Grupo de Pesquisa Literatura e Autoritarismo  |  Índice de Revistas  |  Normas para Publicação
Literatura e Autoritarismo
Dossiê Literatura de Minorias e Margens da História
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê nº 4 

SOB OS VÉUS DO ANONIMATO E DA VIOLÊNCIA HUMANA: ANÔNIMA: UMA MULHER EM BERLIM

Suzana Raquel Bisognin Zanon1
Resumo: Este artigo objetiva analisar o diário de Anônima: uma mulher em Berlim, sob a perspectiva da violência e da assimetria de poder entre homens e mulheres durante a Segunda Guerra Mundial. Este diário detém-se em narrar a saga da protagonista e autora do texto, a qual não tem seu nome, em momento algum, revelado na narrativa, tampouco das companheiras que estiveram dispostas a mesma situação de subserviência e deleite masculino, através da força. O texto que prima pelo anonimato em virtude da vergonha, fruto da violência e abuso sexual sofrido pelas mulheres durante a invasão dos russos em Berlim.
Palavras-chave: Abuso sexual. Anônima. Holocausto. Poder. Violência.
Abstract: This article aims to analyze Anônima: uma mulher em Berlim’s diary, about the violence perspective and the power asymmetry between men and women during the Second World War. This diary detains itself in relating the protagonist and the text author’s saga, which doesn’t have her name, in any moment, revealed in the narrative, neither her friend’s name which were disposed to the same subservient situation and male delight, through the strength. It is a text which predominate the anonymity due to the shame, consequence from violence and sexual abuse suffered by women during the Russian invasion in Berlim.
Keywords: Anônima. Holocaust. Power. Sexual abuse. Violence.

As mazelas de dor causadas nos homens pela violência, desde os tempos primitivos, se desenvolvem no tempo, como se impulsionada pela irracionalidade humana e pela condição de sua natureza existencial. Com efeito, os estudos literários não se eximem de investigar a abrangência dos escritos que salientam as matizes atrozes causadas nos seres humanos, em virtude da crueldade excessiva dos homens, mesmo que, simbolicamente.
Sugere-se, a partir deste preâmbulo, que as atitudes emolduradas pela crueldade direcionam à conseqüência traumática, fruto de situacionalidades que desembocam nessa roupagem empedernida. Para tanto, o trauma não cristaliza apenas um abalo profundo, mas todo um conjunto de situações que fizeram chegar até ele e que, não obstante, entranha-se nas escoras da subjetividade humana, influenciando na maneira de ver o mundo, agir e pensar.
Ao falar do fenômeno da violência e suas diversas formas de manifestação, o estudioso Yves Michaud expressa seu pensamento, ao dizer que
Há violência quando, numa situação de interação um ou vários atores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou mais pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas participações simbólicas e culturais.2
Neste aspecto, podemos salientar que a violência pode ser vista enquanto entidade multifacetada, adornada por designações sob vários ângulos, sejam eles sociais, físicas ou psicológicas. Essas considerações são capazes de “lapidar” um contexto opressivo, que aleija a dignidade individual e coletiva do homem, enquanto criatura humana.
O holocausto, consequência da Segunda Guerra Mundial, deixou à humanidade uma herança de terror intenso, de uma brutalidade e insanidade humana desmedida pela ânsia pelo poder e supremacia. O mundo contemporâneo, sob esse terreno, se recorda deste passado nas entrelinhas de discursos que revisitam esta era que elevou o sacrifício dos homens ao limite de sua coragem.
Defronte a essas considerações, trazemos aqui, como objeto de análise o diário dos últimos de dia de guerra na capital alemã, Anônima: uma mulher em Berlim, publicada no Brasil em 2008.
O presente diário narra a saga da protagonista alemã, “Anônima”, que, em momento algum, tem seu nome identificado na obra. Assim sendo, a escrita do texto relata, em se falando de tempo, o período de 20 de abril de 1945 a 22 de junho de 1945, fase da invasão russa em Berlin, durante a Segunda Guerra Mundial. Como o diário revela um testemunho de natureza crível, pela parte do autor, vale ressaltar, neste viés, que mais pessoas que fizeram parte destas confissões, no contexto da autora, não têm seu nome revelado na narrativa ou são identificados por codinomes. Exemplificamos, pois:“ Dr. H.”3 e “Senhor K”4., personagens que têm sua identidade suprimida no texto.
O diário é escrito em um caderno vazio, encontrado no sótão, lugar onde Anônima5 e demais alemães se refugiam dos invasores russos. A partir dessa situação a personagem redige seu testemunho de vitima da violência, fome, sede e a barbárie por ela sofrida e, como também, dor suportada pelos seus companheiros germânicos. Neste cenário intensifica-se uma narrativa mergulhada na denúncia da selvageria dos homens. A autora do diário, assim se expressa logo no início do texto: “Eles combinam que primeiro os alemães devem passar fome por oito semanas. [...] os velhos comem capim feito os bichos”6. Esta passagem contribui para o “palco” de crueldade exposto pela autora.
A ocupação dos russos na capital alemã resulta no desespero dos cidadãos berlinenses na procura de um refúgio, no qual dificultasse o descobrimento do lugar tomado como esconderijo. Isolado, sombrio, frio e desprovido de janelas, um sótão é encontrado e passa a ser ambientado pelas mulheres e homens que buscavam sobreviver ao terror que “abraçava” Berlin. Bêbados, inconseqüentes e selvagens, os oficiais russos acabam por descobrir o até então esconderijo e tomar as mulheres como suas escravas e dispostas ao servilismo sexual, instituindo desta forma, um universo de abusos e violência do corpo feminino.
Ao determo-nos na conjuntura de tempo e espaço, bem como o substrato presente do diário, enquanto subgênero literário, destacamos a sua designação, conforme o Dicionário de Narratologia, no qual o assevera ter “tendência para o confessionalismo, assumido de forma mais ou menos aberta; peculiar posicionamento e configuração do destinatário, cujo estatuto pode ser modulado de formas diversas”7.
Seguindo essa abordagem, o diário de Anônima traz à tona uma memória, capaz de desencadear um tempo que arrola, esparsamente, que o impede de ser esquecido, deixando as matizes de um ciclo verídico e indissociável às lembranças dos sobreviventes e demais seres humanos que se tornaram cientes do holocausto. Com efeito, as memórias da sobrevivente, descritas no diário, causam no leitor a piedade e o certifica sobre o quão doloroso foi fazer parte de uma era de catástrofe. Corroborando para esse desígnio, sobre o qual delimitamos o nosso olhar, realçamos a verbalização de Seligmann a respeito: “O sobrevivente, aquele que passou por um “evento” e viu a morte de perto, desperta uma modalidade de recepção nos seus leitores que mobiliza a empatia na mesma medida em que desarma a incredulidade”8.
Essa tendência torna-se plausível na medida em que mergulharmos numa leitura de fatos banais somadas à profundidade do testemunho da autora e protagonista de Anônima. De tal forma, o texto desemboca no dissabor do contexto a ser lido e, compreendido ao mesmo tempo. A violência das mais diversas formas é exposta na narrativa.
Primeiramente, encontramos uma violência que se apropria no medo, na fuga e no desespero de os berlinenses serem torturados pelos russos, os quais faziam parte das forças armadas da Alemanha. No princípio do diário, a escritora expressa a liberdade que passa a ser interditada logo que chegada o exército alemão. Observemos, pois: “Sim, a guerra vem rolando em direção a Berlim. O que ontem ainda eram resmungos distantes, hoje é um rufar contínuo. Respira-se o ruído da artilharia. Os ouvidos ensurdecem e escutam apenas os tiros de maior calibre”9.
A partir da passagem, previamente citada, podemos identificar o pavor e terror que se antecipam na vida da protagonista e de seus compatriotas. Podemos dizer, ainda, que “respirar ruídos de artilharia” alcança um valor metafórico como uma condição de domínio e violência a serem instituídos na cidade e, consequentemente, o estado de subordinação dos indivíduos, fruto desses fenômenos tumultuosos e irascíveis. Contudo, não se respira mais um ar natural, de calmaria, mas um ar que exala o terror humano.
Ao notarmos que a mudança para o sótão se torna forçosa, em virtude da guerra, extraímos o húmus da violência através do ato de coagir, ou seja, ir em busca de um “lar” que não é o seu e, por fim, instalar-se nele, mesmo que este lugar lhe proporcionasse segurança. Este lar, sob tal viés, contorna um desenho ambíguo: de refúgio, ao passo em que caracteriza uma forma de proteção e, por conseguinte, correlaciona-se a uma prisão, ao lembrarmos que este pano de fundo se configura num cenário de guerra, na qual a liberdade transforma-se em coibição.
Diante a este leque de considerações, vejamos como a autora proclama a desapropriação de uma vida, de objetos que consubstanciavam sentimentos diante de uma escolha corrompida, obrigada, em prol da sobrevivência.
No sótão outra vez. Ele não é minha casa. Não tenho mais casa nenhuma. Claro que a peça mobiliada que me foi tirada pelos bombardeios também não era minha. Ainda assim, ao longo de seis anos eu a preenchi com a atmosfera de minha vida. Com os meus livros e quadros e as centenas de coisas que acumulamos em torno de nós. [...] O despertador amassado. Fotos, cartas antigas, a cítara, minhas moedas de doze países, o tricô começado – todas as recordações, pelas cascas, sedimentos, os cálidos trastes dos anos vividos.10
Ao comentar sobre o resgate de uma memória, seja ela triste ou venturosa, o sociólogo Maurice Halbwachs (1990) salienta a relação desta memória engajada à criação literária, em sua estética e conteúdo. Assim sendo, o estudioso nos lembra, em relação a esta memória, posta em declaração, que “o testemunho justamente quer resgatar o que existe de mais terrível no “real” para apresentá-lo.”11 Seguindo a linha de pensamento de Halbwachs, o testemunho de Anônima endossa essa terribilidade em seu diário, pois vemos que, que a tristeza, o medo e o pavor não são, em momento algum, censurados no texto, ao contrário, são expostos sem o intuito de uma arte que expresse a beleza de sua essência e contexto de criação, mas sim, uma arte que congregue a coragem de narrar fatos tristes juntamente a uma situação extrema e real.
Direcionando nosso olhar à dimensão assimétrica na obra em voga. Para tanto, realçamos o poder que se projeta na imagem masculina e direciona-se, de forma abusiva, às personagens femininas descritas no diário. Sob este ângulo, o poder do homem se dá, simbolicamente, ao observarmos o papel subserviente incorporado às mulheres, de formas violentas, agressivas e abusivas, fatores que contribuem para o aspecto denegridor que prevalece nas figuras femininas neste texto.
Ao falarmos em “simbólico”, não tencionamos aqui trazer esse elemento apenas como transgressor de uma realidade intensificada pelo poder extremado, mas sim, salientar que, deste “simbólico” extraímos a essência de um poder imerso na sociedade, não somente na Segunda Guerra Mundial, mas que acompanha a humanidade no mundo contemporâneo. Isso posto, observamos que as personagens femininas fundamentam um desígnio preconceituoso, em virtude de sua fragilidade e do pensamento errôneo de que os homens são o símbolo da supremacia humana. De fato, é o que ocorre no relato de Anônima.
Ao narrar o episódio em que a “viúva” (codinome utilizado por Anônima) indigna-se diante ao tratamento brutal, diante ao trabalho árduo e pesado, a elas destinado, na fábrica de máquinas perto a Câmara Municipal de Berlim.
Um caminhão russo levou as mulheres até a fábrica de máquinas, onde a viúva, juntamente com mais ou menos duzentas outras mulheres, passou o dia inteiro embalando coisas em caixas, desembalando-as, trocando-as de embalagem e embalando-as novamente sob o comando de torturadores russos, tomando encontroes e empurrões o tempo inteiro, e recebendo para o almoço apenas uma crosta de pão seco.
_ Se isso é pra ser organização – indignou-se a viúva diante de nós
– Que embrulhada, que confusão!
E ela contou:
- Nós logo dissemos que as peças de ferro eram muito pesadas para as caixas, que o fundo das caixas quebraria. Então eles gritaram conosco: “Calem a boca!”e Rabotta, rabotta!”12 . [...] então a gritaria começou a valer, e claro que nós éramos as culpadas!13
Embora a invasão das forças russas se instaurem em Berlim, e as mulheres sejam obrigadas ao trabalhar em condições ásperas, envolvidas em atividades árduas, seja um dos fatores que delineiam o estado de caos no pano de fundo da narrativa, fazendo com que as pessoas fujam, se escondam e lutem pela sobrevivência, o estupro é o principal fator que desencadeia o mote violento e de poderio masculino no texto.
Tendo em vista que o estupro é uma forma de violência extremada, podemos dizer que ele constitui de um abuso intenso e ilegalidade da ação do homem, em virtude do ato agressivo que isenta o indivíduo violentado de defesa. O estupro não requer consentimento, tampouco requer harmonia, mas sim uma injunção que brota do exorbitante desejo humano.
Estuprada várias vezes, sob a invasão dos homens no porão onde ela e demais companheiras se refugiam, Anônima não somente é vitima deste constrangimento e violação de seu corpo, brutalmente, mas também presencia o abuso de tantas outras personagens femininas que ambientam o mesmo local.
Diante a diversas situações de estupro, já suportadas, Anônima apresenta uma aparente conformidade diante a sua condição subserviente, sendo este abuso, para ela nada mais do que comum. No diário, Anônima expressa seu pensamento, já descrente de que a natureza da situação pudesse ser transformada:
O que significa estupro? Quando pronunciei a palavra pela primeira vez em voz alta, sexta à tardinha, no porão, ela desceu gélida pelas minhas costas. Agora já posso pensá-la, já posso escrevê-la com a mão fria, digo-a com meus botões para me acostumar com o som. Soa como uma coisa última e extrema, mas não é.14
Diante ao exposto, torna-se notório a fortaleza humana que emoldura a personalidade corajosa e de bravura de Anônima, ao aceitar, mesmo que forçosamente, a situação servil. Ainda, nesta mesma cena, expomos como e o que, de fato, ocorre sob este solo desumano. Nas palavras de Anônima:
Sábado à tarde, por volta das quinze horas, dois batem com os punhos e as armas na porta da frente, gritam asperamente, chutam a madeira. A viúva abre.[...] Dois velhotes, cambaleantes, bêbados. Eles golpeiam suas automáticas contra a última vidraça inteira do corredor. Tinindo, os cacos caem no pátio. Então eles arrancam as corrediças, deixando-as em pedaços, e chutam o velho relógio de pé.
Um deles me agarra, me conduz ao quarto da frente depois de tirar a viúva, aos empurrões, do caminho. O outro se instala na porta da frente, domina a viúva, mudo, ameaçando-a com a arma, sem tocá-la.
O que me conduz é o homem de meia idade com a barba grisalha de vários dias, ele cheira a água ardente e a cavalo. Fecha cuidadosamente a porta atrás de si e, como não encontra chave na fechadura, empurra a bergère contra o painel da porta. Ele parece absolutamente não ver a presa. Tanto mais assustador é o empurrão que a conduz até a cama. Olhos fechados, dentes firmemente cerrados.
Nenhum som. Apenas quando a roupa de baixo se rasga com ruído, os dentes rangem involuntariamente. As últimas coisas intactas.
De repente, dedos em minha boca, fedentina de cavalo e tabaco. Abro os olhos.Com jeito, os dedos estranhos abrem meus maxilares. Olho no olho. Então, lentamente, ele deixa cair a saliva acumulada em sua boca dentro da minha.15
Torna-se visível o aspecto humilhante e degradante dessas mulheres, subordinadas à selvageria dos russos, bêbados, sujos e inconseqüentes, neste contexto de abuso do corpo feminino, o que, certamente, se constitui como uma ferida incapaz de ser curada, que poderá ser obstruída, entretanto, continuará com as cicatrizes do tempo.
Concernente ao âmbito calamitoso, decorrente deste cenário, previamente aludido, Halbwachs articula sua linha de raciocínio irmanando o trágico à dor, por ele causado e, consequentemente a debilidade física e psicológica impossível de se dissociar do sofrimento. Assim sendo, o sociólogo francês manifesta seu pensamento:
O trágico, que faz com que, levada até certo ponto, a dor crie em nós um sentimento desesperado de angústia e impotência, é que em um mal cuja causa está nessas regiões de nos que os outros não podem atingir , ninguém pode interferir, pois nos confundimos com a dor e a dor não pode eliminar a si mesma.16
Uma dor não se elimina a si mesma, como nos afirma Halbwachs, ela trilha um caminho vasto e contínuo na vida do ser humano, disposto a condições bárbaras que o nivelam no plano brutal e selvagem.
Como narrado no diário, aos 09 de junho de 1945, perto do fim da guerra, na qual os tempos de paz se aproximam, a protagonista revela sua caracterização existencial, enquanto lesadas pelos maus tratos e, bem como a surpresa e espanto ao direcionarem-se a ela como “minha senhora”, termo respeitoso que há dois meses era rara, ou melhor dizendo, inexistente no vocabulário a ela proferido.
À tarde, pela primeira vez desde tempos imemoriais, fui outra vez ao cabeleireiro. Mandei lavar meio quilo de sujeira de meu cabelo e fazer miser-em-plis.[...]O modo de falar do cabeleireiro correspondia inteiramente aos tempos de paz:
_ Com certeza, minha senhora, mas é claro, com prazer, minha senhora...
Eu me achei inteiramente estranha diante desses modos obsequiosos de falar. O “minha senhora” é de certo modo uma moeda interna, que vale apenas entre nós. Para o mundo, somos mulheres arruinadas e lixo.17
Além das manifestações de poder e violência masculina contra as mulheres, destaca-se o sarcasmo subjacente na narrativa, fator que acentua a peculiaridade deste texto, além do fato de ser redigido por uma escritora que assume o anonimato. Assim sendo, o diário torna-se, de tal forma irônico, pela parte da escritora. Passagens como “- Um pouquinho de esperança, assim ó, todo mundo ainda tinha”18 ou pela expressão “foi um belo funeral”19 conjugam o aspecto discrepante entre o terror causado pelo conflito bélico e a singularidade e resistência da protagonista, imersa neste contexto de guerra.
O que contribui, consideravelmente, para esta reflexão é que, em momento algum, Anônima expressa seu sentimento de raiva e ódio, ao contrário, ela demonstra uma força e coragem elevadas, extremas, elementos que podem identificar a autora como uma heroína, ao suportar diversas facetas da humilhação. Conquanto, Walter Benjamin, ao delimitar seu olhar ao verdadeiro herói e sua construção, nos lembra que:
O herói é o verdadeiro objeto da modernidade. Isso significa que, para viver a modernidade é preciso uma constituição heróica. [...] Aquilo que o trabalhador assalariado executa no labor diário não é nada a menos do que o que, na antiguidade, trazia glória e aplauso ao gladiador.20
É sob esse desenho, que podemos considerar Anônima como uma heroína, capaz de representar e ser o símbolo de tantas outras mulheres que fizeram parte do holocausto, que se submeteram a humilhações e violências multifacetadas, fruto da insanidade dos homens. Lembrando que Anônima é isenta da demonstração de cólera diante à opressão, destacamos, em meados do fim de seus relatos da guerra, o riso que ainda é capaz de brotar em sua face, tão machucada e dilacerada em seu interior, mas com tamanha candura que não se sabe de onde surge, apenas tem-se a idéia de que isso nasce apenas de seres humanos de tamanha fortaleza interna. Observamos, pois, a insignificância elegida por Anônima à palavra “estupro”, palavra tão constante em sua trajetória:
Nesse entretempo, dei a Gerd os meus diários (eles enchem três cadernos.) Gerd sentou-se por um momento com eles, mas logo os devolveu, disse que não conseguia se orientar em meio aos meus rabiscos e às muitas folhas intercaladas repletas de sinais estenográficos e abreviaturas.
- O que significa isso aqui, por exemplo? – perguntou ele e apontou para “estp.”.
Tive de rir:
- Ora, é claro que significa “estupro”.
Ele me olhou como se eu estivesse louca, e eu não disse nada.21
Afora isso, o que congrega esse “não se importar” e não manifestar uma lembrança e um sentimento de cólera, a protagonista, no desfecho de seu diário, irmana lirismo juntamente a uma era real e cruel, através da manifestação do pensamento fantasioso e inocente de uma criança diante a um porvir inquietante e que, não obstante exala o sentimento humano, de sensibilidade e de sonhos diante a uma era de catástrofes:
Ontem passei por algo engraçado: em frente ao nosso prédio estacionou uma carroça atrelada a um pangaré velho, um bicho de couro e osso. Lutz Lehmann, quatro anos de idade, veio pela mão da mãe, ficou parado em frente à carroça e perguntou com voz sonhadora: - Mãezinha, a gente pode comer o cavalo?
Deus sabe lá o que ainda não haveremos de comer. Eu ainda estou muito longe de chegar ao limite extremo de ameaça à vida, não sei quanto falta para alcançá-la. Sei apenas que quero sobreviver – contrariando inteiramente a razão, simplesmente qual um bicho.22
Diante da “viagem” em torno do diário Anônima sintetizamos uma vida que lutou, enfrentou e resistiu situações impetuosas na busca pela sobrevivência. Dessa busca, identidades tiveram de ser suprimidas, pessoas que tiveram sua coragem denegrida pelo sentimento de impotência, em virtude dos atos violentos.
O diário de Anônima nos revelou um universo de selvageria, de uma protagonista e autora que teve de abrir mão de seu nome, sua identidade, para ser capaz, de fato, de documentar fatos verídicos e reais. Uma mulher que suprimiu a ela mesma e teve de fazer o mesmo com seus/suas companheiros(as) em prol de ocultar e silenciar a vergonha e a tristeza, fruto da selvageria dos homens que causou o dissabor dessa condição.
Pensar que a literatura ou um diário pode apenas reproduzir uma vida alegre e venturosa, pode encontrar-se apenas no pensamento de pessoas que se negam a aceitar e acreditar que a barbárie humana realmente ocorreu. A humanidade deve aceitar que a verdade não deve ficar encoberta sob os véus da censura, em virtude dos acontecimentos que nos chocam pela sua natureza brutal, mas sim estar cientes de que pessoas como nós, estiveram dispostos a diversas formas de violência e humilhação.
No posfácio do diário, temos a clara alusão do que até então temos dito. Segundo as palavras de C.W. Ceram “a autora escapou do turbilhão com o triunfo secreto de conseguir subir das profundezas do Maeltröm não porque uma lei física a ajudou, mas porque ela não se entregou, embora tivesse de renunciar a si mesma.”23
Por fim, acima de tudo, Anônima alimentou a coragem e a honra de testemunhar e documentar o panorama histórico, no qual estava mergulhada, mesmo que precisasse de um disfarce para encobrir um trauma, impossível de ser abjurado, como ocorreu neste diário, dispondo de uma vida sob os véus do anonimato: Metáfora mais cruel da violência.

Referências

ANÔNIMA. Uma mulher em Berlim - Diário dos últimos dias de guerra 20/04/1945 a 22/06/1945. Rio de Janeiro: Record, 2008.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989. Obras Escolhidas; v. 3.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. SP: Vértice, 1990.
MICHAUD, Yves. A violência. São Paulo: Ática S.A., 1989.
REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia.
SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). História, memória e literatura: O Testemunho na era das Catástrofes. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.


1 Mestre em Letras pela URI – Frederico Westphalen.
2 MICHAUD, Yves. A violência. São Paulo: Ática S.A., 1989, p. 13.
3 ANÔNIMA. Uma mulher em Berlim - Diário dos últimos dias de guerra 20/04/1945 a 22/06/1945. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.40.
4 Id. Ibid.p. 223.
5 Usaremos, ao longo da análise, o termo Anônima para designar a autora e protagonista do diário e, posteriormente, o termo Anônima (em negrito) como identificação do título do diário.
6 ANÔNIMA. Uma mulher em Berlim - Diário dos últimos dias de guerra 20/04/1945 a 22/06/1945. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.13.
7 REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. p. 105.
8 SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org). História, memória e literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: UNICAMP, 2003, p. 375.
9 ANÔNIMA. Uma mulher em Berlim - Diário dos últimos dias de guerra 20/04/1945 a 22/06/1945. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.09.
10 Id. Ibid.p.10.
11 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. SP: Vértice, 1990, p. 375.
12 A palavra “Rabotta”, termo russo, designa a expressão “Ao trabalho”.
13 ANÔNIMA. Uma mulher em Berlim - Diário dos últimos dias de guerra 20/04/1945 a 22/06/1945. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.226.
14 Id. Ibid.p.74.
15 ANÔNIMA. Uma mulher em Berlim - Diário dos Últimos Dias de Guerra 20/04/1945 a 22/06/1945. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.74-75.
16 HALBWACHS, Maurice. A memória Coletiva. SP: Vértice, 1990, p. 123.
17 ANÔNIMA. Uma mulher em Berlim - Diário dos Últimos Dias de Guerra 20/04/1945 a 22/06/1945. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.266.
18 Id. Ibid.p. 10.
19 Id. Ibid p.17.
20 BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. 1 Ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. Obras Escolhidas; v. 3, p. 73-74.
21 ANÔNIMA. Uma mulher em Berlim - Diário dos Últimos Dias de Guerra 20/04/1945 a 22/06/1945. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.278.
22 Id. Ibid.p.279.
23 CERAM, C.W. Posfácio. In: ANÔNIMA. Uma mulher em Berlim - Diário dos Últimos Dias de Guerra 20/04/1945 a 22/06/1945. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.285.
© 2008 - All rights reserved - Web Developer by Odirlei Vianei Uavniczak