A MEMÓRIA NA CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA EM ESSA TERRA E PELO FUNDO DA AGULHA, DE ANTONIO TORRESAdriana Maria Romitti Albarello1
Resumo: O trabalho enfoca a memória como resgate da identidade do sujeito, numa sociedade fragmentada, em que as relações pessoais estão cada vez mais instáveis. A partir da análise comparativa das obras Essa terra (1976) e Pelo fundo da agulha (2006), de Antonio Torres, mostra-se o migrante em busca de melhores condições de vida e mais tarde dividido entre dois mundos, sem sonhos e sem expectativas.
Palavras-chave: Memória. Identidade. Relações pessoais. Entre-lugares. Sociedade.
Abstract: The work approaches the memory as rescue of the person´s identity, at a fragmented society, in that the personal relations are more unstable. Through comparative analysis of Essa terra (1976) and Pelo fundo da agulha (2006), by Antonio Torres, it is showed the person that migrates of the native land to get better and after this person divided between two worlds, without dreams and without life´s expectations.
Keywords: Memory. Identity. Personal relations. In between-places. Society.
Retendo fatos, transmitindo-os, reelaborando-os, criando-os, representando-os pela linguagem, a espécie humana tenta manipular a natureza, por infinitas possibilidades, recriando-a, transformando-a, inventando-a, ou seja, fazendo cultura. Em todo esse processo, a memória é o mecanismo de apoio, o elemento diferencial que permite à humanidade cumular os saberes transmitidos entre as gerações. A cultura, essencial à sobrevivência humana, pelo processo de socialização se torna patrimônio, direito de qualquer indivíduo, em todos os tempos e espaços particulares da sociedade humana universal.
Esse trabalho tem por objetivo uma análise comparativa das obras Essa terra (1976) e Pelo fundo da agulha (2006) de Antônio Torres, dois livros que fazem parte da trilogia do migrante ou do suicídio, como foi denominada por alguns autores. Ambas apresentam como personagem principal Totonhim. O primeiro conta a vida deste em Junco, sua cidade natal, e a partida para São Paulo em busca de melhores condições de vida. O segundo narra o emocionante acerto de contas entre Totonhim e suas memórias de Junco, numa viagem que une elementos irremediavelmente separados pela vida.
A trilogia de Antonio Torres mostra os três tempos de um personagem catalisador da vida brasileira na última metade do século XX. Em Essa terra, ele aparece moço, recebendo o irmão Nelo, que partira para São Paulo, deixando a família e a identidade para trás. Cultuado como alguém que deu certo, Nelo volta para Junco, doente, desiludido e frustrado por não atender às expectativas da família. Acaba suicidando-se por não se reencontrar mais com sua cidade. Assim Totonhim, sem perspectiva e sem dinheiro, decide partir e tentar a sorte na cidade grande.
O segundo livro, O cachorro e o lobo (1997), conta o regresso do protagonista à cidade depois de vinte anos de ausência, numa visita relâmpago ao pai que acabara de completar oitenta anos, procurando recuperar a posse de um lugar onde estão suas raízes. Atormenta-lhe o desemprego, mas ainda consegue representar o papel de homem bem-sucedido, distribuindo presentes e festejando com seus conterrâneos.
No terceiro livro da trilogia, Pelo fundo da agulha, dez anos depois da sua única viagem de retorno, Totonhim está sozinho no mundo. Aposentou-se, separou-se da mulher e dos filhos, perdeu o melhor amigo e faz outra viagem de volta, totalmente interior. Embalado pela imagem da mãe velhinha, mas ainda com boa visão para enfiar a linha pelo fundo da agulha, sem usar óculos, ele repassa várias cenas de sua vida, como se a olhasse por esse orifício. As figuras só existem na memória de Totonhim, que revela a sua história paulista.
A memória é o ponto de partida para a análise do corpus apresentado nesse estudo, pois é através dela que as narrativas de desenvolvem, numa busca incessante pelo que foi vivido, pelo entendimento de fatos e situações que desencadearam o hoje. Na memória há um movimento que vai do presente em direção ao passado, percebendo de que forma os indivíduos recordam a si mesmos e de que maneira acontece a reconstrução dessas recordações.
A preocupação com o estudo da memória, incorporada mais recentemente às ciências humanas, esteve há décadas no centro das discussões. Evidencia-se a importância da memória não só para as reconstituições de uma determinada época, como para as representações e construção de identidade. Segundo Bergson, os significados da percepção, consciência, representação e memória são uma sobrevivência das imagens passadas. O autor, no que tange à memória, trata da “realidade das coisas já não construída ou reconstruída, mas tocada, penetrada, vivida” (1990, p. 49-51).
A memória individual, separada em absoluto da memória social é uma abstração quase destituída de sentido, pois, segundo Connerton, “a narrativa de uma vida faz parte de um conjunto de narrativas que se interligam, está incrustada nas histórias dos grupos a partir dos quais os indivíduos adquirem a sua identidade”. Se “a produção de histórias é uma característica de toda a memória social” e se a memória social é veiculada através das histórias de vida, a narração individual torna-se uma maneira de transmitir a memória coletiva (1993, p. 45).
Sabemos que a memória coletiva é uma das bases da identidade e que se pode traduzir em consciência histórica da própria cultura, não só em termos abstratos, mas também como cultura material. A memória coletiva está traduzida nos gestos, nos hábitos e nos costumes das pessoas. Tudo é memória desde as tradições orais até as materiais.
Segundo Pollack (1992), a caracterização da relação entre memória e identidade, revela a memória como um fenômeno construído consciente ou não, como resultado do trabalho de organização individual ou social. Assim, sendo um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, é um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si.
O teórico também define a identidade como a imagem que a pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação e também para ser percebida da maneira que quer por outros. A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, credibilidade e que se faz por meio da negociação direta com outros. Memória e identidade são valores disputados em conflitos sociais intergrupais e em conflitos que opõem grupos políticos diversos.
De acordo com Bosi (1987), lembrar significa aflorar o passado e, concomitantemente ao processo corporal e presente da percepção, misturar dados imediatos com lembranças. A memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo atual das representações. Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que muda conforme o lugar que algo ocupa e sua relação com outros meios.
A memória construída no presente, a partir das demandas dadas por este e não necessariamente pelo passado em si, pode ser pensada como fator fundamental para a construção de pertencimentos sociais, aos mais diversos níveis associativos. De certa forma, a busca do controle sobre a memória institui uma identidade para o agente social nela envolvido, no sentido de gerar um lugar dentro de uma rede específica de circularidade e fluxo.
A aproximação entre memória e identidade está relacionada ao tempo. Sendo o homem um sujeito histórico, recordar é um ato coletivo que está ligado a um contexto de natureza social e a um tempo que engloba uma construção, uma noção historicamente determinada.
A lembrança é a recordação de um tempo revivido. E isso é mostrado na análise comparativa das obras Essa terra e Pelo fundo da agulha, por meio das divagações do personagem Totonhim, que busca a construção de processos identitários, pelo viés da memória de fatos passados.
Essa terra pode ser vista como um relato fragmentário e memorialístico, contrastando os grandes centros desenvolvidos e o sertão esquecido à própria sorte, o qual se tornou um território explorado e pauperizado pela região centro-sul, que lhes rouba até as pessoas, as únicas esperanças de uma vida digna. É uma narrativa que aborda a questão do êxodo rural de nordestinos em busca de uma vida melhor nas grades cidades do Sul, principalmente em São Paulo. Constitui-se em uma ficção precisa, uma espécie de depoimento sobre o aspecto dramático da sociedade brasileira de meados do século XX.
Pelo fundo da agulha é um romance que fala da vida de um homem, baiano, que após anos de dedicação ao serviço, enfrenta sua primeira noite de aposentado, em um quarto de hotel. Diante da falta do que fazer, da desesperança e quase desistindo de seus sonhos, ele começa a relembrar fatos de sua infância, seu ambiente familiar, sua casa, características de sua mãe, de como a via, sempre costurando, colocando a linha pelo fundo da agulha. Totonhim faz uma retrospectiva de sua vida, imaginando o olhar da mãe por esse buraco, o fundo da agulha.
Ele narra o aprendizado, suas primeiras relações sexuais, e de como nunca esqueceria suas juras de amor para as antigas namoradas. Fala da sua vinda para São Paulo, de amigos que o ajudaram a entender a complexidade dessa cidade tão grande. Dentre essas lembranças, fala sobre o triste fato de seu irmão Nelo ter saído de Junco, na Bahia, em busca das maravilhas e do sucesso da cidade grande e, no retorno, de mãos vazias, acaba com sua própria vida.
De volta a Junco, em sua memória, Totonhim, conversando com sua mãe internada em um sanatório, percebe que tudo passou muito rápido: ele, aposentado, separado da esposa e sem os filhos. Um destino de solidão e abandono igual aos seus. Como ato de resistência ao apagamento da memória, Totonhim toma para si o papel de reconstruir sua trajetória individual e coletiva, contra o esquecimento.
Através da experiência trágica de uma família do sertão nordestino, os textos relatam a migração como um fenômeno universal, assim como o desenvolvimento desigual dos lugares, mostrando que esse é o caminho de todos os países, cidades, nações e que isso ocorre somente com o deslocamento das pessoas e suas vivências, mas dos valores, comportamentos e condições de vida.
Esforçando-se para compreender a saga dos nordestinos em condições adversas, o autor entra nos caminhos da narrativa sociológica e psicológica, fazendo dos aspectos físicos, sociais, econômicos, políticos e culturais do sertão conteúdo essencial do texto, estabelecendo uma espécie de ligação e dependência entre o drama individual, os conflitos psicológicos e o contexto em que estão inseridos.
A identidade se constrói a partir de uma ancestralidade nordestina, visto que não existe identidade sem memória. Segundo Benjamin (1994), o conceito de história é definido como uma filosofia da memória e os excluídos do processo histórico são indivíduos que tem outra versão dos fatos para ser narrada. Assim a memória possibilita o conhecimento crítico e contestatório.
Segundo Antônio Torres (site do autor), o que ele tentou fazer em Pelo fundo da agulha foi “uma reflexão sobre este crepúsculo do mundo em que vivemos. Um pós-utópico, pós-modernista, pós-tudo”. Segundo o autor, por trás dos impasses de Totonhim estão os impasses de cada um, de toda uma geração e que de repente todos se veem “jovens, adultos e velhos, numa encruzilhada do tempo, em busca de uma saída para o futuro”. A questão é essa: será que há saída?
Mas o que é esse mundo pós-moderno? Há muitas divergências entre os críticos sobre o termo. Segundo Lyotard (2008), caracteriza-se pela fragmentação e multiplicação de centros, bem como a complexidade na relação com os sujeitos. Não é mais possível apoiar-se na dialética do espírito nem mesmo na emancipação da humanidade para validar o discurso científico pós-modernos, ou seja, as instituições tradicionais que davam suporte ao indivíduo estão desacreditadas.
E nesse contexto, o sujeito encontra-se em conflito. Todos os interesses estão envolvidos e o indivíduo precisa adaptar-se a cada instante dentro de uma sociedade instável e flutuante, em que as identidades são construídas a partir da experiência e das relações com o outro.
As pessoas encontram-se sem tempo, preocupadas com atividades assumidas. Foi assim com o casamento de Totonhim. Ele, comprometido com seu trabalho e cada vez menos envolvido com a família, chegando tarde, indo direto para o banho e não dando atenção aos filhos. Mais tarde, a esposa, que começou a trabalhar e não se envolve mais com a família. Assim, o ser humano se tornou maleável, rápido, seus padrões são pessoais e não seguem a concretude de antigos padrões estabelecidos.
Nesse sentido, o amor também se tornou maleável. Aconteceu com Totonhim e já havia acontecido antes com a família dele. Em Essa terra, a mãe do narrador deixa o esposo no sertão nordestino e parte para Feira de Santana para que os filhos possam estudar. Lá encontra um mundo de miséria e dificuldades. As filhas, cada uma segue o seu caminho, e ela, na sua máquina de costura, busca o sustento para uma família numerosa que se dissipava aos poucos.
Essa atitude fez com que o relacionamento da família nunca mais fosse o mesmo, pois o pai nunca aceitou tal situação. Quando a mãe comunicou a decisão de mudar-se disse: “Não faça essa loucura!”, “Você perdeu o juízo? E ela logo retrucou: “Não pari esses meninos para morrerem na ignorância” (TORRES, 2008, p. 153-154). O pai nunca mais interferiu, porém nunca aceitou, vivendo de lembranças, remoendo as angústias da vida e as dificuldades da vida na roça.
As relações familiares não são duradouras, sofrem as conseqüências do mundo globalizado. O individualismo tomou conta e as relações tornam-se efêmeras. É a incapacidade em interagir com o outro na sua complexidade. A cena da mudança é rememorada por Totonhim na sua viagem interior no livro Pelo fundo da agulha. “Foi como se dissesse: bem, meus considerados, sei que daqui para frente contarei tão-somente com a minha força de vontade. Quem sabe só isso baste para me ajudar a tirar os meus filhos da ignorância?” (TORRES, 2006, p. 156).
A saga de Antão Filho, o Totonhim, de certa forma, traduz o desencanto da sociedade brasileira nos últimos anos, representada no cidadão cujas raízes se fragmentam, cada vez mais destituídas de laços, de esperança, de alegria. Todos se envolvem em situações e não conseguem fazer brotar vínculos entre as pessoas. O narrador relembra a sua vida e não consegue ir até os seus, a fim de romper esse clima de abandono e descaso. É um querer sem querer ou sem coragem para enfrentar os medos. A angústia se torna o território implacável em que reside a trajetória humana.
Pelo fundo da agulha retrata a história de um homem que, ao se aposentar, passa a ter o sentimento de viver em um não-lugar sem saber se possui sonhos próprios ou caminhos a seguir. Ele relembra sua vida marcada por metáforas e lembranças de uma cidade, de um tempo, de uma vida que não existem mais. O espaço e o tempo são representados pelos pensamentos do protagonista, cheio de idas e vindas, o que seria uma representação do próprio movimento de um migrante que sempre habita dois mundos opostos. Essa ideia está presente na obra, como se pode observar logo no início (TORRES, 2006, p. 7-8):
Era outra cidade, e outros o país, o continente, o mundo deste outro personagem, um homem que já não sabia se tinha sonhos próprios. Cá está ele: na cama. Não o imagine um guerreiro que depois de todas as batalhas finalmente encontrou repouso, abraçado a uma deusa consoladora dos cansados de guerra. Seria um exagero inscrevê-lo na lenda heróica. Esta é a história de um mortal comum, sobrevivente de seus próprios embates cotidianos, aqui e ali bafejando por lufadas de sorte, mais a merecer uma menção honrosa pelo seu esforço na corrida contra o tempo do que um troféu de vencedor. Assim o vemos: deitado, imóvel... A narrativa põe diante do leitor uma personagem entregue a divagações e incertezas, apontando duas preocupações temáticas pelas quais há de orientar-se a organização da trama: o estrangeiro e a metrópole, ou seja, o estranhamento que resulta desse encontro.
A característica de um sujeito que se desloca para um novo território, como é o caso de Totonhim, Nelo e outros mais é habitar um entre-lugar, conceito trazido por Santiago (1978), que significa para o indivíduo uma oscilação entre se explicar ou se constituir, sendo que sua construção se dá em uma dialética diluída entre o ser e o outro.
Entre-lugar, lugar intervalar e caminho do meio “são algumas, entre as muitas variantes para denominar, nesta virada de século, as “zonas” criadas pelos descentramentos, quando da debilitação dos esquemas cristalizados de unidade, pureza e autenticidade, que vêm testemunhar a heterogeneidade das culturas nacionais...” (HANCIAU, 2005, p. 127).
Um caminho do meio consiste em procedimentos de deslocamento em que o projeto identitário possa nascer da tensão entre o apelo do enraizamento e a tentação da errância. O enraizamento e a errância são duas fases da questão identitária, um caminho do meio para superar o dilema fundamental encerrado pela questão identitária: afirmar-se e excluir o outro ou desistir de se nomear e desaparecer (BERND, 2001). Assim, nessa contestação é perceptível que a afirmação da identidade passa pela negação da alteridade.
A fronteira constitui-se em encerramento de um espaço, limitação de algo, fixação de um conteúdo e de sentidos específicos, conceito que avança para os domínios da construção simbólica de pertencimento denominada identidade e que corresponde a um marco de referência imaginária, definido pela diferença e alteridade na relação com o outro (PESAVENTO, 2001). Estudar essas fronteiras leva o indivíduo a entender o sentimento de algo inacabado, o qual teve origem na incapacidade de conceber-se entre dois mundos.
Ainda segundo Pesavento (2001), no mundo globalizado, as questões identitárias se acirram, pois é um tempo de idas e vindas não apenas de lugar, mas também de situações que, pelo contato e permeabilidade, possibilitam o surgimento de algo novo, diferente, ou seja, um indivíduo que não é aquele do lugar de origem e nem o do lugar em que está. Por outro lado, tem um pouco de cada espaço, porém não consegue identificar-se, busca um terceiro que se situa no lugar de passagem.
Esse espaço intermediário é produto da capacidade imaginária de refigurar a realidade, a partir de um mundo paralelo de sinais que guiam o olhar, por meio do qual o ser humano percebe e qualifica a si mesmo, o corpo social, o espaço e o próprio tempo. “Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas... é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente (BHABHA, 1998, p. 19). Assim, a significação do tempo atual é colocar a questão da cultura na esfera do além, o que significa habitar um espaço intermediário, nem um novo horizonte, nem um abandono do passado.
Nesse sentido, o indivíduo vivencia esse trânsito em que passado e presente, interior e exterior se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade. Esses entre-lugares fornecem o campo para a elaboração de estratégias de subjetivação que dão início a novos signos de identidade e a postos inovadores de colaboração e contestação no ato de definir a própria idéia de sociedade.
As pessoas se acotovelam em entre-lugares, espaços estes onde o indivíduo não consegue criar laços duradouros, pois está de passagem ou precisa adaptar-se a uma nova situação de contato, que não é o de sua origem. Assim, as relações parecem ser de fuga, desvio e rejeição a certos espaços físicos. E a identidade acaba se ajustando a esse mundo.
Nessa perspectiva, surge uma ambivalência: eliminar as fronteiras alarga o conceito de unificação e abre novos campos de aceitação e identidade; porém, se muito aberta, ao evidenciar os processos de globalização e seus movimentos, pode provocar insegurança e o medo da negação das identidades locais (HANCIAU, 2005).
Bhabha (2003) propõe pensar as fronteiras da cultura como um problema relativo à expressão da diferenças cultural, significa ir além do reconhecimento e do acolhimento das diversidades, bem como da crítica às discriminações e às exclusões. Segundo ele, enquanto o conceito de diversidade cultural conduz, essencialmente, a uma discussão filosófica, a ideia de diferença cultural remete à enunciação da cultura, isto é, a um processo através do qual se produzem afirmações a respeito da cultura que fundam e geram diferenças e discriminações, ao mesmo tempo em que estão na base da trama das relações de poder e de práticas sociais muito concretas, de institucionalização, de dominação e de resistência.
O narrador-personagem Totonhim, em sua trajetória habitou dois mundos: o sertão e a cidade. Vivenciou muitas situações e, agora, sente-se em uma encruzilhada, sem rumo. Aparentemente, a nova vida e as conquistas na metrópole paulistana o encantavam. Não teve coragem de rever a própria família e a sua Junco. Nunca levou a esposa e os filhos para fazerem parte do seu mundo anterior. A impressão que se tinha era que ele era duas pessoas distintas e que os dois espaços não se misturavam. Porém, no fundo do seu ser, algo não estava bem resolvido.
Com o tempo, perdendo suas conquistas, percebe que o homem não é só o que tem, mas o seu passado e sua história. Assim, dividido entre lembranças e angústias trava uma batalha com sua consciência, em um quarto de hotel, relembrando fatos e situações de toda uma vida.
O enaltecimento a Totonhim e a valorização do nordestino é um pouco contraditória em Pelo fundo da agulha, pois ele só passa a ser reconhecido como tal, quando se submete à cultura da metrópole. Dessa forma, Totonhim precisa ver o seu espaço como um lugar que começa a se fazer presente em sua vida, uma página que está sendo escrita. Nesse contexto, começa a se elaborar o imaginário do migrante que embaralha pontos de referência e mistura o próximo e o distante, bem como o estrangeiro e o familiar.
As duas obras despertam no leitor o senso de reflexão acerca do semelhante e as suas condições de existência, provoca uma visualização mais profunda do ser humano, procurando demonstrar a realidade dos excluídos, enquanto sujeitos e pacientes de um drama, mantendo nos momentos mais tensos da narrativa um clima de tranquilidade entre os personagens.
Essa terra apresenta o povo nordestino como indivíduos não socialmente aceitos, marginalizados e inferiorizados, que, geralmente, não conseguem uma boa situação econômica, como o que aconteceu com Nelo que nas cartas avisava o pai que a cidade de São Paulo não era tudo o que as pessoas pensavam. Os baianos são conhecidos como aqueles que vão embora de suas terras e não voltam para buscar nem as namoradas. A marginalização chega ao ponto da generalização.
Totonhim já não pensava como o irmão, pois tinha sido bem recebido em São Paulo e encontrado um amigo de verdade, Bira, o amazonense com quem dividira o quarto em uma pensão e quem o motivou a estudar para conseguir um emprego. Porém, quando vai ser apresentado ao sogro em Pelo fundo da agulha preocupa-se com o que o sogro pensará sobre sua origem, tendo em vista que sempre soube que um nordestino não é bem aceito nas demais regiões do país. Seu sotaque denunciaria que era migrante e se questionava se a frase “Mate um baiano por dia, para manter a cidade limpa” poderia ser levada a sério pelos sogros, apesar de ele nunca ter visto ninguém matar um baiano (TORRES, 2006, p. 150).
A preocupação do narrador não passou de uma ansiedade. A família o recebeu muito bem. Nesse sentido, destaca-se a diferença entre as duas obras. Na primeira, a visão da metrópole paulistana como solução para o mundo de miséria do nordestino não se concretiza na figura de Nelo, que retorna derrotado. Já para Totonhim, São Paulo mostra o lado de progresso e de vitória, pelo menos na situação econômica.
Antão Filho, a princípio, é um vencedor. Passou no concurso do Banco do Brasil, casou-se e constituiu família. O seu progresso financeiro veio a partir da instituição que destruiu a vida da família: o banco que emprestou dinheiro aos sertanejos para a plantação de sisal e que, por esse motivo, o pai acabou perdendo as terras e a vontade de viver, mergulhando em uma solidão sem volta. As contradições entre as duas obras são evidentes: o mal que se torna um bem.
A consciência do vazio imenso da personagem está na segunda obra. Totonhim se vê em um quarto, na cidade de São Paulo, abandonado pela mulher e filhos, na primeira noite após se aposentar. Financeiramente sua jornada não foi desfavorável. No entanto, a solidão lhe preenche, num delírio formado por lembranças que estão nas quatro paredes. Entre o sono e a vigília, o protagonista olha o próprio passado, buscando fugir do presente por meio das lembranças de fatos vividos.
Totonhim está em uma nova encruzilhada. Em Essa terra, a decisão de partir ou não. Em Pelo fundo da agulha, o homem fora de combate deita na cama e pensa no sentido de tudo. Não há ninguém para consolá-lo e ele se sente perseguido pelas histórias de amigos e parentes que se suicidaram. Quer voltar para Junco. A sua Junco não existe mais. Onde encontrar a alegria de viver? É o impasse que atormenta a personagem, agora um homem urbano, distante de suas raízes, embora elas continuem agindo nos subterrâneos.
A narrativa sofre frequentemente cortes, o que muitas vezes desemboca no fluxo da consciência. Nessas situações, depara-se a interioridade da personagem, carregando em si um universo de dúvidas, de contradições, de gozo, de culpas, de lembranças doces e ruins (TORRES, 2006, p. 105-106):
Por quantos anos mais os esteios e as paredes daquelas casas se manteriam de pé? Nascera numa delas, de fundos para o Nascente, rodeada de árvores frutíferas, quintal de flores, verduras, abóboras, bananeiras. E com um avarandado para o poente. Para os crepúsculos mais longos e mais silenciosos do mundo. Agora via um menino saindo de lá e pegando um caminho que chegava a uma cancela. Era uma manhã ensolarada, igual a muitas outras. Ao passar de um pasto para outro, ele, o menino, se deparou com uma explosão de tomates, estonteantes ao sol, tão vermelhos que pareciam enfeites para um presépio. Essa passagem comprova a fusão do passado com o presente, pois o protagonista entrega-se a devaneios frequentes; são momentos em que procura um sentido para a existência ou uma explicação para os mistérios que a rodeiam. E tudo acontece através da síntese de perspectivas temporais: a lembrança, o momento presente, a projeção do passado no presente, a partir do qual emerge o futuro, para que tudo se funda no intemporal: “Agora cá estava. Sim, no meio do caminho andado, entre passado e futuro. Ainda não avistara o sinal verde franqueando-lhe a passagem, no viaduto entre dois tempos” (TORRES, 2006, p. 128).
Em algumas passagens, percebe-se um tom de ironia a si mesmo, como no momento em que Totonhim pensa em pôr um fim a sua vida. A impressão que passa é a de um diálogo com ele próprio, como no exemplo (TORRES, 2006, p. 128):
Não, não vai chorar. A música que continuava ouvindo, imaginária ou não, haverá de acalentar-lhe o sono... Vamos combinar que esta história da morte brutal da sua mulher é má literatura ou, no mínimo, uma solução fácil, senhor. Mais parece uma colagem de alguma matéria de jornal, lida hoje, sobre o transe urbano, que se tornou banal, de tão repetitivo. Pelo fundo da agulha revela mundos distintos da mesma personagem. Dividido entre o sertão e a cidade, Totonhim demonstra que a experiência vivida leva apenas lembranças e saudades. Isso faz com que haja uma reflexão a respeito da condição humana. Ao demonstrar um caminho incerto para o futuro do migrante aposentado, o autor deixa transparecer que não importa a fase da vida que as pessoas se encontram, pois elas estarão sempre sonhando com um lugar idealizado. Afinal, este é o motivo para migrar dentro de sua própria existência.
Fundindo pensamento e linguagem, a narrativa entrelaça memória e imaginação de tal forma que a unidade se anuncia a partir de fragmentos. Isso acontece no decorrer das duas obras analisadas, visto que a todo momento o passado e o presente se intercalam. O protagonista narra um fato presente e logo o interrompe com situações vividas. Após, retorna ao presente e, assim sucessivamente, sem ordem nos acontecimentos, num exercício de reconstrução gradativa do tempo que se dissolveu.
O exercício da memória está ligado à aprendizagem. Aprender é apreender. O homem perdido de si mesmo e de seu semelhente, busca o passado na sofreguidão de marcar um encontro consigo mesmo no presente. Desse modo, o protagonista de Pelo fundo da agulha percorre toda a narrativa reiterando um movimento circular: Totonhim – Antão Filho – Totonhim. Nesse movimento, está a sua viagem interior.
O suicídio é uma questão que volta e meia entra em pauta nas obras. As mortes do irmão Nelo e do primo Pedrinho, por enforcamento, do amigo de infância Gil e a do sogro, por tiro, são retomadas através da memória do protagonista. Mais que um fato em si, o pecado mortal e condenado pela religião e cultura dos personagens, o atentado contra a própria vida é uma situação limite de perda de perspectiva do sujeito sem referencial identitário, sem sonhos próprios.
Independente da ação suicida se realizar ou não, o que ela suscita no personagem é o mesmo sentimento que levou os seus à morte: o sentimento de não pertencimento, de frustração, de não ter realizado o que esperavam dele, ou melhor, do que ele próprio esperava de sua vida. Aposentado, tem sua vida se desenrolando em apenas uma noite. Mergulhado em pensamentos devaneia, tentando situar-se num mundo que parece não ser o seu, mas que é o único que se apresenta, quando retorna de sua viagem ao passado. Situa-se como um viajante sem rumo, cujo último porto só espera seus relatos de bordo, sua fragmentada narrativa. E o tempo é a sua matéria.
Entre os mistérios e os segredos está a figura da mãe que sobrevive com uma visão apurada de costureira dos fragmentos desse tempo. Ao que parece, a mãe foi a força que ao separar os tecidos para a costura, os unia para dar um novo significado: a roupa pronta. Por isso, sendo a narrativa constituída de fragmentos, revela o sentimento que o protagonista tem da vida:\amargura, separação, partes que precisam ser costuradas para formarem o todo, para construírem a sua identidade.
Depois de tantas perdas e vazios, Totonhim tem curiosidade quanto ao que pode ser visto pelo fundo da agulha. Agora, quando tudo parece sem sentido lhe resta uma pilha de livros para buscar os sonhos alheios, já que não sabe mais se tem sonhos próprios. Revivendo cada lembrança e completando-na com a memória dos sentimentos de reações imediatas torna o reviver de fatos uma sequência de saudades, lembranças, culpas, angústias e uma sensação de impotência diante do tempo.
A memória deve ser entendida, como lembranças de fatos vividos, percebidos e sentidos pelas pessoas. Criar e recriar são inerentes aos mecanismos de atuação da memória, ligam-se à força do presente do qual faz parte o apelo ao qual a lembrança responde (BÉRGSON, 1990). Embora altamente impregnadas de presente, as lembranças do passado podem substituir, enquanto revivência de imagens anteriormente registradas. Memória e identidade possuem intrínseca relação. A construção da memória, pelos mais diversos agentes sociais, tem sido objeto de reflexão científica pela sua importância na configuração das identidades sociais.
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