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Literatura e Autoritarismo
Dossiê Literatura de Minorias e Margens da História
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê nº 4 

AS ESTRATÉGIAS DA MEMÓRIA PERANTE O TRAUMA

Ana Maria Baía Rodrigues1
Augusto Sarmento-Pantoja2
Resumo: Este trabalho tem como objetivo fazer uma abordagem no que concerne a memória e ao trauma, tanto no âmbito coletivo quanto no individual, e fazer a relação entre memória e trauma, para evidenciar algumas estratégias da memória diante do trauma.
Palavras-chave: Trauma. Memória. Testemunho. Esquecimento. Silenciamento.
Abstract: This paper aims to present an approach in relation to memory and trauma, both at the collective and the individual, and make the relationship between memory and trauma, to highlight some memory strategies in the face of trauma.
Keywords: Trauma. Memory. Testimony. Forgetfulness. Silence.

1. Trauma: coletivo e individual
O trauma é um tipo de lesão psicológica ocasionado por um evento drástico. O acontecimento traumático pode ser fruto de: catástrofes artificiais ou naturais, guerras, atentados, agressões num âmbito geral, abusos sexuais, acidentes individuais ou coletivos; ou seja, todas as experiências ou experiência dolorosa que afeta o ser humano física ou/e psicologicamente. Sendo que, uma pessoa pode sentir como traumático um evento que outra pessoa pode não sentir, desta forma nem todos os indivíduos que passam por fatos traumáticos podem se tornar traumatizados.
Abordaremos aqui o trauma: coletivo e individual. O trauma coletivo é fruto da opressão, da tortura, do extermínio de várias pessoas. A ditadura militar é um exemplo deste tipo de trauma, já que foi um período em que o governo militar massacrou, torturou, exterminou milhares de pessoas. Renato Janine Ribeiro, em A dor e a injustiça, fala que o Brasil durante seu processo de formação presenciou dois traumas coletivos: o primeiro ocorreu em meados do séc. XIX e está ligado a exploração colonial que acontecia de forma agressiva, e o segundo concerne à crueldade inerente a escravidão, que sustentou o processo de formação do Estado Nacional, no período imperial. É por isso que os regimes autoritários tiveram, no período republicano facilidade de instalação e permanência. A partir dos regimes ditatoriais, pode-se concluir que o Brasil é formado de três traumas coletivos, sendo que a ditadura militar constitui o terceiro trauma coletivo. Logo, qualquer cidadão que nasça em território brasileiro adquiriu por herança cultural esses três traumas coletivos apresentados.
Enquanto que o trauma individual é vivenciado por um único ser humano. A tortura é um exemplo típico desta categoria de trauma. A tortura acontece quando uma pessoa (o torturador) causa sofrimento, dor (seja de natureza física ou psicológica) a outro indivíduo, seja para extrair depoimentos de oposicionistas, intimidar as pessoas ou consolidar regimes autoritários sem o consentimento popular. Quando a dor corporal é incontornável, Seligmann-Silva (Apud Ginzburg, 2008, p. 65) diz que “ocorre uma espécie de deslocamento entre mente e corpo, ou seja, vontade de abandonar o corpo”, isso acontece porque o corpo não suportar os efeitos dolorosos da tortura, desta forma sua psique fica abalada, é por isso que o individuo que sofreu tamanha dor fala palavras desconexas e não consegue assimilar de forma total o trauma. Tendo em vista tais aspectos sobre a tortura Seligmann-Silva (Apud Ginzburg, 2008, p. 51) também comenta que “para a psicanálise, a experiência traumática não pode ser assimilada de modo completo; por isso ocorre à repetição constante, alucinatória, por parte da vítima, da cena de impacto”. Desta maneira, a pessoa que foi torturada ficou com seqüelas físicas, psíquicas; assim ocasionando um efeito traumático (individual) que carregará até o fim de seus dias.

2. Memória: coletiva e individual
A memória é uma construção feita no momento presente a partir de vivências/experiências ocorridas no passado. Assim sendo, Aristóteles (Apud Seligmann-Silva, 2008, p. 74) já dizia que a “memória é um conjunto de imagens mentais das impressões sensuais, com um adicional temporal, assim tratando-se de um conjunto de imagens de coisas do passado”. Logo, a memória está ligada a questão das lembranças: dos conhecimentos, das idéias, dos fatos adquiridos no momento pregresso.
Ouvi-se muito falar em memória coletiva e individual. A memória coletiva diz respeito às reminiscências, boas ou ruins, de momentos que marcaram a história de uma dada nação. A memória oficial, no que concerne o período ditatorial, de nosso país é um exemplo de memória coletiva, haja vista que durante o período ditatorial as maiores barbaridades foram cometidas contra os que se opunham ao regime. Neste período várias pessoas incluindo: os estudantes, os intelectuais, os engajados políticos, foram às principais vítimas do sistema que contestavam. No discurso demagógico (de “segurança nacional”) de proteger o Brasil da ameaça comunista, instalou-se uma ditadura, que calou, torturou e matou sem o menor constrangimento, centenas de brasileiros. Se a propaganda do regime militar salvou o Brasil de pessoas ditas “terroristas comunista”, o que dizer de vinte anos de um Estado ilegítimo, feito sob a força bruta e o silêncio dos seus cidadãos. Todas essas atrocidades do período ditatorial ficaram e ficarão impregnados como marcas indeléveis na memória coletiva do povo brasileiro.
Já a memória individual está vinculada as lembranças de todas as situações, boas ou ruins, do passado ímpar de cada pessoa. Tomemos por exemplo a memória traumática. No livro Memórias do Esquecimento (1999), de Flávio Tavares, podemos perceber que existem relatos de memória traumática do período da ditadura militar brasileira (1964-1985). Tavares também passou pela experiência traumática, desta forma, em tal obra ele faz uma reflexão sobre a tortura, o exílio e a sua segunda experiência extrema, no exterior. Fabrício Flores Fernandes, em dossiê “Escritas da Violência”: sobre a escritura da dor, comenta sobre a obra de Tavares e diz que:
Reflete, entre outras coisas, sobre os limites existentes para contar aquilo que passou. Uma voz, ainda que trêmula, tentando esboçar possibilidades futuras a partir de um presente massacrado pelo passado. Essa literatura destaca-se pela dilaceração do ser humano, onde pequenos fragmentos da memória aparecem tentando dar forma à dor.
Tavares, em virtude do que sofreu, tem lembranças traumáticas e segundo Seligmann-Silva (Apud Maldonado e Cardoso, 2009, p. 5) o trauma é como uma “memória amnésica” por ser a “memória de um passado que não passa”, logo se caracterizando como um tempo pretérito que é presente, assim tornando-se também futuro. Desta forma, a memória traumática faz lembrar situações dolorosas que são preferíveis esquecer.

3. Relação entre memória e trauma: duas teses sobre a narrativa testemunhal
Na primeira tese sobre o testemunho pode-se verificar que existe uma necessidade de narrar o trauma vivenciado, como afirma Seligmann-Silva (2008, p. 66) que “narrar o trauma tem em primeiro lugar este sentido primário de desejo de renascer” isso acontece porque a indivíduo traumatizado precisa retornar ao seu cotidiano para reconstruir a sua vida que está em cinzas. Mas mesmo assim, a nossa linguagem é incapaz de descrever, seja por via oral ou escrita, o trauma sucedido, isso ocorre porque num primeiro momento há um silenciamento que faz com que o ser traumatizado não expresse por meio do testemunho a sua dor, a versão dos fatos. Segundo Seligmann-Silva “a base do testemunho consiste em uma ambigüidade: por um lado, a necessidade de narrar o que foi vivido, e por outro, a percepção de que a linguagem é insuficiente para dar conta do que ocorreu”. Em virtude disso, Maldonado e Cardoso também falam que há um paradoxo reforça o duplo aspecto que o trauma comporta: “a impossibilidade e a necessidade de sua representação. Diante do traumático, um testemunho se assenta necessariamente sobre a experiência-limite de um narrador que perfurou a barreira entre a vida e a morte” (Maldonado e Cardoso, 2009, p. 9).
É por essa necessidade e dificuldade de narrar o trauma que a imaginação é convidada a adentrar na narrativa testemunhal. Logo, é possível detectar três posições diferentes sobre o estatuto ficcional da narrativa de testemunho.

3.1 As três distintas vertentes sobre o testemunho

3.1.1 O trauma se refugia na imaginação para narrar os fatos.
A primeira posição aborda que o trauma encontra na imaginação um meio para a narração. Sendo assim, o narrador está na primeira pessoa do singular, pois ele narra o que presenciou. Seligmann-Silva, em Testemunho da Shoah e literatura, fala da figura do superstes que “é o sobrevivente” do Lager, campo de concentração. Sendo assim, o supertes alegoriza o testemunho, haja vista que é uma forma de esquecer o momento traumático. É por isso que Antelme (Apud Seligmann-Silva, 2008, p. 70) fala que “a imaginação é chamada como arma que deve vir em auxílio ao simbólico para enfrentar o buraco negro do real do trauma”. Por que a pessoa traumatizada não consegue de forma alguma falar na íntegra e linearmente (é por isso que o testemunho é fragmentado) sobre o trauma, visto que vem à tona as lembranças traumáticas, fazendo com que esse indivíduo retorne novamente ao momento traumático, logo lembrar é também sofrer. Enfim, é mais fácil para o supertes narrar alegorizando a sua vertente, e também este narrador prioriza contar as versões de outras pessoas do que de si mesmo, justamente porque é uma maneira de esquecer o seu trauma. Desta forma, Paul Ricoeur (2000, p. 459) diz que “narrar um drama é esquecer o outro”.

3.1.2 A imaginação é usada por um narrador em terceira pessoa para narrar o testemunho
Enquanto que na segunda posição é perceptível que a imaginação vem como recurso a ser usado por um narrador em terceira pessoa do singular (testis conforme Seligmann-Silva em Testemunho da Shoah e literatura), logo o testis não vivenciou o trauma que está narrando. Sendo assim, Jorge Semprun (Apud Seligmann-Silva, 2008, p. 71) afirma que “a pessoa que pode melhor escrever sobre os campos de concentração é quem não esteve lá e lá entrou pelas portas da imaginação”. Tendo em vista que a maioria das pessoas, senão todas, não conseguem narrar o trauma que viveu, pois num primeiro momento há o silenciamento e posteriormente usam como artifício da memória: o esquecimento, nesse sentido somente a figura do testis com auxílio da imaginação pode fazer uma narrativa testemunhal.

3.1.3 Narrar o testemunho neutralizando o ficcional
Já na terceira posição é visível que a única forma de narrar o testemunho, na atualidade, requer a neutralização do ficcional. Mas esta posição cai por terra, porque segundo Seligmann-Silva, em Testemunho da Shoah e Literatura, “literatura de testemunho não é um gênero”. Logo, para Seligmann-Silva (2009), “a literalização consiste na incapacidade de traduzir o vivido em imagens ou metáforas. Desta forma, é imprescindível o uso da imaginação no testemunho para a transmissão do que quer ser repassado. Seligmann-Silva (2009) também diz que “a fragmentação de certo modo também literaliza a psique cindida do traumatizado e a apresenta ao leitor. A incapacidade de incorporar em uma cadeia contínua as imagens “vivas”, “exatas”, também marca a memória dos traumatizados”. Sendo assim, O testemunho também é, de certo modo, “uma tentativa de reunir os fragmentos do “passado” (que não passa), dando um nexo e um contexto aos mesmos”. Enfim, “o testemunho não é o literário – onde não existe a mentira, mas apenas a ‘verdade estética’” (Apud Seligmann-Silva, 2005, p. 92). Tendo em vista tais aspectos não se faz necessário(na literatura de testemunho) narrar o testemunho neutralizando o ficcional.
A segunda tese sobre o testemunho argumenta que a narrativa testemunhal não pode ter elo com a imaginação, pois “pode comprometer a interpretação da história” como afirma Beatriz Sarlo (Apud Ginzburg, 2008, p. 61). Sob essa perspectiva o testemunho deve ser feito de forma verídica, isto é, esta narrativa deve ser imparcial, pois como afirma Raul Hilberg (Apud Seligmann-Silva, 2008, p. 71) “a imaginação faz com que a narrativa testemunhal se torne fonte não fidedigna para o historiador”. Também no campo jurídico, se faz necessário que o testemunho seja desprovido de imaginação, haja vista que se pretende provar algo, seja para inocente ou condenar alguém. É por isso que Seligmann-Silva (2008, p. 72) diz que “o campo jurídico gostaria de manter a singularidade total do testemunho, o que significaria a chancela de seu teor de “prova”, do fragmento do real”. Para Jean Norte Cru (Apud Seligmann-Silva, 2005, p. 84), “o testemunho é um documento antes de tudo exato. Seu paradigma de fidelidade, positivista, é claro, entra em conflito, na medida em que exige exatidão e não contradição”. Mesmo fazendo toda essa abordagem, esta segunda tese não é válida, porque jamais alguém narrou o testemunho na sua singularidade, haja vista que o testemunho é fragmentado e alegorizado, logo, seja o narrador supertes ou/e testis sempre usou como meio (seja para esquecer ou/e silenciar os fatos vividos) a imaginação.

4. Considerações finais
Pelo exposto, os traumas coletivos e individuais uma vez registrados na memória, tanto coletiva quanto individual, serão parte constituinte de um passado sombrio de cada ser humano. Também ficou nítido que num primeiro momento existe um silenciamento por parte da pessoa traumatizada, mesmo assim, há uma carência de narrar o trauma justamente para que a pessoa se levante das cinzas e volte as suas atividades cotidianas. Porém, também existe uma dificuldade de narrar o trauma porque o indivíduo traumatizado retorna a cena traumática, é por isso que se faz necessário o uso da imaginação no testemunho, porque a imaginação vem auxiliar à memória a esquecer o drama vivido.

Referências

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1 Graduanda de Letras pela Universidade Estadual do Pará-UEPa núcleo de Moju-Pa, e está vinculada ao projeto de pesquisa “Representações do trauma no cinema e na literatura pós-ditatorial” da UFPa, campi de Abaetetuba-Pa.
2 Professor orientador. Atua na área de literatura como pesquisador e professor msc. Assistente I pela Universidade Federal do Pará-UFPa, campi de Abaetetuba-Pa.
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