Grupo de Pesquisa Literatura e Autoritarismo  |  Índice de Revistas  |  Normas para Publicação
Literatura e Autoritarismo
Dossiê Literatura de Minorias e Margens da História
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê nº 4 

A VIOLÊNCIA COMO FONTE DO PODER TOTALITÁRIO: WALTER BENJAMIN E FRIEDRICH NIETZSCHE

Ricardo André Ferreira Martins1
Resumo: O presente artigo tem por objetivo realizar uma leitura comparativa entre o texto de Walter Benjamin “Crítica da violência” ou “Crítica do poder” (Zur Kritik der Gewalt) e o “Segundo Tratado” de A genealogia da moral, de Friedrich Nietzsche. Pretende-se, com o estudo aqui apresentado, demonstrar a diferença de concepções de ambos os autores sobre o conceito de violência e sua legitimidade ou não como poder ou atribuição do Estado, pontuando a discrepância valorativa entre Benjamim e Nietzsche, sobretudo como fonte do poder totalitário.
Palavras-chave: Violência. Poder. Estado. Justiça. Totalitarismo.
Resume: Cet article vise à établir une comparaison entre le texte de Walter Benjamin, "Critique de la violence” ou “Critique du pouvoir" (Zur Kritik der Gewalt) et le "Second Traité” de la Généalogie de la morale, de Friedrich Nietzsche. On prétend, dans l'étude ici présentée, démontrer la différence dans les conceptions des deux auteurs sur le concept de violence et de sa légitimité ou non comme pouvoir ou rôle de l'Etat, en soulignant l'écart entre l’évaluation de BenJamin et de Nietzsche, essenti-ellement comme source du pouvoir totalitaire.
Mots-clés: Violence. Pouvoir. État. Justice. Totalitarisme.

O texto de Benjamin Zur Kritik der Gewalt (Crítica da violência ou Crítica do poder) já traz consigo uma miríade de significados a partir mesmo da tra-dução de Gewalt, termo alemão cuja ambigüidade permite sugerir tanto “vio-lência” quanto “poder” ou, que o seja, alguma espécie de “força legítima”, ao modo do pensamento weberiano, que alude ao exercício legítimo da força por parte do Estado (Staatsgewalt), fazendo uso, para tanto, da lei e do direito. Trata-se de um ensaio complexo, com muitas possibilidades de interpretação, embora o objeto de reflexão seja bem claro e nítido. É fato que a análise do tema duplo sobre a vio-lência e do poder, neste texto em particular, traz consigo o reflexo da crise política do modelo europeu de democracia burguesa, de concepção liberal e parlamentaris-ta, ao que se deve adicionar o conceito de direito que se confina àquele. Estamos diante de um momento histórico preciso, no qual, com a Alemanha derrotada, um cenário desenha-se com todas as suas tintas carregadas, pois a Europa acaba de sair de uma guerra e, com uma grande crise instalada, outra guerra vem a caminho. É o momento em que, com uma nação alemã política e economicamente arrasada, o anti-semitismo europeu a pleno vapor, fracassa o discurso pacifista, o antimilitarismo, a crítica da violência, sobretudo a violência que provém dos aparelhos jurídicos e policiais, enquanto recrudescem as manifestações a favor de um Estado com mais força e, portanto, violento. Ou seja, questões que tinham sido combatidas poucos anos antes, após a primeira grande guerra, voltam à baila: uso da violência jurídico-policial, discussão da pena de morte e do direito de castigar e impor sanções violentas por meio dos aparelhos estatais, enquanto mudam também as estruturas da opinião pública com a comunicação de massa. O modelo liberal e parlamentarista de discussão, deliberação e produção das leis, começa a ser questionado diante da opinião pública, cuja massificação através do rádio e outras mídias já é bastante expressiva. O presente artigo, entretanto, não intenta fazer um simples cotejamento do texto de Benjamin a partir de seus próprios pressupostos e argumentos, senão de um confrontamento com o pensamento nietzscheano sobre a violência e o poder, particularmente no Segundo Tratado de A genealogia da moral, livro no qual o filósofo alemão trabalha com a questão da origem, ou de forma mais precisa com o “surgimento” ou a criação dos conceitos valorativos de bem e mal, partindo da deturpação que sofreram as noções de “bom’ (nobre) e de “mau” (escravo). Nossa proposta, portanto, parte de um enfrentamento e não de uma simples abordagem de conceitos, a fim de pontuar a radicalidade e a diferença entre os pensamentos de cada um e suas respectivas concepções e posturas diante da violência e da crueldade, objetos com os quais constroem, ambos, uma reflexão acerca da legitimidade ou não de seu uso para atingir determinados fins.
De partida, deve-se considerar o primeiro conceito apresentado por Ben-jamin, o da tarefa de uma crítica da violência como a apresentação de suas relações com o direito e a justiça. Isto posto, cabe saber até que ponto, partindo da perspectiva benjaminiana, uma determinada causa pode efetivamente se transformar em violência e se esta, com efeito, é violenta somente no momento em que toca em uma dimensão ética, diretamente relacionada aos conceitos de direito e justiça. Considerando a necessidade de discutir a violência através de sua relação entre meios e fins, tomando ainda como ponto inicial a concepção de direito e ordem jurídica, fica evidente que Benjamin2 parece começar de uma preocupação aberta com a dimensão da moralidade da violência, ao se questionar se esta deveria ser procurada na esfera dos meios ou dos fins. Ao fazer esta escolha, aparentemente óbvia, de procurá-la na esfera dos meios, Benjamin reduz a violência, quase em si, a um meio, tornando este ponto um critério para a construção de sua crítica. Mas ao considerá-la um meio, o pensador judeu-alemão diz-nos, ao mesmo tempo, que ela somente o pode ser em determinados casos, quando meio para fins justos ou injustos. Ora, aqui está o nó inicial de toda a reflexão posterior, uma vez que se a crítica da violência estivesse implícita em um sistema de fins justos – o que o próprio Benjamin reconhece que não –, tal sistema conteria em si apenas o critério para os casos em que o uso da violência fosse necessário, e não como princípio mesmo da ação. Em tal sistema de fins justos, conclui Benjamin, não se poderia responder como a violência em si, qual um princípio e até mesmo fundamento da ação, poderia ser moral, ainda que utilizada para fins justos. Benjamin então se propõe a encontrar um critério mais exato, alguma distinção que pudesse ser encontrada na esfera dos meios, que não levasse em conta os fins que os movem e dos quais, em última instância, são ser-vos. Toda a reflexão de Benjamin, entretanto, assenta sobre o terreno de uma dis-cussão que parece querer contrapor-se ao uso da violência como meio para atingir um determinado fim, justo ou não. Discutir a legitimidade de determinados meios que constituem, afinal, a estrutura do poder e o próprio poder, pode ser, conquanto movido pelo desejo de extirpar a violência de seu exercício, apenas um pretexto ou alvitre para adentrar o terreno moral de um conceito: a justiça. Enfim, qual o conceito de justiça que move, entre as dobras do discurso, o esforço de Benjamin em fazer uma crítica da violência enquanto poder, do poder enquanto violência? É justamente na dificuldade de traduzir o termo Gewalt que repousam os ardis utilizados pelo pensador judeu-alemão para atingir um determinado fim, utilizando a crítica apenas como meio. Trata-se, portanto, de penetrar as camadas mais densas do discurso benjaminiano, a fim de vermos o que encontramos lá.
Uma oposição entre o direito natural e direito positivo, conquanto evidente, desde já pode ser um generoso engano, ao conduzir o leitor a um maniqueísmo cuja necessidade não se põe em discussão e, portanto, surge como um truísmo ou uma “verdade” posta e acabada, sobre a qual não repousam dúvidas ou questionamentos. A concepção de direito natural, contudo, utilizada por Ben-jamin, apresenta seus evidentes problemas, se partimos para uma leitura nietzscheana da questão. Segundo Benjamim, a violência, neste caso, seria um produto da natureza, uma matéria-prima em estado bruto a ser utilizada sem questionamentos de ordem moral, sem qualquer problema de natureza ética, desde que não houvesse um abuso vetorizado para fins injustos. Portanto, em uma concepção como esta, o poder seria adequado somente a fins naturais, e disto proveria a sua legitimidade, o próprio fundamento de sua ação. O exemplo apontado por Benjamin é o uso da violência no terrorismo, a partir de uma base ideológica que legitime, no direito natural, o uso de meios violentos para fins exclusivamente justos, como foi o caso da Revolução Francesa. Entretanto, tal contrato não pode se reduzir a um simples aparato ideológico, quando o que está em causa são os juízos valorativos de quem decide usar a violência como meio legítimo para atingir determinados objetivos, considerados justos por diversas razões que não somente as políticas, mas em muitos aspectos também em função de fins messiânicos ou religiosos. Outro caso apontando por Benjamin deriva de concepções que foram, em outro momento, adotadas e revigoradas pelo darwinis-mo, o qual considera a violência como meio adequado à natureza para atingir os fins vitais de procriação da espécie por meio da seleção natural e da sobrevivência dos mais fortes sobre os mais fracos. Neste ponto, antes de opormos esta tese à do direito positivo, convém que passemos à reflexão nietzscheana, pois aqui há um nó fundamental, um contraponto que, ao que tudo indica, parece não ter sido analisado a contento por Benjamin em suas considerações. Refiro-me aos con-ceitos de castigo e falta em Nietzsche, constantes a partir do terceiro afo-rismo do Segundo Tratado. Precisamente aqui, o filósofo alemão considera o asce-tismo e a questão da memória inclusos em um sistema de crueldade, quando se utilizava uma espécie de mnemotécnica para criar, na memória dos escravos das paixões e dos desejos, um estigma qualquer que pudesse manter acesa e viva a lembrança de algumas exigências da vida social que, sem tais meios violentos, cairiam no esquecimento. Nietzsche está se referindo aos primeiros momentos de nossa vida social, nos quais ainda não havíamos inventando todo um sistema de leis baseado na compensação e não em sacrifícios ou no castigo. Portanto, de sociedades mais primitivas, onde a imposição da lei, partindo de uma concepção do direito natural, era feita com o exercício legítimo da crueldade. Com isto, tal como na prática do ascetismo, certas idéias e noções tornavam-se indeléveis, fixadas e onipresentes com o fim de criar o temor, com o qual se criava também a veneração e o respeito pelas leis e mandamentos sagrados, que depois caíam nas mãos dos mais fortes, dos mais poderosos, da classe de senhores, como instrumento de seu poder. Nietzsche fala mesmo de uma hipnose do sistema nervoso e intelectual, através da qual qualquer outra idéia, principalmente a de dissenso ou divergência, pudesse ser suprimida, uma vez que, através dos castigos e das técnicas e formas de vida ascética impostos aos cidadãos comuns, as idéias de temor, respeito e veneração pelas leis tornavam-se “inesquecíveis” na memória daqueles homens dominados por seus medos, temores, paixões e desejos, possibilitando assim a obediência por meio da imposição de um flagelo ou de sua simples ameaça. Por esta razão, no direito ou na lei primitivos, baseados em princípios mais tarde codificados na Lei de Talião – esta última já com grande ênfase em noções de compensação –, sempre que se tornava necessário criar uma memória indelével, seguia-se um derramamento de sangue, morte de mártires, sacrifícios rituais, holocaustos, compromissos os mais terríveis (sacrifício de crianças, primogênitos, virgens), além de mutilações horrendas, como a castração, amputação de membros, empalamentos, estripação, esquartejamentos. Até hoje, em muitas culturas, este sistema de crueldade conhece a sua terrível eficácia, pois como observa o filósofo alemão, a dor sempre foi a mais eficaz e poderosa criadora de memórias, pois ela está na raiz do temor. O terrorismo vale-se deste instrumento para também criar uma memória indelével e assim propalar o temor às suas causas e argumentos ideológicos, utilizando a violência como um meio que pode chegar, em não raros casos, às raias da crueldade e do puro sadismo. O fato é que sempre houve homens, como observa Nietzsche, de natureza mais violenta e guerreira, entretanto de conduta nobre, em paralelo a outros, de têmpera mais cruel e sanguinária, que se alegram e têm prazer em ser cruéis e violentos.3 Difícil dizer qual dos dois mais abundaram e foram mais presentes ao longo da longa história da crueldade. Entretanto, a perda da memória em relação às leis sempre acarretou à humanidade conseqüências terrificantes, pois a enorme duração histórica das leis relativas aos castigos, conforme observa Nietzsche, permite um critério com o qual podemos compreender enfim as terríveis dificuldades que as sociedades encontraram para vencer o esquecimento e fixar alguns elementos, princípios e exigências da primitiva vida social que, considerados tais aspectos em si, com efeito vivia agitada pelas freqüentes convulsões e conflitos provocados pelos escravos da paixão, dos desejos e dos instintos plebeus a que tanto o pensador alemão se refere. O domínio dos instintos, portanto, é um passo fundamental para a instauração da vida social, sem o qual não é possível criar uma memória a respeito dos crimes e das penas. Uma simples consulta aos códigos antigos de penas e leis nos informa de todo o aparato de crueldade e violência que foi necessário para criar um povo “civilizado”, o qual aprendeu a domesticar seus mais baixos instintos, suas paixões mais violentas e irracionais, seus desejos mais animais e sua natureza mais bárbara e inculta. Não é necessário lembrar, com minúcias historiográficas, o grande empenho de Roma em fixar a sua cultura mais “civilizada” e “nobre” em oposição às hordas de bárbaros, povos incultos e violentos que viviam ao norte da Europa, esforço sem o qual não conheceríamos o mundo tal qual o vemos atualmente. Esta barbárie, entretanto, somente pelo uso da violência organizada e sistemática pode ser efeti-vamente contida entre os povos hoje considerados cultos e civilizados do velho continente, entre eles os próprios alemães ou os ingleses, que hoje não são capazes de se pensar como povos cruéis, insensíveis, violentos, ou muito menos como lassos, corruptos, imorais, desorganizados, passionais, brutalizados ou irracionais. Se, conforme Nietzsche, recuarmos a um passado onde o sistema de crueldade das leis, penas e castigos era mais evidente, não tardaremos a constatar o esforço que alguns entre os povos mais civilizados do mundo atual fizeram no sentido de dominar, pelos meios mais atrozes, violentos e cruéis, os instintos plebeus e mais indômitos, a fim de criar uma memória que fixasse a necessidade de um comportamento self-control.4 São estes homens, bárbaros e violentos, cheios de paixões, desejos e ódios, que são o objeto da anátema da lei e do exercício legítimo da crueldade e da violência em seu nome.
Com efeito, a história da supressão da violência e da crueldade do siste-ma penal é muito recente (FOUCAULT, 1987, p. 14). Na Alemanha, conforme Ni-etzsche, os antigos suplícios, como a lapidação – uma mó de moinho que caía sobre a cabeça do culpado – ou suplício da roda e do empalamento, o suplício de despedaçar por esquartejamento o supliciado, utilizando cavalos em corrida amarrados aos membros, ou ainda o emprego do azeite ou do vinho para ferver o condenado, a marca a ferro quente, o uso do chicote, o esfolamento, a excisão da carne do peito e untar o malfeitor com mel sob um sol ardente às picadas das moscas, são práticas que, em boa parte, começaram a ser abolidas somente no século XIX. Na França, por exemplo, a marca a ferro quente foi proibida apenas em 1832 e na Inglaterra em 1834. O esquartejamento, o suplício máximo dos traidores, em 1820 já não era mais aplicado em todos os casos de condenação (Idem, ibidem). A supressão do espetáculo da crueldade e da violência, a anulação da dor durante os processos, enfim, todo um afrouxamento do rigor penal, vai sendo posto em prática à medida de uma substituição do papel do carrasco entra em cena, e no seu lugar um exército de técnicos é posto no lugar: guardas, médicos, capelães, psiquiatras, psicólogos, educadores, assistentes sociais, advogados. O corpo, portanto, não é mais o objeto de suplício. Contudo, segundo Nietzsche, somente em virtude destes espetáculos de violência, dor e crueldade é que se pôde fixar na memória do povo algumas restrições, algumas promessas, algumas recusas à desobediência – uns cinco ou seis “não quero”, conforme o filósofo alemão –, com as quais se disciplinou, enfim, os instintos e as paixões a fim de que todos pudessem usufruir dos benefícios de viver em sociedade sem dar, sem freios, vazão aos seus desejos individuais. Somente por meio de uma memória como esta é que podemos finalmente nos mostrar “civilizados” e “razoáveis”, solícitos aos apelos da razão e do “bom senso”, ou mais especificamente ao poder dos que assim tinham dominado, com a força de seu próprio caráter, os estados mais primitivos da consciência humana. Não resta dúvida, portanto, que o mérito daquilo que chamamos “sociedade” consiste em uma imposição da crueldade e da violência para que a ordem e a racionalidade dominem; não há, porém, uma motivação direta entre a ética, a moral, a razão e o uso da violência e da crueldade como meios para conter o avanço e o domínio da barbárie, pois aqui não entra o conceito de justiça e, tampouco, de fins justos. Todo o corpo social é, na verdade, uma somatória de forças brutas em seu estado mais primitivo, que precisa ser contido com atrocidade e força para que, desse caldo de violência e dor, surja o que chamamos de “vida civil” ou de “sociedade”. As penas e os suplícios físicos são apenas suportes deste sistema de crueldade, que se abranda à medida em que os homens vão se tornando mais “razoáveis” e, por conseguinte, mais sensíveis aos espetáculos de violência e crueldade, os quais, apenas depois de um certo tempo de fixação das graves conseqüências de transgressão das regras e normas de convívio social, são abandonados em nome de práticas consideradas mais “civilizadas” e “racionais”, portanto mais “decentes” e “humanas”. Logo, Nietzsche parece estar com a razão quando afirma que todas as “coisas boas” que dispomos em sociedade nascem do horror e estão banhadas em sangue (NIETZSCHE, 2005, p. 60). Ao que parece, as considerações de Benjamin apenas tangenciam de raspão algumas das reflexões nietzscheanas, pois ao contrapor o direito natural ao direito positivo esquece ou, ao menos não dá conta, de que o poder não foi algo que se criou historicamente, como se tanto o direito natural quanto o positivo não fossem, eles próprios, instrumentos do poder. O poder é um dado da relação entre homens, de senhores e escravos, e não uma construção histórica pura e simples. Sua historicidade consiste, por conseguinte, no afrouxamento da violência para o exercício do poder; a primeira é um resultado direto do segundo, e não o contrário. A não ser que se esteja falando de certa idade de ouro, onde os homens ainda viviam em estado angélico ou em comunidades anarquistas e livres, toda a história da humanidade repousa sobre um oceano de atrocidades e sangue que somente depois de muito tempo conheceu, com o aumento do poder da comunidade, um abrandamento da violência como instrumento de poder. Quando a comunidade aumenta o seu poder, após o seu crescimento, não há mais necessidade em se preocupar tanto com as transgressões do indivíduo (Idem, ibidem, p. 69), uma vez que estas já não são mais interpretadas como um perigo ou subversão que precisam ser punidas com toda a cólera e crueldade possíveis. Não há mais necessidade de expulsá-los do convívio social, como “proscritos” ou párias, a comunidade não tem mais autoridade de agir de forma desenfreada e violenta como antes, os linchamentos públicos são proibidos, os apedrejamentos combatidos, porque reina uma paz social que permite o controle de transgressões isoladas de modo muito mais eficaz, uma vez que os aparelhos de repressão e controle da sociedade já estão em toda parte. Com o número de transgressores reduzidos, o grupo parte para a defesa do transgressor, atribuindo-lhe direitos contra a cólera das partes lesadas pelo seu delito, garantindo-lhe amplo direito de defesa e absolvição. Não é que a justiça aqui seja o critério dos fins ou legitimidade a dos meios, segundo Benjamin (1986, p. 161), mas tão somente a comunidade consente em que os meios empregados sejam menos violentos e cruéis em nome de uma ordem social onde é mais fácil administrar e conjurar as transgressões, pois a intenção é evitar distúrbios e encontrar soluções que busquem a equivalência das forças e a harmonia entre as partes (NIETZSCHE, op. cit, p. cit.) lesadas; o fim aqui é tornar a infração algo “expiável” e isolar o delito do delinqüente. Todo o sistema penal contemporâneo repousa sobre essa tese, porque as práticas punitivas deixam de ser violentas para se tornar mais pudicas. O objetivo não é mais tocar e infligir suplícios ao corpo do transgressor, mas evitá-lo ao máximo possível e, no seu lugar, atingir algo que não é o corpo, mas algo bem diverso e sem materialidade. Um novo sistema penal, em que a ênfase da crueldade e da violência conhece uma significativa diminuição, substitui toda a relação do castigo com o corpo, que dessa vez se vê privado, mais que em qualquer outro momento histórico, de sua liberdade de movimentos. No lugar dos suplícios com dores físicas horrendas, a prisão, a reclusão, os trabalhos forçados, a servidão aos régulos da lei, a interdição de domícilio, a deportação, com a exceção de algumas punições que não afetam diretamente o corpo, mas o patrimônio, como a multa ou as fianças. Privar o indivíduo de sua liberdade é, portanto, privá-lo ao mesmo tempo de um direito e um bem concedidos pela comunidade que, no exercício de seu poder aumentado, opta pelo enclausuramento ou pelo trabalho obrigatório no lugar das penalidades atrozes:
Segundo essa penalidade, o corpo é colocado num sis-tema de coação e de privação, de obrigações e de interdições. O so-frimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constituti-vos da pena. O castigo passou de uma arte das sensações insupor-táveis a uma economia dos direitos suspensos. Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará à distância, propriamente, segundo regras rígidas e visando a um objetivo bem mais “elevado”. (FOUCAULT, op. cit., p. cit.)
Portanto, quanto mais aumenta dentro de uma comunidade o poder e, em decorrência disto, a consciência individual sobre as penas, os crimes e as trans-gressões, o direito penal tende e mesmo não cessa de se afrouxar, de suavizar-se e tornar-se mais brando e casto, mais “civilizado” e menos “bárbaro”. Quando o con-trário acontece, ou seja, o poder diminui e a consciência individual sobre as penas, os crimes e as transgressões se vê solapada com a impunidade ou a ausência de rigor, ou ainda quando se manifesta uma fraqueza social ou um grande perigo a toda a comunidade, as formas mais cruéis e violentas de repressão ressurgem das cinzas da história e são reeditadas em leis e ações severas, que visam suprimir os direitos alcançados pelo cidadão comum com o aumento do poder do grupo. Desta forma, à medida que a riqueza e o poder da sociedade aumentam, os indivíduos vão se tornando mais “humanos” e mais dóceis, além da própria sociedade. Neste ponto, conforme observa Nietzsche, a sociedade e os credores que dela fazem parte tornam-se mais indulgentes, a ponto de se poder medir a riqueza e o poder pelo número de prejuízos e perdas que ambos, credores e sociedade, podem suportar sem suprimir o estado de direito; a sociedade adquire, então, uma consciência de seu poder e de sua extensão, a ponto de permitir que fiquem impunes aqueles que trazem prejuízos e cometem transgressões à ordem instituída pelo direito, ou simplesmente daqueles que não têm como pagar suas dívidas. Somente aos que estão além da justiça, porque são os verdadeiros instituidores e senhores do direito, é concedido este privilégio, que se chama graça, ou seja, o dom de autodestruição da justiça que, apesar de ter o poder de cobrar e punir, tem igualmente o poder de suprimir a si mesma, sem qualquer ônus (NIETZSCHE, op. cit., p. 70.).
Como corolário de tudo isto, percebe-se claramente que não é a justiça o critério dos fins, tampouco a legitimidade o dos meios, mas tão somente o poder e o seu exercício. É óbvio que fins justos podem ser alcançados por meios justos, porém somente quando a comunidade atingiu a ampliação e consciência de seu próprio poder, a ponto de utilizá-lo com a finalidade de suprimir a crueldade e a violência de seu sistema penal e de seu sistema de fins. Não se trata, portanto, de “legitimar” os meios por meio de uma justiça dos fins, no direito natural, tampouco “garantir” a justiça dos fins através da legitimidade dos meios, em um direito positivo. O direito positivo aqui não é nada mais que a acomodação da comunidade a este momento em que pode fazer um pleno exercício de seu próprio poder, aumentado ao ponto de se dar o luxo de não fazer uso dele ou de abrandá-lo quando não se faz mais necessário a aplicação de leis e penas atrozes. Isto pode ser demonstrado pela supressão ou diluição do papel do carrasco, substituído por aquela horda de técnicos, médicos e advogados mencionada linhas atrás, a qual tem o papel de privar o transgressor de todos os direitos sem, entretanto, fazer sofrer, procurando impor penas sem dor, a ponto de procurar fazer com que o condenado, mesmo nos casos em que sua vida será tirada, não sinta qualquer mal-estar, qualquer desconforto físico, ao menos. Como bem observa Nietzsche (NIETZSCHE, 2001, p. 39), a felicidade é a sensação de que o poder cresce, de uma resistência ultrapassada, de um obstáculo superado, de um estágio alcançado. Os senhores do poder jubilam e rejubilam quando podem fazer uso de seu poder de uma forma mais magnânima, sem infligir grandes suplícios, pois neste ponto não há mais justificativa em fazer uso da crueldade e da violência sem um sentido e um fim que ultrapassam a moralidade e a própria ética. Pode-se afirmar que estes senhores, acima de uma moral de servos e de escravos, estão também além da própria ética, uma vez que suas ações não são justificáveis pelo senso comum da comunidade, de sua moral de rebanho, porque estão também além desta, por eles criada. O fato é que fins justos e meios legítimos não estão em uma contradição inconciliável, pois estão confundidos não apenas em uma perspectiva nietzscheana, mas inscritos na própria lógica de manutenção e aumento do poder. Quanto mais o poder de uma comunidade aumenta, mais felicidade esta pode oferecer a si mesma, enquanto seus exércitos, guardando ao longe suas fronteiras, velam por seu sono e tranqüilidade.5
Logo, uma distinção entre o poder legítimo e um ilegítimo depende estri-tamente do sistema de poder adotado, com maior ou menor representatividade das vontades individuais ou coletivas, uma vez que a comunidade somente pode aí interferir na mesma medida em que o poder é distribuído por meio da sanção ou do voto. Por outro lado, isto não significa uma perda do poder ou uma diminuição nas mãos daqueles que realmente o detêm, mas apenas uma medida cautelar para que a gigantesca máquina estatal, seu poderio militar e econômico, não venha a ser dilapidada, sobretudo onde os regimes “democráticos” associam-se à marcha da prosperidade capitalista. Convém saber onde os senhores do poder realmente estão, o que, dependendo do sistema econômico, não é evidente, assim como uma distinção do poder legítimo e ilegítimo. Contudo, neste ponto Benjamin estabelece uma diferença capital, ao mencionar que o direito europeu tende a suprimir ou proibir a violência individual, uma vez que esta pode ameaçar a ordem jurídica e a manutenção do estado de direito (BENJAMIN, op. cit., p. 162). Deste modo, há um interesse em monopolizar a violência, no sentido de Gewalt, enquanto uso e manifestação da autoridade jurídica, controlando as manifestações violentas do indivíduo, não com a finalidade de proteger determinados fins, legais ou justos, mas o próprio direito. O que Benjamin aponta, necessariamente, é a colisão entre os fins naturais das pessoas individuais e os fins jurídicos (Idem, ibidem), inconciliáveis quando defendidos ou perseguidos com o uso da violência, cujo monopólio está nas mãos do direito – aqui seria bom talvez trocarmos a expressão por “poder legal”, instituído ou não pelo direito. Ora, o resultado disso é que, ao longo de sua história, o direito europeu considera o poder na mão do indivíduo um perigo, uma ameaça, uma subversão da ordem judiciária instituída pelo poder, independentemente de sua legitimidade ou não. Não é por outra razão que o poder saiu progressivamente das mãos dos monarcas e imperadores e foi cada vez mais dividido e partilhado entre os membros da comunidade. O monopólio do poder e da violência, nas mãos do indivíduo, é sempre uma ameaça à prosperidade da comunidade, cujo poder aumenta em paralelo com o seu enriquecimento. O direito, em tais condições, tem que ser positivo – e não natural – com a finalidade de assegurar a manutenção e a ampliação do poder comunitário, a continuidade e a preservação da ordem.
É no mínimo curioso, entretanto, observar como tal mudança se deu na esfera do direito. Como o uso da violência saiu progressivamente das mãos dos indivíduos, até o seu monopólio exclusivo pelo direito? Entramos aqui no conceito fundamental de “falta”, decorrente do conceito material de “dívida”, segundo Nietzsche (NIETZSCHE, op. cit., p. 61). Com efeito, durante muito tempo, o castigo violento se desenvolveu na história das penalidades como uma represália, pois o sentimento de justiça – e, portanto, de direito – se desenvolveu como um sentimento de compensação por algo infligido pelo malfeitor, castigado não em função ser culpado ou responsável pelo ato em si, mas pelo fato de que, através disto, compensava-se algo. A justiça aqui nascia então do sentimento de cólera, despertado pelo dano provocado. Nietzsche observa, com grande argúcia, que este sentimento de cólera, do qual nasce a necessidade de compensação – equivalente de “justiça” – é similar ao ímpeto colérico dos pais que castigam seus filhos, com a intenção de encontrar um reparação, um ressarcimento, uma indenização entre o prejuízo provocado, através da dor. O uso da violência pelo indivíduo, portanto, está na raiz de uma das relações mais antigas do mundo: a relação contratual entre um credor e um devedor. Esta relação, ainda aponta Nietzsche, é tão antiga quanto a noção de “pessoa jurídica” e tem sua origem nas formas mais primitivas de compra, venda e escambo. Está na raiz do comércio e do intercâmbio entre indivíduos, sempre à procura de formas de equilíbrio, proporção e igualdade em seus negócios, de forma que as partes não saiam lesadas. Por conseguinte, o castigo nasce de um sentimento de proporção, equilíbrio e compensação quando uma das partes rompe ou quebra, por qualquer motivo, a relação contratual. Não há aí nenhuma moralidade, somente uma forma de assegurar uma indenização, a título de ressarcimento do prejuízo provocado, restituindo assim o equilíbrio original das forças, a equivalência de riquezas, a compensação. Portanto, a “justiça” nasce de um sentimento de reparação de danos. Conforme o filósofo alemão, a equivalência sempre consistiu, em tais relações, em que uma vantagem fosse correspondente a um dano. O direito da indenização ainda não havia sido instituído e, desta forma, este “dano” apresentava-se sob a forma de um mandato ou título que autorizavam a crueldade sobre o devedor. O devedor, por sua parte, a fim de assegurar o compromisso, inspirando confiança em sua promessa e dando uma garantia de sua honradez e seriedade de caráter ao credor, comprometia-se a indenizá-lo de alguma forma, em caso de insolvência da dívida, com algo de sua propriedade – o cargo, a mulher, um filho, a liberdade,6 a vida –, equivalente à dívida contraída naquele momento. Isto também permitia ao devedor um compromisso de honra diante de si mesmo, pois em sua consciência fica gravada, de forma imperiosa e irredutível, a necessidade do pagamento, transformado em um dever. O credor, por outro lado, com isso ganhava o direito de infligir ao corpo do devedor toda sorte de humilhações, ultrajes e torturas físicas. Uma das formas de compensação consistia em cortar ou amputar partes do corpo que se julgassem proporcionais à dívida em espécie – o sentimento de “proporção” como “e-quivalência”. Nietzsche lembra que, conforme este modo de pensar, julgar e ver as dívidas contraídas, surgiu desde tempos remotos um direito relativo a cada uma das partes de um corpo, cada membro, com estimativas, avaliações precisas e atrozes sobre o valor de um dedo, uma orelha, um membro sexual, uma perna, um braço, uma mão, de modo que, com a dívida, o credor ganhava amplos poderes sobre o devedor, poderes de vida e de morte, de mutilação e deformação. Não se tratava de uma simples compensação em dinheiro, terras, bens ou algo semelhante – o que progressivamente mais tarde foi se instituindo –, mas apenas a concessão ao credor de um poder, quase ilimitado, sobre a materialidade corpórea do devedor, um direito em ser cruel e violento:
... concedendo ao credor certa satisfação a título de compensação e pagamento, a satisfação de exercer impunemente seu poder com relação a um ser privado de poder, o deleite de fazer o mal pelo gosto de fazê-lo, a alegria de exercer violência, alegria que será tanto mais intensa quanto mais baixa for na escala social a classe do credor, quanto mais humilde sua condição na organização social: ser-lhe-á tão saborosa como uma iguaria ou como um antegozo de condição superior. Pelo castigo de seu devedor, o credor participa do direito dos amos: ele também tem acesso enfim ao sentimento enobrecedor de estar no direito de desprezar e maltratar um ser que lhe é inferior – ou pelo menos, no caso em que o verdadeiro poder de castigar, a administração do castigo já tiver sido transferida à “autoridade”, contenta-se em vê-lo maltratado e desprezado (NIETZSCHE, op. cit., p. 63).
Este sentimento de compensação, atroz e violento, manifesta-se ainda hoje em todos os níveis sociais, sobretudo os mais baixos. Há todo um código de conduta entre marginais, assassinos e ladrões, portanto uma verdadeira ética de bandidos e indivíduos em situação de párias da lei e da ordem, que consigna o uso da violência e da crueldade como forma de compensação ou reparação por algum dano causado, dando provas de que as formas mais primitivas de “justiça” como “castigo” não são alheias à nossa cultura. Quanto mais humildes ou marginais são os indivíduos na escala social de valores, tanto mais o exercício da violência é cruel e sádico, tanto mais aqueles que a praticam são tomados por um sentimento de deleite e prazer em exercê-la, experimentando a sensação de gozar de poder e superioridade, ainda que momentânea e circunscrita, sobre pessoas destituídas de poder. A lógica dos sentimentos de vingança, logo, está na raiz de toda compensação ou castigo. Até mesmo Nietzsche se pergunta como fazer sofrer pode ser uma reparação a algum dano sofrido, uma compensação a uma dívida. A resposta, que está na origem mesmo do direito das obrigações, talvez repouse sobre o prazer, em grau máximo, que o sofrimento infligido ao devedor despertava no credor um sentimento de satisfação em ver sofrer e desfrutar deste poder impunemente, sem freios. Nisto consista uma verdadeira celebração, uma festa de crueldade, celebrada durante o casamento dos príncipes, acompanhado de execuções, enforcamentos, decapitações, torturas e mesmo autos-de-fé, sem falar das maldades domésticas. Mesmo no Brasil, durante a longa história da escravidão, os senhores de escravos davam livre vazão à crueldade sobre o corpo dos escravos, não apenas punindo, mas simplesmente fazendo-os sofrer, porque isto lhes dava o prazer de exercer um poder quase ilimitado sobre um ser humano destituído de qualquer poder sobre sua vida, corpo e existência:
Ver sofrer, faz bem; fazer sofrer, melhor ainda: aí está um duro princípio, mas um princípio fundamental antigo, poderoso, humano, demasiado humano, ao qual talvez subscrevessem os ma-cacos, porque, de fato, diz-se que com a invenção de bizarras cruel-dades já prenunciavam o homem e precediam sua vinda. Sem cruel-dade não há festa: é isso o que ensina a mais antiga e longa história do homem; no castigo há muita festa! (NIETZSCHE, op. cit., pp. 64-65)
Houve, portanto, um tempo em que a humanidade ainda não sentia ver-gonha de sua crueldade. Talvez, conforme observa Nietzsche, a vida fosse mais serena, mais calma e feliz que em nossos tempos, onde a violência e a crueldade são exercidas de forma hipócrita e, portanto, doente.7 Seria possível, desta maneira, discutir uma “função” histórica da violência, conforme o sugere Benjamin? Conforme observa Nietzsche, este prazer pela crueldade talvez não tenha desaparecido, apenas tenha se tornado mais sutil, mais imperceptível, um contraponto apenas em uma ética de escravos ou dominados pelo poder, que oferecem seus próprios corpos e vidas como “escudos”, ainda vulneráveis, à violência. Neste ponto, defrontamo-nos com a cultura da não-violência, uma forma que, como observa o próprio Benjamin, consiste não em uma violência às avessas, mas como um meio não-violento, uma negação do próprio poder que institui a violência como meio, um meio puro. Não se trata, segundo Benjamin, de um direito ao exercício do poder, mas de subtrair-se ao exercício do mesmo. A concessão do direito de greve, assim como toda forma de protesto não-violento, é um contraponto ao poder, que se vê subtraído do controle das vontades, coletivas ou individuais, por meio também de uma subtração: os dominados cruzam os braços, desobedecem e quebra a relação contratual entre credor e devedor, entre patrão e empregado, entre um lado mais forte e um mais fraco. O grevista, assim como o criminoso, é um “fautor de ruptura” (NIETZSCHE, op. cit., p. 69), um agente que se furta da ação, rompe o contrato e a palavra com o empregador, enfrentando os riscos daí decorrentes, visando os benefícios de um enfrentamento da autoridade, à qual originalmente se submeteu. Porém, o direito à greve é uma concessão feita pelo Estado com base talvez na interpretação de que ela é a simples omissão da ação, uma simples abstenção de agir, e não uma violência, sobretudo contra o estado de direito e, portanto, a ordem jurídica. Ora, segundo Benjamin, se tal concessão ampara-se neste fato, a oposição do Estado ao direito de greve não encontraria sustentação se os grevistas continuassem suas manifestações de forma pacífica, não-violenta, impossibilitando uma ação do poder no sentido de impedir a manutenção da greve. O Estado, em todo caso, poderia suspender o movimento grevista quando assim o quisesse, porém em um estado de ordem jurídica sua ação se vê limitada se não há legitimidade para o exercício legal da violência contra qualquer tipo de manifestação. Quando um dos lados depende de uma sanção qualquer que legitime o uso da força e da violência, a tendência é que ambos fiquem à espreita de algo que possa justificar uma retaliação. Se isto não se dá, este momento é provocado pela incitação à violência, com ações que visam despertar a cólera e o sentimento de vingança em ambos os lados, a fim de levá-los ao confronto.8 De qualquer modo, a violência aí está implícita, sutil sob um sistema de chantagem que é a greve, pois a omissão que ela representa pode se tornar violenta a qualquer momento, sobretudo quando se pretende al-cançar determinados objetivos, mais políticos que salariais. Enquanto os emprega-dores, entretanto, tiverem uma direta relação de dependência da força de trabalho de seus empregados e quanto mais qualificada for esta mão-de-obra – o que impossibilita uma demissão em massa, por exemplo –, a greve continuará sendo um instrumento de negociação e chantagem muito eficaz. Benjamin aponta, portanto, que há uma “função” na violência, partindo da reflexão de que ela é um instrumento ou meio para alcançar determinados fins e instituir novas relações jurídicas ou, no mínimo, modificá-las segundo os objetivos pretendidos. Restaria, neste sentido, discutir o conceito mesmo de “direito” e de “justiça”, em quais casos seriam aplicados, pois esta função da violência visa, segundo Benjamin, alterar a ordem jurídica instituída até então. Contudo, qualquer alteração na ordem jurídica dá-se em função de um equilíbrio de forças, que tendem a anular-se em confronto. Não esqueçamos que a assim chamada “função da violência” consiste somente um fato que nem todos queremos admitir: o direito, como tal, é um resultado da violência e somente podemos atingi-lo por meio de uma longa história de violência, tanto no direito natural quanto no positivo. Quando o poder da comunidade aumenta, o uso da força deixa de ser um instrumento nas mãos da lei, cujo poder concentra-se nas mãos de poucos que o detêm de fato, para se afrouxar e suavizar, permitindo assim que certas “forças”, antes anuladas ou silenciadas, possam se manifestar, pois em nada modificam a estrutura de poder, que agora já não necessita do uso da violência para manter. Mesmo quando esta noção de violência é usada para justificar os supostos atos de “terrorismo” com o objetivo de impor os interesses de uma minoria que se considera injustiçada, ou um grupo que se considera massacrado pelo poder, não se trata aí de um reconhecimento da “justiça”, mas tão somente duas forças que se confrontam quando não é mais possível a boa vontade entre poderes aproximadamente iguais – empresários que precisam da força de trabalho, empregados que necessitam de salários e condições dignas de trabalho –, havendo indisposição que impede as partes de “chegar a um acordo” por meio de um compromisso mútuo.
Neste ponto, Benjamin adentra no tópico mais delicado do artigo: a guerra. Para ele, a violência da guerra tanto é primitiva quanto arquetípica, pois serve de modelo e molde a qualquer espécie de violência, tanto para fins naturais quanto para aqueles de caráter legislador (BENJAMIN, op. cit., p. 164). Contudo, o autor toca na questão do direito de guerra, quanto às contradições inerentes à sua situação jurídica, tal como o observamos no direito de greve. O ponto conflitante aqui, explorado por Benjamin, são os sujeitos jurídicos que, ao sancionar o uso da violência, entendem como naturais os fins desta, sobretudo em situação de conflito armado. Porém, Benjamin nota que a violência da guerra quer atingir seus fins sem as mediações da lei, como uma violência que toma posse, assalta, destrói, e toma para si os despojos dos vencidos.9 O autor alude ainda à figura do grande bandido, como metáfora da violência que tenta fugir ao raio fixo do poder, sobretudo como uma manifestação capaz de instituir um novo direito, impondo temores ao Estado. Benjamin, porém, toma, exemplo mais radical de como a violência pode instituir novos direitos, a guerra de 1918, na qual a crítica do poder militar forneceu as bases para uma crítica da violência em geral, embora o desenho histórico do momento levará, de fato, a uma derrocada do discurso pacifista. Benjamin, entretanto, ainda está pensando em uma crítica de toda forma de violência, esperando que um controle sobre ela seja exercido, para que seu uso não possa nunca mais ser ingênuo ou tolerado. O ar combativo do autor surge em meio às frases do texto, em um sintoma claro do sentimento europeu em relação à guerra no preciso momento em que Benjamin escrevia este artigo, cujos efeitos não fincaram raiz a ponto de evitar uma reedição dos acontecimentos e atrocidades que o motivaram:
Se, na última guerra, a crítica do poder militar se tornou ponto de partida para uma apaixonada crítica da violência em geral – crítica que pelo menos ensina que a violência não pode mais ser e-xercida de forma ingênua ou tolerada –, o poder militar tornou-se ob-jeto de crítica não apenas como poder instituinte de um direito, mas foi julgado de maneira talvez ainda mais arrasadora quanto a uma outra função. Pois o que caracteriza o militarismo, que só chegou a ser o que é por causa do serviço militar obrigatório, é uma duplicidade na função da violência. O militarismo é a compulsão para o uso generalizado da violência como um meio para os fins de Estado (BENJAMIM, op. cit., p. cit).
Contudo, conforme o observa Nietzsche (NIETZSCHE, op. cit., p. 82), a sociedade não atingiu o seu atual estádio, com a instituição da lei e do direito, de uma forma progressiva ou voluntária, tal como Benjamin deixa transparecer por meio de uma crença de que o poder militar somente se tornou o que é graças à imposição do serviço militar obrigatório. Em primeiro lugar, o serviço militar ou exército, como instituição social, sempre existiu ao longo da história de maneira mais ou menos obrigatória, de acordo com as necessidades impostas de defesa e interesse de ampliação dos domínios dos senhores do poder. Não há em si uma “compulsão” para o uso generalizado da força ou da violência no poder militar, mesmo que se acredite que o “militarismo” como um conceito moderno (DERRIDA, 2005) – até que ponto o é? - ou uma prática qualquer através da qual os senhores apreciam, por ser um instrumento movido a violência, para atingir ou manter isto que chamamos de “Estado”. Nietzsche lembra que o “Estado” primitivo deve seu surgimento à tirania, sendo em suas origens, portanto, uma máquina de guerra, desapiedada e sangrenta, sem um fim aparente que não fosse o de conquistar, o de expandir-se e assegurar o aumento do poder daqueles que a criaram, ampliando os limites de suas fronteiras e de sua força militar. O “Estado”, em sua origem mais primitiva, é uma máquina militar, composta por homens que, dominando uma população sem jugo e desprovida de estrutura social, instalam a golpes de violência e força contumaz uma forma e um sentido fixos, ainda que este começo se dê por meio da imposição de uma lei cruel, cujo instrumento de ordem é a violência. Nietzsche chegar mesmo a dizer que o “Estado”, nas mãos destes conquistadores, é uma “obra”, uma imposição da força, através do instinto de sobrepor uma vontade mais forte a outra mais fraca, desorganizada, desestruturada, errante, de modo que podemos considerá-los “os artistas mais involuntários e mais inconscientes” (NIETZSCHE, op. cit., p. 82). Não há, portanto, entre estes primeiros organizadores desta estrutura que chamamos “Estado” qualquer tipo de remorso ou culpa, ou mesmo a responsabilidade, a administração, muito menos a noção de falta; o que há é o surgimento de algo novo, a construção de algo novo, com um desejo de criação movido pelo egoísmo vivo de um artista que forja o real a marteladas, sobre a matéria bruta e informe de uma população que se deixar dominar através da demonstração de uma força violenta e cruel, porém organizadora e decidida. Ignorar este começo, este princípio, é fechar os olhos e tapar os ouvidos para a realidade, crua e nua, de que o “Estado” primitivo lutou para converter a brutalidade da sociedade em algo civil, transformado o povo, composto por homens beirando a condição de animais em bando, em algo brando e moldado, capaz de obedecer e ser comandado sem grandes resistências:
Empreguei a palavra “Estado”; é fácil compreender a que me refiro – um bando de aves de rapina loiras, uma raça de conquis-tadores e de senhores que, com sua organização guerreira e com a força de organizar, não hesita em fincar suas garras terríveis numa população talvez infinitamente superior em número, mas ainda des-provida de estrutura, ainda errante. Essa é a origem do “Estado” na terra: creio que já foi bastante refutada a opinião que fazia remontar sua origem a um “contrato”. Aquele que pode comandar, aquele que por natureza é “senhor”, aquele que se mostra violento nas obras e no gesto, que lhe importam os contratos? Seres semelhantes escapam ao cálculo, chegam como o destino, sem causa, sem razão, sem objetivo, sem pretexto, chegam como o raio, demasiado terríveis, demasiado repentinos, demasiado convincentes, demasiado “outros” para deixar de serem odiados (Idem, ibidem).
Com isto, temos uma distinção entre duas violências: uma fundadora do Estado e, portanto, do direito, em suas origens, primitiva, brutal e desprovida da no-ção de falta; outra, mantenedora ou conservadora do Estado e de seu principal apa-relho, o direito, sendo abrandada a violência pelos muitos mecanismos de mediação entre os indivíduos e a justiça (DERRIDA, op. cit., fonte cit.). O que se percebe, com efeito, ao longo do texto de Benjamin, é um esboço de uma crítica da violência que atende a um poder mantenedor do direito e, por conseguinte, do Estado violento. Neste sentido, o próprio Benjamin alerta para o risco de que um julgamento crítico desta “compulsão” à violência seja realizado com igual ou mais ostentação que o próprio uso da violência. Com isto, a crítica da violência ficaria sujeita ao objeto de sua crítica, tornando-se capaz dos mesmos argumentos – o uso legítimo da força e violência para atingir determinados fins. Contudo, ao falar da violência mantenedora do direito, Benjamin toca em questões modernas – portanto, completamente afastadas da noção primitiva de Estado –, a exemplo do direito de greve. Em uma concepção primitiva de Estado não caberia a discussão sobre um tal direito, uma vez que ele foi assegurado justamente porque o abrandamento da violência como mantenedora foi possível, o que em épocas de supressão dos direitos dos indivíduos não se verifica. O que Benjamin põe em evidência são as “pequenas” violências do Estado moderno, como o serviço militar obrigatório, a polícia e, por último, a abolição da pena de morte. Considerando novamente o conceito empregado por Benjamin de “militarismo” – exploração do serviço militar obrigatório, uso forçado da força, coação ou compulsão (Zwang) ao uso da força ou da violência (Gewalt) a serviço do Estado e seus fins legais e jurídicos –, estamos diante de um conflito fundamental, pois aqui o uso da violência é legal e, portanto, concerne ao direito em sua conservação. Deste modo, o próprio Benjamin alerta para o perigo de um “anarquismo infantil”, ao demonstrar seu desdém enfático pelo palavreado oco, ingênuo e inconseqüente do ativismo pacificista, cujo objetivo é subtrair todo indivíduo a qualquer tipo de coação, como se isto fosse possível vivendo exclusivamente em sociedade. Neste ponto, é preciso lembrar sempre que a ingenuidade dos pacificistas antimilitaristas deriva do fato de que não reconhecem o caráter legal e incontestável da violência mantenedora do direito, ou seja, por força de lei e não da vontade ou compulsão (Zwang). Observa-se aí o que Derrida aponta como um double bind (laço ou ligadura dupla) (Idem, ibidem), uma contradição em si: de um lado, de nosso ponto de vista moderno, é fácil criticar a violência fundadora do direito – porque está na origem primitiva do Estado – uma vez que esta não pode justificar a si mesma através de qualquer ato legal ou legalidade preexistente. Portanto, olhando do ângulo civilizado das sociedades que conseguiram abrandá-la por meio do direito que mantém o poder instituído, esta violência é, assim, selvagem e indômita. Por outro lado, torna-se mais difícil, ou talvez impossível, criticar esta violência fundadora justamente porque não podemos fazê-la apresentar-se diante de qualquer direito preexistente, uma vez que ela não reconhece um direito anterior no momento em que funda outro. Isto porque, conforme o observa Nietzsche, este fenômeno, ainda que nos pareça grosseiro e doloroso, trata-se da força ativa que emerge, em sua forma mais pura, desses artistas da violência (NIETZSCHE, op. cit., p. 83), organizadores natos que constroem os Estados, a partir de um instinto de liberdade – a vontade de poder – que procura desencadear uma natureza brutal, criadora de formas; a questão aqui é que a matéria sobre a qual esta fúria criadora é desencadeada é o próprio homem, forma amoldável, com o objetivo de conferir um rosto, talvez mais humano, ao seu antigo eu animal. O humano, portanto, é uma criação de homens que beiram a condição de animalidade, e não o contrário. Neste ponto, a menção de Benjamin ao imperativo categórico kantiano torna-se quase uma amorosa ironia, na medida em que põe em evidência um conceito pouco discutido de humanidade: “Aja de maneira que você use a humanidade sempre como um fim, nunca apenas como um meio, na sua própria pessoa como na do outro”.10 O que Benjamin não recorda aqui é que mesmo os imperativos categóricos nascem dos direitos das obrigações, onde se encontra a origem dos conceitos morais de “falta” e “consciência”, de “dever” ou “caráter sagra-do do dever”, conforme o observa Nietzsche:
É nessa esfera, no direito das obrigações, portanto, que se encontra a origem, no mundo dos conceitos morais, de “falta”, de “consciência”, de “dever”, de “caráter sagrado do dever” – seu início foi, como o começo de tudo o que há de grande na terra, fundamental e longamente banhado de sangue. Não se poderia acrescentar com muita razão que fundamentalmente esse mundo nunca se livrou de certo cheiro de sangue e tortura? (isso consta até mesmo no velho Kant: o imperativo categórico respira crueldade...). (NIETZSCHE, op. cit., p. 63.)11
Por esta razão, Benjamin não cessa de reconhecer, em seu texto, que uma crítica puramente moral da violência é impotente, pois na verdade traz consigo a repugnância que nós, homens modernos, animais domesticados, sentimos ao nos depararmos com o fato ancestral de que a crueldade já foi uma alegria festiva, quando a humanidade primitiva celebrava, em quase tudo, o prazer com ingredientes de desumanidade e crueza. De outro lado, como aos poucos o homem teve que espiritualizar e mesmo deificar a crueldade – os deuses primitivos, gregos, romanos ou o deus hebreu do Velho Testamento trazem em si o gérmen divinizado dessa crueldade humana – para que esta, em patamares civilizados e domesticados, pudesse atravessar toda a história da cultura superior e tornar-se um elemento constitutivo desta sem, entretanto, ser uma ameaça constante ao cidadão honesto. A noção de ameaça aqui, aliás, é algo indispensável e importante, uma vez que, conforme o diz Derrida (DERRIDA, op. cit., fonte cit.), a ameaça não é exterior, não vem de fora dos limites de atuação da lei, mas é inerente à própria existência do direito que é, ao mesmo tempo, ameaçador e ameaçado por si mesmo. O poder que sustém o direito é um poder ameaçador desde a sua instituição enquanto tal, uma vez que é na lógica das punições que assegura a sua legitimidade e manutenção. Contudo, trata-se de uma ameaça que não é intimidação, mas somente uma ameaça do direito. Dupla articulação do discurso: a violência vem do direito, que é ameaçador e, ao mesmo tempo, ameaça o direito. Quando Benjamin afirma que todo poder, enquanto meio, ou é instituinte ou mantenedor do direito, toca em uma questão capital, pois não se pode efetivamente pensar a violência a partir dos discursos contra o direito de castigar e, sobretudo, contra a pena de morte, uma vez que são superficiais se não levam em conta de que tal direito tem sua origem no direito das obrigações, em uma concepção ancestral, segundo o exposto linhas atrás, de que o sofrimento ou supressão do direito à vida pode compensar as “dívidas” contraídas em um contrato entre duas partes: credor e devedor (NIETZSCHE, op. cit., p. cit.). Neste sentido, a reflexão acerca do papel da polícia revela uma grande acuidade crítica de Benjamin. Com efeito, pode-se contemplar a ausência de fronteiras e limites entre os dois tipos de violência mencionados, de modo que, justamente na polícia, surge uma contami-nação entre a fundação e a manutenção do direito, por meio da força, o que torna a sua atividade ignóbil. A polícia, colocada a meio termo, a meio caminho, suspende a separação entre o poder instituinte e o poder mantenedor do direito, uma vez que a polícia é um espectro do Estado, ou muitas vezes o próprio, sobretudo quando não se contenta em aplicar a lei por meio da força, senão também que em certos momentos a inventa, baixando decretos sempre que a situação jurídica não é clara ou suficiente para assegurar a segurança social.12 Portanto, mesmo que não promulgue leis, o raio de ação da polícia, como força da lei, não é muito limitado, pois em muitos casos a polícia se comporta como um legislador dos tempos modernos (DERRIDA, op. cit., fonte cit.), colocando em questão a autoridade das instâncias jurídicas superiores.
Chegada a esta altura de sua investigação, Benjamin finalmente se per-gunta se para a regulamentação dos interesses humanos conflitantes não há outros meios, sobretudo não-violentos (BENJAMIM, op. cit., p. 167.). Todo o texto benjaminiano parece atravessado por esta articulação, em busca de um instrumento, ao que parece, que pudesse fornecer uma nova ética, com bases lan-çadas em uma cultura da não-violência, crendo que tal cultura fosse possível. Numa coisa, entretanto, a reflexão de Benjamin esbarra: o contrato jurídico. Qualquer solução totalmente não-violenta para os conflitos humanos não pode, segundo Benjamin, partir de um compromisso firmado entre partes contratantes, ainda que este compromisso tenha sido firmado em tempos ou clima de paz. O problema é que esta promessa já encerra, em si, a possibilidade da violência, em caso de insolvência futura. Um acordo pacífico sempre traz consigo, de forma latente, o conflito. Está mais que claro que Benjamin tem plena consciência do fato de que um contrato, seguindo aqui uma orientação que em tudo lembra o pensamento nietzscheano, assegura a cada uma das partes envolvidas o direito de reivindicar alguma forma de violência, pois nesta esfera encontra-se o direito das obrigações e o caráter do dever para com as partes envolvidas. Benjamin sabe que, em qualquer rompimento possível de um acordo, uma possibilidade de violência abre-se, como uma fenda no meio do delicado edifício da civilidade, já que todo contrato autoriza algum tipo de compensação em caso de quebra, um mandato onde o poder e a força, por meio da violência, estão autorizados de partida. Se a origem de qualquer contrato nos remete quase de pronto à violência, esta por sua vez não necessita estar presente quando aquele que é firmado, pois não é um poder instituinte do direito, mas um poder mantenedor do mesmo. Desta forma, como a violência está subentendida na relação entre partes contratantes, qualquer que seja o objeto do contrato, seus efeitos, a título de compensação ou perda, estão garantidos, uma vez que o poder que endossa a existência do contrato jurídico tem, igualmente, origem violenta, sobretudo quando o contrato, ele mesmo, é instituído de forma legítima por meio da coação ou da violência (Idem, ibidem).
Um outro ponto discutido por Benjamin são os parlamentos. Com efeito, quando não se tem mais consciência da violência latente em uma instituição jurídica, esta caminha para a degeneração (Entartung), sobretudo no caso de um parlamentarismo incapaz de controlar a violência policial. O fracasso do parlamentarismo está, portanto, na tentativa de resolver os conflitos políticos por meio da palavra, uma vez que o poder repousa sobre a violência da autoridade e em uma renúncia a qualquer tipo de ideal (DERRIDA, op. cit., fonte cit.), ao que se opõe a crítica arrasadora, proveniente dos bolchevistas e sindicalistas, que questionam a autoridade por meio da violência de classe ou de guerrilha, para instituir outra autoridade, novamente através da violência. Contudo, caindo em uma espécie de contradição, Benjamin crê nas relações não-violentas entre as pessoas privadas, apostando naquilo que ele denomina de “cultura do coração”, que daria aos homens meios puros de atingir um acordo, por meio de uma atenção do coração, da simpatia, do amor pela paz, da confiança e outras tantas qualidades e virtudes necessários ao entendimento entre diferentes. Em suma, bastaria um pouco de boa-vontade entre os homens, a fim de se tornarem construtores de um paraíso na terra. Entretanto, será que os problemas da violência resolvem-se assim, em uma oposição do público e do privado, a fim de atingirmos um domínio e uma cultura da não-violência? Evidentemente, as coisas não são simples como o texto de Benjamin quer nos dar a parecer, caso contrário caímos em um reducionismo e um truísmo piegas. O que Benjamin, contudo, deseja demonstrar é que é possível uma eliminação não-violenta dos conflitos em um mundo onde as relações se dão em um nível mais cortês, mais cordato, em um domínio onde estaria suspensa a relação meio-fim, concebendo-a como um meio puro que exclui por completo a violência. Dito isto, Benjamin passa a cotejar a questão do diálogo ou a conversa-ção, como técnica de acordo civil, para resolver os conflitos entre os homens, uma vez que aqui um entendimento não-violento não é apenas uma possibilidade em aberto, como a supressão da violência pode ser comprovada através de um simples fato: a impunidade da mentira ou da fraude. Com efeito, o direito romano e o antigo direito germânico não os puniam, assim como Benjamin observa que nenhuma legislação no mundo originalmente punia a mentira. Estabelece-se um nó importante, pois um índice do processo de decadência do Estado se dá quando este pretende controlar a veracidade dos discursos, a ponto de esquecer completamente os limites entre os domínios do mundo privado e a esfera da coisa pública (res publica). Isto posto, Benjamin chega a uma conclusão assaz inteligente: há uma esfera do entendimento humano de caráter não-violento, a ponto de se tornar inacessível à própria violência: a linguagem, ou seja, o domínio próprio do “en-tendimento”, através do qual os homens chegam a um acordo. Com efeito, não é possível controlar a verdade ou a mentira por detrás da produção dos discursos, a-inda que toda a tradição ocidental de reflexão esteja calcada sobre o desejo platôni-co de varrer ou controlar os discursos que não sejam portadores de uma verdade explícita, evidente por si mesma ou por meio de demonstração ou experimentação, o que constitui um temor do poder ao conjurar tais discursos por meio de uma violência, que é rebaixá-los à condição de produções sem a dignidade dos discursos “verdadeiros”: a ciência, a política, o direito, a lei. Chegando a esta altura do texto, Benjamin se faz uma pergunta: é verdadeiro o dogma básico, comum às duas teorias (direito natural e direito positivo, violência fundadora e violência conservadora), de que fins justos podem ser obtidos por meios legítimos, meios legítimos podem ser usados para fins justos? Contudo, Benjamin lança a resolução deste impasse para uma entidade supra-humana: Deus. Neste ponto, tem início a última seqüência do texto, aquela porventura mais polêmica porque aposta em um concepção de destino e de um árbitro divino, talvez ainda mais problemática do que a chamada “cultura do coração”, em tudo uma verdadeira concessão à ingenuidade e à solapada concepção de solidariedade humana. A reflexão desta última parte do texto tem sua pedra basilar: o mito. É através do mito que encontramos aquelas manifestações, conforme o observa Benjamin, concernentes à ira, uma função não mediada da violência, que não age como um meio a um fim proposto, mas tão somente como explosão, como manifestação da violência em estado latente e, portanto, puro. Portanto, o poder mítico funda-se, em sua forma mais primitiva, em uma manifestação dos deuses e, sobretudo, de sua ira. Cabe, neste ponto, trazermos à baila, mais uma vez, a reflexão nietzscheana a este propósito.
É preciso voltar a uma questão até aqui apenas esboçada por Benjamin: o altruísmo. Em que outro fundamento poderia se encontrar esta “cultura do coração”, esta negação de si, este sacrifício, que não fosse em uma concepção altruísta, em que o “outro” estivesse incluso? Um nó importante faz-se aqui: o impe-rativo categórico e as máximas da mesma categoria que encontramos em princípios religiosos respiram altruísmo. Contudo, é necessário questionar qual a espécie de prazer que sente aquele que pratica o altruísmo, em forma de imperativo cate-górico ou de doutrina religiosa, quando se nega, quando se sacrifica por causa de seu semelhante. Nietzsche é bem pontual: este prazer tem algo de crueldade, de violento. O homem não-egoísta teve que negar a si mesmo, em um ato de violência contra si próprio, para que assim surgisse um valor moral, através de uma bru-talização de si próprio: o não-egoísmo, o altruísmo. O homem abnegado, o puritano, o bom samaritano, o altruísta é na verdade um homem que começou por negar, como valor moral, o seu impulso de afirmação de si próprio, a fim de poder olhar o outro – o próximo. Porém, verificamos que, historicamente, uma concepção quase tão antiga quanto o próprio ser humano, a relação de direito privado entre o credor e o devedor, foi novamente inoculada em uma outra relação que surgiu quase em paralelo: a relação de dívida dos homens contemporâneos com os seus ancestrais.
No seio da associação original constituída pelo grupo (falamos dos tempos primitivos) a geração atual reconhece cada vez [mais] para com as precedentes, e particularmente com a primeira de todas, uma obrigação jurídica (e não um simples compromisso afeti-vo: estaríamos até mesmo perfeitamente no direito de contestar esse último de maneira geral durante o mais longo período da espécie humana). Reina então a convicção de que o grupo não subsiste se-não graças aos únicos sacrifícios e às realizações dos ancestrais – e que devemos compensar isso em consideração a eles por meio de sacrifício e de realizações; reconhecemos assim uma dívida que au-menta constantemente pelo fato de que esses antepassados, através da existência que prosseguem sob forma de espíritos poderosos, não cessam de outorgar ao grupo novos benefícios e novos progressos, usado de sua força. Gratuitamente, talvez? Mas não existe “gratuita-mente” para essas épocas bárbaras e “pobres de espírito”. (NIETZSCHE, op. cit., p. 84-85.)
Em tudo isso, uma idéia de retribuição. Esta, por sua vez, dá-se na forma de sacrifícios. No começo, sacrifica-se uma parcela da comida da comunidade para alimentá-los, como se tivessem fome ou como compensação pelo fato de que a co-munidade alimenta-se melhor que em outras épocas. Também há festas, cantos, cerimônias de respeito, celebração, veneração, reverência e obediência, uma vez que todos os costumes, como os preceitos e ordens vividos pela comunidade, são obra dos antepassados. Em muitas comunidades primitivas, os antepassados che-gam a uma tal deificação que acabam tornando-se figuras míticas; convertem-se, afinal, em deuses, em heróis imortais e sobre-humanos (NIETZSCHE, op. cit., pp. 85-86.), cujas obras são visíveis para todos: o alimento da comunidade, a sabedoria que a mantém viva e, em alguns casos, próspera, a natureza, em suas épocas de fartura. Tudo é índice e sinal da proteção dos antepassados, o que faz com que a dívida dos homens contemporâneos só aumente. Como esta dívida não cessa de crescer, diante dos favores que os antepassados cumulam seus descendentes, so-bretudo quando são míticos ou deificados, surge uma dúvida entre os homens da comunidade: o que se dá a eles é, porventura, suficiente, o bastante? Aqui surge uma noção de caráter sagrado do dever, do devedor em relação ao credor, quando se pergunta se os sacrifícios ofertados, as festas, cerimônias e rituais de respeito e obediência são suficientes para dar satisfação aos ancestrais, ou os deuses que criaram a comunidade e o mundo. Quando aparecem sinais possíveis desta insatisfação – uma seca prolongada, a escassez de caça e alimentos, a colheita destruída pelas intempéries –, de tempos em tempos, o receio de que os antepassados – talvez deuses, agora – estejam irados ou insatisfeitos viceja entre os sábios e guerreiros da comunidade, que assim interpretam, por meio daqueles sinais, a necessidade de um grande resgate de todos seja praticado, abrindo assim terreno para uma extraordinária compensação ou indenização do “credor” ou dos fiadores da dívida. Não à toa, em muitas culturas onde esta interpretação se dá, esta compensação vem em forma de sangue, sempre. O célebre sacrifício do primogênito (Abraão quase o praticou, para provar obediência ao seu deus), de uma virgem da tribo, geralmente filha do líder, dos prisioneiros de guerra, entre os astecas e maias, diante do deus Sol, cujo nascimento deu-se através do sangue, ou ainda de uma rês, de um cordeiro e, entre os cristãos, do sacrifício do Filho do Homem, aquele que viria resgatar todas as dívidas da humanidade e de seus pecados:
... até nos encontrarmos de repente diante dessa esca-patória paradoxal e espantosa na qual a humanidade martirizada en-controu um alívio momentâneo, essa marca do gênio do cristianismo: o próprio Deus se sacrificando pela falta do homem, o próprio Deus fazendo-se pagar por ele mesmo, Deus como a única instância que possa resgatar o homem daquilo que para o próprio homem se tornou impossível de resgatar – o credor que se sacrifica por seu de-vedor, por amor (deve-se crer?), por amor a seu devedor!... (Idem, ibidem, p. 88.)13
Eis o mais belo idílio e o mais sofisticado embuste criado pela humanida-de: o desejo de que todo devedor não tenha suas dívidas cobradas, que o credor não cobre nada e, ainda por cima, pague-a em seu lugar, assumindo a punição e o sacrifício decorrente. Suprema ironia, grandioso ardil, sublime falcatrua, divina tape-ação: eis o requinte a que se chegou nesta deificação da dívida, retransmitida aos descendentes. No caso, a dívida remonta à origem do próprio homem, quando do momento da Queda, do Pecado Original. É neste terreno que, indubitavelmente, prospera o temor do homem contemporâneo, que se sente endividado ao infinito, mas tem a certeza do amor de seu amo, de seu credor que, através de seu credo, o perdoará de todas as faltas. Isto, porém, é uma concepção difundida pelo cristianis-mo, que soube superar a noção de destino, de predestinação, de dívida que cresce com o crescimento da própria humanidade e que, em algum momento ou em deter-minadas épocas, precisaria ser resgatada com algum tipo de sacrifício. Neste senti-do, Benjamin observa que o poder divino, conforme a atribuição a ele dada pela Antigüidade, também poderia ser o poder mantenedor da punição, quando um herói ou semideus desafia a autoridade dos deuses, ao mesmo tempo em que o destino, com a esperança de conferir um novo direito à humanidade (BENJAMIN, op. cit., p. 171.). Novamente Benjamin faz menção à figura do grande bandido, do grande transgressor da lei, aquele que resgata uma dívida do povo ou da humanidade e lhe outorga um novo benefício: o perdão de todos ou um direito novo, capaz de tornar nulas as dívidas anteriores. Não há como não fazer paralelos, neste caso, da figura de Prometeu com a figura de Cristo, que se oferecem ao sacrifício para que a humanidade não conheça a ira dos deuses ou de Deus e, deste modo, possa gozar dos benefícios trazidos pelo martírio do herói. A violência dos deuses (ou Deus) desaba sobre o corpo do sacrificado que, assumindo as dívidas, dá-se ao(s) credor(es) como imolação, tal como ocorre na ancestral relação entre devedor e credor: a compensação repousa sobre aquele mandato que autoriza a crueldade, a violência, a ira do credor que, deste modo, pode infligir ao corpo do devedor toda sorte de ultrajes, injúrias, torturas, humilhações, mutilações, sofrimentos, obedecendo à mesma lógica da compensação exposta linhas atrás. Deus imola seu “filho”, fazendo com que seu corpo seja chicoteado, perfurado, crucificado; os deuses pagãos acorrentam Prometeu a uma pedra, tendo suas vísceras – o fígado, sobretudo, único órgão que se recompõe – devoradas por abutres todos os dias. Ressurreição e morte eternas. O poder mítico é, ao mesmo tempo, autor da culpa e da penitência daqueles que, endividados, temem o antepassado e o seu poder, movidos pela consciência – culpa, remorso – de que a dívida para com ele aumenta à medida que o tempo passa e o poder da comunidade aumenta. Curiosa contradição: esta consciência da dívida, portanto da culpa que o débito acarreta, cresce na mesma proporção em que o poder do grupo aumenta, à medida que o grupo torna-se mais vitorioso, mais dono de si mesmo, mais independente e forte em relação a outros grupos, os quais domina, sempre na mesma dimensão e extensão em que é mais respeitado e mais temido pelos outros grupos. Em contrapartida, seu temor pelos antepassados aumenta, pois o sucesso do grupo é uma dívida em relação àqueles que já se tornaram mitos e, portanto, deuses! (NIETZSCHE, op. cit., p. 85.). O mais comum é acreditar que a manifestação mítica do poder imediato dá-se justamente com o inverso: com a dimi-nuição do poder do grupo, com o seu fracasso, surge um temor maior em relação aos antepassados. Porém, Benjamin toca na questão de que o poder divino absolve da culpa, como da dívida, exatamente como ocorre com a absolvição dos pecados segundo o cristianismo, quando o próprio Deus, a violência fundadora e mantenedora do direito divino, oferece-se ao sacrifício no lugar de todos os credores. De qualquer modo, torna-se assaz ilustrativo o fato de que não haja nada de digno e civilizado que não esteja banhado em sangue, conforme Nietzsche, pois é justamente o sangue, como o lembra Benjamin, que é o símbolo da pura vida, agente purificador de todas as dívidas do rebanho que, como o cordeiro imolado, absorve a culpa de todos por meio de um golpe letal, violento e sangrento:
O desencadeamento do poder jurídico remonta – o que não se pode mostrar aqui de maneira mais detalhada – ao processo de culpa da vida pura e natural, o qual entrega o ser humano inocente e infeliz à penitência, com a qual “expia” sua culpa – e também absolve o culpado, não de uma culpa, mas do direito. Pois com a vida termina a dominação do direito sobre os vivos. O poder mítico é poder sangrento sobre a vida, sendo esse poder o seu fim próprio, ao passo que o poder divino é um poder puro sobre a vida toda, sendo a vida o seu fim. O primeiro poder exige sacrifícios, o segundo poder os acei-ta. (BENJAMIM, op. cit., p. 173.)
Destas duas distinções, salta aos olhos esta concepção de homem “ino-cente”, que confina com a de homem “natural”, o que é assaz interessante. É preciso levar em consideração até que ponto os instintos humanos, sob a ação de uma enorme força repressora, como a consciência da dívida com os antepassados, voltam-se para dentro do ser humano, dando início ao que Nietzsche chama de interiorização do homem, o que permite mais tarde o surgimento do conceito de “alma” (NIETZSCHE, op. cit., p. 80-81.). O mundo interior do homem primitivo foi, originalmente, pequeno e sem profundidade. Porém, com este processo de interiori-zação, seus instintos foram reprimidos e inibidos, de modo que a exteriorização foi se tornando cada vez mais interdita e abominável aos olhos deste homem que desejava “expiar” o seu débito para com os antepassados e para com os deuses e, mais tarde, para com o único deus, através do monoteísmo. Deste modo, os instintos daquele homem selvagem – “inocente” porque sem culpa, “natural” porque sentia o clamor das forças naturais em seu próprio corpo –, através das barreiras sociais e da organização imposta pelo crescimento da comunidade e o aumento de seu poder, voltam-se contra ele próprio. Toda aquela hostilidade e crueldade, todo o prazer pela agressão, pela violência, pela destruição, dirigem-se contra o próprio homem, o detentor de todos estes instintos. Neste movimento é que Nietzsche detecta o surgimento da “má consciência”, desta brutalização de si próprio, que chamamos “culpa” ou consciência da dívida para com a divindade que aceita sacrifícios com o intuito de compensá-la, porém sem dissolvê-la. De qualquer modo, esta concepção de violência divina, segundo Benjamin, não apenas testemunha através da religião o caráter sagrado da vida, de acordo com um de seus dogmas fundamentais, porém torna nulo o fundamento do direito sobre a própria vida, uma vez que aquele conceito de “alma” existe justamente para que a violência não atinja aquilo que o homem conseguiu expandir com a sua interiorização: o mundo interior. Com efeito, a “alma” do ser vivo não pode ser atingida senão pelo poder divino; nem mesmo o poder mítico terá alcance sobre este rincão precioso da psicologia humana, encarcerada dentro de um universo onde qualquer violência ou crueldade não terá efeito. É justamente apostando neste imperativo da condição humana – uma alma livre da dor, eterna, incapaz de ser torturada ou alcançada pelos algozes – credores de qual dívida? – porque não se encontra no mundo exterior, mas em um reino que não é deste mundo. Benjamin, entretanto, discute o conceito de violência divina, única a alcançar este reino interior, este mundo criado com a força dos instintos voltados contra si próprios. A violência, portanto, alçada à categoria de divindade, não permitiria derivar que os homens, uma vez submissos à autoridade divina, teriam o direito de usar de poder letal contra si próprios, uns contra os outros. Se somente ao poder divino é facultado o direito de usar da violência sangrenta e, portanto, de matar quando necessário, não há concessão para o homem sobre este direito. Aqui nos defrontamos com a interpretação judaica de uma restrição, na forma do mandamento “Não matarás!”, o que corresponde, segundo o judaísmo, a uma condenação veemente de todo e qualquer tipo de homicídio, mesmo aquele feito em legítima defesa. Porém, mesmo Benjamin admite que “o mandamento não existe como medida de julgamento, e sim como diretriz de ação para a pessoa ou comunidade atuante, as quais, na sua solidão, têm de se confrontar com ele e assumir, em casos inauditos, a responsabilidade de transgredi-lo” (BENJAMIN, op. cit., pp. 173-174). Benjamin condena veementemente a afirmação de que a vida ou a existência teriam um valor em si, mais alto que a existência justa, de modo que a vida em questão é apenas e tão somente uma “mera vida”, sem conteúdo humano. Não há, pois, qualquer caráter sagrado, em si mesmo, da vida, pois para Benjamin ela depende das potencialidades do vir-a-ser humano, confrontado com o seu ser-aí (Dasein):
Talvez, ou mesmo provavelmente, esse dogma seja re-cente, o último erro da enfraquecida tradição ocidental de procurar na impenetrabilidade cosmológica o sagrado que ela perdeu. (A antigüi-dade de todos os mandamentos religiosos contra o homicídio não se-ria aqui nenhuma objeção, porque a eles estão subjacentes outros pensamentos ausentes no teorema moderno.) Finalmente, é signifi-cativo que a qualificação de sagrado recaia sobre algo que, segundo o antigo pensamento mítico, é marcado para ser portador da culpa: a mera vida. (Idem, ibidem)
Vemos aqui que mesmo um pensador como Benjamin, decerto arguto e genial em muitos de seus insights, em outros momentos ingênuo e utópico, não deixa de perceber que o valor da vida é extremamente relativo, sobretudo se pomos em evidência critérios de justiça e nobreza para avaliá-la. Com efeito, o dog-ma do caráter sagrado da vida impede de determinar, em nossa cultura ocidental – de extração judaico-cristã –, o papel que o poder e a violência (Gewalt) sempre exerceram na formação de nossas relações sociais, sobretudo quando contempla-mos os efeitos desastrosos que uma apreciação moralista de um pacifismo utópico pode provocar sobre os julgamentos de uma crítica destinada a encontrar alternati-vas não-violentas para resolver os conflitos e os impasses entre os homens. Benja-min aponta aqui a alternativa do diálogo, o que seria somente possível, em todas as circunstâncias, se de fato houvesse uma disposição de cordialidade entre os ho-mens, o que evidentemente não há. A história da humanidade é um oceano de atrocidades, com raros momentos, muito breves e pontuais, em que os grupos ou comunidades puderam desfrutar do aumento de seu poder sem ter que lançar mão de recursos violentos para prevenir as eventuais hostilidades contra o seu “estilo de vida”. Talvez fosse mais sensato ver a história como uma longa guerra, intercalada por períodos de paz. Os conflitos violentos dão a idéia de que são inerentes à condi-ção humana. Sob este ponto de vista, não há a possibilidade de um poder revolucionário, como o quer Benjamin, porque o único poder puro é aquele que se manifesta no momento de sua fundação, e este, em sua essência, é brutal e violento. O poder mítico e fundador do direito, identificado à violência, também confina com o poder divino, pois este é um resultado daquele. Tampouco o poder que absolve da culpa é inacessível ao homem, pois o cristianismo o inventou e, se não fosse o cristianismo, outro movimento de religare entre o desejo de infinito divino e a finitude humana o teria feito, pois o peso da dívida, em certo momento, é insuportável até mesmo para os credores.
Com efeito, atinge-se uma estação em que até o credor oferece-se ao sacrifício, sem o qual os mantenedores da dívida não podem continuar a transmiti-la aos seus descendentes, por meio da promessa de que ela não será cobrada em todo o seu ônus e tributos. O poder do qual se origina a violência, e vice-versa, não cessa de renovar incessantemente a si mesmo a partir do momento em que volta sua crueldade contra si próprio, a fim de que, travestido em justiça divina e eterna, perdure além de si mesmo na forma de uma promessa que ultrapassa as fronteiras da vida e do túmulo.

Referências

BENJAMIM, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbarie: escritos escolhidos. Seleção e apresentação de Willi Bolle; tradução de Celeste H. M. Ri-beiro de Sousa et al. Cultrix; Editora da Universidade de São Paulo, 1986.
DERRIDA, Jacques. Nombre de pila de Benjamin. In: http://personales.ciudad.com.ar/Derrida/walter_benjamin.htm. Acesso em 1 de no-vembro de 2005.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.
NIETZSCHE, Friedrich. A genealogía da moral. Tradução de Antonio Carlos Braga. Editora Nova Escala, São Paulo, 2005.
____. O anticristo. Tradução de Pietro Nasseti. Coleção A Obra-Prima de Cada Autor. Editora Martin Claret, São Paulo, 2001.
____. Para além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução de Alex Marins. Coleção A Obra-Prima de Cada Autor. Editora Martin Claret, São Paulo, 2002.
____. Obras incompletas. Seleção de textos de Gerard Lebrun; tradução e no-tas de Rubens Rodrigues Torres Filho; posfácio de Antonio Cândido. Coleção “Os Pensadores”: Editora Nova Cultural Ltda, São Paulo, 1999.


1 Doutor em Teoria e História Literária, área de concentração em Literatura Brasileira, pelo IEL/UNICAMP. Mestre em Letras, área de concentração em Literaturas de Língua Portuguesa, pela UNESP. Docente da Graduação em Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras, nível de Mestrado, área de concentração em Literatura Comparada, da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões/URI. E-mail: ricardoafmartins@gmail.com
2 Adotaremos daqui em diante a abreviatura Benjamin para Walter Benjamin.
3 Não se pode olvidar os grandes déspotas e tiranos sanguinários de nossa história, mesmo da mais recente. Casos como a guerra de Kosovo, lideradas por Slobodan Milosevic, ou ainda toda a multidão de pessoas mortas em campos de concentração pelo mundo, não apenas durante a Segunda Grande Guerra. Basta lembrarmos os opositores de Stálin, os inimigos de Papa Doc e Baby Doc, ou, em eventos mais remotos da história, a noite de São Bartolomeu, as chacinas, os genocídios praticados em nome de uma ideologia qualquer, algumas vezes doentia e cega, em outros casos fortemente apoiada em motivações de ordem histórica, étnica e, fundamentalmente, religiosa. Tudo isto vem somente corroborar que o tema da violência ainda está longe de ser varrido da humanidade, o que reforça a tese de que ela seja talvez uma parte constitutiva de nossa natureza mais vital, uma das forças mais vitais de nossos instintos mais primitivos.
4 Podemos notar, ainda hoje, o grau extremo de autocontrole e domínio dos instintos e paixões aos quais determinados povos e culturas se submetem para manter um padrão e uma imagem de povo civilizado. A oposição entre povos latinos e povos anglo-saxões hoje representa uma completa inversão dos valores conhecidos durante o Império Romano, no qual os latinos representavam a quintessência da civilização e os povos do norte, saxões, teutos, celtas, eram a barbárie e a ausência de padrões de cultura civilizada. Hoje, nas Américas, o mesmo padrão se reproduz às avessas; enquanto os Estados Unidos e o Canadá exercem o controle civilizatório de uma horda de “latinos” subdesenvolvidos ao sul, nós, “latinos”, reproduzimos comportamento de bárbaros incultos e corrompidos pelos nossos desejos e paixões. A mentalidade e a ideologia norte-americana se calcam sobre esta dicotomia do norte civilizado e do sul subdesenvolvido, padrões e estereótipos estes que são reproduzidos e legitimados até pela comunicação e entretenimento de massa – a tele-visão e o cinema, sobretudo.
5 Podemos notar, ainda hoje, o grau extremo de autocontrole e domínio dos instintos e paixões aos quais determinados povos e culturas se submetem para manter um padrão e uma imagem de povo civilizado. A oposição entre povos latinos e povos anglo-saxões hoje representa uma completa inversão dos valores conhecidos durante o Império Romano, no qual os latinos representavam a quintessência da civilização e os povos do norte, saxões, teutos, celtas, eram a barbárie e a ausência de padrões de cultura civilizada. Hoje, nas Américas, o mesmo padrão se reproduz às avessas; enquanto os Estados Unidos e o Canadá exercem o controle civilizatório de uma horda de “latinos” subdesenvolvidos ao sul, nós, “latinos”, reproduzimos comportamento de bárbaros incultos e corrompidos pelos nossos desejos e paixões. A mentalidade e a ideologia norte-americana se calcam sobre esta dicotomia do norte civilizado e do sul subdesenvolvido, padrões e estereótipos estes que são reproduzidos e legitimados até pela comunicação e entretenimento de massa – a tele-visão e o cinema, sobretudo.
6 Um das formas mais comuns de compensação era o devedor pagar a sua dívida ao credor através do trabalho escravo, em um número determinado de anos. O direito romano estipulava que o trabalho escravo, em caso de insolvência de dívidas, não ultrapassasse 7 (sete) anos seguidos em casos de miséria financeira, após os quais a dívida seria considerada paga. Neste interregno, contudo, o credor podia exigir a quantidade de trabalho que julgasse proporcional à importância devida. É um hábito abundantemente comentado e registrado até nos livros sagrados, como é o caso da Bíblia, sobretudo o Velho Testamento.
7 Com efeito, a psicanálise observa que o homem não é essencialmente nem bom nem mau. Contudo, se sua verdadeira natureza for reprimida, a título de qualquer coisa, ele torna-se “mau”, sádico, violento e antinatural, procurando satisfação em formas cada vez mais doentias, sádicas e cruéis de prazer, com as quais, por fim, enlouquece.
8 Por outro lado, uma ação não-violenta pode trazer resultados favoráveis a causas coletivas, como foi o caso da Independência da Índia, cujo movimento foi liderado por Mahatma Ghandi. Nestes ca-sos, o uso da não-violência tem a característica radical de utilizar a violência daqueles que detêm o poder contra eles próprios, fazendo com que os efeitos devastadores do uso abusivo da força pare-çam desproporcionais e injustificáveis, a ponto de forçá-los a uma mudança de estratégia. Isto, po-rém, tem um preço elevado: um número muito elevado de vítimas que sacrificam suas vidas em nome de uma causa, apostando na racionalidade e no grau de civilização alcançado por aqueles que dominam e têm o privilégio legal do uso da força e da violência. Esta ação, utópica por combater fuzis com flores, força, no entanto, os poderosos a reconhecer que podem, ao fim, não ter ninguém para governar sobre um território vazio. Preferem, então, devolvê-lo aos senhores originais, sobretudo quando a estrutura colonial é pesada e onerosa demais para administrar com o uso da violência para garantir o exercício da autoridade.
9 Importante lembrar o ritual do desfile dos despojos, sobretudo em Roma, que consistia em pilhar os tesouros dos vencidos, conduzindo-os após para serem exibidos diante dos olhos humilhados de seus antigos donos. O efeito moral e psicológico deste ato consiste em ostentar uma violência derradeira sobre o patrimônio cultural e material dos derrotados, a fim de que percam inclusive a própria identidade.
10 Não há como não traduzir o imperativo categórico de Kant em outras versões, mais cristianizadas e evidentes em si, tal como “ama o teu próximo (semelhante) como a ti mesmo” ou “faças ao teu próxi-mo (semelhante) o bem que gostarias para ti mesmo”, e assim por diante.
11 Grifos meus.
12 São típicos os casos em que, não havendo legalidade em uma medida policial, procura-se fazer uma interpretação policial da lei, através da qual chega-se à conclusão de que é preferível garantir a segurança de todos a obedecer cegamente o que está posto na lei, ainda que isto constitua uma injustiça do ponto de vista legal. Não são poucos os casos em que a polícia, particularmente os policiais, tomam o poder que já está em suas mãos no sentido de assegurar não o cumprimento da lei, mas garantir segurança social.
13 Grifos meus.
© 2008 - All rights reserved - Web Developer by Odirlei Vianei Uavniczak