HERANÇAS DA ESCRAVIDÃO NA NARRATIVA PONCIÁ VICÊNCIO, DE CONCEIÇÃO EVARISTOViviane C. M. Stringhini1
Resumo: Neste ensaio, será feita uma análise histórico-literária de alguns acontecimentos do romance Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, que revelam aspectos de exclusão vivenciados ao longo da história pela população negra e que subsistem até hoje. A visão originada de valores negativos arraigados em nossa cultura tem contribuído para a construção de uma identidade socialmente depreciativa do negro, que pode ser identificada nessa narrativa.
Palavras-chave: Identidade. Inferioridade. Exploração. Preconceito. Violência.
Abstract: This essay is an attempt to analyze some events in Conceição Evaristo’s Poncia Vicencio, which reveal aspects of exclusion experienced throughout history by black population and which remain until today. The vision originated in negative values ingrained in our culture has contributed in building a socially depreciative black identity, which can be identified in this narrative.
Keywords: Identity. Inferiority. Exploitation. Prejudice. Violence.
1. Introdução
A aceitação e as inúmeras imposições durante o período escravocrata, o que era inerente a muitos dos escravos africanos, foi devido a uma identidade que fora construída de uma forma depreciativa, já que a identificação é feita através da representatividade de um grupo sobre outro, a qual se transforma constantemente devido ao contexto histórico e social.
A anulação do negro perpetuou-se durante o período escravocrata contribuindo para a formação de uma identidade negra carregada de estereótipos fixos ou pré-concebidos arraigados em nossa cultura contribuindo para a construção de uma imagem marginalizada do negro.
Tal situação se apresenta no tratamento de problemas inerentes à condição afro descendente que aparece na última obra de Conceição Evaristo, Ponciá Vicêncio2, cujo texto tem como uma de suas marcas o profundo desenvolvimento psicológico das personagens, através dos quais a autora nos fala as suas vivências memorialísticas, as quais sinalizam a presença da etnicidade. É perceptível o cruzamento do momento do discurso com o tempo em que o mesmo acontece e a influência que isso causa nos personagens narrados pelo enunciado na obra em questão. Posições e arranjos dos indivíduos do texto partem ou resultam em processos de negociação, não só condicionados pela realidade partilhada entre os mesmos, como pelas ações modeladoras, segundo valores e normas sociais.
Nossa proposta de trabalho é analisar o livro Ponciá Vicêncio, refletindo a respeito de atos discriminatórios sofridos ainda hoje pelo negro como herança de uma época de superioridade branca.
Inicialmente abordaremos, brevemente, a história da escravidão, pois compreende-se que o discurso literário é o resultado de reflexão constituindo-se da mediação social, assim como o discurso histórico, o qual nos permitirá uma compreensão da história nos conduzindo à percepção de possíveis representações do passado. Diante disso, teremos maiores condições para compreender o texto de Conceição Evaristo, o qual analisaremos em seguida. Ponciá Vicêncio conta a história da personagem título, mergulhada em suas lembranças reveladoras de uma vida repleta de desencontros, perdas e de uma identidade afro-brasileira bastante presente, assim como os resquícios do período escravocrata.
2. A escravidão na história
Relacionamos à figura do negro à escravidão, um período da história brasileira marcado pela violência, sofrimento, humilhação e poder. São diversas as interpretações para tentar explicar o surgimento da escravidão de negros africanos na América. Cardoso salienta a continuidade histórica da escravidão no continente americano em relação à que existiu nos últimos séculos da Idade Média, em certas regiões mediterrâneas e, em seguida, nas ilhas africanas do Atlântico, originando as técnicas de colonização que se difundiram no Novo Mundo levando os venezianos a criarem na Palestina verdadeiras plantations açucareiras, aprendendo, com os muçulmanos, as técnicas de produção do açúcar. A atividade colonial se estendeu em diferentes colônias, agrícolas e de mineração, onde eram empregados escravos raptados da Grécia continental, nas ilhas do Egeu, nos Bálcãs, em terras muçulmanas, gerando a colonização das Américas. Mais tarde, no século XX, os portugueses desviaram para o Atlântico e para o Oeste o tráfico de negros africanos, os quais trabalhavam nas ilhas açucareiras do Atlântico africano (Cardoso, 1982, p. 10-11).
A escravidão negra nas Américas na expressão de Gomes se configurou num sistema inerente ao modo de produção colonial e atrelado indissoluvelmente ao colonialismo mercantilista europeu. O início da colonização do Novo Mundo não foi diferente das metas de seus descobridores, pois o objetivo era expandir o império colonial das metrópoles européias extraindo as riquezas das suas terras e levando-as para a Europa (Gomes, 2009, p. 25).
Para Octavio Ianni, parece um paradoxo o fato de que na mesma época em que se implantava o trabalho livre, no Novo Mundo criavam-se distintas formas de trabalho compulsório. Do século XVI a XVIII, ao mesmo tempo em que expandiu a manufatura e surgiu a grande indústria, nas colônias do Novo Mundo criaram-se e expandiram-se as plantations, os engenhos e as encomiendas, sendo o trabalho escravo, a base da produção e organização social nas plantations e nos engenhos; ao passo que nas encomiendas e outras unidades produtivas predominavam distintas formas de trabalho compulsório. Eram dois processos contemporâneos desenvolvendo-se no sistema de reprodução do capital comercial, que subordinava a produção de mercadorias na Europa, nas colônias do Novo Mundo e em outros continentes. Ao mesmo tempo em que na Inglaterra criavam-se condições histórico-estruturais básicas para a formação do capitalismo industrial e uma intensa acumulação do capital comercial, produzia-se no Novo Mundo, a escravatura aberta ou disfarçada (1988, p. 15-19).
A acumulação primitiva foi um processo, no âmbito estrutural e internacional, gerado dentro do mercantilismo e expressando as condições históricas da transição para o capitalismo. Foi esse contexto histórico que criou o trabalhador livre na Europa e o trabalhador escravo no Novo Mundo, estando o escravo, negro ou mulato, índio ou mestiço, na origem do operário (Gomes, 2009, p. 38-39).
Nas condições históricas em que se processou a colonização do Novo Mundo, o trabalho compulsório decorreu de necessidades impostas pelos mecanismos do sistema colonial. Assim, o elemento-mercantil escravista comandou todo o movimento colonizador. A bem-sucedida empresa colonial se nutriu de ideologias auto-justificadoras, que se traduziram em uma série de concepções e atitudes desfavoráveis diante dos povos dominados – especificamente o “índio” nativo das Américas e o africano escravizado. As noções de selvageria desenvolvidas nos séculos XVI e XVII constituíram uma lente distorcida por meio da qual os primeiros colonizadores avaliavam as potencialidades e previam o destino daqueles que subjugavam, cristalizando valores e comportamentos nem sempre idênticos, mas invariavelmente enfatizando a suposta superioridade européia (Barros, 2009, p. 29-30).
No mundo da escravidão moderna a liberdade ou escravidão são noções óbvias para se considerar uma avaliação da desigualdade humana. A escravidão, que é uma desigualdade social, implica em privação de liberdade que pode ser compreendida como um complexo de irredutíveis direitos e poderes do indivíduo sobre si mesmo, considerando que, assim como as desigualdades, as diferenças são sempre construções históricas (Barros, 2009, p. 29-30).
Existem diferenças evidentes entre os seres humanos, como sexo ou etárias, mas, também, diferenças culturais que, segundo sua historicidade, podem produzir desigualdade social. As desigualdades em contraste com as diferenças, que são inerentes ao mundo humano e sua ocorrência não podem ser evitadas através da ação humana, é sempre circunstancial por estar localizada social e historicamente dentro de um processo, por estar obrigatoriamente situada dentro de um determinado espaço de reflexão ou de interpretação que a especificará.
Barros reforça que ser negro é hoje uma diferença marcante nas sociedades modernas possuidora de uma história que, em algum momento, foi obrigada a entrelaçar-se com a idéia desigual de escravidão para dar suporte a esse regime de dominação que foi o escravismo colonial. Entre os séculos XVI e XIX, os “negros” não se viam na África como “negros”. “Negro” foi uma construção “branca”, pois os povos africanos se viam como pertencentes a grupos étnicos diferenciados e hostis (Barros, 2009, p. 39-40).
A população afro-descendente tem vivido uma história de exclusão desde a sua chegada ao Brasil, vivenciando muitas injustiças que não tem sido sanadas até os dias de hoje. A abolição da escravatura não lhes deu nenhuma condição de sobrevivência como cidadãos, continuando os negros a viver em condições precárias, permanecendo à margem de uma sociedade preconceituosa e racista. Neste sentido, estamos diante de uma verdade indubitável: pratica-se no Brasil uma exclusão pela cor, pela etnia do sujeito, pela atribuição de valor diminutivo e depreciativo ao indivíduo baseado na cor, na aparência física. Esse processo discriminatório denomina-se racismo que, embora existente e inexorável, é um assunto polêmico por ser camuflado e velado.
3. A exclusão na construção identitária do negro
O intuito deste trabalho não é teorizar sobre a escravidão, mas propor uma reflexão para melhor compreender e relacionar o comportamento das personagens do livro Ponciá Vicêncio com a história da escravidão que elas carregam ao longo da narrativa.
O enredo traça a trajetória de uma mulher negra, desde a sua infância até a idade adulta, chamada Ponciá, o qual vai se desenrolando a partir das lembranças da protagonista. A narrativa em terceira pessoa e o discurso indireto livre permite penetrar e sentir o íntimo das personagens.
Ponciá mora com sua família na vila Vicêncio, assim como outros descendentes africanos. Vicêncio é o nome do coronel que, além de ser o proprietário das terras para quem o pai e o irmão de Ponciá trabalham, é o dono do sobrenome dos habitantes da vila. O fato de todos levarem o nome do coronel representa a superioridade e a idéia de “posse” do branco sobre o negro.
As relações entre senhor e escravo caracterizam-se pela tendência à reificação e alienação do escravo visto pelo seu dono como objeto, um acessório da terra, um animal humano. Esse sistema levou o escravo a aceitar a sua inferioridade e sua impotência em tentar uma mudança, além de tornar a escravidão um fato normal para o proprietário que não via outra forma de organização social (Cardoso, 1982, p. 58-59). Nos momentos iniciais da narrativa constatamos essa afirmação quando Ponciá lembra de seu pai sempre trabalhando na terra dos brancos:
Filho de ex-escravo, crescera na fazenda levando a mesma vida dos pais. Era pajem do sinhô-moço. Tinha a obrigação de brincar com ele. Era o cavalo onde o mocinho galopava sonhando conhecer todas as terras do pai. Tinham a mesma idade. Um dia o coronelzinho exigiu que ele abrisse a boca, pois queria mijar dentro. O pajem abriu. A urina do outro caia escorrendo quente por sua goela e pelo canto de sua boca. Sinhô-moço ria, ria. Ele chorava e não sabia o que mais lhe salgava a boca, se o gosto da urina ou se o sabor de suas lágrimas (PV, 2003, p. 14). Desde pequeno o Sinhô-moço demonstra seguir o paradigma defendido pelo pai da supremacia do poder branco. Percebe-se no trecho citado a humilhação e o sofrimento do negro pela forma cruel e desumana com que era tratado, comprovando a projeção negativa e inferiorizada no escravo.
Ferreira define o racismo como a doutrina que sustenta a superioridade de certas raças, podendo representar ainda o preconceito ou discriminação em relação a indivíduos considerados de outras raças. O autor refere-se ao preconceito como uma idéia pré-concebida, ou mais precisamente, uma suspeita, intolerância e aversão a outras raças, religiões e credos (Ferreira, 2000, p. 551). Diante disso, observamos na história de Conceição Evaristo várias passagens que exemplificam tais indicadores:
Um dia o coronelzinho, que já sabia ler, ficou curioso para ver se negro aprendia os sinais, as letras de branco e começou a ensinar o pai de Ponciá. O menino respondeu logo ao ensinamento do distraído mestre. Em pouco tempo reconhecia todas as letras. Quando Sinhô-moço se certificou de que o negro aprendia, parou a brincadeira. Negro aprendia sim! Mas o que o negro ia fazer com o saber do branco? (PV, 2003, p. 15) Em nome do racismo, a violência e a crueldade foram e ainda são praticadas contra pessoas e grupos, como se nada houvesse de desumano nesse comportamento. Muitos são os crimes cometidos contra a cidadania, e os piores e mais graves deles são: o preconceito; a discriminação; o racismo; a violência; as desigualdades sociais; a falta de acesso ao conhecimento e à informação; a corrupção; a impunidade; a indiferença e a falta de ação perante a própria existência desses crimes.
Ao longo da escravidão no Brasil, o negro escravo era visto como uma mercadoria, sofrendo um processo de “coisificação subjetiva”, que o levou a sua introjeção, passando a se ver realmente como mercadoria, o que pode justificar a sua docilidade e submissão. O escravo era submetido à repressão pela violência física e, sentido-se oprimido pelo sistema escravista, se submetia as normas impostas pelo senhor para garantir sua sobrevivência (Mattoso, 1990, p. 67).
Todos diziam que Ponciá se parecia muito com o seu avô, especialmente o seu modo de caminhar, mas ela não teve muito contato com ele, pois morreu quando ela era ainda muito criança. Quando ela relembra a história contada por Luandi, seu irmão, sobre seu avô, temos um exemplo de revolta e dor em ter que viver naquele tipo de sociedade, onde o negro era um produto de mão de obra e rentabilidade. “[...] Numa noite, o desespero venceu. Vô Vicêncio matou a mulher e tentou acabar com a própria vida. Armado com a mesma foice que lançara contra a mulher, começou a se auto-flagelar decepando a mão [...]” (PV, 2003, p. 50).
O ato do avô Vicêncio nos mostra o desespero e a indignação de um homem diante da situação de exploração e menosprezo que o negro era tratado na época da escravidão. Esse ato de violência é como se ele estivesse pedindo por socorro, é um grito à indignação de um sistema escravocrata que durava infinitamente.
A Abolição libertou ao mesmo tempo em que sentenciou milhares de negros escravos libertos, pois estes foram lançados ao abandono: não mais necessários como mão-de-obra servil e, concomitantemente, lhes foram negadas as condições necessárias para a sua sobrevivência: o acesso à terra (Silva, 2010, p. 94). A libertação dos escravos deveria lhes ter assegurado condições reais de liberdade e cidadania, mas o que ocorreu foi a concentração de poderes sociais e políticos nas mãos de uma elite agrária que continuava a oprimir uma população livre de poucos recursos, uma vez que ficava obrigada a querer ou apreciar uma relação com os grandes senhores de terras, continuando esse a ser o maior beneficiário.
[...] Naquela noite teve mais ódio ainda do pai. Se eram livres, por que continuavam ali? Por que, então, tantos e tantas negras na senzala? Por que todos não se arribavam à procura de outros lugares e trabalhos? [...] O homem não encarou o menino. Olhou o tempo como se buscasse no passado, no presente e no futuro uma resposta precisa, mas que estava a lhe fugir sempre. (PV, 2003, p. 14-15) No fragmento acima, o pai de Ponciá, quando menino, demonstra revolta e incompreensão sob a situação ainda vivida pelo negro, já que se diziam “livres”, com direito a uma vida digna. Clóvis Moura menciona que o fim da escravidão no Brasil perpetuou a dominação de uma classe dominante de maioria branca, que transformou o trabalho assalariado, um avanço histórico, em novas formas de discriminação, colocando os descendentes de escravos nos salários mais baixos - quando tiveram acesso a ele, no desemprego, no subemprego. Esta é a herança mais perversa do "medo branco" em relação à maioria negra do Brasil, a fim de que esta não tivesse, com o fim da escravidão, a igualdade social, econômica, política e cultural (Silva, 2010, p. 94).
A mão de obra infantil negra no período colonial brasileiro sempre esteve presente, pois não pagavam impostos, ou pagavam conforme a idade porcentuais menores que os adultos, o que explica seguramente o relaxamento no controle de seu cômputo por parte dos fiscais encarregados de zelar pelos tributos régios. Mesmo após a abolição da escravidão, as crianças negras continuaram a trabalhar, pois, mesmo libertas, as péssimas condições dos afro-descendentes, aliada as grandes dificuldades econômicas, dificultavam às famílias negras proporcionar aos seus filhos condições dignas de sobrevivência. Nessa situação, as crianças negras acabaram sendo vítimas de mão-de-obra barata, que ironicamente continuou sendo escrava. De acordo com Rizzini, “a experiência da escravidão havia demonstrado que a criança e o jovem trabalhador constituíam-se em mão-de-obra mais dócil, mais barata e com mais facilidade de adaptar-se ao trabalho” (Lopes; Brito, p. 06).
Luandi acompanhava o pai no trabalho nas terras dos brancos, passando, nos tempos de chuvas, dias sem retornar deixando Ponciá com sua mãe fazendo os trabalhos de barro. Desse modo, “[...] Fora criada sozinha, só com a mãe. Tinha mais um irmão que pouco brincava com ela, pois acompanhava o pai no trabalho da roça, nas terras dos brancos. Ela e a mãe ficavam dias e dias sem ver os dois [...] (PV, 2003, p. 18)
Em Ponciá Vicêncio também percebemos uma postura questionadora da protagonista desde a sua infância, no que se refere à busca de uma identidade, cujo sentimento de vazio leva essa mulher às lembranças do passado, mergulhando num profundo sofrimento: parecia não suportar a morte do pai, a perda de seus filhos ao nascer, a morte do avô, assim como a necessidade que sentiu de abandonar o seu povoado em busca de uma vida melhor.
Quando mais nova, sonhara até um outro nome para si. Não gostava daquele que lhe deram. Menina, tinha o hábito de ir à beira do rio e lá, se mirando nas águas gritava o próprio nome: Ponciá Vicêncio! Ponciá Vicêncio! Sentia-se como se estivesse chamando outra pessoa. Não ouvia o seu nome responder dentro de si. Inventava outros. Panda, Molenga, Quieti, nenhum lhe pertencia também. Ela, inonimada, tremendo de medo, temia a brincadeira, mas insistia. A cabeça rodava no vazio, ela vazia se sentia sem nome. Sentia-se ninguém. (PV, 2003, p. 16) Neste trecho, podemos dizer que, segundo Hall, as relações sociais e culturais estão relacionadas com o processo de identificação que se apresentam de uma forma consciente ou inconsciente no ser humano, estando estreitamente ligados com o sistema de representação. O homem se identifica como um membro de uma sociedade, classe, grupo, estado ou nação levando-o, instintivamente, a reconhecer o seu lar. Devido a forma subordinada a uma cultura dominada pelo branco, as diferenças sociais, regionais e étnicas passadas para o negro levaram-no a ter uma dificuldade em encontrar uma identidade positiva (Hall, 2005, p. 09).
Ponciá era uma mulher diferente das demais de seu povoado, pois sabia ler e se questionava em relação a sua realidade. Percebia as condições de miséria que vivia e arrisca-se na construção de um modo de vida diferente, não só para ela, mas para a sua mãe e o irmão, pois o pai já tinha falecido. Quando ela abandona sua terra e vai para a cidade em busca de uma vida melhor, nos revela uma resistência e insatisfação àquela vida miserável e oprimida, além de um rompimento cultural e uma insatisfação identitária.
[...] esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo (Hall, 2005, p. 09). É preciso reconhecer que esta tentativa de Ponciá em buscar um significado para a sua vida envolve todos aqueles que buscam, efetivamente, uma sociedade onde a igualdade não seja apenas preceito legal, mas concretude histórica, num processo de luta pela igualdade social e contra a discriminação étnica. Deste modo é importante destacar que ninguém constrói sua identidade de maneira isolada. Os indivíduos se formam a partir de constantes ligações e trocas com outrem, sejam entre homens e mulheres, brancos e negros ou outros (Haraway, 1993, p. 277-292). Por essa razão, Ponciá questiona sobre a sua não-realização: [...] O que acontecera com os sonhos tão certos de uma vida melhor? Não eram somente sonhos, eram certezas! Certezas que haviam sido esvaziadas no momento em que perdera o contato com os seus. E agora feito morta-viva, vivia (PV, 2003, p. 33).
Hall refere-se a identidade como sendo algo não acabado e sim, um processo que está sempre em andamento, surgindo de um preenchimento a partir de nosso exterior pela forma como nós pensamos ser visto ou reconhecido pelo outro (Hall, 2005, p. 39). Diante disso, podemos dizer que, em função desse processo de desvalorização da pessoa negra, os afro-descendentes tendem a introjetar a visão dominante de mundo branco, visto como superior devido as relações hierárquicas e poderes de raiz histórica que instituíram o poder do branco sobre eles. Quando Ponciá volta para casa para buscar a mãe e o irmão e encontra a casa vazia, lembra momentos importantes de sua vida com sua família e quando anda sem nexo na estação, está à procura da sua identidade, pela revivescência do passado familiar:
[...] Na noite em que aconteceu o regresso, Ponciá Vicêncio não dormiu. Viveu o tempo em que era tomada pela ausência e quando retornou a si, ficou apenas deitada escutando. Escutou na cozinha os passos dos seus. Sentiu o cheiro de café fresco e de broa de fubá feitos pela mãe. Escutou o barulho do irmão [...] Escutou as toadas que o pai cantava. [...] e o que profundamente escutou foram os choros-risos do homem-barro que ele havia feito um dia. (PV, 2003, p. 57) A protagonista reencontra a sua identidade quando, junto com sua mãe e o irmão, retornam para a vila Vicêncio. “Lá fora, no céu dor de íris, um enorme angarô multicolorido se diluía lentamente, enquanto Ponciá Vicêncio, elo e herança de uma memória reencontrada pelos seus, não se perderia jamais, se guardaria nas águas do rio. (PV, 2003, p. 132)
Devido à discriminação social, o afro-descendente sofre preconceitos ligados a sua cor relegando a ele uma condição de pouca importância social e cultural, legitimando uma desigualdade onde os negros são vistos como inferiores.
A idéia de inferioridade do negro ainda é comprovada na narrativa de Evaristo quando Luandi, o irmão de Ponciá, se surpreendeu ao ver que o Soldado Nestor, mesmo sendo negro, era um soldado.
[...] Estava feliz. Acaba de fazer uma descoberta. A cidade era mesmo melhor do que na roça. Ali estava a prova. O soldado negro! Ah! que beleza! Na cidade, negro também mandava! [...] Ele mandou que o branco guardasse Luandi na cela. Só trancasse o preso, não fizesse nada... Luandi conclui que o soldado negro era mesmo importante. Era ele quem mandava. E foi crescendo um desejo enorme de exercer essa profissão para ter poder e o direito de ser respeitado como cidadão, já que a oportunidade de viver na zona urbana com a idéia de melhores condições de vida geralmente era dada ao branco.
Partindo da compreensão de que os estereótipos são crenças socialmente compartilhadas a respeito dos membros de uma categoria social, que se referem a suposições sobre a homogeneidade grupal e aos padrões comuns de comportamento dos indivíduos que pertencem a um mesmo grupo social, notamos, mais uma vez, uma imagem negativa, racista e preconceituosa em relação ao negro na narrativa de Evaristo, que tem sido incorporado na história há séculos, exemplificado através de um diálogo entre o delegado e Luandi: “[...] E que Luandi não levasse a mal o que ele ia dizer, mas quase todo negro era vagabundo, baderneiro, ladrão e com propensão ao crime. Poucos, muito poucos, eram como o Soldado Nestor e ele. [...] (PV, 2003, p. 121)
Identificamos, também, que a mulher negra e pobre tem uma imagem inferiorizada e de exploração neste livro de Evaristo Conceição. O sonho de Ponciá em mudar para a cidade e comprar uma casa é frustrado, pois passa por muitas dificuldades até conseguir um emprego como empregada doméstica, já que não tinha outra opção devido a falta de estudos e, ainda, era uma profissão reservada às mulheres negras com um salário bem baixo. O fato de ela ter passado dias e noites no frio, na porta da igreja ao lado de mendigos, logo que ela chegou à cidade, de morar num barraco sujo e se deitar numa cama imunda, pode relacionar o negro com miséria, pobreza e sujeira. “[...] Ela mesma havia chegado à cidade com o coração crente em sucessos e eis no que deu. Um barraco no morro. Um ir e vir para a casa das patroas. Umas sobras de roupas e de alimento para compensar um salário que não bastava [...]” (PV, 2003, p. 82).
A protagonista representa um elo entre a história marcada pela escravidão, preconceito e marginalidade social que resiste ao tempo e que permanece viva na memória coletiva dos afro-descendentes e da sociedade como um todo.
Até a Constituição de 1988 a mulher era legalmente segunda categoria em relação ao homem, ficando a mulher negra, mais abaixo do que as brancas, pois ela era pobre, negra e não sabia ler e nem escrever. No Brasil, sua história é marcada pela exploração sexual, violência e não-permissão de exercer sua plena liberdade. Os anos passaram, mas a sua submissão existe e relevam seu papel a empregos desvalorizados, altos índices de prostituição e condições precárias de saúde e educação.
A personagem Bilisa, assim como Ponciá, viera da roça para a cidade a fim de juntar dinheiro para buscar a sua família. Logo que chegou à cidade, também trabalhou como empregada doméstica, sendo, ainda, usada sexualmente pelo filho da patroa, além de ter seus bens, embora escassos, furtados.
Um dia, não se sabe como, a caixinha de dinheiro que ela guardava no fundo do armário sumiu. Sumiram as economias, o sacrifício de anos e anos [...] Ninguém entrava no quarto a não ser, de vez em quando, o filho da patroa [...] O moço namorava firme uma colega de infância, ia casar em breve e a empregada Bilisa era tão limpa e parecia tão ardente [...] (PV, 2003, p. 100). A antropóloga Jeni Vaitsman, em sua tese, afirma que a origem da dominação masculina e, consequentemente, a opressão feminina, vem desde a criação da cultura, em que a mulher começa a se transformar em objeto de troca, tendo os homens o direito e o poder de trocá-las. A subordinação da mulher nasce paralelamente ao nascimento da cultura, devido à proibição do incesto e através da força de mulheres as quais foram “escolhidas” para a viabilização desse intercâmbio, em função da natureza biológica (Maders, 2010, p. 46-47). Quando Bilisa aceita ser usada sexualmente pelo filho da patroa é, de certa forma, uma “troca de favores” pelo fato dos brancos darem emprego e abrigo para uma negra.
A mulher negra traz uma herança colonial onde o sistema patriarcal apóia-se sobre a superioridade masculina branca, além de uma identidade rasurada pela barbárie e pelo uso do colonizador. Segundo Hall, a identidade é algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formada” (Hall, 2005, p. 38). Diante disso, podemos dizer que se perpetuou durante e após o período escravocrata uma imagem da mulher negra vinculada a preconceitos raciais sobre a sua sexualidade, considerando-a “ardente” e vista como objeto de instrução sexual. Através da personagem Bilisa, Evaristo denuncia a exploração da mulher negra e seus estereótipos que a identificaram: doméstica e prostituta.
Moça Bilisa se sabia ardente, deitara algumas vezes com os companheiros de roça e alguns saíam mais e mais desejosos dos encontros com ela. Um dia um homem enciumado chamou Bilisa de puta. [...] E, agora, novamente era chamada de puta pela patroa, só porque contou de repente que o rapaz dormia com ela. Tinha a impressão de que a patroa sabia. [...] Bilisa estava cansada. Tinha de começar tudo de novo. Não, não começaria mesmo! A cozinha, a arrumação da casa, o tanque, o ferro de passar roupa... Haveria de ganhar dinheiro mais rapidamente. (PV, 2003, p. 101) Se a mulher branca advém de um processo discriminador, o que dizer da mulher negra abafada por outras opressões: a de gênero, a de raça quando não também a de classe, provocando um acirramento nas diferenças acentuadas pelo processo de introjeção levando a considerar natural alguma possibilidade de transformação.
De acordo com Scruton, o homem deve identificar a si mesmo como algo mais amplo – como um membro de uma sociedade, grupo, classe, estado ou nação, de algum arranjo, ao que ele pode até não dar um nome, mas que ele reconhece instintivamente como seu lar (Silva, 2009, p. 350). As diferenças sociais, regionais e étnicas foram gradualmente sendo colocadas de forma subordinada à cultura dominante, dificultando o encontro da identidade deste homem em seu próprio meio. Diante disso, podemos dizer que a mulher negra tem sido vista com uma imagem que não esconde os valores impostos pela brutalidade da dominação e subordinação diante da tirania da colonização, dando uma visão catastrófica de exploração do corpo da mulher como um objeto sexual do homem branco.
4. Considerações finais
Conceição Evaristo ao escrever esse romance, retoma passagens dolorosas da história afro-brasileira, construindo imagens que denunciam os resquícios do regime escravocrata do período pós-abolição, os quais têm contribuído para uma formação de uma imagem negativa a pessoa do negro ao longo dos anos. Através das andanças, os sonhos e desencantos de Ponciá, temos uma narrativa complexa e entrecortada a mesclar de forma tensa passado e presente, recordação e devaneio nos permitindo refletir e sensibilizarmos a respeito do sofrimento de uma raça marcada pelo preconceito e violência, sendo explorada por outra raça, a branca, que se intitulou superior levando o negro a desconhecer sua identidade e acreditar na sua inferioridade.
A análise do livro Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, evidencia uma imagem do negro forjada pelo olhar europeu que foi elaborada e reinterpretada através das épocas. Ao lançarmos um olhar no tempo, enquanto indivíduos ou povos provenientes de um sistema traumático de colonização se faz necessário reavaliações constantes para compreendermos as conseqüências contemporâneas oriundas de um período em que o ser humano sentia-se no direito de determinar posições hierárquicas como dominante/colonizador ou dominado/colonizado.
A narrativa de Evaristo nos faz refletir sobre uma História que sempre omitiu o negro e o encaixou em estereótipos que fortaleceram o olhar nulo e de desprezo do branco. Entre as várias denúncias que aparecem no romance como o trabalho em regime de semi-escravidão, o êxodo rural, a exploração o preconceito, a violência à mulher e a sua imagem, a busca por uma identidade e a dificuldade da inserção do negro no universo intelectualmente ativo, faziam parte da vida de Ponciá. Além disso, uma sociedade excludente forja um estereótipo do feminino negro ligado à submissão, à sensualidade, ao prazer, à pobreza e à inferioridade, que somados à cor da pele, atribuem a elas uma dupla discriminação: por ser mulher e por ser negra, levando a uma deformação da imagem da mulher negra como herança cultural de um passado histórico capitalista, opressor e branco.
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2 As citações do romance, corpus deste estudo, serão identificadas pela sigla PV, seguidas do número da página.
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