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Literatura e Autoritarismo
Dossiê Literatura de Minorias e Margens da História
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê nº 4 

NÓ-VIVO - LÉVINAS ENTRE “O CAPOTE” E “TOTALIDADE E INFINITO”: OS VESTÍGIOS FILOSÓFICOS DAS LÁGRIMAS SECRETAS DE AKAKIÉVITCH

Cristiano Cerezer1
Resumo: biografia sumária que ensaia situar o pensamento do filósofo Emmanuel Lévinas no lugar de testemunho do esquecimento da alteridade dos sujeitos por parte da política, como portador das cicatrizes do século XX e suas contradições. Não só a narrativa autobiográfica, mas também toda sua filosofia consistem numa crítica da violência contra o outro e num resgate do sentido das relações interpessoais fundado numa sensibilidade ética que se descobre desperta pela alteridade. O esquecimento do outro, e da responsabilidade que nos liga a ele, está sugerido na literatura (russa, sobretudo) e denunciado pela tradição hebraica. Lévinas está atento a isso e caminha entre tais influências por uma via original, onde filosofia e literatura pontuam “o pré-filosófico” que nutre seu filosofar.
Palavras-chave: Testemunho. Alteridade. Ética. Violência. Discurso.
Abstract: Sumary biography who essay situate the philosophical thought of Emmanuel Lévinas in the place of testimony of oblivion of the alterity of subjectivities by politics, like porter of the scars of the XX century and his contradictions. Not just your self-biography, but too all your philosophy are a critic of the violence against the other and a ramson of the sense of inter-personal relations based in a ethical sensibility that discover herself awake by the alterity. The oblivion of the other, and of the responsability who link us at other, is sugest in the literature (russian, above all) and acusad by the hebraic tradition. Lévinas take atention for this and walk between this influences through a original path, where philosophy and literature pointing “the pré-philosophical” who feed your philosophical work.
Keywords: Testimuny. Alterity. Ethics. Violence. Discurse.

Preâmbulo
O século XX foi marcado por horrores que encerram a contradição essencial do progresso científico que vem desacompanhado de um equivalente progresso moral. Indubitavelmente essa defasagem e contradição foram percebidas e sentidas por aqueles que enfrentaram de perto a Segunda Grande Guerra, sobretudo se ele for filósofo.
Emmanuel Lévinas (1906-1995), franco-lituano e judeu, desde cedo vivenciou o trauma da guerra e da perseguição anti-semita. Assombrado pela Revolução Russa, e, posteriormente, pelo nazismo, testemunhou a desumanidade se infiltrar numa sociedade que fazia do impulso bélico uma totalização que encerrava a “diferença” num jogo sistêmico, cristalizando a alteridade em representações dominantes que confirmam um impulso histórico arraigado. A guerra calava vozes e absorvia os sujeitos no "anonimato" de um murmúrio de rostos desfigurados. Mas como pensar a “guerra”? Qual o seu significado para a cultura ocidental? Sua crueza e dureza – crueldade – não atestará a contradição e a hipocrisia de uma cultura ligada ao “poder” e ao “dever”, em que este último sucumbe ao “primeiro”? Ser humano tem sua tônica primeira no “ser” ou no “humano”? A moralidade é uma “farsa” ou ela é “fundamental”?
Entrando, enquanto filósofo, pela porta da Fenomenologia (movimento filosófico iniciado por Husserl e continuado por Heidegger, dos quais Lévinas pode ser considerado um dos mais originais discípulos), obteve o método e a atitude que lhe permitiram buscar na experiência concreta o sentido que produza/oriente a significação da situação prática e moral do homem. Que intenção reside no íntimo da “consciência moral”? O que anima a vivência da e o senso de responsabilidade no homem?
Contudo, tais inquietações não são gratuitas; elas residem na experiência pré-filosófica que precede e sustenta todo esforço filosófico de descrição e elucidação.
As novas categorias filosóficas que Lévinas propôs, cuja riqueza espiritual e significação humana permitiram engendrar uma virada ética e meta-fenomenológica de todo o edifício teórico ocidental, foram colhidas na convergência de três línguas – o russo, o francês e o hebraico. Influenciado por obras como O Capote (N. Gogol), A Morte de Ivan Ilitch (L. Tolstói), Os Cemitério Marinho (P. Valéry), além do Talmude, uniu tal psicosfera literária com profundas leituras de Husserl, Heidegger, Nietzsche, Bergson, Kant, Rosensweig e Platão.
Disto nasceu Totalidade e Infinito (1961) no qual propôs mostrar, mediante o método fenomenológico, que a ética é a dimensão fundadora do humano para-além de qualquer discurso totalitário. Sugeriu uma estética (enquanto sensibilidade irredutível que sustenta e desperta a espiritualidade) da "proximidade-vulnerabilidade" e da "acolhida" para daí substituir os jogos políticos por uma sociabilidade enquanto inter-relação de entes humanos singulares e falantes. Destarte, revela-se a infinição ética de uma alteridade absoluta e da responsabilidade irrestrita diante da exigência e da questão inscritas no semblante alheio. A noção de Rosto (“Visage”) torna-se não só uma categoria filosófica importante, mas metáfora para o enigma da alteridade e para o segredo da subjetividade enquanto responsabilidade.
O presente texto se valerá principalmente da obra Totalidade e Infinito (1961) em conjunto com a entrevista concedida a Philippe Nemo - intitulada Ética e Infinito - e à biografia coligida por François Poiré, Emmanuel Lévinas: Qui été vous? .

Introdução provocadora a uma biografia aberta...
“Isto não é uma biografia: “Isto não é uma biografia!”, mas - isto não é uma biografia?”. Usamos deste jogo frasal, sob inspiração de “Isto não é um cachimbo...” de René Magritte, pintor surrealista francês, para mostrar que aqui não “encerramos” a descrição “total” de uma vida encapsulada para ser “digerida”, nem “esgotamos” sentidos e significações, sequer pretendemos derivar uma “imagem da imagem” (simulacro) do homem real, ou, ao menos, traçar o “perfil” do vivente por afirmação, metalinguagem do que se afirma e questionamento de tudo isto que se quereria afirmar por autoridade acadêmica ou estudo objetivo. Desejamos o “vigor filosófico” radical que permitirá abordar o problema do humano frente-a-frente, num semblante “ético” par excellence. Isto é, melhor dizendo, uma homenagem reflexiva, uma resposta filosofante e ensaística, um exercício de aproximação respeitosa e uma análise de vestígios, tudo isso em “busca”: de um sentido aberto, de uma inquietação profunda e inspiradora, de uma metáfora exemplar e uma mirada crítica, de uma referência utópica, de uma assinatura existencial polissêmica, de um diálogo entre “diferentes tempos/dizeres”, de uma meta-fenomenologia da “subversão filosófica” suscitada por um rosto que ainda nos provoca e nos exige através de seus escritos. O rosto possui um nome e um legado: Emmanuel Lévinas e a Ética genética do humanismo do outro homem.
Este trabalho pretende, quase ironicamente, ter as “cores” de uma breve biografia filosófico-literária. Entretanto, não será ousadia achar-se no poder de descrever uma vida em seus inúmeros matizes, apanágios ou singularidades? Obviamente, não se pode considerar um ser humano tal qual uma “cebola”, passível de ser perscrutado “camada por camada” ou enquadrado a partir do “solo estável” no qual se enraíza. Não somos reduzidos a “sintomas” de nosso cotidiano ou aos “axiomas” de nossa “culturalidade” como, pretensamente, advogam alguns. Ao invés de raízes, possuímos “pés” e caminhamos; em lugar de “brotarmos” a partir de um ponto fixo na eternidade ou congelado no tempo, despontamos como “rosto” diacrônico; nossas camadas são infinitas e se renovam, preservando sempre, no fundo um “segredo”. Então, como biografar? Nisto admitindo a precariedade e a in-conclusão de tal intento? Digamos que cada vida revela a verdade de um rosto que vive e se diz, contudo, sem esgotar-se em sua narrativa ou vivência; o próprio rosto é um “texto vivo” para além dos contextos em que se insere. Nossa tarefa será tentar compreender as “peripécias”, os “traumas” e os “impactos” que obrigaram Lévinas a responder à “questão urgente” que se lhe afigurou ética. Decerto que sua resposta imbuiu-se plenamente do questionamento que a motivou, e, na singularidade do falante, foge-nos “intelectualmente” sua alteridade, mas, nos vem ao encontro sua palavra doada em abertura espiritual e interpretativa. Eis o que pretendemos: “acolher” sua palavra sem violentá-la - “suspendendo a descrença” (à maneira de Samuel Taylor Coleridge) ou a prepotência de nossos juízos “tão certos de si mesmos” - escutar à suas provocações para poder responder, “deixar-se penetrar” sem querer enquadrar ou retratar. O texto abre-se para a chegada deste “outro”, deseja infinitamente “hospedá-lo”, recebendo a sur-presa e sobre-carga (ex-cesso) de seu rosto questionador, acolhendo sua palavra ética. Preservando a dimensão do outro em sua diferença, este estudo será antes um apanhado descritivo coerente e respeitoso com o autor estudado.
Esquivamo-nos aqui do cadafalso behaviorista, psicologista ou historicista, por temor de que as vozes sejam tolhidas ou reduzidas na “forca” do determinismo ou nos circunlóquios totalizantes. Apraze-nos a minúcia e a humildade ao tratar, preservando a abertura a novas leituras, de autor tão rico e provocador. Eticamente inquieto, um nome grita aos homens. Emmanuel Lévinas, quem é você?

I-1. O “Pão Ázimo” e a “Palavra Viva”: memórias de Kovno.
A infância de Lévinas foi um tanto incomum, e, salienta-se, perpassada de inquietações e inspirações peculiares. Nasceu em Kovno (Kaunas), ano de 1906, uma pequena cidade provinciana da Lituânia, que influenciava os arrabaldes com seu brilhantismo religioso e intelectual. Sua família, como era de costume, o educara no judaísmo e na cultura russian, o que quer dizer um estudo precoce e diligente da língua hebraica e russa com suas respectivas literaturas. Desde os seis anos aplicava-se ao hebraísmo talmúdico e à leitura de Poukchine, Gogol, Dostoiévsky, Tolstói e Lermontov; aliás, tal regime era comum entre as crianças judias locais. Poder-se-ia dizer, de fato, que na Lituânia e em toda Europa Oriental o judaísmo alcançara alto teor espiritual e interpretativo. E a pequena cidade natal de Lévinas era repleta de sinagogas e escolas de alto nível onde se ensinava hebraico e se lia a Tora e se faziam estudos talmúdicos, ou, mais raramente, cabalísticos. Vivia-se ali uma rotina refinada de estudos e havia uma vivência inspirada nesse estudo e vivida como estudo constante e renovado. Havia um caráter dialético e hermenêutico no judaísmo dinâmico do leste europeu, efetivado em interpretações e reinterpretações num processo aberto (ouvert) e reinvocado por uma lucidez profunda. Lévinas comenta:
De modo algum era um judaísmo místico, com o intelecto em alerta [com relação a analogias virtuais ou simbolismos cifrados - n.a.]; pelo contrário, entregava-se à dialética do pensamento rabínico através dos comentários aos comentários sobre e no Talmude. (...) A essência espiritual - e isto é muito do judaísmo lituano - residia para mim não em suas modalidades místicas, mas numa grande curiosidade pelos livros (Poirié, p. 52/57).
Nota-se que Lévinas desde criança sentia-se fascinado pelo “dizer do outro”, pela mensagem que de algum modo pulsava nos livros como uma voz que o chamava a ouvir e responder num esforço interpretativo. Daí se segue, talvez, sua pergunta pelo sentido da palavra e pelo “dizer infinito” de outrem. Há implícita a idéia de que se alguém nos interpela com sua palavra (falada ou escrita), devemos aceitar o “outro” da interlocução para poder responder ao seu apelo ou questionamento. Essa valorização do dizer e do diálogo, este respeito ao interlocutore falante, e esta preocupação contínua com o novo a ser dito e a aproximação do outro do dito. Insinua-se aqui um “livro vivo” (sepher hayyahte) que jamais esgota interpretações, que exige nova escuta em resposta, que sempre surpreende com um excesso do dizer: o homem. Contudo, isto se constituirá análise sistemática, posteriormente, com suas leituras filosóficas e vivências traumáticas. Com os vestígios do “Pão Ázimo” comido pelos judeus nas revoluções/torturas da história, na sua “eterna passagem” (paschoa), e nos vestígios de uma “Palavra Viva” deixados na literatura, Lévinas seguiu em busca de uma “Verdade Nômade”, resposta indispensável à sua “inquietação crescente”.

I-2. Lágrimas2 secretas de Akakiévitch: eu sou teu irmão!
A literatura russa sempre despertara, na alma do jovem Lévinas, uma inquietação e um estremecimento, que se traduziram na incessante pergunta pela justiça verdadeira, pela dor moral sentida na pobreza e na violência dos homens, e pela possibilidade da paz social e prosperidade fraterna entre os seres humanos. Lera com entusiasmo e emoção León Tolstói (Guerra e Paz e A Morte de Ivan Ilitch), F. Dostoiévsky (Crime e Castigo, Os Demônios, O Príncipe Idiota, e Ela Era Doce e Humilde), A. Tchekhov (Vanka e O Inimigo) e, sobretudo, Nicolai Gogol (O Capote). Há algo de fascinante no povo e na literatura russa que fisgaram a alma de Lévinas para uma “teia intensa e sensível” de reflexões morais e existenciais. O que torna essa literatura tão provocadora? Ouçamos o que Aníbal M. Machado tem a dizer:
Étnica e geograficamente a Rússia é uma área das mais ricas e extensas da Europa. Dessa peculiaridade física e social nasceu tamanha variedade de formas de viver e de sentir que, sem a consciência política e a vontade construtiva dos Sovietes, chegariam à confusão e ao amorfismo anárquico... Por aí se pode bem aferir o palpitante material humano de que se aproveitaram os escritores russos de antes da Revolução.
Continua:
A alma do povo, difusa e sofredora, ávida, incoerente e nostálgica_ afluiu à pena deles. (...) O homem russo, ao mesmo tempo em que se expande muito e facilmente, é capaz do mais demorado mergulho em si mesmo. Rapidamente passa do estado de alegria para o de angústia niilista, da aventura para o êxtase vago. Parece viver mais intensamente quando conversa e se comunica: quando conta... (...) ...são imprevistas suas reações... desnudam toda riqueza e variedade contraditória dos sentimentos... da vida.
E mais, quanto à escrita:
Sua escrita não é só pintura de costumes ou de polítipos; é também a sensação lírica da vida, a que se juntam o grotesco, o triste e o trágico quotidianos... intimamente associada à fisionomia das coisas e ao drama das criaturas... (...) ...o calor e a espontaneidade da vida... o sentido social... desejo de viver em paz com os outros... dignidade, salvação... libertação social. (...) Em todos, sempre o desejo de justiça e fraternidade, o dom de simpatia humana, surgidos da própria vida miserável e do sofrimento surdo do povo. (...) Rica de seiva humana, ela transborda seus limites nacionais e se doa para o mundo (Braga, p. 11-12).
Destarte o autor aqui estudado nutriu-se deste sentimento e motivação social e existencial embebido na vida e na indignação contra a violência e contra a injustiça. O que nos torna humanos? É possível pensarmos-nos como irmãos? Como as diferenças podem “habitar pacificamente” o mundo? O que rege a relação com outrem: simpatia ou estranhamento ou empatia emocional ou esperança...? Tudo isso se enfileirou no âmago de Lévinas a guisa de curiosidade e dúvida inspiradora de busca.
Há, aliás, um exemplo contundente de pergunta ética, num célebre conto de Nicolai Gogol, intitulado O Capote. Nele, um personagem chamado Bachmatchkin Akaki Akakiévitch - cujo primeiro nome significa, em russo, “sapato” (bachma), ou seja, algo que pode ser ou costuma ser “calçado” ou adequado a um uso comum_ trabalhava num departamento do estado como “copiador”; e lho fazia com tal afinco que “...se podia ler no seu rosto cada letra que a pena lhe traçava.” (Gogol in Braga, p. 47). Tal personagem desempenhava, resignado, suas tarefas sendo, entrementes, constantemente azucrinado e ridicularizado por seus colegas e compatriotas, entretanto não reagia, contentava-se em sussurrar: “- Deixem-me! Não vêem que estão me magoando?”. Certa vez, um novato adentra no “sistema” da imprensa e queda a aliciar Akaki com ofensas e zombadas, como era praxe coletiva, contudo, então ele ouviu o “reclame surdo da vítima” aparentemente resignada:
E nessas palavras ressoava o eco de outras palavras: - ‘Eu sou teu irmão!’. O infortunado jovem cobria então o rosto, e mais de uma vez, durante sua existência, haveria de estremecer ao ver o quanto o homem carece de humanidade, ao constatar o quão arrogante é a ferocidade que se encapa sob as maneiras mais polidas, mesmo naqueles que o mundo considera pessoas honestas e de bem... (Gogol in Braga, p. 47).
Este mesmo personagem, é absurdamente roubado, furtam-lhe um capote que lhe protegia do frio; por isso, apela ao auxílio dos homens, clama por justiça, mas estes se esquivam, conformados em si e agindo com indiferença. Morre, pois, de frio. Mas a morte de um inocente não é “desaparecimento” inócuo, é, por outro lado, “questão” que paira sobre os viventes e inquietação que “reclama” e reitera seu chamado. Assim:
Entretanto, Akaki Akakiévitch não dissera ainda sua última palavra. Quem o imaginaria destinado a levar no além-túmulo uma existência movimentada, experimentando bulhentas aventuras, sem dúvida para compensar o pouco brilho da sua permanência mortal neste mundo! (Gogol, p. 60).
Retorna ele como um ”fantasma” a reclamar justiça aos vivos que ficaram em débito com ele, aos “sobreviventes” que ignoraram sua voz e não reconheceram sua existência enquanto ele ainda respirava e possuía um “rosto visível”. Vagou lamuriante e plangente pelas vielas, expressando como “sombra” e “rosto fantasmagórico” as “lágrimas secretas” que olvidara ou engolira em vida, e, com mãos evanescentes, tentava recuperar o “capote” que lhe fora rapinado. Responsabilidade além-túmulo, obsessão pelo outro.
E que dizer do conto “A Dama de Espadas” de Alexandre Puchkin, já introduzido com uma frase de impacto de Dante Alighieri: “É amargo o pão de outrem e difíceis de subir os degraus da porta alheia”. Nele o escritor atina para a impossibilidade de se escapar incólume do “ato atroz de matar” ou do peso aniquilante do assassinato. Há na própria consciência um juiz “intimoforático”, entretanto, a inquietação ética que emerge como um sofrimento próprio por outrem é mais profundo, a guisa de uma “empatia estranha” aprofundada que ganha a força de uma “substituição” e “perturbação sensível”. Ilustra-se:
Embora não sentisse remorsos, Herman não podia abafar de todo a voz da consciência, que lhe repetia sem cessar: ‘És o assassino!’ Embora não possuísse nenhuma crença, perseguia-o uma grande inquietação supersticiosa.” (Puchkin in Braga, p. 37).
Esta inquietação para além das crenças, conhecimentos ou interesses é vividamente ética e desborda como uma fé “involuntária” no outro inquietante ou acusador, pelo qual nos sentimos responsáveis. Isto aparece também no “Crime e Castigo” de Dostoiévsky, em que o personagem principal Rakólhnikov [do russo: ‘raskol’- cisão] é o étimo, o homem cindido, atravessado por uma inquietação ou presença maior que suas forças, é, pois, o atormentado pela contradição ou paradoxo existencial que se solidifica entre as exigências que ele faz à vida, à humanidade e a si mesmo, incluso a capacidade de realizá-las, e a contracorrente das exigências alheias de cunho ético ou social. Vide: “A consciência do crime, quem a tem sofre ao reconhecer o erro, e o relembra sem poder evitar, e sofre. A dor da culpa atravessa a alma, reavivando-se, reavivando mais que a memória do erro, o sentimento. Esse é o seu castigo, a sua expiação... ”. Isto posto, fica mais fácil entender o quanto a literatura e língua russas contribuíram para a forma de pensar levinasiana.
Lévinas também leu E.A.Poe e W. Shakespeare que, em suas literaturas, denunciavam uma profunda inquietação moral ligada tanto à alteridade da morte e de outrem, como também à alteridade da própria consciência à si própria, isto é, sua “inquietude obsessiva”, outro-no-mesmo: consciência moral. Contudo, é na “literatura russa” que ele bebe essa inquietação em tragos mais demorados e em quantidade mais generosa. Talvez seu pensamento seja a “resposta filosófica” aos vestígios das “lágrimas secretas de Akakiévitch”.

CONCLUSÃO
Emmanuel Lévinas é um dos filósofos contemporâneos mais impactantes e criativos no trato do problema da alteridade e da gênese da consciência moral. Ele influenciou gerações de pensadores e teóricos tais como Blanchot (seu amigo pessoal), Ricoeur, Derrida, Lyotard, Jankélevitch, Sartre, Richir, Barthes, etc. Tentamos indicar, ao longo de nossa breve análise, que a “preocupação ética” que se desdobra na filosofia levinaisana – sobretudo e primeiramente em Totalidade e Infinito (1961) – tem sua origem em três fontes: 1) sua infância em Kovno e sua criação judia; 2) seu contato com a “literatura russa”; 3) o trauma que o nazismo e o holocausto lhe provocaram. Mostramos, através da análise de “O Capote” e de certos apontamentos, que o pensamento ético-filosófico levinasiano é um “cadinho vivo” que destilou as “inquietações éticas” da Escritura Sagrada e da Literatura Russa e, através do Trauma da Guerra, fez emergir uma filosofia original e provocativa: “Humanismo do Outro” que propõe uma Responsabilidade anterior à Liberdade e que nos lembra que somos indivíduos irredutíveis moralmente significantes. É em sua “responsabilidade infinita”, olvidada e ameaçada pelos hedonismos e autoritarismos, que o individuo humano significa como possibilidade mesma de “ruptura da totalidade”.

Referências

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1 Mestrando em Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bolsista CAPES, modalidade DS, pelo projeto: “A sensibilidade como princípio de individuação em Lévinas”. Orientador: Prof. Ph.D. Marcelo Fabri. E-mail: cristianocerezer@gmail.com
2 “Fraqueza sem pusilanimidade como o inflamar-se de uma piedade. Descarga do ser que se desprende. As lágrimas talvez sejam isto. Desfalecimento do ser que tomba em humanidade” (Lévinas, 1993, p. 16).
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