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Literatura e Autoritarismo
Dossiê Literatura de Minorias e Margens da História
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê nº 4 

UM OLHAR PARA OS INDÍCIOS DE OPRESSÃO FEMININA NOS CONTOS AMOR, DE CLARICE LISPECTOR E I LOVE MY HUSBAND, DE NÉLIDA PIÑON

Sandra de Fátima Kalinoski1
Resumo: O propósito do presente trabalho é propor uma discussão a respeito da condição da mulher enquanto esposa submissa dentro da família e mulher passiva na sociedade em que vive. Para tanto, levam-se em conta os contos Amor, de Clarice Lispector, e I love my husband, de Nélida Piñon. A análise procura considerar, no seu processo interpretativo, elementos teóricos capazes de embasar os textos selecionados a fim de auxiliar na compreensão da temática abordada, bem como de elucidar alguns elementos do processo histórico que contribuíram para as diversas visões patriarcais que se fazem presentes na sociedade atual.
Palavras-chave: Mulher. Opressão. Patriarcalismo.
Abstract: This work aims at discussing women’s condition as submissive wife within the family and passive woman in society where she lives. To accomplish it, we have analyzed the short stories Amor, by Clarice Lispector, and I love my husband, by Nélida Piñon, trying to consider, in their interpretation process, theoretical elements capable of basing the selected texts to help understand the issue we raised, as well as to elucidate some of the historical process’ elements which contributed to the various patriarchal views still present in current society.
Keywords: Women. Oppression. Patriarchy.

Muitos estudos acerca da questão da mulher e do seu papel na sociedade têm sido realizados e difundidos a partir dos séculos XIX e XX e buscam não só trazer à tona esta temática, como também entender por que somente agora ela é abordada e começa a ganhar espaço no meio acadêmico, político e tantos outros. Nessa perspectiva, pesquisas como as realizadas por Engels, Lévi-Strauss, Vaistsman, Muraro e muitos outros têm tomado grandes proporções a respeito da questão essencial que gira em torno da discussão quanto à questão da origem da opressão feminina bem como da necessidade de descobrir, na trajetória histórica dos povos, os fatores que fizeram e continuam a fazer da mulher um ser subordinado ao homem em épocas e sociedades diversas.
Para Zolin (2003, p. 7), nas sociedades mais remotas, a mulher atravessou condições de vida muito mais precárias do que a atual, já que, durante séculos, as práticas culturais e discursivas foram exclusivamente construídas a partir da visão soberana do homem e a serviço do poder patriarcal. Tal cenário começa a ser modificado a partir do século XIX. As pesquisas de estudiosos em diversos campos do saber, interessados nas questões sobre a mulher, começam a jogar luz sobre esta questão em busca de compreensão e análise de valores impostos pelo patriarcado bem como procura uma reavaliação destes valores a fim de chegar à valorização da figura feminina na sociedade e na história.
Engels (apud Zolin, 2003, p. 22), considerado o principal pensador do século XIX a analisar a questão da mulher, observa que a opressão feminina está relacionada aos primórdios da evolução humana e ligada ao que se refere aos modos de produção. O homem, com o passar do tempo e em virtude do aumento de riquezas, significava força de trabalho e objeto de troca e de consumo, caso assumisse a condição de escravo. Já a mulher ficava reduzida ao âmbito privado, para que pudesse fornecer o maior número possível de filhos para arar e defender a terra, transformada assim em simples geradora de força de trabalho e instauradora da supremacia masculina na sociedade.
Segundo Muraro (apud Zolin, 2003, p. 45), até mesmo a história de muitos mitos apresentam épocas em que as mulheres eram vistas como elementos mais próximos do sagrado, privilégio que, com o passar dos tempos, foi substituído e atribuído aos homens. Nesta mesma perspectiva, Muraro (op. cit.) cita a própria Bíblia Sagrada como exemplo da supremacia do homem em relação à mulher. Trata-se mais especificamente do livro do Gênesis, quando Deus cria Adão sem a intervenção da mulher, sendo esta só criada por intermédio do homem:
Javé Deus disse: “Não é bom que o homem esteja sozinho. Vou fazer para ele uma auxiliar que lhe seja semelhante”... Depois, da costela que tinha tirado do homem, Javé Deus modelou uma mulher, e apresentou-a para o homem.Então o homem exclamou: “Esta sim é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada mulher, porque foi tirada do homem”! (Bíblia, A.T. Gênesis, 2:18-22).
Para tanto, o que se pode perceber é que Adão é sem dúvida o filho de Deus, e Eva é uma espécie de extensão dele. Afora isso, o fragmento deixa evidente a condição segundo a qual a mulher foi criada para atender às necessidades do homem, completar sua existência, mas, principalmente, servir-lhe: “Vou fazer para ele uma auxiliar...” (2: 18-22).
O fato é que estes estudos, dentre muitos outros realizados na área, enfocam diversos ângulos e pontos de vista relacionados à questão da submissão e opressão da mulher na sociedade. Com isso, ao se complementarem, ratificam a ideia de que o patriarcalismo e a supremacia masculina tornaram-se realidades presentes no inconsciente dos indivíduos. Portanto, para a grande maioria da sociedade, possivelmente, ainda é muito difícil olhar para as relações humanas sem atribuir domínio e poder ao homem e submissão e aceitação à mulher.
Na perspectiva dos estudos teóricos das áreas da História, Filosofia ou Antropologia que trazem luz à questão da trajetória da mulher na história, é possível observar em várias esferas da sociedade exemplos e situações que vêm confirmar elementos teóricos relativos à submissão da mulher em relação ao homem, à sociedade do patriarcado. Em vista disso, de tal comportamento, a sociedade (re)produz de diversas formas tais disparidades, elencando, em muitas de suas produções culturais e artísticas, temas que ilustram a realidade social da época, seja ela passada ou presente. Nesse meio, a produção literária ganha destaque por dar vez e voz às muitas vozes apagadas e esquecidas pela sociedade, pela própria história alicerçada em pilares canônicos patriarcais. Eclodem vozes e temáticas femininas no âmbito literário capazes de criticar a situação e despertar para uma conscientização do papel da mulher, do seu espaço, dos seus direitos e dos seus reais anseios e, acima de tudo, para a sua valorização, dada sua condição de marginalização e seu condicionamento à simples papel de genitora e dona de casa.
Com base nisso e com intuito de observar na produção literária manifestações, elementos e indícios de tal problemática, elegeram-se como corpus desta análise os contos Amor, de Clarice Lispector, e I love my husband, de Nélida Piñon. Este último pode ser lido como representação da aceitação da condição de mulher, dona de casa e esposa submissa representada pela protagonista; aquele, remetendo a uma aceitação em primeira instância, mas que é rompida em um segundo momento, embora não apresente atitudes suficientes para uma possível transgressão.
O conto de Nélida Piñon foi publicado em 1980. É narrado em primeira pessoa, sendo a protagonista uma senhora de meia-idade, que discorre sobre sua condição de esposa e de mulher. Neste texto, não por acaso, a linguagem aparece em primeira pessoa, com o propósito de conferir certo drama à narrativa pois, assim, se converte em um monólogo do cotidiano da personagem:
Eu amo meu marido. De manhã à noite. Mal acordo, ofereço-lhe café. Ele suspira exausto da noite sempre maldormida e começa a barbear-se. Bato-lhe à porta três vezes, antes que o café esfrie. Ele grunhe com raiva e eu vocifero com aflição. Não quero meu esforço confundido com um líquido frio que ele tragará como me traga duas vezes por semana, especialmente no sábado.
Depois, arrumo-lhe o nó da gravata e ele protesta por consertar-lhe unicamente a parte menor de sua vida. Rio para que ele saia mais tranquilo, capaz de enfrentar a vida lá fora (Piñon, 2001, p. 59).
Esta personagem, que narra sua situação, é constituída como uma mulher que vive para o seu marido. É simplesmente uma “esposa”, não tem nome, perdeu sua identidade em função de sua submissão a este esposo. É uma simples dona de casa que sempre está à espera do companheiro, pronta a lhe atender. Ela incorpora a mulher que não trabalha fora, é dona de casa, não por escolha, mas possivelmente pela imposição do poder patriarcal que dá ao homem a responsabilidade de sustentar o lar.
Logo no primeiro parágrafo do conto, observa-se a situação em que a mulher se esforça ao máximo para atender a seu marido, o que não é retribuído com carinho ou gratidão. A menção à expressão “líquido frio” adquire aqui uma função ambígua: a de que o café frio assemelha-se a um casamento também frio e a um ato de amor que já não existe, se é que, efetivamente, existiu algum dia. A insatisfação da mulher é evidente, e as palavras denunciam o relacionamento desgastado e convencional do casal: “Ele grunhe com raiva e eu vocifero com aflição” (Piñon, 2001, p. 59).
O conto é perpassado por uma visão preconceituosa da mulher como aquele ser que só se constitui a partir do relacionamento com o homem, a mulher só é completada quando é possuída sexualmente pelo companheiro: “Sempre me disseram que a alma da mulher surgia unicamente no leito, ungido seu sexo pelo homem” (Piñon, 2001, p. 64). Percebe-se também que, na vida da personagem, a relação de poder entre o homem e a mulher se inicia muito cedo, a começar com os conselhos do pai, na medida em que este vai “moldando” a mulher para a submissão ao homem; e, em um segundo momento, quando se refere ao marido, pois é este quem trabalha, quem ganha dinheiro, quem sustenta a casa, criando nela uma dependência. A protagonista não vive a sua vida, aquela dos seus desejos, mas a vida almejada e construída pelo marido, por um homem que a trouxe para o mundo dele. Isso se observa quando ela relembra o discurso de seu pai no dia do seu casamento: “É porque viverás a vida do teu marido, nós te garantimos através deste ato, que serás jovem para sempre” (Piñon, 2001, p. 64). Quanto a essa condição, a própria personagem em sua reflexão chega a se dar conta e a mencionar que é “a sombra do homem que todos dizem eu amar” (Piñon, 2001, p. 61-62). Nesses fragmentos, observa-se nitidamente a dimensão do poder atuando na constituição dos gêneros e da questão da supremacia do homem em relação à mulher e da relação de “pertencimento” da mulher em relação ao homem.
Através de todos os questionamentos que a mulher faz do seu cotidiano, a própria frase que dá nome ao conto sofre uma “evolução”. A personagem inicia a narrativa com a frase “Eu amo meu marido”, e, através de uma postura enfática, expressa a certeza do sentimento que nutre em relação ao marido. Logo, no transcorrer da narrativa, esta afirmação é alterada para “o homem que todos dizem eu amar”, agora de forma despersonalizada, ou seja, outros dizem que ela o ama, mas ela não confirma. Em um terceiro momento, surge o questionamento “Não é verdade que te amo, marido?”, já como representação da reflexão, da dúvida da personagem em ralação à sua condição, pois precisa encontrar no outro a resposta para sua pergunta, já não a tem em seu íntimo ou, talvez, nunca a teve. Em um último momento, a frase que dá título ao conto volta a ser pronunciada como representação de uma opção, de uma escolha: “Ah, sim, eu amo meu marido”. Nesta, a personagem, após elaborar reflexões acerca da sua condição de mulher, esposa e “serviçal”, acaba aceitando esta situação e, em seu íntimo, até agradece ao marido pelo esforço que faz em amá-la. Nisso, percebe-se, a partir dessa postura de gratidão ao esposo que lhe sustenta, lhe “ama” e lhe “dá vida”, que ela tem obrigação de seguir com ele, ser submissa, servi-lo, respeitá-lo e, acima de tudo, amá-lo, como dita o papel de esposa.
Contudo, não se pode deixar de notar que, em meio às reflexões da personagem, surge um questionamento concernente à sua vida atual e às suas escolhas. Ao lado disso, há, ainda, uma espécie de ambição e desejo por uma outra forma de vida, uma vida que não fora regida pelo homem, por aquele ser ao qual ela deve servir. É evidenciada assim uma constante tensão entre submissão ao marido e um anseio de liberdade reprimido, que ora surge na fala feminina com bastante força e vontade de transgressão, ora é sufocado para não magoar e fazer sofrer o marido, de forma que esta tensão se transforma numa ironia sobre a vida de esposa e a “escolha” que ela fez:
Comecei a ambicionar que maravilha não seria viver apenas no passado, antes que este tempo pretérito nos tenha sido ditado pelo homem que dizemos amar. (...)
Para esconder minha vergonha, trouxe-lhe café fresco e bolo de chocolate. Ele aceitou que eu me redimisse (Piñon, 2001, p. 61).
Outro fator que também merece atenção diz respeito ao início e ao término do conto, os quais encerram, pretensiosamente e ironicamente, as mesmas ideias básicas. A frase “Eu amo meu marido” inicia e encerra o conto, configurando, com isso, uma perspectiva circular, ou seja, de continuidade. Remetendo a algo circular, dentre outras interpretações, pode-se fazer referência às alianças que unem marido e mulher no casamento. Da mesma forma, no texto, essa “aliança” existe, pois, a partir de uma visão formulada pelo patriarcalismo, o casamento é algo convencional, em que a mulher deve servir ao marido e cumprir com suas tarefas. Por outro lado, o homem deve ser o responsável por trabalhar e sustentar a família e, assim, num ato de submissão e subserviência, a mulher deve “amá-lo” e respeitá-lo, pois é ele que lhe sustenta e lhe garante um “lugar” na sociedade das convenções.
Dessa forma, nota-se o desencanto da personagem em relação à sua posição de submissão dentro da família e passividade perante a sociedade. Ela percebe que está limitada a ser a sombra de um marido machista que não a valoriza. Contudo, mesmo se dando conta disso, o final do conto vem reforçar o seu início, revelando uma atitude melancólica, passiva e conformada da condição de mulher e de esposa que “escolhe” e aceita prosseguir durante toda a sua vida num casamento que pertence ao mundo das convenções e aparências:
Não posso reclamar. Sou grata pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em agradá-lo, ainda que sem vontade às vezes. Sinto então a boca seca, seca por um cotidiano que confirma o gosto do pão comido às vésperas, e que me alimentará amanhã também. Um pão que ele e eu comemos há tantos anos sem reclamar, ungidos pelo amor, atados pela cerimônia de um casamento que nos declarou marido e mulher. “Ah, sim, eu amo meu marido” (Piñon,2001, p. 67).
Nesta mesma perspectiva reflexiva, outro conto que aborda a temática da questão da condição da mulher é Amor, de Clarice Lispector, publicado em 1982, no livro Laços de família. É um conto narrado em terceira pessoa e apresenta uma temática voltada para as questões existenciais, em que a protagonista Ana, em um determinado momento da sua vida cotidiana, demonstra uma extrema insatisfação com a realidade a sua volta. Ana, que é casada e aparentemente tem uma vida normal ao lado do marido, cuida e vê seus filhos crescerem, executa todas as tarefas domésticas, sai para fazer compras e, todos os dias, espera o marido chegar do trabalho. Aparentemente, leva uma vida tranquila e feliz. Porém, certo dia, ela sai e se depara com um cego, que masca chiclete “na escuridão”. A partir desta situação, a personagem tem uma revelação em relação à sua própria vida.
Toda a trajetória desta situação vivida por Ana inicia-se em um final de tarde quando ela sobe em um bonde com as compras e, pensando em seus filhos e na sua casa, começa uma reflexão sobre sua vida:
num suspiro de meia satisfação. (...) Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. (...) A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. (...) sentia-se mais sólida do que nunca (...). No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado (Lispector, 1998, p. 19-20).
Neste primeiro momento, nota-se que a personagem olha para a sua vida com satisfação e conclui pela construção de um cotidiano sólido. Ana deixa transparecer como abrira mão da felicidade na juventude para garantir uma vida segura. Abolindo a incerteza e a emoção, mergulhava no cotidiano para estar em segurança. Assim, em sua vida, os dias se sucediam, uns iguais aos outros, e isto lhe dava tranquilidade: “Assim, ela o quisera e escolhera” (Lispector, 1998, p. 20). Vivia uma vida sem grandes sobressaltos, em que tudo podia ser antecipado e controlado, e nada de surpreendente aconteceria. Esta fora a sua escolha.
Apesar desta busca da personagem por tranquilidade e estabilidade, transparece em determinados momentos certo desconforto, sensações que ela não conseguia negar e que surgiam repentinamente do seu inconsciente. Emergia o desejo de algo que nem mesmo ela sabia o que era, e quando tais pensamentos vinham à tona, lutava para encontrar equilíbrio em sua vida, pois, por mais que estivesse presa àquele mundo de convenções, era ali que se sentia segura:
Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantava riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se (...).
Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. (...) Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto – ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido (Lispector, 1998, p. 19-20).
Assim, Clarice Lispector, com este conto, representa a imagem de uma mulher que ainda encontra-se entregue a valores ideológicos patriarcais. No caso de Amor, mesmo inconscientemente, a personagem revela o desejo de libertar-se da mesmice de sua vida a qual está condicionada, mas tem medo e foge até mesmo dos pensamentos que afloram e instigam esse desejo. Não só não aceita tais pensamentos, mas também não os reconhece, e isto distancia dela as possibilidades de mudança para uma vida na qual ela poderia ser a responsável pela sua própria existência, sem se prender aos padrões convencionais estipulados:
O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto. A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego. O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles. (...) – o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão – Ana deu um grito (Lispector, 1998, p. 21-22).
A partir desta passagem, percebe-se que a inquietação da personagem aumenta de forma gradativa. O fato de Ana ter gritado quando o bonde arrancou de forma súbita revela a sua perda temporária de autoafirmação, o grito foi a reação imediata a tudo que estava sentindo naquele momento. Ela desperta para a realidade, e isso tudo a amedronta. Tudo está se desorganizando à sua volta. E ela não sabe como lidar com essas novas sensações ou com essa nova consciência de mundo. A partir da imagem que tem do cego que mascava chicletes, Ana se vê refletida nele. O cego não só remete a tudo que perturba a personagem como é a representação da falta de liberdade, do seu desejo, mesmo que inconsciente, de ter outra vida, de transgredir as convenções e criar outra realidade para sua existência. O ato do cego de mascar de forma repetitiva na escuridão de sua limitação física oportuniza a Ana o encontro consigo mesmo, com sua existência e com a realidade à sua vida. Metaforicamente, o cego representa a escuridão em que Ana se encontra. Não a escuridão física, mas aquela que a impede de ver além da sua realidade submissa e rotineira do cotidiano. A vida de Ana está condicionada às convenções de cuidar da casa, dos filhos, do marido, sempre de forma constante, repetitiva e conformada, pois, “assim ela o quisera e escolhera” (Lispector, 1998, p. 21). O movimento repetitivo do cego em mascar que parecia fazê-lo sorrir oportuniza à Ana olhar para si e perceber que sua vida também é assim, pois está condicionada e conformada com sua situação, com sua vida. Seus dias pareciam sempre os mesmos, a rotina era sempre a mesma e monótona, e ela, mesmo assim, se considerava uma pessoa feliz:
Assim chegaria a noite com sua tranquila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. (...) E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera (Lispector, 1998, p. 21).
Porém, esta percepção sobre a realidade nunca mais será a mesma. O impacto que o cego causou lhe deixara perplexa, incapaz de se mover para apanhar suas compras, e Ana se aprumava pálida: “Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgira-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível” (Lispector, 1998, p. 22). Seu desejo de liberdade há muito tempo abafado e indecifrável emerge por fim, e a personagem reconhece o que tanto a perturbava em outros tempos. Ela nota que tudo que lhe bastara até então já não fazia mais sentido, não a satisfazia mais, e tudo que antes representava solidez e tranquilidade agora se apresenta como duvidoso e, ao contrário de lhe trazer prazer e realização, somente a prende às convenções sociais:
Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. (...) A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando tricotava. A rede perdera o sentido (Lispector, 1998, p. 22).
O fragmento que mostra a quebra dos ovos e o escorrer por entre os fios da rede pode ser entendido como a metáfora da transcendência da vida de Ana. Esta situação representa a desintegração, o esfacelamento e a fugacidade de todos os valores e crenças que a personagem julgava corretos para a sua vida. Agora, os vê esvaindo-se em meio ao despertar para essa nova visão da vida e do mundo ao seu redor, despertar para um mundo além das quatro paredes de seu apartamento.
Essa sensação de profundo choque faz com que Ana passe do seu ponto do bonde. Ao descer em outro local, ainda muito transtornada, chega até o Jardim Botânico e entra em contato com a natureza como se fosse pela primeira vez. Nesse meio, Ana reflete sobre sua existência e sobre a percepção desse novo mundo, e se vê incluída neste cenário de plantas, animais e insetos. Em meio a esta reflexão, consegue ver o mundo com um outro olhar, consegue ver de dentro para fora um mundo ao qual ela pertence, mas que até então não tinha se dado conta. Assim, Ana sofre uma luta de sentimentos que se confundem em seu ser, pois sente muita culpa por não ter vivido tudo isso até aquele momento, repulsa por ter descoberto esse novo mundo e, ao mesmo tempo, transborda-lhe amor por tudo isso e um desejo muito grande de viver:
Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? E que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver (Lispector, 1998, p. 27).
Contudo, cada vez mais, Ana se dá conta de tudo que a rodeia e de todas as transformações ocorridas em seu íntimo. De certa forma, a personagem, ao reencontrar-se consigo mesma, recupera sua identidade de mulher e só então se dá conta da situação em que está vivendo e do emergir destes variados sentimentos em relação à sua vida, tais como rancor e amor ao mesmo tempo. Para tanto, a única forma de livrar-se deste sentimento e deste amor é se refugiar novamente no seu cotidiano, no mundo que construiu para si, tentando proteger-se dos outros através da formação daquilo que Bauman (1998, p. 48) chamou de “comunidades de semelhança”, ou seja, espaços fechados e protegidos onde os “iguais” se enclausuram:
Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho escuro, atingiu a alameda. Quase correndo – e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto. Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito – o que sucedia? (Lispector, 1998, p. 25-26).
Logo Ana estava em sua casa novamente, e neste seu espaço sólido e tranquilo no qual sempre buscou refúgio, ocorre um certo estranhamento. Vê tudo aquilo tão organizado, tão ordenado como ela sempre deixara, e que agora se transforma em estranho e irreconhecível aos seus olhos:
Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava – que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver (Lispector, 1998, p. 26).
Ao voltar para casa, Ana não é mais a mesma, algo mudou dentro de si. Ao olhar ao seu redor, para o apartamento, o vê como se fosse uma clausura, uma ostra fechada na qual permaneceu por muito tempo na escuridão. Agora, precisa adaptar-se a esse novo mundo que nunca mais voltará a ser o mesmo aos seus olhos.
Durante a noite, após o término das tarefas e quando os filhos já estavam acomodados, era uma mulher bruta que olhava pela janela (Lispector 1998, p. 29), olhava para esse novo mundo, porém, olhava para o escuro da noite, que, assim como na sua vida, ela percebe que pode ser diferente, mas está tão presa, tão enraizada às convenções que não tem forças para lutar contra todo um sistema. Desde instante, desperta com um sobressalto, um estouro vindo da cozinha. O que antes sempre lhe parecera normal no cotidiano, o fogão enguiçado dava estouros (Lispector, 1998, p. 19), agora rompe com seu silêncio e seus devaneios.
Na cozinha, Ana percebe que o que ocorrera era a simples banalidade do café derramado pelo seu marido. Neste instante, ela vê seu marido como nunca o percebera antes. Ao se deixar abraçar por ele, sente que precisa de proteção e, assim, recomeça novamente o vínculo, a aliança de dependência em relação ao marido. Neste momento, é sufocado todo aquele sentimento que despertou durante a jornada, aquilo que tinha emergido se esvai com o final do dia, como uma pequena chama de uma vela que se apaga, ou é apagada, antes do seu findar completo:
Ela continuou sem força em seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver. Acabara-se a vertigem de bondade. E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela soprou a pequena flama do dia (Lispector, 1998, p. 39).
Nesta perspectiva, o que parecia um relato de uma simples experiência acaba por transformar-se em uma grande revelação. A percepção de uma realidade atordoante vem à tona e as questões corriqueiras do cotidiano de Ana, a aceitação da condição em que se encontrava, agora exige um esforço maior.
Amor, de Clarice Lispector, e I love my husband, de Nélida Piñon, abordam a questão da opressão e submissão da mulher de forma reveladora. Em I love my husband, tem-se uma personagem que, de tão submissa e camuflada em sua condição de subserviência a um marido, nem nome tem, sua identidade só é percebida na medida em que serve ao marido e vive em função dele. Neste conto, a personagem vive sentimentos confusos, pois tem desejos de liberdade, de ter uma vida que não aquela submetida a um homem e, no entanto, evita até em pronunciar tais desejos, anseios ao seu marido e a si própria. Priva-se muitas vezes até dos seus pensamentos para não magoar e fazer sofrer seu marido. Esta personagem anônima sacrifica toda sua vida a serviço do homem com quem se casou, sua vida se restringe em servir e “amar” aquele que aos seus olhos, faz o favor de lhe amar também.
No conto Amor, Clarice Lispector vai um pouco mais além de Nélida Piñon em I love my husband. A personagem de Amor tem um nome, de certa forma, possui uma identidade, mas não reconhece essa identidade. Sua vida está tão presa às convenções que ela parece viver em um casulo. Vive para sua família para as tarefas domésticas sem se dar conta que vive somente para servir. Ao aprofundar a reflexão em seu conto, Lispector faz com que, em um determinado momento de sua vida, a personagem sofra uma ruptura e saia desta zona de conforto em que vive. O deparar-se com um cego faz com que Ana olhe para sua própria vida e para dentro de si e é assim que se dá conta da condição em que se encontra, de mulher oprimida que vive para cumprir com seus “deveres” de esposa e mãe, fazendo com que deixa de dar valor a sua vida, seu próprio lugar ao sol. Entretanto, mesmo percebendo tudo isso, não transgride, pois se vê sem condições de romper com esse sistema.
Nesse sentido, ambos os contos jogam luz à temática da questão da opressão e submissão da mulher na sociedade. De modo particular, contribuem para o surgimento da reflexão e da tomada de consciência acerca não somente de que tal situação existe, pois isso já se sabe, mas para tomada de consciência de reavaliação dos valores e costumes patriarcais que regem a sociedade ao longo dos tempos e que ainda continuam enraizados atualmente, impedindo o direito a uma vida plena e igualitária a muitas mulheres na contemporaneidade. Portanto, os textos abordados são tomados como propostas de reflexão e mudança de atitude em meio a uma sociedade construída sobre pilares machistas e autoritários.

Referências

BAUMAN, Zymunt. Comunidades: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2003.
BÍBLIA SAGRADA. Gênesis. Trad. Ivo Stornido. São Paulo:Paunas,1990.
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COELHO, Neli Novaes. A literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo: Siciliano, 1993.
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PIÑON, Nélida. I love my husband. In: MORICONI, Ítalo (Org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. P.59-67
ZOLIN, Lucia Osana. Desconstruindo a opressão: a imagem feminina em A república dos sonhos, de Nélida Piñon. Maringá: Eduem, 2003.


1 Mestranda em Letras – Área de concentração: Literatura – pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), Campus Frederico Westphalen. Bolsista da CAPES. E-mail: ksandra.sandra@hotmail.com
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