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Literatura e Autoritarismo
Dossiê Literatura de Minorias e Margens da História
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê nº 4 

O DISCURSO PÓS-TRAUMÁTICO NO CONTO “LEMBRANÇA DAS LIÇÕES”, DE LUIS SILVA

Lizandro Carlos Calegari1
Resumo: A sociedade negra, ao longo de seu história, experimentou diversos episódios violentos. Os traumas decorrentes desses acontecimentos não cicatrizaram, e as diversas gerações tendem a reproduzir essa dor a fim de entendê-la e dar-lhe um sentido. O objetivo deste trabalho consiste em evidenciar o discurso pós-traumático que subjaz a questão identitária africana tomando como base de reflexão o texto “Lembranças das lições”, que integra o livro Negros em contos (1992), de Luis Silva. Nesse sentido, busca-se desenvolver a ideia de que o preconceito e a discriminação racial ajudam a manter vivo o trauma originado em eventos violentos da história da escravidão no Brasil.
Palavras-chave: Negro. Preconceito. Violência. Trauma.
Abstract: The black society, along its history, has experienced several violent episodes. Traumas resulting from these events have not been healed yet, and different generations tend to reproduce this pain in order to understand and to give a sense to it. This paper undertakes an approach to the post-traumatic discourse that underpins African identity issues in the short story “Lembrança das lições” drawn from Luis Silva’s Negros em contos (1992). In this sense, we seek to develop the idea that racial prejudice and discrimination help to keep alive the trauma originated in violent events in the history of slavery in Brazil.
Keywords: Black. Prejudice. Violence. Trauma.

Em 2010, em razão da Copa do Mundo de futebol no continente africano, uma equipe do programa Fantástico, da Rede Globo, se desloca até o país para apresentar aos telespectadores e torcedores brasileiros algumas curiosidades daquele local que logo sediaria os jogos do campeonato. Neste quadro, o repórter acompanha um casal de africanos cuja missão é justamente revelar aspectos interessantes da África do Sul. Indagados a respeito da história e do passado do seu povo, os nativos tocam, em suas falas, no preconceito e na segregação racial que lhes atingira e complementam: “Na cabeça de muitos de nós, o apartheid ainda existe”.
Essa frase, considerando suas circunstâncias de enunciação, pode se revelar importante por alguns motivos. O apartheid, ou “separação”, foi adotado legalmente em 1948 na África do Sul para designar um regime segundo o qual os brancos detinham o poder e os povos restantes eram obrigados a viver separados dos brancos, de acordo com regras que impediam de serem considerados verdadeiros cidadãos. Além disso, tal regime tinha como centro de suas crenças o fato de 1) outras raças diferentes da branca serem inferiores, 2) um tratamento inferior a raças “inferiores” ser apropriado e justificado, e 3) tal tratamento dever ser reforçado por lei. Felizmente, o apartheid foi abolido em 1990 e, quatro anos mais tarde, realizaram-se eleições livres.
Um país que conviveu quase meio século com ideologias opressoras, reduzindo seus cidadãos a subcategorias humanas e criando mecanismos de controle social, indubitavelmente, tem dificuldade de rememorar o passado. Essa dificuldade de rememoração não é tanto por conta das estratégias de apagamento do passado – não obstante isso exista e ocorra –, mas devido, sobretudo, à quase impossibilidade de se elaborar de modo tranquilo o que aconteceu. Assim, quando alguém afirma que o apartheid ainda reside na mente de seus irmãos, é porque o episódio causa incômodo e precisa ser revisto.
O desdobramento ou consequência disso mantém vínculos com o desinteresse forçado por histórias de sofrimento e por um passado de dor e, ao atingir a lembrança de tantas vítimas, proporciona desconforto. Isso culmina num problema maior: a dificuldade de se narrar o próprio infortúnio, algo que, quase sempre, resulta na insuficiência da linguagem e, ainda, no descrédito do que é dito, comprometendo, por fim, a “verdade” dos fatos. A dificuldade de elaboração da experiência é característico da vivência em contextos de violência, como aquele observado na África do Sul no decorrer de muitas décadas.
É certo que, impulsionados ainda pela pobreza, pela seca, pela fome, pelo subdesenvolvimento econômico, por guerras civis, por distúrbios políticos, por conflitos regionais, muitos africanos abandonaram seu país em busca de melhores condições de vida. Essa fuga forçada e desesperada de suas terras, conhecida como “diáspora”, fenômeno característico do século XX, resultou numa crise de identidade e também numa desintegração do povo negro. Essa fragmentação conduziu a uma fragilização de seus ideais e a um enfraquecimento de suas forças em direção a mudanças para si favoráveis.
Não é por acaso, então, que muitos esforços têm sido reunidos principalmente pela comunidade negra para restabelecer o seu passado perdido e sua identidade fragmentada. As manifestações artísticas (música, dança, teatro, cinema e literatura), ao que parece, estão afinadas com tal proposta. As artes em geral buscam trazer à tona as diversas formas de preconceito enfrentadas pelos negros, mas procuram também por em evidência a dor dos africanos em razão dos malogros históricos. Dentro da crítica acadêmica, esse resgate tem sido feito e tem sido chamado, muitas vezes, de “busca por uma identidade”.
Não que essa denominação seja falsa, incorreta ou equivocada, mas, ao que me parece, subjacente a tal processo de busca por uma identidade, tem-se um processo traumático que atinge os povos negros e os impulsiona na procura de formas alternativas de externalização de sua dor no intuito de passar a limpo o seu passado. Em outros termos, quando se afirma que os negros estão procurando uma integração de sua identidade, nada mais estão fazendo do que dizer que estão buscando entender e organizar o seu passado na tentativa de superação de um trauma coletivo. Logo, quando os sul-africanos alegaram ao repórter do Fantástico que, na mente de muitos, o apartheid ainda se faz presente, quiseram dizer, na verdade, que o trauma de seu povo ainda não foi resolvido. Em última instância, o que une os negros de diversas culturas é um componente traumático.
A propósito, segundo Renato Janine Ribeiro (1999), o Brasil teria enfrentado dois principais traumas coletivos ao longo de sua formação. O primeiro deles teria sido resultado do violento processo de colonização acontecido graças à chegada dos portugueses; o segundo, ocasionado pelo sistema de escravidão. Para o autor, esses traumas ainda não foram superados e continuam presentes na estrutura de organização social do país. Conforme Ribeiro, estes não seriam os únicos episódios traumáticos que o Brasil carregaria. A Ditadura Militar, entre os anos 1964 e 1985, da mesma forma, teria provocado descontinuidades no funcionamento das instituições sociais.
Se, na África do Sul e no Brasil, podem-se observar práticas violentas infligidas aos negros, o mesmo pode ser averiguado em outros países cuja história não dispensa preconceito e discriminação contra os não-brancos. O resultado disso, no campo artístico, é uma constância de elementos simbólicos comuns que se apresentam inconscientemente. Essa proposta interpretativa é sugerida por Aby Warburg (2008). O autor não se atém em suas abordagens à condição negra, mas a regimes políticos autoritários que caracterizaram o século XX. Para o crítico, o referido século foi catastrófico, e os diversos países formularam respostas similares a essa condição. Por tabela, as obras de arte refletem marcas dessa violência que as mantêm em contato.
A proposta de Warburg é, então, a de que certos símbolos vinculados à intensidade emocional (pathos formulae) migram através de diferentes períodos, diferentes países e diferentes obras de arte. A relevância de sua teoria situa-se no fato de ele ter mostrado como a memória cultural pode ser abordada através de objetos materiais. O autor observa a possibilidade de re-significação do uso de símbolos em novos contextos, destacando que essa re-utilização de elementos simbólicos em contextos variados é algo inconsciente. Ou seja, marcas de violência, dor e melancolia se fazem presentes em obras de escritores negros ou que defendem a causa negra, e isso não é por acaso: há um elo entre as diversas culturas que define uma característica comum.
Levando-se em conta o conteúdo da produção artística negra, pode-se afirmar que a ligação entre o trauma cultural e a reflexão proposta por Warburg é coerente pelos seguintes argumentos. O trauma, segundo Sigmund Freud (1976), é uma ferida na memória, uma excitação vinda de fora suficientemente poderosa capaz de atravessar o escudo protetor do aparelho psíquico (p. 45). Essa ferida, não cicatrizada, causaria, portanto, um sofrimento repetido do evento. O trauma, então, seria algo não findado e atemporal. A sua cura, ou pelo menos o alívio da dor, repousaria na necessidade de um processo hermenêutico do episódio traumático, sendo que a narração assumiria função terapêutica. Ou seja, a terapia não se realiza se o paciente não narrar determinadas experiências, se não trouxer à memória certos acontecimentos e, consequentemente, externalizá-los.
Se o trauma é algo atemporal e não findado, o trauma coletivo vivido pelos negros de diversos países é algo que se iniciou no passado (em condições específicas e particulares), teria atravessado diversas culturas e gerações e teria culminado numa tentativa de superação constante. Para os negros, é um trabalho penoso o reviver do passado através da recordação. Por isso mesmo, toda vez que escritores elaboram narrativas que tratam do passado dos povos negros, devido ao seu caráter ainda irresoluto, deixam marcas que atestam o componente traumático que caracteriza determinada geração. O apartheid, nessas chaves, continua sendo um episódio que causa dor a muitos e, por não ter sido revisado e tratado com a devida seriedade, está sempre presente na mente dos sul-africanos, recusando-se a ir embora. Decorre disso um processo no qual se integra o choque traumático à restauração identitária, através da recordação e da repetição simbólica referida por Warburg.
O impacto traumático é, portanto, fator que não permite o passado se esvair. O trauma deixa para trás vestígios que resultam em expedientes através dos quais o grupo ou o indivíduo reconstrói sua identidade. O discurso pós-traumático, tal qual referido no título deste trabalho, diz respeito àquela prática linguística que toma como matéria vestígios do trauma presentes em itens culturais elaborados por gerações que herdaram, de grupos que viveram episódios extremamente violentos, marcas desse passado. A hipótese que se tenta desenvolver aqui, portanto, é a de que textos que abordam a questão da violência e da discriminação contra o negro o fazem por uma necessidade tanto de não deixar o passado se apagar nem uma identidade se perder quanto para entender e tentar organizar uma dor tão intensa que atravessa gerações e continua sem respostas.
O conto “Lembrança das lições”, que integra o livro Negros em contos, de Luis Silva, publicado em 1996, é bastante elucidativo no que tange às questões pós-traumáticas. O autor, também conhecido como Cuti, foi um dos fundadores e membros do Quilombhoje-Literatura de 1983 a 1994, e um dos criadores e mantenedores da série Cadernos Negros de 1978 a 1993. Publicou várias obras (Batuque de tocais [1982], poemas; Suspensão [1983], teatro; A pelada peluda no Largo da Bola [1988], novela juvenil; ... E disse o velho militante José Correia Leite [1992], memórias, este em coautoria como o próprio José Correia Leite) e tem textos em diversas antologias.
“Lembrança das lições” é o vigésimo primeiro conto do livro de Luiz Silva. Nele o protagonista, já adulto, narra, em primeira pessoa, experiências de sua infância e as articula a episódios mais recentes. O tom é de perplexidade e o que o texto deixa transparecer é o trauma que os negros carregam pela sua condição e em virtude de sua história. O conto amarra o passado ao presente, sendo este determinado por aquele. O espaço inicial é uma sala de aula e, em seguida, a própria vida na sociedade. O personagem principal conta lembranças de sua vida, mas também fala de Joel, um colega do tempo de colégio.
As primeiras recordações do eu-narrador remetem à sua infância, mais especificamente, às aulas de História, quando a professora aborda o tema da escravidão no Brasil. Toda vez em que a mestra toca no assunto, o sentimento do protagonista é de ansiedade e de inquietação, algo que aponta para a ideia de o passado ainda não ter sido revisto:
A palavra escravidão vem como um tapa e os olhos de quase todos os moleques da classe estilingam um não sei o quê muito estranho em cima de mim. (...) Um calor esquenta-me o rosto e umas lágrimas abaixam-me a cabeça para que ninguém as veja.
(...) A cada palavra de seu discurso, pressinto uma nova avalanche de insultos contra mim e contra um “eu” mais amplo, que abraça meus iguais na escola e estende-se pelas ruas, envolvendo muitas pessoas, sobretudo meus pais (Silva, 1996, p. 108).
A primeira frase transcrita expõe a percepção que o protagonista tem dos demais colegas quando o assunto é escravidão. O seu desassossego resulta de um aspecto traumático ligado à história de seu grupo étnico. O sujeito é incapaz de verbalizar com detalhes o sentimento que ele julga que seus amigos possuem, mas tem noção de que é um olhar de desaprovação, pena, humilhação, enfim, algo que o inferioriza dentro de uma classe social. Ele, enquanto negro, sente o peso do passado, e sua inquietação é oriunda de uma ferida na memória, ferida esta não cicatrizada que acomete a maioria dos negros. Eles se sentem inferiores e envergonhados devido à sua própria história. Como se pode notar, é o próprio trauma que possibilita a ligação entre os negros.
Os vários “insultos” que atingem os negros e os fazem sentir pequenos e marginalizados revelam que a história não foi passada a limpo. Nesse particular, tem-se uma crítica às instituições de ensino que, muitas vezes, tratam o assunto de forma artificial, sem comprometimento, atingindo, não raras vezes, um resultado contrário ao pretendido. As lições que deveriam educar acabam virando aulas de estereótipos que são usados contra os negros. Um dos colegas, aliás, percebendo a ansiedade do protagonista, se dirige a ele nos seguintes termos: “É você, macaco. Você é escravo” (Silva, 1996, p. 109). Aqui, o que se tem, em última instância, é uma crítica à razão.
Assim, cada aula era uma tortura quando o assunto era escravidão, o que conduzia o personagem a querer expurgar seu sentimento:
Os NEGROS ESCRAVOS eram vendidos como CARNE VERDE, peças, desprovidos de qualquer humanidade. Eram humildes e não conheciam a civilização. Vinham porque o Brasil precisava de...? Vejamos quem é que vai responder...
Tremo, encolhido, dolorido diante da possibilidade de ser chamado. Meu coração bate na vertical e meus intestinos se revoltam. Saio apressado da sala, sem pedir licença. Chego à privada em tempo.
Defeco o desespero das entranhas.
Olho as paredes e a porta do cubículo rabiscadas, procurando espaço. Contenho, com bastante esforço, um choro que me vem insistente para afogar o mundo. Limpo-me com um pedaço de jornal, não sujo de todo, e fico ainda sentado sobre o vaso branco, pensando, vagando como um prisioneiro perpétuo. A cor do vaso sanitário desperta-me tramas. Primeiro levanto-me e chuto-o com a sola do sapato, depois sou levado pelo vento das imagens, das ideias ... ponho fogo na escola... veada filha da puta... papel de caderno debaixo da mesa dela... como a bunda de todo branquinho... acendo fósforo... quem me xingar de neguinho... são tudo veado... vou comprar um canivete... dou porrada mesmo!... E a porta passa a me servir de lousa: ...branco caga no meio... , acho graça das coisas que escrevo e continuo (Silva, 1996, p. 109).
Nessa passagem, a fala da professora chama atenção para a desumanização dos negros na época da escravatura. É interessante atentar para a forma como o conteúdo é exposto. No discurso, são usadas frases na voz passiva de modo a ocultar determinadas informações. O ensino da História, em especial quando o assunto é escravidão, vale-se de poucas frases na voz ativa de maneira a desresponsabilizar os algozes pelas torturas e humilhações. Na cabeça do protagonista, as dores e as torturas que os pretos sofriam no passado mantêm relações com as práticas de violência no presente. Este continuum da história, que não é passado a limpo e que não culpa seus autores, retorna e constitui-se num sentimento traumático que precisa ser purificado. Não é por acaso, então, que o sujeito corre ao banheiro e realiza uma série de rituais como forma de minimizar sua dor. Enfim, é uma atitude catártica resultante da necessidade de externalização de sua angústia. Limpar-se com um pedaço de jornal é borrar, desrespeitar a história que prima pelos vencedores, muitas vezes, brancos que são autores de episódios considerados heroicos. Além disso, colocar fogo na escola também remete à questão da purificação.
Depois do colégio, o espaço onde o protagonista se encontra é o externo. Ele evade a aula e, agora, na rua, encontra seu colega Joel. Conforme a apresentação que o eu-narrador faz dele: “É meu vizinho, negro também, de outra turma na escola. Entre sutilezas de nosso diálogo, percebo que a ‘história’ da escravidão já espancou mais um por dentro. A gente conversa muito mas, nesse particular, fica só um silêncio cúmplice, uma bronca em comum, uma solidariedade de quem divide a dor” (Silva, 1996, p. 110). Nesse excerto, parece que é a própria condição racial que leva os negros a abandonarem os ambientes mais cultos ou que podem, por tese, propiciar a ascensão dos indivíduos. A ideia que se tem é a de que os negros são pressionados de diferentes modos a ponto de saírem da escola. A fuga dos dois, no entanto, não fica por menos:
Nosso empenho, contra os compromissos da escola, não dura muito. Alguém vai a nossas casas e dá com as línguas nos dentes. Eu e Joel, na volta de um belo passeio, começamos a apanhar no meio da rua. É uma grande surra, de cinta. Fico com vergões nas costas e Joel com uma marca de fivela no rosto para todo o sempre.
A escola de novo, a vigilância aguçada dos nossos pais. Eu e Joel cada vez mais com fama de valentes.
Chegamos ao quarto ano com a malandragem bem burilada. Já não damos importância ao fato de nos chamarem pela cor. Entre a molecada, quase sempre fazem isso com medo, medo do Negrinho-eu e do Negrinho-Joel. O medo deles é que nos importa, nos dá alento, ilusão de respeito (Silva, 1996, p. 110).
O sinal da fivela no rosto de Joel, que o caracterizará para sempre, é a marca da violência cristalizada na sua personalidade. Talvez seja menos grave e profunda a mancha física do que a psicológica. A escola deixa de ser um convite aos garotos e se converte em ambiente de discriminação, enfim, ganha perfil de um aparelho repressivo. Os meninos, nesse estabelecimento, são reconhecidos pelos traços negativos que, aliás, todos julgam que os negros carregam: são elementos que geram ameaças, são riscos para os demais. Como quer que seja, a noção que se tem é a de que são os diversos níveis de discriminação que conduzem as parcelas menos favorecidas socialmente, em especial, os negros, a adotar um estilo de vida à parte, muitas vezes, na criminalidade.
O relato do protagonista avança no tempo de modo a focalizar a vida de Joel:
Na porta da igreja tenho a notícia de sua prisão. Um conhecido branco, dos tempos daquela amizade, narra com tal ênfase as peripécias de Joel pelo mundo do crime, que me faz lembrar D. Isabel, a professora. Desconverso. Tento afogar Joel no esquecimento. Em vão.
Hoje, mais uma entre as tantas prisões: Preso o marginal Neguinho Joel – foto em primeira página. A marca da raça e a marca da fivelada no rosto (Silva, 1996, p. 111).
O conto, portanto, amarra lembranças da vida do protagonista e, nesse percurso, o passado é um elemento que define o destino e/ou as condições de vida dos negros. Discriminados no e pelo mundo dos brancos, o seu estilo de vida acaba sendo caracterizado pelo trauma, pela rejeição, pela humilhação, para, por fim, cair na criminalidade. O negro ganha destaque não pelas suas qualidades positivas, mas por ser ladrão, assassino, traficante. É justamente esse tipo de conduta que faz com que eles sejam temidos. Enfim, tem-se um círculo vicioso porquanto o preconceito gera autoexclusão, e esta conduz à criminalidade, o que denigre a imagem dos negros, a qual passa a ser veiculada na mídia. Ao que parece, o processo de inclusão dos negros na sociedade exige que se revisem as várias etapas da constituição da história do Brasil em seus diferentes momentos. O conto termina com a falta de esperança do protagonista: “Porta e paredes rabiscadas já não adiantam nada. Já nem servem mais ao desabafo” (Silva, 1996, p. 112).
O conto “Lembrança das lições” é narrado em primeira pessoa porque o protagonista não consegue se eximir da história da qual faz parte. Logo, toda vez que ele se manifesta em relação a esse acontecimento e às brutalidades que os negros sofrem, sente dificuldades de elaborar verbalmente a sua dor. A insuficiência da linguagem é algo notório em indivíduos que carregam algum trauma e, por isso, o seu relato nunca é totalizante. Ele não é uma vítima do tempo da escravatura no Brasil, é certo, mas as recordações que tem dela são bastante familiares e estão muito próximas, algo que comprova que o trauma é algo cíclico, atinge as pessoas e os grupos de modo distinto e passa de uma geração para outra, contribuindo na definição da identidade de um grupo.
O protagonista fica atormentado toda vez que o assunto é escravidão, e isso gera uma necessidade de externalização do seu sentimento. No Brasil, várias gerações de escritores negros têm se empenhado na tentativa de expressar em diversos meios artísticos suas aflições. A literatura parece ser um veículo privilegiado, pois, nesse processo, é necessário o entendimento de que, devido ao fato de as memórias virem à tona, em muitos casos, o silêncio pode servir como escudo que protege contra o medo de ouvir as próprias palavras e reviver, consequentemente, a experiência traumática. Para que se efetive o processo terapêutico de alívio da carga traumática da vítima, conforme explica Dori Laub (1992), é necessário um ouvinte/leitor que esteja presente e lhe dê suporte para atravessar os momentos mais dolorosos da rememoração.
Por que o narrador-protagonista é alguém que carrega traumas em razão de episódios violentos de que não teve participação direta? A hipótese que se tentou defender aqui é a de que o trauma é algo atemporal e não findado, e, por não ter sido resolvido, atravessa as diferentes épocas, atingindo as gerações presentes. Uma outra presunção, não desvinculada desta, é a de que, quando essas gerações atuais se deparam com eventos trágicos da vida (preconceito, violência, discriminação), comuns a outros seres humanos, há um retorno do trauma. É como se houvesse um recuo ao tempo da escravidão, de modo que os negros, na atualidade, não vivessem com memórias de um passado que ficou para trás, mas com acontecimentos que se repetem no presente.
Laub explica que os acontecimentos que geraram o trauma, por estarem fora dos padrões de compreensão, por não terem início nem fim, nem antes nem depois, exigem, para a sua cicatrização, a construção de uma narrativa, de uma história e, essencialmente, uma re-externalização do episódio. Conforme o autor, “[e]ssa re-externalização do evento só pode ocorrer e ter efeito quando se articula e se transmite a história”, quando se a transfere para outro (Ibid., p. 69). Portanto, se alguém conta a sua experiência e não é ouvido ou se não lhe prestam a devida atenção, pode-se ter um retorno ao trauma. Como se sabe, ao longo da história, aos negros nunca foi atribuída a devida importância e valor. Em função de ausência da solidariedade ao reviver a experiência, pode-se ter um novo trauma e não o alívio da dor. Parece que foi isso o que aconteceu com o protagonista do conto em apreciação: ele tinha apenas as paredes do banheiro como interlocutor.
Devido às ideologias preconceituosas e racistas de que são vítimas e em razão das dificuldades inerentes ao processo de rememoração de fatos de que gostariam de esquecer, muitos negros optam por permanecer em silêncio, por não revelar a sua dor. Este não é o melhor caminho nem a melhor estratégia para a reparação de seu passado, pois o trauma, adormecido em lugares escondidos da memória, se não encarado de frente, vem à tona. Assim, a comunidade negra deve atuar ativamente na sociedade, fazer ouvir sua voz e suas lamentações, enfim, não se deixar calar, a fim de que possa reconstituir seus elos identitários e reformular sua narrativa para que seja transmitida e apresentada para as gerações presentes e futuras como sinal de afirmação e superação do passado.

Referências

FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. In: ____. Obras psicológicas completas. Trad. Jayme Salomão e Christiano M. Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 1976. Vol. XVIII.
LAUB, Dori. Bearing Witness, or the Vicissitudes of Listening. In: ____; FELMAN, Shoshana. Testemony: Crises of Witnessing in Literature, Psychoanalysis and History. New York / London: Routledge, 1992.
RIBEIRO, Renato Janine. A dor e a injustiça. In: COSTA, Jurandir Freire. Razões públicas, emoções privadas. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 7-12.
SILVA, Luís. Negros em contos. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1996.
WARBURG, Aby. Der Bilderatlas Mnemosyne. Berlin, 2008.


1 Pós-doutorando em Letras (UFSM). Professor da Graduação e do Mestrado em Letras na Universidade Regional Integrada – Frederico Westphalen (RS). E-mail: lizandro.calegari@yahoo.com.br
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