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Literatura e Autoritarismo
Dossiê Literatura de Minorias e Margens da História
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê nº 4 

A VIOLÊNCIA EM O MATADOR, DE PATRÍCIA MELO: RETRATOS DA CONTEMPORANEIDADE

Fábio Martins Moreira1
Resumo: Este artigo discute a presença da violência na literatura contemporânea e o modo que ela é apresentada, tendo como base a narrativa O matador (1995), de Patrícia Melo. Para tanto, será analisada a trajetória do personagem Máiquel, o modo como a violência surge em sua vida e como acaba por ser banalizada em suas atitudes.
Palavras-chave: Literatura contemporânea. Violência. O matador. Patrícia Melo.
Abstract: This article discusses the presence of violence in contemporary literature and the way it is presented, based on the novel O matador (1995), by Patrícia Melo. To this end, we will analyze the trajectory of the character Máiquel, how violence comes into his life and turns out to be as commonplace in his attitudes.
Keywords: Contemporary literature. Violence. O matador. Patrícia Melo.

Nas últimas décadas, tem se observado uma banalização dos valores tradicionais por parte dos personagens da literatura contemporânea2. Os estudos acadêmicos em relação às características e caminhos dos romances contemporâneos apontam para uma marginalização de temas, em meio a atitudes – violência, dor, sofrimento, autoritarismo – e dos personagens envolvidos – moradores do subúrbio, negros, mulheres, gays, os quais foram negligenciados pela literatura canônica, ou seja, os marginais do meio literário.
Cada vez mais, têm surgido obras que divergem do padrão clássico, com personagens fragmentados e abordagens que refletem a problemática social, não somente como meio de crítica ou estudo, mas como representação da sociedade brasileira tal como observado, por exemplo, em O cobrador (1979), de Ruben Fonseca; A céu aberto (1996), de Gilberto Noll, O matador (1995), de Patrícia Melo; Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, e Eles eram muito cavalos (2001), de Luiz Ruffato.
A despeito das obras vistas como canônicas, e por mais que ainda existam questionamentos com respeito às definições deste momento literário, é visível uma mudança de abordagens assumida pela literatura. O contexto histórico atual remete a um mundo problemático e repleto de insegurança, no qual as instituições tradicionais estão corrompidas e a violência impera juntamente com a perda de valores tradicionais. Nesse processo, a literatura se atualiza e reflete as inquietudes do meio:
De modo geral, os traços considerados pós-modernos são os seguintes: heterogeneidade, diferença, fragmentação, indeterminação, relativismo, desconfiança dos discursos universais, dos metarrelatos totalizantes (identificados com “totalitários”), abandono das utopias artísticas e políticas. Esses traços se opõem aos da modernidade, que seriam: racionalismo, positivismo, tecnocentrismo, logocentrismo, crença no progresso linear, nas verdades absolutas, nas instituições (Perrone-Moisés, 1998, p. 183).
Dentre os temas mais evidenciados, temos a violência e o modo que ela se materializa na literatura, a qual, numa perspectiva contemporânea será o alvo deste estudo, levando em conta o livro O matador (1995) de Patrícia Melo3 como referência. Não é nosso objetivo delimitar, ou questionar, os caminhos da literatura contemporânea, nem mesmo tentar atacar as teorias literárias (contraditórias, por sinal) com respeito à pós-modernidade e suas definições, mas perceber como os elementos tradicionais e canônicos se afastam na obra em questão e como a violência tem sido representada.
No romance O matador, é apresentado o personagem Máiquel. A história é narrada em primeira pessoa pelo próprio Máiquel que em forma de monólogo apresenta os fatos a partir de sua ótica pessoal. Aos poucos, Máiquel vai dando detalhes que nos permitem construir sua trajetória: um simples jovem suburbano, morador da periferia de São Paulo, que se transfigura em um assassino profissional. Sem antecedentes criminais, nem histórico de violência, o jovem pacato, de uma hora para outra, transforma-se em matador. Perdido no caos urbano, o jovem medíocre e inseguro, torna-se forte, corajoso e herói, mesmo que às avessas.
A transformação começa quando Máiquel, em virtude de uma aposta perdida (seu time de futebol, São Paulo, perdeu), vê-se obrigado a tingir os cabelos de loiro. A mudança na aparência foi o estopim para uma mudança maior, a da sua personalidade:
Ele já não era mais o mesmo. Quando Suel faz piada de seu novo cabelo, Máiquel reage prontamente e um duelo é marcado. Suel foi o primeiro a ser assassinado pelo novo matador. Depois, vieram muitos outros até Máiquel montar uma empresa de segurança privada que praticava assassinatos sob encomenda. Sua individualidade dependia da liberdade de ação, e Máiquel deixa de lado a posição estática de membro comum de uma sociedade decadente e se torna um ser atuante como matador, livre, individual em relação à comunidade ao seu redor. Ele ostenta seu papel sem medo das conseqüências.
O ápice de sua ascensão é quando ele recebe da comunidade o prêmio de Cidadão do Ano. Depois disso, vem a derrocada e um erro de cálculo resultou no assassinado de um menino, filho de um médico, o que gerou repúdio na população. De anônimo a herói, de herói a bandido, Máiquel é perseguido pela polícia e a obra termina com sua fuga.
A violência em O matador surge de modo banal, Maiquel perde o controle e extrapola todos os limites. É importante o registro de que o personagem assume uma nova postura voltada para a violência, diferente da postura anterior, que é descrita na obra como sendo calma e tranqüila em meio a uma vida medíocre. “Até isso acontecer, eu era apenas um garoto que vendia carros usados e torcia para o São Paulo Futebol Clube” (Melo, 2002, p. 16). Há uma mudança, uma espécie de desculpa para se assumir o papel de matador, e no caso da narrativa, foi o tingimento do cabelo. Essa transição fez com que os medos e as inseguranças fossem deixados de lado, o que permitiu ao personagem provar de uma força nunca antes experimentada:
Aquela tinta tingiu alguma coisa muito profunda dentro de mim. Tingiu a minha autoconfiança, o meu amor-próprio. Foi a primeira vez, em vinte e dois anos, que olhei no espelho e não tive vontade de quebrá-lo com um murro. Beijei Arlete e saí feliz, pensando que passei a maior parte da minha vida querendo ser outro cara (Melo, 2002, p. 11).
Na verdade, o cabelo pintado foi apenas uma desculpa, uma justificativa para Máiquel assumir a personalidade que sempre quis ter, de alguém forte, dotado de autoconfiança e amor-próprio. A história do jovem medíocre havia acabado e estava nascendo um matador, como se fosse uma nova pessoa que precisava achar o seu lugar: “A aparição de uma nova personagem ocasiona infalivelmente a interrupção da história precedente, para que unia nova história, a que explica o ‘eu estou aqui agora’, da nova personagem, nos seja contada” (Todorov, 2006, p. 126).
Nas primeiras páginas da obra, o protagonista já tem a oportunidade de usar a sua nova personalidade loira e reage de modo agressivo, quando Suel fica rindo de seu cabelo. O novo Máiquel não admitiria alguém rindo, em especial do seu cabelo que foi o estopim das mudanças e, prontamente, marca um duelo para acertar as contas. “Tem um tipo de risada que me deixa louco. Dei o troco. Amanhã, às seis horas, em frente ao bar do Tonho. Vamos fazer um duelo” (Melo, 2002, p. 13).
A banalização da violência começa neste ponto da obra. Uma simples piada é motivo para um duelo, como se um comentário debochado fosse o suficiente para se macular a honra. Não havia justificativa relevante, mas o duelo foi marcado. O perfil de vida que Máiquel levava como jovem simples e apagado, não colocava credibilidade no desafio e o próprio Suel duvidava disso: “Que papo besta é esse? (...) Ele ria, não sabia se acreditava ou não” (Melo, 2002, p. 1-2). O interessante é que até esse momento da obra, Máiquel nunca havia matado ninguém e quando ele pensou com cuidado no desafio que havia proposto, surgiu o medo e o arrependimento.
Estava arrependido de ter proposto o duelo, aquilo tinha sido uma bobagem, uma estupidez sem fim. Quis dar uma de bacana para impressionar Cledir e me ferrei todo. Suel era um negro de foder. Diziam no bairro que a profissão dele era roubar tocafitas. Ele poderia ter amigos da pesada, certamente sabia manejar uma arma. Senti medo. Eu nunca tinha pego numa arma. Suel venceria, eu tinha que pedir desculpas para ele. Não me incomodo de pedir desculpas, vivo fazendo cagadas e pedindo desculpas (Melo, 2002, p. 13).
Por esta razão, a coragem súbita de Máiquel pode ser vista como apenas reação repentina ao deboche de seu interlocutor. O personagem ainda não era tão forte como seu cabelo loiro havia sugerido. Um simples reflexo colocou Máiquel em uma situação adversa àquilo que ele estava acostumado em sua vida simples e, inevitavelmente, ele não sabia como agir, resultando em seu medo e arrependimento. Ele podia fugir ou pedir desculpas a Suel, mas essa não é a proposta do livro e a violência acaba sendo efetivada quando ele comparece ao duelo. “Arranjei uma espingarda calibre 28, coloquei dentro de uma caixa vazia de lâmpadas fluorescentes que tinha lá, coube direitinho, e fui para o Tonhão” (Melo, 2002, p.15). Ele não sabia o que iria acontecer, mas, mesmo com medo, estava disposto a encarar a situação. “O plano era o seguinte: eu tentaria uma conversa, faria a cena do bebi demais e deixa disso, mas, caso precisasse, a arma estaria ali, perto de mim. A gente nunca sabe o que vai acontecer” (Melo, 2002, p.15).
Os elementos apresentados até então, são vistos como formadores da nova e definitiva postura do personagem. O narrador vai preparando os leitores através de um enredo relativamente simples: uma aposta perdida, o cabelo pintado, um deboche e um duelo marcado. Para Máiquel a razão de tudo era “o Destino. Antes da gente nascer, alguém, sei lá quem, talvez Deus, Deus define direitinho como é que vai foder a sua vida. É isso. Era a minha teoria” (Melo, 2002, p.15).
A despeito do destino, o enredo não se desenrola em uma cidade imaginária na qual a violência não causaria estranhamento, tudo ocorre no subúrbio de São Paulo. Também não há um fator externo que justifique a violência, como um trauma, uma guerra ou a perda de um familiar. Nem a motivação por vingança é apresentada, ainda mais pelo fato da ofensa ter sido irrelevante. O motivo simplesmente é visto como justo pelo personagem e ele age desculpado pelo destino. A violência vem à tona e dá um indício do que será a seqüência da obra:
Olhei as pessoas na porta do bar do Tonhão, todos me observando, isso me encheu de coragem. Mirei. Se você quiser me matar, Máiquel, vai ter que ser pelas costas, ele disse. Suel ficou de costas para mim e saiu gingando, de mãos dadas com a namorada. Pode atirar, ele gritava, me mate pelas costas. Dei o primeiro tiro, Suel voou no chão, deve ter morrido na hora. A namorada berrava e tentava arrastar o negro para o carro. Dei outro tiro sem mirar e acertei na cabeça de Suel. Foi assim, as coisas aconteceram desse jeito. Ele foi a primeira pessoa que matei. Até isso acontecer, eu era apenas um garoto que vendia carros usados e torcia para o São Paulo Futebol Clube (Melo, 2002, p. 16).
Esse ponto marca o início de muitas atitudes violentas por parte de Máiquel. Agora ele teve uma escolha e, mesmo assim, não esboçava nenhum arrependimento por ter optado pela morte de Suel. Entre o primeiro e o segundo tiro, havia tempo suficiente para pensar nisso. O novo personagem estava definido e pronto para o seu caminho de mortes. A violência não era novidade no cenário suburbano da obra, o que causa estranhamento é a violência partindo de alguém como Máiquel.
Vale frisar novamente que há um processo até aqui, no qual os elementos são apresentados de forma gradativa, cada um sendo desencadeador do próximo, não somente em relação ao personagem como também com a obra como um todo. A violência é banalizada, mas o que resulta nela, mesmo sem justificativa, tem valor e importância para o personagem, o que pode ser visto pela narrativa em primeira pessoa. Na década de 30, em meio ao regionalismo, a preferência dos autores era pela terceira pessoa, a qual relatava a trama protegida pelo distanciamento. Já nas últimas décadas, um realismo acentuado tem surgido na literatura, evidenciando uma espécie de experimentalismo que vem à tona pela boca do personagem que nos contam suas histórias. Antonio Candido (1987, p. 213), em suas pesquisas, comenta que “A brutalidade da situação é transmitida pela brutalidade do seu agente (personagem), ao qual se identifica a voz narrativa, que assim descarta qualquer interrupção ou contraste crítico entre narrador e matéria narrada”.
Neste mesmo sentido, o próprio Máiquel nos diz quem era e quem se tornou:
Eu estava mudando, armas mudam tudo. Antigamente, quando saía por aí, só olhava para os meus próprios pés. Não via a rua, as pessoas, o sol, as bancas de jornais, os anúncios, eu só via meus sapatos fodidos, via merda de cachorro, via pontas de cigarro, papel, tampa de refrigerante, lixo. Aprendi a andar depois que passei a usar armas. Esmagar calçadas. Aprendi a olhar para a frente, para dentro das pessoas, os neurônios, o fígado delas. Eu mudei. Eu não era mais aquele homem do início, eu era um matador (Melo, 2002, p. 93).
No caso de Máiquel, existe mais um fator que permite a continuidade de seus assassinatos: a impunidade. Para a polícia, Máiquel havia feito um favor ao livrar as ruas de um criminoso: “PM já estava dando um tapinha nas minhas costas e dizendo que admirava os homens corajosos” (Melo, 2002, p. 19).
Há uma aceitação da comunidade em relação à morte de Suel pelo fato dele ser um criminoso que causava incômodo:
Gonzaga, assim que me viu, estendeu a mão molhada, aquela mão objetiva e úmida apertando a minha mão, sorrindo e dizendo que eu poderia pedir o que quisesse, que era por conta da casa, que a partir de agora seria. assim, sempre assim, eu merecia, eu era corajoso, ele dizia, e agora será assim, tudo o que você quiser. Ele estava feliz porque eu tinha matado o Suel. O Suel é um miserável filho da puta, roubou o tocafitas do carro da minha irmã, todo mundo odeia o Suel, eu odeio o Suel, ele disse. Fiquei surpreso, eu só queria um café, pensava em pagar pelo café, a partir de agora, aqui, você não paga mais nada (Melo, 2002, p. 19).
A atitude da população colaborou para que Máiquel não se sentisse um criminoso diante do que fazia. Ele era um justiceiro humanizado e aceito pela comunidade: “Entrei no carro e disse para mim mesmo: eu sou forte. Eu sou bom. Eu sou inocente” (Melo, 2002, p. 21). A morte de Suel foi aprovada pela comunidade que em forma de agradecimento enviou muitos presente a casa de Máiquel:
Quando abri a porta, encontrei um monte de pacotes na soleira: cigarros, carne moída, cerveja, pinga e flores. Tinha um bilhete também, com letra de criança: Obrigado, Máiquel. Outro: Bem feito para o Suel, letra de mulher. Bandido tem que morrer, letra de homem. Morreu porque não servia para a sociedade, à máquina. Claro, o porco. Ganhei um porco de presente pelo assassinato de Suel. E cigarros. Carne. Pinga e cerveja. O pessoal gostou. Gostei dos presentes (Melo, 2002, p. 22-23).
Máiquel, com a consciência desculpada pelo apoio da comunidade, sente-se à vontade para continuar matando. A violência descabida e exagerada marca a literatura contemporânea apresentada em O matador. Yves Michaud (1989, p. 8) apresenta um estudo sobre a violência e a sua definição se aplica à violência de Máiquel analisada neste trabalho:
Violência vem do latim violentia, que significa violência, caráter violento ou bravio, força. O verbo violare significa trotar com violência, profanar, transgredir. Tais termos devem ser referidos a vis, que quer dizer, força, vigor, potência, violência, emprego de força física, mais também quantidade, abundância, essência ou caráter essencial de alguma coisa. Mais profundamente, a palavra vis significa a força em ação, o recurso de um corpo para exercer a sua força e portanto a potência, o valor, a força vital.
A força que a violência assume, segundo Yves, é a mesma força provada por Máiquel, que em meio ao poder adquirido sente-se capaz de tudo. A narrativa em primeira pessoa permite ao personagem aplicar esse poder em suas falas e ações. Para Walter Benjamim (1994, p. 205) a narrativa “mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele”, ou seja, “Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso”. Deste modo, a literatura contemporânea tem o seu poder na força do narrador e nas sensações experimentadas por ele e alargadas pela violência com a qual está envolvido, caracterizando assim, um novo realismo, diferente do canônico. Máiquel tinha a opção e fez a sua escolha. Neste momento, ele se vê como um profissional no que fazia e desprovido de hesitações, quer ser bom no seu ofício: “Decidi concentrar todas as minhas forças no meu trabalho. Nome: Pedro televisão. Vinte anos, pardo. Pedro é um homem cruel, disse o dr. Carvalho. Seja cruel. Serei” (Melo, 2002, p. 95).
Outro fator que impulsiona Málquel para a violência é o prestigio social e financeiro angariado por meio dela. Como assassino, o personagem abriria muitas portas, tendo acesso a clientes ricos e poderosos que proporcionariam a ele uma vida de riqueza e de status. Em sua vida anterior, Máiquel teria um futuro limitado em meio a uma vida simples e medíocre: “Posso vender sapatos, descascar batatas, qualquer coisa. Foda-se. Posso matar também. É fácil matar, você pega o revólver, aperta o gatilho e pronto” (Melo, 2002, p. 34-35).
A obra acaba por conduzir o personagem à criminalidade e à vida de matador. A classe social na qual Máiquel estava inserido não oferecia atrativo financeiro nas profissões simples que o limitariam a uma vida modesta e restrita. Como matador ele teria um duplo salto na vida: receberia respeito e admiração por eliminar pessoas vistas como delinqüentes e ainda, receberia a compensação financeira por parte da alta sociedade com a qual ele estava se envolvendo. Para que tudo isso fosse possível, a violência se torna uma coisa natural: “você estará tentando olhar para aquilo com naturalidade, matar pessoas, muito bem, a gente mata, guerra, a gente luta, isso é bom, isso é ruim, pouco importa, eu não queria saber de nada, queria apenas fazer bem-feito, era isso que eu queria” (Melo, 2002, p. 94).
Na seqüência da narrativa, a violência vai se efetivando de outras maneiras na vida do personagem Máiquel. Como matador ele ganha dinheiro, respeito e o auge de sua ascensão é o prêmio Cidadão do Ano, que ele recebe da comunidade de Santo Amaro: “O Clube Recreativo de Santo Amaro tem o prazer de convidá-lo para a festa Cidadão do Ano, onde Vossa Excelência será homenageada pelos serviços prestados à comunidade” (Melo, 2002, p. 148). Mesmo abrindo portas, o dinheiro faz com que as relações humanas sejam cada vez mais impessoais. As pessoas podem ser niveladas, associadas ou separadas pelo que têm ou aparentam ter. Os bens de consumo propiciam liberdade ao servirem como elemento de afirmação da individualidade e ao definir os membros de grupos distintos. As relações humanas baseadas na amizade, amor e respeito são substituídas pela aparência comprada com o dinheiro e a sensação diante do bem alcançado é grandiosa, ainda que ilusória.
A partir deste ponto, a violência torna-se contínua na obra, perdendo o controle e tornando-se banalizada, comum, normal no mundo de Máiquel. Sua individualidade dependia da liberdade de ação, e Máiquel deixa de lado a posição estática de membro comum de uma sociedade decadente e se torna um ser atuante como matador, livre, individual em relação à comunidade ao seu redor. Ele ostenta seu papel sem medo das conseqüências.
No que se refere ao nosso estudo, já é o suficiente para se perceber a inovação contemporânea da obra nas atitudes do personagem. A novidade está na apresentação de personagens que por si só justificam as suas ações, independentemente de valores sociais e concepções de certo ou errado, tendo na violência a materialização de suas escolhas e na força de seu narrador a intensificação destas atitudes. Tal postura literária coloca-se em detrimento às obras canônicas que apresentam a violência a partir da lógica e da razão, tendo sua justificativa no positivismo e cientificismo baseados nos discursos dominantes. A questão principal da obra não é defender a violência, e sim apresentar os elementos gradativos de seu surgimento e efetivação. Para Candido (1987, p. 209), isso representa um “experimentalismo que rompe os limites do que seja conto e romance e parte para a incorporação de “técnicas e linguagens nunca dantes imaginadas dentro de suas fronteiras”.

Referências

CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
____. Sociologia. 2. ed. Trad., introd. e org. Flávio Kothe. São Paulo: Ática, 1991.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
____. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 2001.
____. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: J. Zahar Editor, 2005.
MELO, Patrícia. O matador. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
MICHAUD, Yves. A violência. Trad. L. Garcia. São Paulo: Ática, 1989.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas literaturas. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.


1 Mestrando em Literatura pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI-FW. E-mail: fabiopoeta@yahoo.com.br
2 Usaremos neste artigo a expressão contemporâneo para se referir à literatura das duas últimas décadas, em detrimento à outras definições como modernidade, pós-modernidade, hipermodernidade, modernidade líquida (a exemplo de Gilles Lipovetsky e Zigmunt Bauman) que são alvo de análise de tantos artigos científicos, o que não é o caso aqui.
3 Patrícia Meio é roteirista, dramaturga e escritora. Publicou Acqua toffana (1994), Elogio da mentira (1998) e Inferno (2000), todos pela Companhia das Letras. Em 1999, a Time Magazine incluiu-a entre os cinqüenta "Latin-American Leaders for the New Millennium". O matador (prêmios Deux Océans e Deutsch Krimi; indicado para o Prix Femina de romance estrangeiro) e Elogio da mentira tiveram os direitos vendidos para a Inglaterra, Alemanha, França, Itália, Espanha e Holanda, entre outros países.
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