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Literatura e Autoritarismo
Dossiê Literatura de Minorias e Margens da História
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê nº 4 

REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA NO CONTO “O COBRADOR”, DE RUBEM FONSECA E NO LIVRO O MATADOR, DE PATRÍCIA MELO

Grasiela Lourenzon de Lima1
Resumo: A literatura brasileira contemporânea tem sido marcada pela estetização da violência, a qual está na base da série social. Cada vez mais os estudos literários e o próprio fazer literário têm demonstrado preocupação com os problemas ligados ao acesso à voz e a representação dos múltiplos grupos sociais. Nesse sentido, o propósito deste trabalho está centrado na observação de como a violência se manifesta no conto “O cobrador” (1979), de Rubem Fonseca e no livro O matador (1995), de Patrícia Melo. Através de uma análise da caracterização de seus personagens, busca-se fazer um paralelo entre os dois textos, no intuito de verificar quais os elementos que denunciam o crime, a violência e a desigualdade social presente nos grandes centros urbanos. Para o estudo da violência nestes textos tomam-se como referencial teórico em autores como Fábio Lucas (1976) e Vladimir de Souza (2007)
Palavras-chave: Violência. Representação. Desigualdade social.
Resumen: La literatura brasileña contemporánea ha estado marcada por la estética de la violencia, que se basa la serie social. Cada vez más, los estudios literarios, e incluso la escritura literaria se ha ocupado de los problemas relacionados con el acceso a la voz y la representación de varios grupos sociales. En este sentido, el propósito de este estudio se centra en la observación de cómo la violencia se manifiesta en el cuento "O cobrador" (1979), por Rubem Fonseca y el libro O matador (1995), Patricia Melo. A través de un análisis de la caracterización de sus personajes, que tratará de establecer un paralelismo entre los dos textos con el fin de determinar los elementos que denunciar el crimen, la violencia y la desigualdad social presente en los grandes centros urbanos. Para el estudio de la violencia en estos textos a medida que estén teóricas en autores como Vladimir de Souza (2007) y Fábio Lucas (1976).
Palabras clave: Violencia. Representación. La desigualdad social.

A violência é e sempre será um assunto polêmico, inquietante, que remete o homem a imaginar situações de medo, agressividade, sofrimento, tragédias, conflitos e guerras. É um tema que sempre esteve em evidência e, no conturbado mundo tecnicista e consumista em que se vive hoje, tem ganhado espaço nas manchetes de diferentes meios de comunicação, tornando-se um assunto “normal”, a “moda” do momento. Nesse sentido, a vida parece estar sendo banalizada e é assustador pensar que o mesmo ser humano que é capaz de dar existência a invenções, criar indústrias, avançar na descoberta de curas para diversas doenças, seja capaz de promover conflitos, criar planos de assaltos, gerar desentendimentos e submeter-se a diferentes métodos de corrupção, por exemplo. Parece que a razão está cedendo espaço para a busca desenfreada pelo dinheiro e pelo poder, carros chefes de uma sociedade individualista e consumista.
Mas como definir o termo violência? Segundo o dicionário Aurélio, ela pode ser caracterizada como “ato violento e constrangimento físico ou moral; uso da força; coação” (Holanda, 2004, p. 2065). No entendimento de Souza (2007, p. 47), a violência
É uma ação que simplesmente não considera a outra pessoa, ou melhor, a considera como uma coisa, numa relação em que o outro não fala e se torna um objeto. Ela não precisa ser necessariamente de ordem física, também se manifesta em seu aspecto psicológico, ou simbólico, em suas formas sutis e quase imperceptíveis.
O Brasil, desde a sua colonização, foi marcado por histórias de poder e dominação, de lutas e de conflitos, de discriminação e desigualdade social, germes que sempre estiveram e continuam proliferando este mal-estar que é a violência, afetando todas as camadas sociais.
Compreensível, portanto, que também na literatura este tema esteja cada vez mais presente. Os desequilíbrios e instabilidades sociais, a opressão do cotidiano, o exercício veemente de qualquer poder, o (sub) mundo da marginalidade, a fúria que explode em todos os tipos de relações são temas à disposição que seduzem escritores, muitos deles responsáveis por uma abordagem direta, crua e muitas vezes agressiva das conseqüências da violência.
A literatura brasileira contemporânea tem sido marcada pela estetização da violência, a qual está na base da série social. Cada vez mais os estudos literários, e o próprio fazer literário, tem demonstrado preocupação com os problemas ligados ao acesso à voz e a representação dos múltiplos grupos sociais. Percebe-se um crescente debate sobre o lugar na literatura para os grupos marginalizados, entendidos como aqueles que não são valorizados pela cultura dominante, devido a questões relacionadas a sexo, cor, etnia, condições sócio-econômicas, entre outras.
Muitos são os escritores que ao longo dos tempos têm se destacado no tratamento da violência. Entre eles e, em especial no gênero conto, podemos citar Dalton Trevisan, José J. Veiga, Osmar Lins, entre outros, que assim como Rubem Fonseca foram os precursores deste tema, a partir da década de 60, época em que o mundo vivia o pós Segunda Guerra Mundial. Os contos passaram a ganhar importância e a atenção do público leitor, uma vez que a tendência desse período histórico era a simpatia por “situações dramáticas de curta duração e psicologias adaptadas às contingências do momento de intensidade emocional” (Lucas, 1976, p. 122).
A questão da violência urbana vem alinhavada a um reconhecimento das diferenças e desigualdades sociais e, nesse sentido, a escritora paulista Patrícia Melo tem se destacado no cenário nacional e internacional por conseguir transformar a velocidade dos acontecimentos e a violência das grandes metrópoles em arte. Ao estilo de Rubem Fonseca, espécie de mentor intelectual da escritora, Patrícia, desde a década de 90, vem demonstrando um grande domínio da linguagem, numa prosa ágil, com peculiar talento para o humor e a ironia, principalmente no que tange a assuntos tão polêmicos como esses.
Nesse sentido, o propósito deste trabalho está centrado na observação de como a violência se manifesta no conto “O cobrador” (1979), de Rubem Fonseca e no livro O matador (1995), de Patrícia Melo. Através de uma análise da caracterização de seus personagens, busca-se fazer um paralelo entre os dois textos, no intuito de verificar quais os elementos que denunciam o crime, a violência e a desigualdade social presente nos grandes centros urbanos, buscando-se verificar possíveis semelhanças presentes em ambos os textos.
Algumas semelhanças, mais explícitas, podem ser logo identificadas pelo leitor. Tanto em “O cobrador” como em O matador, a história é contada sob a perspectiva do protagonista, portanto, com foco narrativo em primeira pessoa. O narrador-personagem faz parte da classe marginalizada do país, é pobre, desempregado, morador de uma favela, sem perspectiva de futuro, com uma vida destinada ao crime e à brutalidade. Percebe-se também nos textos o uso de uma linguagem coloquial, sem preconceitos ou pudor, mas muitas vezes violenta assim como o modo rápido de narrar, o somatório de palavras separadas por vírgulas e os diálogos misturados aos pensamentos ou descrições do narrador. Constata-se ainda a presença do amargo Dr. Carvalho, dentista que aparece em ambos os textos, com as mesmas características: sujeito que se mostra preconceituoso com os negros e pobres, faz parte da população de classe médio-alta que ajuda a promover a violência, pagando alguém para fazer o “trabalho sujo” que ele não tem coragem de cometer.
“O cobrador”
Muito do sucesso de Rubem Fonseca está na sua capacidade de imprimir um ritmo “cinematográfico” às suas narrativas, semelhantes, muitas vezes, ao gênero policial. “O cobrador”, sem dúvida, é um dos textos da literatura brasileira que traz cenas das mais brutais de todos os tempos. Só que o elemento investigativo, o suspense que envolve o gênero policial, não está presente neste conto, uma vez que o assassino é o protagonista da história e ele mesmo relata seus crimes.
Em “O cobrador”, Rubem Fonseca descreve os pensamentos e atitudes de um assassino em série que pratica seus atos por sentir que a sociedade lhe deve algo. Sem mesmo ter um nome, sua cobrança se destina a qualquer pessoa que porventura cruze seu caminho. No ódio pelas classes mais abastadas, o cobrador descobre o sentido de sua vida, passando então a matar, seletivamente ou ao acaso, seus devedores.
Em todo o conto é possível verificar que o narrador e suas vítimas disputam quem ganhará o jogo de dominação que perpassa toda a narrativa. Foi assim, por exemplo, no episódio da consulta ao dentista, pois o cobrador não queria pagar ao Dr. Carvalho quatrocentos cruzeiros pelo “serviço prestado”. Mesmo tendo um tipo físico franzino, o narrador se sobressai por estar armado, ou seja, dispara um tiro de um revólver 38 no joelho do dentista, afinal: “Odeio dentistas, comerciantes, advogados, industriais, funcionários, médicos, executivos, essa canalha inteira. Todos eles estão me devendo muito” (Fonseca, 1989, p. 13), ele pensava. E, ao sair do consultório, já arrependido, exclama: “Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro!” (Fonseca, 1989, p. 13).
Neste instante da narrativa nota-se que o narrador não quer mais ser manipulado e pagar pelas coisas de que precisa. Deixa claro a sua revolta perante a sociedade capitalista e, abertamente, trava uma luta entre as classes sociais, isto é, entre ele, que representa os pobres, excluídos e marginalizados, que domina pela violência, e os ricos ou classe média-alta, que dominam pelo dinheiro.
Assim, sua vingança não vai além do assassinato frio e calculista, até porque, antes de matar, suas palavras insistem numa exigência bem individual: “Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol” (Fonseca, 1989, p. 16).
Fato curioso é que a forma de aumentar e não esquecer o ódio que sente pela sociedade e, em especial, aos que nela estão bem sucedidos, o cobrador assiste televisão, aparelho que retrata o apelo incessante de uma sociedade cada vez mais consumista: “Fico na frente da televisão para aumentar o meu ódio. Quando minha cólera está diminuindo e eu perco a vontade de cobrar o que me devem eu sento na frente da televisão e em pouco tempo meu ódio volta. Quero muito pegar o camarada que faz anúncio de uísque” (Fonseca, 1989, p. 16).
Neste momento da narrativa, percebe-se que o cobrador vê na televisão um estímulo para a sua violência, não porque a televisão mostra cenas violentas, mas porque cria um mundo de ostentação, cria a ilusão de que a vida é maravilhosa e sem problemas, direcionada principalmente para a classe burguesa.
O cinema, por sua vez, é um elemento que influencia o cobrador a manter atitudes violentas e até mesmo inovar em seus crimes:
Com o facão vou cortar a cabeça de alguém num só golpe. Vi no cinema [...] um ritual que consistia em cortar a cabeça de um animal, creio eu que um búfalo, num golpe único. Os oficiais ingleses presidiam a cerimônia com um ar de enfado, mas os decapitados eram verdadeiros artistas. Um golpe seco e a cabeça do animal rolava, o sangue esguichando (Fonseca, 1989, p. 17).
Observando uma festa em uma rua da cidade, “as mulheres de vestido longo, os homens de roupas negras [...] os garçons servindo champanha francesa”, o cobrador escolhe um casal para “cobrar” algo (talvez a ostentação observada na festa) em forma de assassinato. Mesmo o homem dizendo que a mulher estava grávida, o cobrador desfere um tiro onde achava que era o umbigo dela, e, na seqüência, dispara outro na cabeça da vítima. Logo após, coloca o homem em posição para decapitá-lo, como havia visto no cinema. De todos os episódios narrados, certamente, este é o que mais choca o leitor, pois é de uma brutalidade tão grande que é assim encerrado pelo narrador: “Dei um grito alto que não era nenhuma palavra, era um uivo comprido e forte, para que todos os bichos tremessem e saíssem da frente. Onde eu passo o asfalto derrete” (Fonseca, 1989, p. 20-21).
Sentindo-se um justiceiro e satisfeito em “cobrar” o que lhe devem, usando das armas que sua posição social lhe oferece (violência), o cobrador no episódio seguinte da narrativa, vai até a casa de uma moça disfarçado de bombeiro e amarra a empregada para que não atrapalhe, porque o seu único interesse é estuprar a moça, dona da casa. Neste momento, percebe-se uma clara demonstração de força e poder inconfundíveis, principalmente, pelo fato de o narrador afirmar que a mulher sentiu prazer primeiro que ele, coisa normalmente impossível de acontecer numa situação dessas.
É importante destacar, ainda, que a narrativa é construída a partir de um elemento paródico: jornais russos dos dias da Revolução de Outubro de 1917 noticiaram que os marinheiros investiram contra o Palácio de Inverno, cantando e gritando, os versos de Maiakovski, maior poeta russo moderno que, traduzido para o português, dizia: “Come ananás, mastiga perdiz/teu dia está prestes, burguês” (Fonseca, 1989, p. 24). No conto “O cobrador” estes versos são referenciados por Rubem Fonseca, através do personagem principal da narrativa que demonstra um profundo ódio e desprezo pelo burgueses chegando a exclamar antes de suas vinganças: “Come caviar/ teu dia vai chegar” (Fonseca, 1989, p. 24). No entanto, este personagem não tem nada de revolucionário, é um revoltado que atua exclusivamente no plano individual. Fica evidente que todo o tom e a qualidade dos versos são rebaixados, quando comparados aos versos de Maiakovski. Os poemas capengas do “cobrador” podem comprovam isso:
Os ricos gostam de dormir tarde/ apenas porque sabem que a corja/ tem que dormir cedo para trabalhar de manhã/ Essa é mais uma chance que eles/ têm de ser diferentes:/ parasitar,/ desprezar os que suam para ganhar a comida, / dormir até tarde,/ tarde/ um dia/ ainda bem,/ demais/ (Fonseca, 1989, p. 17).
Nestes versos e em vários outros semelhantes que aparecem no decorrer da narrativa, fica evidente que a rejeição social, o fato de sentir-se inferior aos outros é o grande fator motivador de seus ataques contra a sociedade. Além dos versos, esse sentimento aparece em outros pontos do texto: “Na praia somos todos iguais, nós os fodidos e eles. Até que somos melhores, pois não temos aquela barriga grande e bunda mole dos parasitas” (Fonseca, 1989, p. 22). E ainda a expressão “Me irritam esses sujeitos de Mercedes” (Fonseca, 1989, p. 14) faz referência ao habitual comportamento das pessoas que possuem um veículo desses; o narrador sente-se menosprezado quando o homem da Mercedes buzina e grita “ Como é ?”, pedindo passagem, fato que o leva a disparar a arma em direção ao carro, atingindo o homem. A frase “A mão dele era branca, lisinha, mas a minha estava cheia de cicatrizes, até meu pau está cheio de cicatrizes” (Fonseca, 1989, p. 15) demonstra que o personagem se sente diferente dos demais. Suas cicatrizes e a cor de sua pele denunciam sua classe social, sua condição marginal. Este fato evidencia a intenção de Rubem Fonseca em trazer à tona um outro problema que gera a violência urbana: o da discriminação racial. Através do contraste da cor da pele, que aparece mais de uma vez, explícita na narrativa, percebe-se como o protagonista da história é afetado emocionalmente por essa condição.
Embora seja uma pessoa revoltada e violenta, em alguns momentos da narrativa o leitor é surpreendido por um personagem que mostra seu lado sofrido e sensível, que chega a dizer de si mesmo: “Sou uma pessoa tímida, tenho levado tanta porrada na vida” (Fonseca, 1989, p. 22). A sua relação com a velha dona Clotilde, de quem aluga um quarto, mostra o lado amoroso e gentil do personagem, pois é ele que faz a injeção de “trinevral” e escova o chão da sala para velha e doente senhora.
Além disso, o amor por Ana surge na narrativa como algo inesperado para o leitor. Esse amor atinge tão profundamente o protagonista que parece haver uma contradição na história: o cobrador apaixona-se por uma moça de pele branca, pertencente a classe social oposta a dele. Essa situação leva a um estranhamento, uma vez que o protagonista, ao longo da narrativa denuncia explicitamente o seu profundo desprezo e revolta pela classe burguesa, da qual Ana pertence. Acontece que ao olhar para Ana, na praia pela primeira vez, ele apaixona-se pelo seu corpo de bailarina. Ao conversar com a moça, vencendo sua timidez, fica sabendo que ela mora em prédio muito luxuoso. “A partir daí, o cobrador não deixa de pensar nela e começa “fazer hora para ir à casa da moça branca”, pois sabe que seus mundos são completamente diferentes. No entanto, a surpresa da história se dá no momento em que a moça vai à procura do cobrador; eles se tornam namorados e ela vai morar com ele. Através deste relacionamento, o narrador percebe que encontrou o sentido para sua vida, diz que agora tem uma missão e que fora Ana Palindrômica (o nome remete a outros versos de Maiakoviski) quem o fez enxergar. “Meu ódio agora é diferente. Tenho uma missão. Sempre tive uma missão e não sabia. Agora sei. Ana me ajudou a ver” (Fonseca, 1989, p. 28).
Ana mostrou ao cobrador que ele poderia matar várias pessoas ao mesmo tempo, não precisava mais atuar exclusivamente no plano individual, poderia matar coletivamente, pois há armas, como a bomba, que tem poder para isso. A namorada politizada volta-se contra o seu grupo social, mostra-se solidária às ações do namorado e, juntos, crentes de que são destinados um ao outro, criam uma espécie de clã imaginário, buscando estratégias para enfrentar o inimigo.
Nos momentos finais da narrativa, planejam, na véspera de Natal, matar várias pessoas em um baile comemorativo, em que estariam presentes várias autoridades, inclusive o prefeito, que se vestiria de Papai Noel. O cobrador escreve um manifesto para ser publicado nos jornais, pois para ele sua vida, agora, tem um objetivo. Convicto de sua missão, afirma: “E o meu exemplo deve ser seguido por outros, muitos outros, só assim mudaremos o mundo” (Fonseca, 1989, p. 29).
Os dois colocam as armas no carro e partem para cobrar o que a sociedade lhes deve, neste caso especifico, fica subentendido tudo o que tem em uma festa de Natal que ele e Ana não podem desfrutar. Mesmo fazendo parte do mundo dos ricos, ela sente falta de algo que o dinheiro talvez não compre – suas reinvidicações aqui, parecem não ser as mesmas do que as do cobrador. E encerrando com a frase: “Vamos ao Baile de Natal. Não faltará cerveja, nem perus. Nem sangue. Fecha-se um ciclo da minha vida e abre-se outro.” (Fonseca, 1989, p. 29), o narrador-personagem, mostra que ainda tem muito a cobrar da sociedade; agora, com armas ou estratégias melhor elaboradas.
O matador
Na obra O matador, Patrícia Melo retoma o estilo urbano violento das primeiras obras de Rubem Fonseca e, num toque especial e particular, estabelece uma relação inevitável entre o mundo retratado nos textos consagrados do autor na década de 70 e a realidade social dos anos 90.
A temática do crime e da violência, aliada à ruína dos valores éticos e da ausência de perspectiva de vida, numa sociedade alavancada pelo capitalismo e cujo único valor estável é o dinheiro, está evidente em O matador. Com foco narrativo em primeira pessoa, o livro narra a ascensão e o declínio de um jovem de periferia, com vinte e dois anos, chamado Máiquel, protagonista da história, que se vê envolvido em uma série de crimes, os quais o transformam em um assassino brutal, num matador profissional.
Tudo começa quando Máiquel resolve pagar uma aposta que havia perdido: pinta o cabelo de loiro e não se reconhece mais, sente-se outra pessoa. Já nas primeiras páginas do livro o leitor percebe que Máiquel não possui uma identidade definida e estável:
Não era só o cabelo que tinha ficado mais claro. A pele, os olhos, tudo tinha uma luz, uma moldura de luz. De repente, todos os meus traços tornaram-se harmônicos, a boca que sempre fora caída, continuava caída, o nariz continuava redondo, as pálpebras inchadas, porém tudo isso era bobagem porque havia algo maior, mais importante, a moldura. Havia luz na minha face, e não era uma luz artificial de refletores. Era aquela luz que a gente vê em imagens religiosas, luz de quem é iluminado por Deus. Foi assim que me senti próximo de Deus [...] Aquela tinta tingiu alguma coisa muito profunda dentro de mim. Tingiu a minha autoconfiança, o meu amor-próprio. Foi a primeira vez em vinte e dois anos, que olhei no espelho e não tive vontade de quebrá-lo com um murro. Beijei a Arlete e saí feliz, pensando que passei a maior parte da minha vida querendo ser outro cara (Melo, 2005, p. 10-11).
A partir de então, ao acaso, sem nem mesmo saber o porquê, Máiquel acaba se envolvendo em uma série de acontecimentos, os quais o levarão a cometer crimes dos mais violentos. O simples pagamento da aposta que tinha feito com Suel foi o estopim para atitudes que nem ele próprio entendia. Após propor o duelo com Suel, por exemplo, Máiquel se sente arrependido e com medo: “No dia seguinte, acordei com dor de dente e não fui trabalhar. Estava arrependido de ter proposto o duelo [...]. Senti medo, eu nunca tinha pego numa arma”(Melo, 2005, p. 14).
O impressionante é que Máiquel, ao assassinar Suel, adquire o respeito e a admiração das pessoas das classes dominantes. Suel era conhecido como um negro ladrão, um “mau elemento” para a sociedade, por isso, ao eliminá-lo, muitos “bacanas” começaram a recompensá-lo com presentes. No início, Máiquel estranhou essa situação, mas, aos poucos, foi gostando da idéia de ser admirado.
Sua trajetória é marcada por uma simbologia bem peculiar, que evidencia os conflitos e as diferenças de classes, pois dois elementos vão possuir singular importância no imaginário da personagem: os dentes e os sapatos. Máiquel, ao matar Ezequiel, a pedido do dentista Dr. Carvalho deu o passo certeiro em direção a uma vida de violência e criminalidade. Seus dentes doíam, ele tinha vergonha de seus dentes podres, de ser pobre, por isso aceitou realizar o “serviço” em troca de um tratamento dentário gratuito, mesmo achando isso um tanto desconfortável: “Não achava nada boa a idéia de ter que matar outro cara. Mas meu dente doía pra caralho” (Melo, 2005, p. 33).
Os sapatos, porém, eram a prova mais evidente da vergonha que o protagonista sente da pobreza. Os sapatos tinham o poder de desvendar o status de seu dono, e Máiquel sentia-se humilhado e constrangido ao sentar-se junto aos ricos e deixar a mostra os seus sapatos, tanto que a sua primeira providencia ao ficar “rico” foi comprar sapatos italianos, roupas novas e imitar a vida dos “bacanas”, com seus móveis, estilo decorativo da casa, até mesmo na alimentação.
Certamente o leitor atento ao texto percebe que Máiquel representa uma nova classe que emerge das camadas desgastadas da sociedade, ou seja, representa aqueles jovens, com algumas referências e ambições, porém, desorientados e despreparados para lutar por seus ideais. O matador oferece uma visão da falta de perspectivas em que se encontra a juventude moderna (ou pós-moderna), uma juventude que anseia em ascender socialmente para ser aceita e realizada e poder usufruir o bem-estar dos que pertencem à classe burguesa, mas não sabe como lidar com isso, não reflete de fato de que forma isso acontece. Máiquel, por exemplo, fica cansado só de pensar no emprego e no trabalho, uma vez que não vê nessas possibilidades (faxineiro, porteiro, atendente de balcão) perspectivas de possuir as coisas que deseja. Então, o fato de perceber que o ato de matar lhe proporciona fama, admiração e o que é melhor, recompensas financeiras, o leva a aceitar esse “serviço” como uma forma de trabalho qualquer. Chega a justificar o seu erro, na morte do menino do skate, argumentando que todos os profissionais um dia cometem erros. Verifica-se aí a banalização da violência e, por conseguinte, a banalização da vida.
No decorrer da narrativa percebe-se que Máiquel, para alcançar seus objetivos, deixa de ser sujeito da ação, como no inicio do livro, quando mata Suel, por exemplo, para ao poucos, tornar-se parte da engrenagem social, que pela corrupção, pelo excesso de poder financiam, às escuras, a criminalidade. Envolve-se com o Dr. Carvalho e, mais adiante, e por intermédio deste, conhece o delegado Santana; ambos criam uma empresa de segurança, chamada Ombra, e começam a prestar serviços aos empresários, autoridades, executivos, enfim, aqueles que querem contratar alguém para fazer o “serviço sujo” para eles.
A esta altura da narrativa, o protagonista já havia matado sua namorada Cledir, em quem enxergava a mulher ideal para casar e ter filhos, moça de boa índole, de boa educação e prestativa para os afazeres do lar. Também já havia se envolvido com Érica, namorada do homem que matou (Suel), com quem tem um intenso relacionamento amoroso. Diferente de Cledir, Érica mostra-se uma mulher com sede de conhecimento, decidida e mais preparada para as intempéries da vida. Tanto mais preparada que, quando seu namorado Suel é assassinado por Máiquel, ela o procura para que ele a sustente e, quando percebe que o namorado está sendo usado e explorado pelos seus sócios, resolve abandoná-lo em nome dos valores em que acredita. Muitas vezes tentou alertá-lo para o fato de ele ter se transformado em alguém manipulável, dominado pelo dinheiro e pela ambição, mas Máiquel não dá ouvidos à namorada, que prevê que algo ruim está para acontecer.
E de fato, um crime banal que comete muda o destino de sua vida: fazendo uma analogia a uma estátua de um elefante com um tigre nas costas, que Máiquel havia visto quando era pequeno na casa da mãe do amigo Robinson, ele assassina um menino que andava de skate, acreditando que o tigre era a pistola que estava no porta-malas e o menino era o elefante, “a coisa nociva à sociedade”. Ele relata: “Atirei. O elefante tombou. Peguei um pedaço de papel no porta-luvas e escrevi com o seu próprio sangue: viva o futuro!” (Melo, 2005, p. 176).
Sob efeito do álcool, das drogas e da raiva que sentia após a briga com Dr. Carvalho, Máiquel comete esse crime que, de todos já realizados, é o mais banal e absurdo. Talvez por isso seja também o crime que compromete toda a sua trajetória de sucesso até ali conquistada. Isso porque o bilhete que ele escreve e deixa marcado com sangue junto ao cadáver é o cartão que contém a identidade da empresa, chamada Ombra, fruto da sociedade dele com Dr. Carvalho e o delegado Santana. E para agravar mais a situação, o menino skatista era filho de um renomado pediatra que queria punição para o criminoso e, além disso, a mídia já noticiava o ocorrido, deixando chocadas e revoltadas as pessoas da comunidade.
Matando quem não devia, Máiquel chega à derrocada: é preso. Eis aí o momento crucial da narrativa, em que ele passa a enxergar de fato em quem havia se transformado. Bastou o delegado Santana tentar matá-lo na prisão como havia feito com Marcão para ele perceber que era o “revólver” da classe média-alta, um objeto que foi usado e jogado fora. É um trecho que vale a pena destacar:
Eu era o revólver desses caras. A paz. Eles têm que ter um revólver porque todo mundo quer roubar o videolaser deles. A Miame deles. O estupro das filhas deles. O medo deles. A segurança deles. Eles não têm paz, eles diziam isso a toda hora, não temos paz. Eu era o matador, era isso. Paz. Agora que a merda estava fedendo, eles estavam querendo jogar o revolver no rio, queriam acabar com as provas. Usar e jogar fora, como a gente vê escrito nas embalagens (Melo, 2005, p. 195).
Após sua fuga, Máiquel vai ao encontro de Gabriela, Dr. Carvalho e do delegado Santana. Vinga-se deles, ou melhor, faz justiça com as próprias mãos, mais uma vez, mostrando que o ódio alimenta suas atitudes, agora mais intensamente, porque percebe claramente que Érica tinha razão. Ele já não era mais o mesmo, e em seus pensamentos queria dizer para ela: “O homem, Érica, o homem quando lambe a fama, perde o caráter. É isso. Você fica famoso e o problema da fama é que ela faz você acreditar no que os outros dizem de você” (MELO, 2005, p. 202). Porém, para Máiquel, vislumbrar com clareza o ser humano em que se tornou, não poderia consertar os erros cometidos; já era tarde para isso.
Considerações finais
Conhecendo um pouco da história dos personagens centrais dos textos em questão – o cobrador e Máiquel –, pode-se verificar num primeiro momento que ambos foram construídos para representar as pessoas que vivem sob condições de marginalidade, a qual gera várias conseqüências, entre elas, a mais destrutiva, sem dúvida, tem sido a violência.
Tanto no texto de Rubem Fonseca, como no de Patrícia Melo, constata-se que a violência é denunciada a partir do lugar social de onde ela se origina, com a voz do sujeito produtor (ou vítima) da brutalidade, o que parece ter possibilidade de impactar mais. Ter como protagonista da narrativa personagens que promovem a violência matando pessoas permite ao leitor avaliar de onde realmente esta violência se origina e dá espaço para se analisar que aqueles que produzem a violência ou praticam atos criminosos, muitas vezes, o fazem não por escolha, mas por necessidade, por viverem em um mundo social que não oferece outros caminhos.
Toda a trajetória da vida de Máiquel, assim como a do cobrador, só vem confirmar, certamente, o que Karl Marx afirmava: “os homens fazem a história, mas apenas sob as condições que lhes são dadas” (Marx apud Hall, 2006, p. 34). Com certeza Máiquel e o cobrador fizeram as suas histórias, as quais estavam calcadas nos valores éticos e morais que vivenciavam e que só poderiam reproduzir uma vida repleta de desilusões, revolta, medo, inveja, rancor e brutalidade.
Destaca-se ainda que nos dois textos há a presença de personagens que demonstram vergonha por pertencerem à classe desfavorecida socialmente. Tanto Máiquel como o cobrador deixam transparecer a vergonha que sentem da pobreza através de um elemento bem peculiar: os dentes pobres. O desconforto produzido pela dor nos dentes gera, nos dois textos, atos violentos, e de certa forma, influencia significamente para uma vida repleta de brutalidade. Ambos os protagonistas das histórias não tinham condições financeiras para pagar um tratamento dentário. Enquanto o cobrador atira no D. Carvalho e diz que não deve nada para ele e que a partir daquele momento só cobraria por aquilo que a sociedade lhe deve, Máiquel aceita matar Ezequiel (suposto estuprador de Gabriela, filha do Dr.Carvalho), mesmo não se sentindo confortável com esta situação.
O fato é que tanto Rubem Fonseca como Patrícia Melo criam personagens que demonstram uma preconceituosa visão de classe médio-alta. Em “O cobrador”, percebe-se a luta interminável do narrador para se sobrepor à elite dominante, vista como a causadora da violência e de exclusão social. Pelo uso da força ele objetiva extingui-la. Já em O matador, tem-se um narrador que vê outra possibilidade de alcançar uma vida mais digna e confortável: ganhar dinheiro sendo um assassino profissional. Nota-se que em ambos os textos temos a presença de um justiceiro: enquanto o cobrador é um “justiceiro às avessas” porque possui uma grande revolta, Máiquel encara ser justiceiro por profissão, na qual vê um meio de ascender socialmente, de buscar usufruir os mesmos direitos que os da classe social oposta a sua.
Próximo ao desfecho de O matador, constata-se algo semelhante entre os protagonistas das duas narrativas: Máiquel adquire grande revolta pela classe dominante no momento em que percebe que foi usado por ela como uma espécie de objeto. Ele passa a enxergar que o mundo dos bem sucedidos é bem diferente do seu, e que deste mundo, dificilmente ele fará parte sem o uso da força.
O deslocamento identitário é outro fator que se observa nos dois textos analisados. Máiquel deixa-se dominar pela elite, na ilusão de que terá uma vida melhor. Em vários momentos da narrativa percebemos que sua identidade não está fixa e que ele não se reconhece mais. Um exemplo é quando mata Suel: “Por que eu matei Suel?, eu queria saber, eu queria que alguém me explicasse por que eu matei Suel. Fui para a casa do Robinson, completamente abalado” (Melo, 2005, p. 18). Em “O cobrador” essa identidade não definida pode ser percebida no momento em que o narrador envolve-se com Ana. Ele e a namorada identificam-se com alguns aspectos de suas classes sociais e, também, com a classe do outro. Quando ela volta-se contra a sua classe social e o cobrador alia-se a alguém que faz parte do mundo dos burgueses, fica evidente, portanto, um deslocamento identitário, característica condizente, segundo Hall (2006. p. 9), com as transformações estruturais das sociedades modernas no final do século XX, no que diz respeito ao sujeito que sente que vem sendo modificada a sua identidade pessoal e abalada a idéia que tem de si próprio como sujeito integrado:
Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento - descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo (Melo, 2006. p. 9).
Enfim, tanto no conto quanto no romance, a crueldade humana parece, num primeiro olhar, ter sido construída sem uma carga lógica. Muitos leitores podem chocar-se ao deparar-se com os textos e desistir da leitura por pensar que este tipo de literatura está incentivando a violência. No entanto, se o texto for olhado sob a perspectiva dos personagens, daqueles que são mais do que ninguém vítimas do preconceito e da desigualdade social, entende-se que a violência é um problema que está sim, intimamente relacionado à classe médio-alta.
Em ambos os textos aqui apresentados, é possível, apesar de toda a carga violenta que neles se apresenta, verificar que tanto o cobrador como Máiquel não são de natureza ruim ou de caráter totalmente criminoso. Para muitos leitores essa análise pode ser contraditória, mas ela é aceitável, na medida em que observamos a narrativa sob a perspectiva sócio-econômica dos personagens. Eles representam o jovem de classe baixa, fruto de uma sociedade capitalista, que, não conseguindo acompanhar a explosão tecnológica e a avalanche de informações que o mundo globalizado oferece, não tendo oportunidade de estudar, de enxergar o mundo com olhos críticos, deixa-se iludir por um mundo que não é o seu. Vê-se dominado pelas mãos dos poderosos, que o corrompem e cada vez mais alimentam o mundo do crime organizado e do tráfico (no caso, Máiquel) ou, numa espécie de luta de poderes, resolve cobrar da sociedade aquilo que ela lhe deve por direito: dignidade, comida, emprego, educação ( no caso, o cobrador). São indícios de um mundo em que a exclusão é uma bomba relógio que pode explodir deixando sempre rastros de destruição.

Referências

BAUMANN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Positivo, 2004.
FONSECA, Rubem. O cobrador. In: ____. O cobrador. São Paulo: Schwarcz, 1989.
LUCAS, Fábio. O caráter social da literatura brasileira. São Paulo: Quirón, 1976.
MELO, Patrícia. O matador. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
SOUZA, Valmir de. Violência e resistência na literatura brasileira. In: ____. Os sentidos da violência na literatura. São Paulo: LCTE, 2007.


1 Mestranda em Letras. Área de concentração: Literatura. URI - Campus de Frederico Westphalen. E-mail: grasielallima@hotmail.com
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