sofridas cotidianamente, seja no ambiente público ou privado. A descontinuidade entre as cenas e capítulos, dada pela técnica modernista de fragmentação e colagem, não deixa com que o fio narrativo linear5 se perca totalmente, o que pode ser percebido pela movimentação progressiva, ainda que precária, de alguns personagens.
Os primeiros capítulos, Teares e Trabalhadoras de agulha contextualizam as relações de poder nas fábricas de tecido no Brás e nas oficinas de costura no centro da cidade. Nesses locais os trabalhadores são agredidos por seus patrões e patroas: depois de um momento de distração dos funcionários, o chefe de oficina os repreende: “-Malandros! É por isso que o trabalho não rende! Sua vagabunda!” (Galvão, 2006, p.19); ao declarar a necessidade do serão para aceleração da produtividade, a dona do ateliê nega a ausência de uma costureira que precisava cuidar da mãe: “-Você fica! Sua mãe não morre por esperar umas horas” (Galvão, 2006, p.25). Também nas casas particulares há assédio, inclusive sexual, do trabalhador, como é o caso de Ming, a empregada chinesa de Alfredo que tem de limpar o quarto do Hotel Esplanada e dar ao patrão “chá com beijos” (Galvão, 2006, p. 56).
Além da relação patrão-empregado, o próprio avanço da técnica inerente à cidade moderna determina a opressão desses trabalhadores. A fábrica, a “penitenciária social” (Galvão, 2006, p. 18), é “o símbolo e o agente da modernização do mundo: um símbolo nada positivo, mas, muito pelo contrário, de opressão e desumanização, triturador da vida, do tempo e da identidade do trabalhador” (Guedes, 2003, p. 115). Além disso, o moderno bonde é “o camarão capitalista” (Galvão, 2006, p.17) e os automóveis, as “baratinhas”, são sempre associadas ao poder burguês, sendo alvo da revolta dos proletários durante uma manifestação de rua: “Mãos robustas e mãos esqueléticas avançam para a limousine de luxo do grande industrial que está parada” (Galvão, 2006, p. 86). A delação da violência imprimida pelo descompasso entre o avanço da técnica e a melhoria da qualidade de vida da população em geral indicaria uma aproximação à visão de modernização conservadora de Florestan Fernandes, guardadas as devidas especificações históricas que diferenciam o processo de industrialização nos anos 30 e as mudanças sociais ocorridas a partir da década de 60.
A violência de classe pode ser percebida também fora do ambiente de trabalho, pois os burgueses de Parque Industrial usam o poder de sua superior situação econômica para violentar as jovens trabalhadoras, considerando-as meros objetos de seu desejo sexual, já que vão ao Brás, no carnaval, à procura da “carne fresca e nova” (Galvão, 2006, p.44). A ênfase dada ao retrato das mulheres trabalhadoras que são duplamente exploradas, pelo sexo e pelo trabalho, é recorrente ao longo do romance e indica o tipo de feminismo defendido pela autora. Além de tratar outras questões relativas à condição social da mulher (como o aborto, a homossexualidade, o abuso sexual e a prostituição), Pagu defende abertamente, através do narrador, um feminismo classista, criticando as feministas burguesas: “[Alfredo] Acorda com o alvoroço de mulheres entrando. São as emancipadas, as intelectuais e as feministas que a burguesia de São Paulo produz” (Galvão, 2006, 47). Mais tarde apresenta a seguinte situação e diálogos entre essas personagens:
“Ah! Minha criada me atrasou. Com desculpas de gravidez. Tonturas. Esfriou demais meu banho. Também está na rua!
O garçom alemão, alto e magro, renova os cocktails. O guardanapo claro fustiga em querer o rosto de mlle. Dulcinéia. A língua afiada da virgenzinha absorve a cerveja cristal.
- O voto para as mulheres está conseguido! É um triunfo!
- E as operárias?
- Essas são analfabetas. Excluídas por natureza.”(Galvão, 2006, pp. 77-78)
As feministas de elite da época eram as sufragistas, organizadas na Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) e lideradas por Bertha Lutz (Harner, 2003). O feminismo classista de Pagu e a crítica sarcástica às burguesas estão presentes nos artigos escritos anos antes na coluna “A mulher do Povo”, pertencente ao pasquim O Homem do Povo, que a autora manteve com Oswald de Andrade de abril a maio de 1931. O principal artigo sobre essa questão é “Maltus Alem”, que defende a transformação social mais profunda, impossível de ser efetivada somente pela conquista do voto às mulheres alfabetizadas e pela maternidade consciente. Nesse sentido, a autora mostra, numa chave senso comum de esquerda, a superioridade de Marx em relação a Maltus e defende a idéia de que uma mudança estrutural da sociedade ajudaria a resolver algumas questões femininas, afirmando: “O materialismo solucionando problemas maiores faz com que esse problema (de natalidade) desapareça por si” (Andrade e Galvão, 1985, p. 18).
Não há possibilidade do feminismo se constituir como alternativa para a superação da situação de opressão em que vivem as mulheres. Ao invés disso, o caminho sugerido em Parque Industrial é o da revolução socialista que se daria através da organização da classe trabalhadora no Partido Comunista (ao qual há alusão nas páginas 22 e 101). Nesse sentido, as personagens militantes que apresentam espírito de sacrifício, como Otávia e Rosinha Lituana, são importantes para a fundamentação do projeto ideológico. São elas que nos capítulos iniciais travam diálogos sobre a luta de classes com seus colegas e que, mais para o fim do romance, organizam as graves deflagradas depois que se anuncia que são cortados “cinco por cento do salário miserável” de “oitenta mil operários” (Galvão, 2006, p. 76). O acirramento da luta de classes é acompanhado pela crescente conscientização de personagens como a proletária Matilde e o traidor de classe Alfredo.
A revolta dos oprimidos é acompanhada por nova violência do Estado burguês através de seu aparelho repressivo policial. Durante as greves, o trabalhador Alexandre é morto e as principais dirigentes, Otávia e Rosa Lituana são vítimas do que Pinheiro (1991, p. 48), em sua análise a respeito da perpetuação do autoritarismo no Estado brasileiro em face das mudanças institucionais, chama de estado de exceção paralelo: a primeira é desterrada, para a Colônia de Dois Rios, e a segunda é presa e deportada. Essas práticas repressivas foram comuns em nossa História nacional desde o início do século e que foram aprimoradas por Getúlio Vargas.
Apesar das adversidades da luta proletária, o enredo de Parque Industrial apresenta uma visão positiva tanto do PCB quanto da organização dos trabalhadores. Há certo alinhamento à idéia propagada pela III Internacional da época de que a crise de 29 desencadearia revoluções em várias partes do mundo, além de confirmar a concepção stalinista sobre o chamado terceiro período, em que haveria “derrocada do capitalismo e o desencadeamento de movimentos revolucionários em todas as partes do globo, nos países coloniais inclusive.” (Del Roio, 1988, p.147). Esse otimismo é percebido na passagem:
“A burguesia perdeu o próprio sentido, o proletariado marxista, através de todos os perigos, achou o seu caminho e nele se fortifica para o assalto final. Enquanto as fêmeas da burguesia descem de Higienópolis e dos bairros ricos para as farras das garçonieres e dos clubs, a criadagem humilhada, de touquinha e avental, conspira nas cozinhas e nos quintais dos palacetes. A massa explorada cansou e quer um mundo melhor!” (Galvão, 2006, p.106)
Além da crítica às “fêmeas da burguesia”, há no excerto uma clara demarcação dos espaços geográficos destinados às diferentes classes sociais na cidade. Enquanto a burguesia mora em Higienópolis, no bairro Jardins ou no Hotel Esplanada, aos trabalhadores cabem as habitações coletivas no Brás. A separação classista desses diferentes locais é importante na compreensão da dinâmica espacial da cidade moderna, cenário do romance proletário. Há desconforto das personagens que transitam por lugares que não lhes pertencem e uma possível perda de espaço da burguesia pode ser apontada pelo fato de ser o décimo capítulo, Paredes Isolantes, o último local de domínio burguês a ser retratado. Depois dele, virão capítulos centrados nos acirramentos da luta de classes e nas greves operárias.
O trecho também trata da ascensão da conscientização do proletariado e da decadência da burguesia. O tratamento positivo dado à organização trabalhista e a linguagem em jargão político-partidário são motivos para uma sensível aproximação dessa primeira obra de Pagu à esquemática arte figurativa do realismo socialista proposta por Zhdanov no Primeiro Congresso dos Escritores Soviéticos em 19346. O controle artístico ditava, no entanto, que as obras partidárias deveriam apresentar a forma realista de narração, o que não acontece em Parque Industrial. Por mais que se aproxime dos fatos concretos que quer denunciar, o romance utiliza uma linguagem ágil, fragmentada, hiperbólica, metonímica (além da técnica de construção de cenas a partir de colagem) que foge ao realismo socialista e dá contornos particulares, no cenário nacional, ao romance proletário de Pagu.
Parque Industrial apresenta um enfoque no projeto ideológico, como percebe Lafetá (2000) na literatura brasileira dos anos 30, mas mesmo assim utiliza alguns preceitos formais inerentes ao experimentalismo da fase heróica do Modernismo. Já de acordo com a análise proposta por Bueno (2003), que não considera a continuidade entre a literatura de 20 e 30, o romance proletário, por um lado, incorporaria o princípio realidade, de Ernest Bloch, pertencente aos intelectuais descrentes, cuja formação se deu pós-guerra. Por outro, apresenta uma esperança na organização do proletariado para a revolução socialista, o que leva o narrador de Pagu a apontar uma transformação da crise econômica que anunciara, na apresentação, em crise revolucionária, nos últimos capítulos.

3. As violências em A Famosa Revista
Em A Famosa Revista, os narradores também tecem o primeiro parágrafo em tom explicativo:
“Esta é a História de amor de Rosa e Mosci: o protesto e a pedrada à voragem que proscreveu o amor. Quiséramos páginas claras de vida, cristalizadas à margem de um tempo achatado em planícies cortadas por trechos pantanais. Cristalizadas, irredutíveis. Na verificação, porém dos dados do drama protesto e a pedrada dirigidos à voragem passaram pela provas ásperas e amargas e nas asas do sonho ficaram feridas e chagas, manchas e cicatrizes.” (Galvão e Ferraz, 1959, p. 111)
A história do casal Rosa e Mosci, de acordo com os narradores, não será contada em páginas “claras de vida”, “cristalizadas, irredutíveis”, mas será marcada por experiências que deixaram nos personagens “feridas e chagas, manhas e cicatrizes”. A enunciação está de acordo com o tema central da obra, que consiste na desilusão da funcionária Rosa com seu trabalho na engajada Revista que - de acordo com os esclarecimentos dos autores e a aproximação do texto à História – consiste em metáfora do PCB. O projeto ideológico do livro é baseado, portanto, na delação das violências dessa organização que imprimem na personagem desiludida um estado melancólico e contribui para a alteração da construção narrativa.
O primeiro capítulo do livro, Paralelas I, serve para que tenhamos conhecimento do personagem Mosci, que se encontra perturbado psicologicamente pela separação de Rosa: sua caracterização se dá pela ausência e perda da amada. Essa perturbação é transposta para a estrutura narrativa em terceira pessoa e as cenas ficam confusas, a linguagem truncada. No segundo capítulo, Paralelas II, tem-se a apresentação de Rosa e de uma cena que acompanha boa parte da trajetória da personagem, a do despenhadeiro: “Não chegou a ser despedaçada nas arestas do monte Roko do Japão porque sempre houve uma vara. Teria se transformado num bolo de carne enfeitado com pedaçinhos de osso, se não houvesse a vara” (Galvão e Ferraz, 1959, p.119). A imagem das pedras soltas, que rolam sob os pés da personagem e a fazem cair no precipício, é retomada pelo menos dez outras vezes e indica sua situação de instabilidade e progressiva sensação de falência com relação ao trabalho na Revista. Por fim, no terceiro capítulo, Horos, tem-se a separação definitiva do casal e a escolha de Rosa pelo interesse coletivo, em detrimento de seu relacionamento com Mosci.
O quarto capítulo, chamado As Cem páginas da Revista, baseia-se na busca de Mosci e de sua vizinha Tribli por Rosa, desaparecida há muito dado o exaustivo trabalho. Trata-se da mais extensa e importante parte da obra, uma vez que nela são ressaltados alguns traços na organização interna da Revista que muito se assemelham ao Partido Comunista da época e às violências cometidas pela direção Stalinista. Nesse momento a narrativa é clara e organizada, uma vez que os narradores se aproximam do modelo cartesiano e têm domínio da matéria narrada: “Enquanto ocorria o que contamos no capítulo precedente” (Galvão e Ferraz, 1959, p. 174). A clareza formal serve à expressão da violência sobre a qual o leitor não pode ter nenhuma dúvida.
Rosa aparece nas Cem Páginas pela primeira vez numa reunião com chefe Dacier e o funcionário Darien: “Rosa se irritava. Para que aquela proposta controvérsia sem sentido entre três pessoas a respeito de um plano estabelecido pela direção da Revista e que seria sem dúvida posto em prática aprovassem ou não o que estava traçado?” (Galvão e Ferraz, p. 118). Uma das características do PCB era justamente sua centralização pela Internacional Comunista (IC), que traçava estratégias de luta incompatíveis com as realidades dos países latino-americanos. Havia “submissão organizativa das sessões nacionais à direção centralizada de Moscou e imposição do modelo bolchevique de partido” (Pinheiro, 1991, p.49), facilitadas pela regra estatutária de que as sessões nacionais deveriam realizar seus congressos depois do Congresso da IC, para melhor aplicação das diretrizes. Além disso, os PCs dos países latino-americanos poderiam receber a qualquer momento agentes plenipotenciários do Comitê Central da Internacional Comunista (CEIC) que, no livro são os representados pelos “acionistas” da Revista.
A representação da submissão do PCB à IC se repete quando um funcionário afirma que o artigo de fundo da Revista “vem de fora em muitas línguas. Não nos cabe aqui discutir, mas apenas aceitar a orientação” (Galvão e Ferraz, 1959, p. 144). Mais tarde Mosci reflete: “o artigo principal como Lecopi o revelara vinha pronto com a orientação, de fora. Era só aceitar a orientação. Qualquer grão de aço atirado na enorme engrenagem podia rebentar tudo”.(Galvão e Ferraz, 1959, p. 145). Há também a passagem relativa à mudança de orientação, que parte do recebimento de um telegrama e é “Unanimemente aprovada, cegamente aceita. Os grandes acionistas sabiam o que estavam fazendo” (Galvão e Ferraz, 1959, p. 178).
O tratamento verticalizado e as censuras internas como meio de controle ideológico também são características atribuídas à instituição jornalística. Sua ortodoxia é traduzida nos sete pecados capitais que a regem: “desobediência, rebeldia, pusilanimidade, negligência, hesitação, traição e sátira” (Galvão e Ferraz, 1959, p.165). A apresentação de alguma dessas características levaria à demissão sumária de qualquer funcionário. Nesse sentido, A espionagem, que se dá através do “Comitê de Escuta”, também aparece como fator a ser delatado. De acordo com as observações de Mosci:“o bureau central era situado num compartimento de vidro, favorecido por alguns espelhos sistematicamente dispostos de maneira que não se escapava um movimento dos funcionários por todo o espaço do salão”. Mosci percebe também na Revista uma câmera e afirma que “a organização ganhava bastante com aquele brinquedo mecânico de espionagem” (Galvão e Ferraz, 1959, p. 140).
Na autobiografia Patrícia Galvão conta ter feito parte do Comitê Fantasma e confirma a existência de um bureau de contra-espionagem que controlava os próprios membros do Partido que tentavam “se opor ou que eram suspeitos de divergir da IC” (Ferraz (org.), 2005, p.124). Pagu relata que a todo tempo trabalhava sob a vigilância de membros superiores do PCB, pois esses suspeitavam de sua origem pequeno-burguesa e de sua relação com intelectuais, como Oswald de Andrade (“Ia começar o trabalho sob controle persistente de um companheiro de Partido” (Ferraz (org), 2005, p. 95). A imposição da vida partidária sobre a vida pessoal dos militantes se traduz nas permissões que os mesmos deveriam solicitar à cúpula partidária para travar relações íntimas com terceiros. Existiam assim os aparelhos (Rangel e Cortes, 2000, p.208), que eram as casas de casais militantes, casados ou não, mas que perante à sociedade, mantinham aparência familiar para não criar suspeita sobre suas ilícitas atividades subversivas. Em A Famosa Revista, Rosa mora com outro funcionário, apesar de não terem relações afetiva.
A comprovação da proletarização dos militantes - necessidade estabelecida pela política obreirista, que marcou a mudança de orientação da III Internacional a partir do final dos anos 20 e que serviu para limar os trotkista dos cargos de poder dos partidos comunistas – é outra questão tratada na obra7. No Brasil, a aplicação dessa política geraria uma crise de direção, pois intelectuais que haviam fundado a Organização, como Astrojildo Pereira, foram substituídos por trabalhadores que não necessariamente eram tão competentes para a ocupação dos cargos (Freire, 2008). Alguns dirigentes dessa nova ordem, como o metalúrgico José Vilar e o padeiro Caetano Machado, que foram da secretaria-geral do PCB, são tratados por Pagu em sua autobiografia como seus superiores.
Na Famosa Revista, a política contra os intelectuais é afirmada por Dacier nos seguintes termos: “as profissões...intelectuais...deturpam o caráter das pessoas”(Galvão e Ferraz, 1959, p. 141). A proletarização foi vivida pela autora antes de ser admitida no partido. Pagu foi costureira, indicadora de lugares no cinema e metalúrgica, entre outras coisas, uma vez que a organização a proibira de trabalhar como jornalista na Agência brasileira e no Diário da Noite. Para a autora esse processo foi muito violento porque além das várias humilhações que passou à procura de emprego, teve de se afastar do filho Rudá, o que provocou um sentimento de culpa reafirmado em Paixão Pagu.
O machismo da Revista é alvo de outras críticas tecidas. A personagem Rosa é assediada por seus colegas de trabalho e Tribli por Dacier, que possui uma cama num compartimento de seu escritório, onde ele se reúne com as funcionárias. No entanto, o embate fica mais claro em alguns momentos específicos do enredo. Dado um problema financeiro, o alto escalão da Revista pede que Rosa se insinue sexualmente a um funcionário do Tesouro, com a finalidade de apossar-se do dinheiro que ele traz: “A funcionária Rosa é sedutora. Embarcando à noite no mesmo expresso durante a travessia poderia entrar na cabina do nosso homem (...)É fácil, não podemos lhe dar lições de coquetismo” (Galvão e Ferraz, 1959, p. 153). O controle exercido pelo PCB sobre suas militantes expresso nessa cena é percebido da notado maneira por Rangel e Cortes:
“as mulheres – quando foram objeto de discurso enunciado pela liderança pecebista – apresentaram-se preponderantemente como riscos ou fragilidades do Partido, de tal maneira que os militantes homens, com cargos de responsabilidade, dedicaram especial atenção na aprovação ou reprovação da nova militante, dizendo-lhe como deveria vestir-se, onde deveria trabalhar (ou procurar emprego) e com quem deveria ter relações mais íntimas” (Rangel e Cortes, 200, p. 205).
O mesmo tipo de tratamento atribuído às mulheres na ficção fora dado pelos colegas de partido a Pagu, como relatado no texto memorialístico. A violência máxima desse tipo se expressa no momento em que CM11, militante que pode ser uma alusão a Caetano Machado, pede a ela que se prostitua para obter algumas informações julgadas importantes à organização. É inclusive nesse momento que a autora traça o começo do processo de desilusão, que irá se concretizar após sua viagem a Moscou. Na ficção, o sub capítulo que se segue à solicitação feita pela cúpula a Rosa é o “Pedras soltas”, em que os narradores mostram a personagem lembrando longamente o ocorrido no monte Roko, como forma de marcar textualmente o processo de passagem lenta ao estado melancólico.
Apesar de em menor ênfase, outra crítica que os autores esboçam nesse livro é à arte stalinista, ao realismo socialista. A direção da Revista se coloca contra a arte abstrata, condenação tipicamente stalinista, e afirma que “a arte para nós é somente a tendência a favor de nosso objetivo, tendência se manifestando através das expressões de arte, e assim a literatura” (Galvão e Ferraz, 1959, p.145). Patrícia Galvão foi aguerrida combatente à arte dirigida nas colunas “Crítica Literária” e “Crônica literária”, que manteve no jornal A Vanguarda Socialista de 1945 a 1946. Em a entrevista concedida ao CEMAP, a respeito de Patrícia, Edmundo Dias afirma:
“Ela sabia que o conservadorismo na arte era sua contraparte da reação política do PC sob o stalinismo. Por isso foi das pessoas que mais se debateu contra o realismo socialista, escrevendo apaixonadamente muitas crônicas na Vanguarda, que eram verdadeiros manifestos contra o stalinismo.” (Facioli org.), 1985, p. 132)8
O rompimento completo com o PCB e alguns de seus motivos é também expresso pela autora no panfleto político Verdade e Liberdade, a propósito de sua candidatura à Assembléia Legislativa do Estado, pelo Partido Socialista Brasileiro, em 1950. Em termos literários, esse processo é representado pela pedido de demissão de Rosa à Revista. O momento estopim para isso é a morte da jovem Tribli, a vizinha de Mosci de quinze anos, que não concordava com as diretrizes da organização e acabou dirigindo o boicote de fundação de outro meio de comunicação chamado Revistinha. Essa passagem revela um pouco das execuções stalinistas, insinuadas ironicamente quando o chefe Dacier afirma:“cada um de nossos funcionários desfruta de plena liberdade até para se matar, quando é necessário (e uma sombra desceu sobre sua fisionomia), num caso de sabotagem aliás, por exemplo, subentende-se...” (Galvão e Ferraz, 1959, p. 141).
O livro escrito a quatro mãos já é, em si, um produto acabado desse rompimento total. Rosa, depois que nega a participação nessa esfera coletiva da vida, na qual havia baseado sua existência, torna-se melancólica e isso é novamente incorporado pela construção narrativa, subjetiva e complicada, após as Cem páginas, chegando até a apresentar o discurso em primeira pessoa momentaneamente no quinto capítulo, Intermezzo. Rosa reconcilia-se com Mosci e os dois passam a ter suas preocupações mais voltadas para o âmbito privado da vida.
A oscilação narrativa, assim como a mistura “das técnicas modernistas das novelas de vanguarda escritas nos anos 1920, do realismo social dos anos 1930 e do novo romance lírico” (Jackson, 1991, p. 300) mostra um tratamento formal nada convencional e bem distante do realismo socialista. Pagu parece ter inspiração na própria ruptura com o Stalinismo para embasar o tema e a fatura de sua derradeira obra literária, mostrando-se partidária de Trotski e Breton a propósito do Manifesto por uma arte revolucionária independente.

4. Considerações finais
A leitura dos textos aqui proposta procurou mostrar a guinada ideológica nas obras ficcionais de Pagu, a partir da mudança do foco das violências abordadas. O processo de desilusão com o PCB e as violências sofridas pela própria autora militante estão claramente expressas na autobiografia, cujo texto foi finalizado no cárcere em 1940 e endereçado ao então companheiro Geraldo Ferraz: “Aí você tem minhas taras, meus preconceitos de julgamento, o contágio e os micróbios” (Ferraz (org), 2005, p. 52). Paixão Pagu apresenta as causas que levaram à negação de um reconhecimento mínimo do partido, conseguido a duras penas: “A entrada no partido para mim era uma idéia que assombrava minha insignificância” (idem, p.81). Assim, militância e história de vida se encontram, pois
“a mobilização dos militantes inspirados no marxismo, sobretudo os comunistas, não se limita aos assuntos partidários ou a um ordenamento cognitivo da realidade, mas representa uma ordenação existencial e até certo ponto moral da vida do militante: biografia e história se encontram; o que é verdadeiro também é certo, e o sentido da vida e o sentido da sociedade se confundem” (Rnagel e Costes, 2000, p. 209)
A vida de Pagu era sua vida militante, como afirma nas memórias, e a ânsia pela luta contra as injustiças está bem apresentada por seus escritos, sejam eles jornalísticos ou ficcionais. Mesmo mudando o tema e a perspectiva política, a utilização da literatura como instrumento de denúncia às diversas violências é um fator que permaneceu imutável na elaboração artística de Patrícia Galvão, mesmo depois dos doze anos que separam Parque Industrial de A Famosa Revista.

Bibliografia

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1 Mestranda em Teoria e História Literária na Unicamp. Bolsista Fapesp. E-mail: larissahg@gmail.com.
2 Ferraz, G. G. (org.) Paixão Pagu: a autobiografia precoce de Patrícia Galvão. Rio de Janeiro: Agir, 2005.
3 Mais detalhes sobre essas declarações, assim como trechos delas, podem ser encontrados na antologia de Augusto de Campos: Pagu Vida e Obra. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
4 Hobsbawm, em “Rumo ao abismo Econômico” (In: A Era dos Extremos. São Paulo: Cia das Letras, 2008) nota que a maior conseqüência da crise mundial para o Brasil se deu no campo da agricultura, uma vez que eram os produtos primários sua principal fonte de exportação. No entanto, Parque Industrial, tendo como cenário a cidade moderna, exporá os efeitos da crise na produção industrial.
5 Thelma Guedes (2003, P.119), apresenta a seguinte reflexão sobre a questão da linearidade: “A estrutura temporal é atropelada, entrecortada, “montada” pelos pedaços dos enredos que vão se formando. Mas o movimento obedece sempre à linearidade. O tempo moderno é o tempo do trabalho, portanto linear. È o tempo da linha de produção”.
6 Há no enredo inclusive um momento de crítica aberta ao trotskismo, uma vez que Alfredo, acusado de filiação a essa corrente política, é devidamente expulso da organização na qual militava Otávia.
7 De acordo com Pinheiro (1991, p. 191), “A linha ‘classe contra classe’, que marcou a IC depois do VI Congresso, contribuiu para isolar as seções latino-americanas, condenando-as a uma esterilidade política que se agravou com a ausência quase total de autonomia na elaboração de análises”.
8 Esta entrevista está transcrita no livro Breton Trotski Por uma arte revolucionária independente, organizado por Valentim Facioli e também aparece nas análises de Thelma Guedes (2003, p 131).
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