A ALEGORIA E IDEOLOGIA : “O REY DE HAVANA” E “ILHA DAS FLORES”Anderson Amaral de Oliveira1
Resumo: Este trabalho estabelece relações entre a obra literária “O Rey de Havana” de Pedro Juan Gutierrez e o documentário “Ilha das Flores” de Jorge furtado através da leitura alegórica dos problemas sociais apresentados em sistemas políticos distintos. De um lado a vida de Rey, oprimido pela miséria do submundo de Cuba socialista, e de outro, famílias que disputam alimentos recusados por porcos em um depósito de detritos no Brasil, igualmente oprimidos pela miséria, essa imposta pelo sistema democrático capitalista. Assim, esta leitura alegórica permite a reflexão e o questionamento para além dos termos ficcionais, tomando novo fôlego sempre que houver injustiça social.
Palavras-chave: “Rey de Havana”. “Ilha das Flores”. Leitura alegórica.
Abstract: This paper establishes relations between the literary work “O Rey de Havana” by Pedro Juan Gutierrez and “Ilha das Flores” documentary by Jorge Furtado through allegorical reading of social problems, showed up in two different political systems. By one side Rey’s life, living oppressed by poverty in the Cuban’s socialist underworld, and on the other side, families disputing pig’s refused food in a Brazilian city dump, likewise oppressed by poverty, this one, imposed by democratic capitalist system. In this manner, allegorical reading allows reflection and discussion beyond fictional terms, getting a new valour whenever social injustice occurs.
Keywords: “Rey de Havana”. “Ilha das Flores”. Allegorical reading
O BICHO
Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem. (Manuel Bandeira) Utilizando-se de uma atmosfera carregada com os odores pútreos da decomposição da matéria orgânica que se funde com a degradação da dignidade e da identidade de seres humanos, a obra literária “O Rey de Havana” de Pedro Juan Gutierrez e o documentário cinematográfico “Ilha das Flores” de Jorge Furtado retratam uma realidade chocante e crua, que causa na maioria de seu publico receptor uma sensação de estranhamento e um profundo desconforto, seja pela linguagem estética utilizada ou por uma construção imagética muito realista. Essas obras são embebidas de intensa crítica social, que retratam através do realismo, o movimento de um submundo, que vive do “outro lado do muro” da urbe.
Tais obras apesar de serem ficções2 possuem o peso de testemunha de uma catástrofe social que está em opulência e não é vista, ou já está banalmente naturalizada ao ponto, de parecer imperceptível. O sentimento de desconforto trazido, é ao mesmo tempo crítico e inquiridor a uma sociedade que de modo geral, tende a jogar a “sujeira” para de baixo do tapete. Atrás da mascara ficcional destas obras, é possível ter uma espécie de deja-vú de como é o outro lado deste muro, imposto por essas desigualdades, que se gostaria de acreditar existir apenas nestes meios. As obras analisadas são frutos de uma série de escolhas semânticas, semióticas e estilísticas bem peculiares de seus autores, cujo intuito de mesclar esta visão de catástrofe com elementos da ficcionalidade, nos proporcionando classificar os autores como testemunhas das mesmas.
Pedro Juan Gutierrez na sua obra “O Rey de Havana” mostra uma dura realidade do seu país, Cuba, na qual encontra-se Reynaldo que vive entre a miséria, a prostituição, pequenos delitos, a sujeira e os odores que derivam desta atmosfera decadente. Rey é um rapaz que com apenas treze anos vai para o reformatório após ser acusado do assassinato da mãe e do irmão. O fato é seu irmão Nelson, um ano mais velho, ao revidar as agressões da mãe demente e subnutrida, a empurra contra um galinheiro tendo ela assim, o pescoço perfurado por um cabo de aço. A avó que como descrita na obra se parecia com “uma morta-viva”, ao ver que o neto sentindo o peso da culpa, se lançara da cobertura invadida na qual moravam, tem um ataque cardíaco fulminante. Rey que repentinamente se vê, imerso numa densa tragédia foi provavelmente acometido por uma amnésia pós-traumática, pois não foi capaz de retratar à polícia local sua versão dos acontecimentos. Assim, sendo o único vivo no local, sem outras testemunhas, foi declarado culpado sem maiores delongas.
É importante salientar que o decorrer da história depende da estada de Rey por esses três anos no reformatório, de forma que fica “gostando de maconha” (GUTIERREZ, 2006, p. 15)3 e adquire duas “perolas” em sua glande (uma espécie de implante de esferas metálicas retiradas de rolamentos) (Idem, p. 17) que aumentaram seu poder fálico sobre as mulheres (e o travesti Sandra) que fizeram parte da sua vida, sendo por isso considerado num sentido sexual e irônico, o rei de Havana. Ao fugir do seu cárcere, Rey se esgueira em meio a um depósito de carros velhos, onde encontra um contêiner desocupado, que passa a ser sua moradia. Sobre a opinião da personagem principal quanto à sua própria vida, pode se dizer que,
Sua morte e sua desgraça era que vivia exatamente o minuto presente. Esquecia com precisão o minuto anterior e não se antecipava nem um segundo ao próximo minuto. Tem quem viva dia a dia. Rey vivia minuto a minuto (GUTIERREZ, 2006, p.178). Além disso, Rey era extremamente externo a qualquer forma de ordem, não fazendo parte de nenhum tipo de estrutura social ou familiar, sendo sua vivência ausente dessas referências. Mais tarde, nas relações afetivas que são esboçadas com algumas mulheres, não chega a desenvolver a profundidade necessária para a criação de vínculos emocionais, exceto com uma delas, Magdalena, pois sente ciúmes e um “sentimento desconhecido, mas belíssimo” (Idem, p. 131), inclusive chegando a morar com ela em uma “casa só deles”, construída por Rey à partir da carcaça de um ônibus abandonado em um depósito, pensando na possibilidade de terem filhos.
Essa desvinculação de Rey a tudo e a todos, mesmo à Magda (diminuitivo de Magdalena utilizado por Rey), oferece perigo aos regimes controladores instaurados, não na forma de imprimir uma reação contrária, mas pelo mero fato de não as obedecer, não fazendo parte e nem a diferença em nenhuma das esferas sociais táteis conhecidas e bem definidas, não podendo em última instância, ser controlado. A exemplo do estado (ilustrado pela polícia ou patrulha) a Rey, representava apenas um obstáculo ao qual devia “desviar”, pois assim como não possuía identidade em relação ao contexto social, nem mesmo possuía o documento que comprovasse sua existência, fato que poderia lhe causar problemas burocráticos com tais autoridades, temendo por uma cobrança de seu débito penal, valendo lembrar que anteriormente havia fugido do reformatório.
Rey, não dependia de relações econômicas mais sofisticadas para se manter vivo, pois se não tinha alimento, o buscava no lixo, ou pedia esmolas, usando para isso imagens de santos ou “bonecos” como ele os chamava e que não passavam de um instrumento para angariar algumas moedas. A sua relação mais próxima com a religião foi essa apenas, sendo que, ao passar pela igreja da Virgem de Régia, ficou confuso e não entendia o que as pessoas faziam lá dentro, além de não se identificar com o catolicismo, nem com outras manifestações religiosas locais, como o candomblé: “[E]le não sabia nada de igrejas, nem de religião. Nem sua mãe, nem sua avó, ninguém jamais tinha lhe falado do assunto” (Idem, p. 24). Certa vez disse à Daisy, cigana que lhe acolheu:
Deus não existe porra nenhuma. Você vive feito uma rainha. Claro que tem que acreditar em todos esses santos e no baralho e nessa merda toda. Eu não acredito em nada! Não acredito nem em mim! (Idem, p. 198). A questão de negação da divindade religiosa é um fator que chama a atenção nas duas obras. No início de “Ilha das Flores” aparece claramente a frase: “Deus não existe”, antes mesmo da apresentação do documentário. O fato da negação da existência de Deus é um impactante argumento dos autores de ambas as obras que pretendem com isso denunciar o total abandono dos personagens, pois além do abandono da sociedade do governo são abandonados inclusive pelo Deus cristão, que produz em outros personagens uma espécie de alento espiritual, como o caso da religiosa Daisy.
“O Rey de Havana” possui, além da história central, diversos núcleos narrativos bem claros, que possibilitaria dividi-lo em capítulos, sendo pequenas narrativas marcadas pelas relações que os demais personagens estabelecem com Rey. Desta forma, além de personagem principal, Rey é a macro-estrutura que proporciona a devida continuidade a esses acontecimentos menores da trama que possuem início, desenvolvimento e fim distintos. Analisando a história a nível micro e macro-estrutural, é possível perceber que toda a vida do “herói” se dá em busca da sua saciedade, seja de alimentos, rum ou sexo, fazendo com que os demais acontecimentos se originem na relação de causa e conseqüência desta constante busca. Podemos citar alguns núcleos que a título de exemplificação gerariam capítulos, como a vida com a família e a temporada no reformatório, a visita à Fredesbinda (ex-vizinha), seu relacionamento com Magda, Sandra, Kátia, Yunisleidi e Daisy.
Dentre essas pessoas que passam pela vida de Rey, algumas tentam lhe ajudar, dando abrigo, roupas limpas e condições de uma vida mais confortável, porém a sujeira e o desleixo animalesco exercem sobre o personagem uma força muito mais forte, quase instintiva, não o deixando portanto, se ambientar com a higiene e com o bom tratamento. O fato de ter que tomar banho lhe causa tremendo “estranhamento” talvez por lhe fazer lembrar da rígida rotina no reformatório. Assim, todas às vezes que é tirado da imundície e bem alimentado, logo se sente forte e confiante para voltar para a sujeira.
Além da sujeira dos personagens e pela ausência das mínimas condições de saneamento, a atmosfera decadente de Rey se intensifica ao término de sua existência. O quarto no prédio abandonado no qual morava com Magda ruiu após uma intensa chuva, restando-lhe retornar com Magalena ao seu primeiro abrigo, o deposito de carros que se situava a cem metros do depósito de lixo da cidade. Tendo a perna ferida no acidente, vivia apenas do que sua companheira lhe trazia, se tornando tão ciumento a ponto de assassiná-la. Uma morte cruel e surreal, pois Magda é enterrada somente alguns dias depois de sua morte, já em avançado estado de putrefação. Rey contrai uma poderosa infecção, transmitida pelos ratos que lhe morderam todo o corpo, ao enterrar Magda no lixão.
Tudo na história faz sentido perfeitamente, seja a linguagem realista, rude e crua, que se torna um poderoso recurso estilístico nas mãos de Pedro Juan Gutierrez, que a não ser Bukovski, talvez outros autores não teriam coragem de utilizar. Dentro disso incluem-se honestas e peculiares descrições dos odores, cores, e pessoas que habitam o lado obscuro de um país, em plena convulsão social reprimida por um governo ditatorial.
Dentre as diversas reflexões feitas pelo narrador, que durante a obra ajuda o leitor a ter uma visão mais ampla da situação, uma delas em especial merece destaque e resume perfeitamente a existência de Rey: “Não vinham do pó e ao pó regressariam. Não. Vinham da merda. E na merda continuariam” (Idem, p. 217). O enredo é encerrado de uma forma magistral e assustadora, utilizando-se da seguinte frase: “E ninguém jamais ficou sabendo de nada” (Idem, p. 246), ou seja, nesse sistema excludente, a vida humana é banalizada. Se ninguém ficou sabendo de nada, é porque essas pessoas apesar de serem seres humanos, não interessam a uma sociedade de consumo, ou a um regime político opressor. Não fazendo a menor diferença.
Em outro lugar do planeta, no mesmo lado oprimido da história, precisamente em um depósito detritos de Porto Alegre, Sul do Brasil, porcos se alimentam com restos de comida que os seres humanos julgaram impróprios para seu consumo. E o que sobra desta refeição, é disputada por famílias de outros seres humanos, que assim como Rey de Havana são assolados pela fome e miséria, aos quais não são proporcionadas as mínimas condições de dignidade. A sobrevivência dessas famílias e da personagem Dona Anete, é retratada no documentário cinematográfico “Ilha das Flores”, escrito e dirigido por Jorge Furtado, lançado em 1989, que permanece atual mesmo há exatos vinte anos de seu lançamento. Este filme que possui apenas 13minutos e 17 segundos, faz duras e pertinentes crítica ao sistema capitalista e ao modo de consumo predatório, acompanhando a trajetória de um tomate, desde sua plantação até o seu descarte. Durante o trajeto “percorrido” por este vegetal, de forma didática são explicados alguns conceitos, como o de “lucro” e o de “ser humano” por exemplo:
Dona Anete (...) troca, com uma fábrica, uma quantidade determinada de dinheiro por perfumes. (...) dona Anete caminha de casa em casa trocando os perfumes por uma quantidade um pouco maior de dinheiro. A diferença entre estas duas quantidades chama-se lucro. Obviamente, este filme não almeja trabalhar apenas o trajeto de um tomate, mas sim criticar as relações desiguais que se dão paralelamente à produção e a compra de um simples alimento. Nesta seqüência, os tomates que Dona Anete julgou impróprios para o consumo de sua família, vão para o lixo. No depósito de lixo, os detritos inorgânicos são separados dos restos de alimentos, que alimentarão os porcos pertencentes a um suinocultor da Ilha das Flores. O que os porcos julgarem impróprios para seu consumo, é disponibilizado então para grupos de seres humanos e sua alimentação.
Assim como “O Rey de Havana”, põe em xeque o próprio conceito de humanidade ao retratar a selvagem defesa da sobrevivência de Rey, Jorge Furtado enfoca o ser humano oprimido, segundo sua visão, e que na escala de valores da sociedade excludente, retratada no filme, está abaixo dos porcos, sendo, portanto, um subproduto de sua própria raça. As comparações neste documentário são constantes, buscando através da acidez de sua ironia, sua efetividade discursiva, por exemplo, “Cabe lembrar que dona Anete tem o telencéfalo altamente desenvolvido enquanto o porco não tem nem mesmo um polegar, que dirá opositor” (FURTADO, 1989). Ou seja, o porco não pode se opor à situação imposta, pois é um animal sem “telencéfalo desenvolvido”, enquanto o ser humano, racional, vive numa condição abaixo deste animal, apenas esperando pelos seus restos.
Esse rápido e incisivo documentário, além do teor de denúncia, não ao suinocultor que “tem dinheiro”, e representa o capitalismo e o acúmulo de renda, mas á uma sociedade como um todo, que sendo desigual por natureza, exclui para as periferias urbanas o que não quer ver, confinando à pobreza e fechando o acesso ao mínimo de dignidade que um ser humano deve ter. Desta forma, o filme em diversos momentos apesar da ironia permanece claro e constante, questionando e provocando estranhamento em seu público, não apenas à circunstância exibida, remetendo a reflexão de um problema profundo: por que os porcos têm preferência ao acesso à comida? É encerrado então com a seguinte mensagem:
O que coloca os seres humanos da Ilha das Flores numa posição posterior aos porcos na prioridade de escolha de alimentos é o fato de não terem dinheiro nem dono. Os humanos se diferenciam dos outros animais pelo telencéfalo altamente desenvolvido, pelo polegar opositor e por serem livres. (FURTADO, 1989). Há que se que ressaltar que as desigualdades sociais estão claramente retratadas em dois sistemas econômicos e políticos distintos, sendo que Cuba em que Rey vive, é dirigida sob um regime socialista que teoricamente deveria ser mais igualitário que o capitalista. Pedro Juan Gutierrez, de acordo com uma entrevista dada à revista Playboy, diz não intencionar tratar de assuntos políticos em seus livros, alegando o seguinte:
Não gosto de falar de política por uma razão: ela é circunstancial. O que hoje é branco, amanhã pode ser negro e vice-versa. Pretendo fazer uma literatura mais universal, atemporal. Meus livros não contêm política, mas estão repletos de matéria humana, de sentimentos. (...) Hoje, Cuba tem um governo e amanhã pode ter outro. (...) Isso não interessa para meu trabalho. (...) Agora, de qualquer jeito, a literatura se contamina com o ambiente do escritor, ainda que ele não queira. (GUTIERREZ, 2001). Contudo, o autor acaba por não perceber que os discursos ideológicos e políticos permeiam “O Rey de Havana” o tempo todo, atingindo escalas muito maiores do que o próprio autor percebe ou diz perceber, pois segundo Fiorin, “[o] conjunto de idéias, a essas representações que servem para justificar e explicar a ordem social, as condições de vida do homem e as relações que ele mantém com os outros homens é o que comumente se chama ideologia” (2000. p. 28).
Desta forma, mesmo não sendo o intuito de o autor entrar em assuntos políticos, acredito que a impressão que fica durante a leitura fílmica ou literária destas obras, é de no mínimo de questionamento, desconforto e/ou incredulidade, que nos faz pensar de forma mais humana e inquiridora. Tal que, “[o] sobrevivente, aquele que passou por um ‘evento’ e viu a morte de perto, desperta uma modalidade de recepção nos seus leitores que mobiliza a empatia na mesma medida em que desarma a incredulidade” (SELIGMANN-SILVA, 2006, p. 375).
Se o livro dá a idéia de carregar uma ideologia mais profunda, isso ocorre pelo fato de que “ela existe independentemente da consciência dos agentes sociais” (FIORIN 2000. p. 29). O mesmo autor ainda afirma que não temos um discurso sem ideologia e que “ela [a ideologia] é uma ‘visão de mundo’, ou seja, o ponto de vista de uma classe social a respeito da realidade (...)”, sendo o seu discurso, apenas “materialização das formações ideológicas” (id. p. 41).
Porém é necessário se fazer uma grande e importante distinção conceitual: Autor é autor, narrador é narrador. Mesmo tendo grandes semelhanças da visão testemunhal do autor e da visão do narrador, em “O Rey de Havana”, não podemos, de forma alguma, confundi-los, além do ponto de vista da influência, pois a literatura e o cinema realistas, apesar de uma proximidade com o real, são no sentido estrito da mímesis aristotélica, imitações da natureza ou recriações da realidade (COMPAGNON, 2006, p. 102):
A Verdade é que esse limite entre a ficção e a ‘realidade’ não ser delimitado. E o testemunho justamente quer resgatar o que existe de mais terrível no ‘real’ para apresentá-lo. Mesmo que para isso ele precise da literatura. (SELIGMANN-SILVA, 2006, p. 375) Desta forma, nos é esclarecido que os autores mesmo sendo testemunhas de uma catástrofe, mesclam o que aconteceu com o que poderia ter acontecido - recriação do real na ordem do verossímil (COMPAGNON, 2006) - para atingir seu objetivo enquanto obra literária e cinematográfica, que neste caso reclama uma justiça social, utilizando assim a ficção realista como ferramenta para uma conscientização e uma possível mudança do quadro testemunhado. Essa preocupação com o lado esquecido de uma população, permeia o discurso dos autores, deixando claro então as suas intenções. Entretanto, ainda Compagnon (id. p. 50-52) discute até que ponto pode ser relevante levar em consideração a intenção do autor, pois apesar dela, depende do leitor a condução da consolidação dos significados que possam estar presentes em uma obra. Nestes casos, os autores utilizaram-se de um recurso retórico muito antigo e muito efetivo com o intuito de gerar no receptor o sentimento de empatia com as situações apresentadas, chamado alegoria. A alegoria que literalmente significa “dizer o outro” (KOETHE, 1986, p. 7) conduz o texto a uma plurissignificação, o revalidando ao entrar em contato, através do leitor, com uma nova realidade. Dessa forma “A interpretação alegórica procura compreender a intenção oculta de um texto pelo deciframento de suas figuras.” (COMPAGNON, 2006, p. 56). É o que permite, por exemplo, fazer com que o documentário analisado continue sendo atual mesmo vinte anos após a sua elaboração e “O Rey de Havana” nos cause impacto sem mesmo precisarmos ir a Cuba.
Apesar da tese da “Morte do autor” de Barthes (apud COMPAGNON, 2006, p. 49-52), a qual concede à leitura e ao leitor a formação de significados, podem ser levados em consideração durante este processo de (re)criação de significados, alguns fatores que envolvem biograficamente o autor de “O Rey de Havana” pois o mesmo tem uma visão de testemunha de catástrofes sociais, refletindo diretamente da “matéria humana” que lhe é conhecida, para as tramas que envolvem os seus personagens.
Usando o conceito de alegoria (CEIA, s.d.), “Uma alegoria é aquilo que representa uma coisa para dar a idéia de outra através de uma ilação moral.” Desta forma o que vemos representado nas obras analisadas, é uma sociedade decadente, com valores distorcidos que pendem para um agravamento dos seus problemas sociais e que nos remete a um questionamento da própria concepção de ser humano. Por exemplo, a descrição contida no documentário “Ilha das Flores”:
Os seres humanos são animais mamíferos, bípedes, e se distinguem de outros animais mamíferos (...) principalmente por duas características: o telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor. (FURTADO, 1989, 1: 24s) Rey que representa alegoricamente grande número indivíduos de situação social e econômica semelhante, além de ser bípede, mamífero, possuidor de telencéfalo “altamente desenvolvido” e polegar opositor, mostra a vida por um ângulo primitivo, ao viver apenas em função dos próprios instintos animalescos inerentes ao ser humano, como por exemplo, ao estar sempre em busca de saciedade. Rey, assim como os habitantes da Ilha das Flores, além de representar o lado indigente de um país, deixam uma indagação ao leitor quanto à natureza do metafórico polegar opositor, em comparação aos porcos. Em Ilha das Flores a reflexão é externa aos personagens e Rey parece evitá-la, não exprimindo em nenhum momento uma epifania, continuando assim, a agir instintivamente até sua morte. Rey, claramente reprime sua criticidade, talvez como uma forma de inibir interpretações politizadas da obra, impedindo uma tomada de consciência do personagem. Quando pede esmolas a um bêbado, que se comove com um “morto de fome pedindo para outro morto de fome”, lhe diz: “A gente vem no mundo pra sofrer. Neste vale de lágrimas; Rey então lhe devolve: Eu não sofro nada. O que eu tenho é fome” (GUTIERREZ, 2006, p. 25).
Desta forma, sendo este um estudo comparado, pode-se sublinhar que o conceito de alegoria proposto pelo filósofo alemão Walter Benjamim, sintetizado por Calegari (2009), nos ajuda a compreender as relações que estas obras produzem entre si e perante a um mundo fora dos meios ficcionais:
a leitura alegórica proporia a imagem por fragmentos, revelaria a incompletude e o despedaçamento, privilegiando o momento e restaurando a continuidade em instantes heterogêneos e desconexos. A alegoria consistiria, portanto, na representação de estilhaços do passado esquecido, da história do sofrimento e da catástrofe. Com isso, ela projeta a denúncia do oprimido ao trazer à tona o que está implícito. Logo, a função do procedimento alegórico seria exibir estaticamente a face doente ou doentia da história. Através da leitura alegórica destas obras nos é autorizado submete-las a qualquer realidade sejam quais forem as que conhecemos, como ponto de partida para reflexões sob óticas particulares, pois como diz Gutierrez, estas obras estão repletas de “matéria humana”, que diversa, forma uma sociedade de forma geral. Sociedade esta que é multifacetada e que muitas vezes não permite ou não deseja saber que existe um outro lado da história, permanecendo à parte da realidade, crendo estar protegida por este muro imaginário que oprime e sufoca, enquanto no outro lado a realidade latente se debate nesta obscuridade e na violência de um submundo e que fica assim, apenas a circular no imaginário de parte de uma população que se exime por falta de (interesse no) desenvolvimento de um pensamento crítico.
Referências bibliográficas BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, 20. ed. p. 201-202 e 222. Ceia, Carlos (Org). ALEGORIA. Dicionário de termos de teoria e crítica Literária. Editorial Verbo, Universidade Nova de Lisboa. Disponível em http://isabelrosete.spaces.live.com/blog/cns!D817DDC0D34846ED!209.entry Acessado 08 jun. 2009. CALEGARI, Lizandro Carlos. A propósito da história, da melancolia e da alegoria em Benjamin. Literatura e Autoritarismo: o Esquecimento da Violência. Santa Maria, n° 04. 2002. Disponível em http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/num4/editorial.html Acessado 25 mai. 2009. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: Literatura e senso Comum. UFMG. Belo Horizonte. 2001. FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. Ática, São Paulo. 2000. GUTIERREZ, Pedro Juan. O Rey de Havana. São Paulo: Companhia das Letras. 2006. FURTADO, Jorge. Ilha das flores – roteiro consolidado, 1989. Disponível em http://www.rc.unesp.br/igce/planejamento/nuppag1/ilhadasflores.pdf Acessado 09 jun. 2009 KOTHE, Flávio R. A alegoria. Ática, São Paulo. 1986 GUTIERREZ, Pedro Juan. Revista Playboy, ago. 2001. Entrevista concedida a Kiko Nogueira e Helena Freuet. Disponível em http://www.pedrojuangutierrez.com/Entrevista_PT_Playboy.htm Acessado em 23 mai. 2009. SELIGMANN-SILVA, Márcio. O testemunho: entre a ficção e o “real”. História, memória e literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. Unicamp. Campinas, SP. 2003. 1 Mestrando em Letras pela UFSM.
2 O documentário mencionado, em sua apresentação, como recurso estilístico, nega o fato.
3 A paginação citada se refere à obra digitalizada disponível na internet.
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