A PERSPECTIVA QUEER NOS CONTOS ALÉM DO PONTO, DE CAIO FERNANDO ABREU E AS PALAVRAS, DE SAMUEL RAWET: A LUTA CONTRA OS IDEAIS PATRIARCAIS E A BUSCA PELA VALORIZAÇÃO DA SEXUALIDADEKarine Studzinski Kerber1
Resumo: As relações homoeróticas sempre foram pouco difundidas tendo em vista o preconceito e a discriminação em torno dessa questão. Elas correspondem a um tema delicado e complexo, que vai contra os preceitos patriarcais, os quais funcionam como uma espécie de guardião dos valores éticos e morais. Na tentativa de minimizar os efeitos normativos e repressivos advindos do patriarcado, surge o movimento queer. Levando em consideração tais aspectos, este trabalho terá como corpus de análise os contos Além do ponto, de Caio Fernando Abreu (1984), e As palavras, de Samuel Rawet (1981). A escolha destes textos deve-se ao conteúdo de crítica social que ambos expressam, no intuito de revelar o grande preconceito sofrido por aqueles que assumem sua identidade sexual.
Palavras-chave: Homoerotismo. Queer. Preconceito. Patriarcado.
Abstract: The homoerotic relations have always been little in view of the widespread prejudice and discrimination around the issue. They correspond to a complex and sensitive issue, which goes against the patriarchal precepts, which act as a gatekeeper to ethical and moral values. In an attempt to minimize the effects arising from the normative and repressive patriarchy, there is the queer movement. Considering these aspects, this paper will review the corpus of tales beyond the point of Caio Fernando Abreu (1984), and the words of Samuel Rawet (1981). The choice of these texts is due to the content of social criticism that both express in order to reveal the great prejudice suffered by those who take their sexual identity.
Keywords: Homoeroticism. Queer. Prejudice. Patriarchy.
As relações homossexuais ou homoeróticas existem desde os primórdios da humanidade, com o diferencial de que naquela época eram muito respeitadas, principalmente nas civilizações grega e romana, que as consideravam essenciais nos rituais sagrados, na iniciação sexual dos adolescentes e nos exércitos, formados exclusivamente por homens. Para elucidar a última informação, pode-se citar como exemplo o filme Troia, em que o personagem Aquiles, no comando do exército grego, tem envolvimento sexual com um integrante da tropa. Outro exemplo que mostra clara e abertamente a relação homossexual está presente no filme Alexandre, o Grande. Neste, o grande imperador romano, embora casado, mantêm relações sexuais freqüentes com seu amigo de infância Hefestion e com outros homens, residentes nos impérios conquistados. Em ambos os casos, percebe-se que o homossexualismo era, de certa forma, visto e tido como algo natural e constituinte das relações humanas; era considerado um ato comum e por essa razão não sofria represálias ou discriminações.
Contudo, o desenvolvimento e a expansão do Cristianismo como religião dominante transformaram essa aparente aceitação em uma profunda discriminação, e a prática homossexual passou a ser condenada e punida pela sociedade, uma vez que ela ia contra os princípios morais e éticos, pregados pela igreja. O uso do termo “aparente” foi empregado para demonstrar que as relações homossexuais eram aceitas e respeitadas somente em situações específicas, como já referidas anteriormente. No entanto, não se sabe se eram realmente consentidas ou apenas toleradas pelos indivíduos que viviam sob o véu da aparência, encobrindo suas verdadeiras ideias e opiniões para se manter dentro do padrão estabelecido pelo patriarcado, que formula seus conceitos e adequa suas convicções a um modelo extremamente tradicional, na perspectiva moderna, baseada nas aparências e que cultiva intensamente a hipocrisia. Essa falsidade funciona como uma máscara e serve para ocultar e disfarçar os verdadeiros desejos de pessoas que têm medo de assumir sua opção sexual e acabam reprimindo o desejo, originando, assim, a angústia, a depressão e a melancolia.
O medo e a insegurança em assumir a opção sexual são gerados pela forte influência dos preceitos patriarcais, que acreditam nas identidades fixas e que possuem bases religiosas, as quais consideram como padrão as relações entre homem e mulher, obtidas, preferencialmente, através do sacramento do matrimônio. Além disso, o patriarcado tem como propósito fixo a subordinação da mulher ao homem, que deve servi-lo sexualmente, ter filhos e ser fiel. Ela é como um objeto, que deve obediência e respeito ao marido e tem a função de cuidar da casa, dos filhos e satisfazê-lo através do sexo. A questão das identidades fixas é tão defendida pelo patriarcado, que segundo esse sistema de pensamento, os gays e as lésbicas não podem assumir as suas, porque pertencem a uma outra categoria, inferior e condenada, pelo fato de romperem as regras e desconstruírem as tradições. Conforme postula Foster:
Las identidades pueden concebirse como fijas o como estratégicas. Ha sido muy importante em nuestra vida social subscribir a identidades fijas, sean de índole nacional (ista), étnica\racial, linguística o sexual y, a veces, la sangre corre como resultado de la imposición, la transgresión, la opresión de estas identidades (FOSTER, 2000, p. 39). Com o intuito de minimizar a opressão originada dos preceitos patriarcais, surge nos anos 50 um movimento homossexual norte-americano, que deu, mesmo que de forma bastante discreta, um novo fôlego para as lutas homossexuais. No entanto, esse não foi o fato mais marcante da trajetória homossexual na luta por respeito e dignidade, pois nas décadas seguintes, muitos outros grupos continuaram lutando por seus ideais. Foi somente nos anos 80 que esse movimento, agora denominado queer, começou a se desenvolver.
Esse movimento repudiava os conceitos patriarcais sobre a sexualidade. Pregava uma erotização total do corpo e afirmava que qualquer parte dele pode dar prazer, porque todo ele é uma zona de satisfação, e que o indivíduo deve usá-lo como bem quiser, a fim de encontrar novas formas de sentir e de dar realização sexual e de contemplar o corpo (reterritorialização). Ainda segundo Foster:
Se contempla necessariamente una reconsideración del cuerpo humano, urgida tanto por la necessidad de combatir la primacía obsesiva de la heterosexualidad en lo genital como única sede del placer legítimo y como metonimia rectora para estabelecer la identidad del indivíduo, como por la propuesta creciente de propiciar la erotización total del cuerpo (FOSTER, 2000, p. 17). O queer prega a pluralidade das relações e abre para a questão do optar, elaborando modelos que rompem com o autoritarismo do patriarcado, cuja missão sempre foi a de vigiar os seres humanos. O movimento é uma transgressão às regras tradicionais dos relacionamentos binários (homem\mulher) e busca uma reconfiguração das identidades sexuais. Além disso, não é um movimento destinado somente aos homossexuais, mas a qualquer um que discorde das normas impostas pelo patriarcado e dos conceitos convencionais pregados pela sociedade em geral, que preconizam o casamento, o sexo, a fidelidade, entre outros. Ele não é também contra o heterossexismo em si, mas contra o heterossexismo compulsório, que valoriza somente as relações sexuais convencionais, uma vez que considera o homossexualismo uma ameaça à reprodução da raça humana e uma oposição às ideologias políticas e religiosas, pré-estabelecidas pela sociedade excludente e preconceituosa que se apresenta:
Lo Queer se erige contra el heterosexismo compulsivo. No contra el heterosexismo en si [...]. El heterosexismo será una opción normalizadora por razones de recreación biológica y\o como consecuencia del peso de una determinada herencia sociocultural plasmada en múltiples ideologías políticas y religiosas. Pero la compulsión hacia el heterosexismo opera a fin de excluir la contemplación de cualquier outra opción disyuntiva o conyuntiva y se fundamenta más que nada en la premisa de que cualquier apartamiento de él amenaza la reproducción de lar aza humana, de que lar aza humana solo puede perpetuarse mediante una rigurosa imposición y el mantenimiento del heterosexismo compulsivo (FOSTER, 2000, p. 27).Em outras palavras, o queer legitima a possibilidade de um prazer erótico sem necessariamente um amor romântico ou de uma relação sentimental que exclua a reprodução da espécie, e consequentemente o heterossexismo compulsório. O homossexualismo não possui uma única causa ou uma única razão. Ele não deve, segundo o movimento queer, ser encarado como uma doença ou um problema, pois a homossexualidade se origina da combinação de aspectos físicos, sociais e biológicos e se caracteriza pela atração erótica entre pessoas do mesmo sexo. Além desses aspectos, há também a questão da marginalização, do preconceito e da discriminação enfrentados por aqueles que decidem assumir a sua identidade - gays, lésbicas e travestis -, embora os últimos sejam oponentes do movimento, já que não possuem uma única identidade sexual definida, não são homens nem mulheres e assumem várias identidades diferentes.
Outra questão que deve ser levada em consideração no momento de debater sobre as causas e origens do homossexualismo é a do poder, da suposta supremacia masculina, em que o homem é o todo poderoso, o macho, o corajoso. Esse estereótipo criado e cultivado pela sociedade, que é extremamente machista, acaba inibindo e impedindo que muitos indivíduos deixem sua sexualidade aflorar, o que acaba causando uma grande frustração pelo receio de ser julgado e condenado por aqueles que não sabem respeitar o livre arbítrio de cada um. Além disso, é cada vez mais frequente e constante o culto ao corpo - perfeito, sarado e malhado - bem como a imagem de homem ou mulher ideal, personificados num padrão de beleza descomunal, idealizado por muitos e alcançado por poucos. No entanto, esse ideal de beleza é algo criado pela mídia e alimentado por aqueles que querem tirar proveito disso para obtenção de lucros, como, por exemplo, as indústrias de cosméticos, as grifes famosas, entre outros. Contudo, o queer quer reavaliar essa imagem e mostrar que essa idealização é ilusória, irreal, e que cada um deve se assumir como realmente é, sem disfarces ou máscaras. Nesse sentido, observa Foster:
La exposición del cuerpo, visual o verbalmente, comprometido con prácticas negadas y repudiadas por el patriarcado, crea un campo de producción cultural privilegiada en lo que a revisar esquemas discursivos se refiere, un campo donde se puede suspender radicalmente la distinción clave, por ejemplo, entre quién hace y quién se deja hacer (FOSTER, 2000, p. 43). A teoria queer é extremamente liberal no sentido de romper regras, diluir paradigmas, reconstruir conceitos e construir novos preceitos. É uma teoria que busca a libertação do patriarcado e a queda dos estereótipos pré-definidos que agregam ao homem uma função social muito grande, que lhe define como um sujeito forte e destemido, destinado ao casamento e responsável pela reprodução da espécie, e quando esse ciclo - considerado “normal” - não se completa, ele acaba sofrendo uma intensa discriminação, uma vez que, ao ser julgado homossexual, não estará cumprindo com o seu papel de macho dominante, reprodutor da prole, responsável por cuidar da família, por sustentá-la, por educar os filhos, enfim, não estará sendo um homem que assume seus compromissos perante a sociedade e que não segue os valores morais estabelecidos pelo patriarcado.
Tendo em vista os ideais de libertação almejados pelo movimento queer, os quais parecem, por vezes, um tanto inacessíveis, pretende-se nesse trabalho, analisar o conto Além do ponto, que integra o livro Morangos mofados, de Caio Fernando Abreu e o conto As palavras, que integra o livro Que os mortos enterrem seus mortos, de Samuel Rawet. O autor da primeira obra era um sujeito de desejo homoerótico profundamente empenhado na luta contra as injustiças e opressões sociais sofridas por aqueles que tinham a coragem de assumir sua verdadeira identidade sexual. Em seus contos, ele representa experiências sociais e humanas, vivenciadas por pessoas comuns, em situações cotidianas e através dessa representação, faz uma forte crítica ao sistema social autoritário e violento, imposto principalmente pela Ditadura Militar, que impedia, através da opressão e repressão, a concretização de ideais e sonhos.
O livro Morangos mofados foi publicado em 1982, período de grandes transformações no cenário político e social do país, dentre elas, a abertura política, o início do processo de democratização e a discussão sobre a liberdade, os valores morais e a emancipação feminina. Essa obra se caracteriza por uma estrutura e linguagem atípicas, fora dos padrões tradicionais de ficção - não possui linearidade – o que causa estranhamento no leitor, acostumado a ler textos extremamente coerentes e formalmente padronizados. É uma literatura fragmentada, construída a partir de inúmeras partes, aparentemente desconexas e incoerentes, que parecem não estabelecer relações entre si, causando uma espécie de choque com o convencional, uma vez que a linguagem é alternada entre formal e coloquial e há uma presença muito marcante de expressões “vulgares” e de baixo calão. Através de seus contos, Caio Fernando Abreu quer promover uma interação com os problemas sociais e culturais, com o intuito de que haja a discussão sobre eles e, consequentemente, a mobilização e a reflexão acerca das situações de violência, opressão, discriminação e preconceito enfrentadas pelos indivíduos naquela época de intensa repressão, o que causa incerteza, insegurança e vergonha.
O conto Além do ponto é narrado em primeira pessoa e conta a história de um homem que, ao entardecer, num dia frio e chuvoso de inverno, caminha na rua carregando uma garrafa de conhaque, em direção à casa de um outro homem, que inicialmente dá-se a entender ser alguém com quem o personagem se relaciona sexualmente, isso devido às evidências por ele descritas: “fumaríamos e beberíamos sem medidas, haveria discos, sempre aquelas vozes roucas, aquele sax gemido e o olho dele posto em cima de mim, ducha morna distendendo meus músculos” (ABREU, 1984, p. 34). No decorrer do conto, novas pistas desse envolvimento são reveladas, porém todas muito discretas e subjetivas, que lançam a hipótese da relação homossexual entre eles. No entanto, não há uma descrição clara do ato sexual em si, o que leva a crer que tudo que o personagem narra, seja apenas fruto da sua imaginação e de um intenso desejo, que precisa ficar oculto, camuflado, uma vez que nada se consuma, mas isso não significa que não tenha ocorrido, visto que o próprio desejo já é algo revelador: “trocaria minha roupa molhada por outra mais seca e tomaria devagar minhas mãos entre as suas, acariciando-as lento para aquecê-las, [...] ele arrumaria uma cama larga, com muitos cobertores” (ABREU, 1984, p. 36). A descrição feita no conto passa a impressão de que realmente, os homens são amantes, isso porque os acontecimentos que se sucederiam, segundo o personagem, mostram que o envolvimento entre eles não dizia respeito somente ao sexo, mas sim, a sentimentos muito fortes, que se confundiam com o desejo ardente de ficarem juntos e fazerem amor. A relação entre eles, conforme mencionado no texto, seria de um casal de namorados que se amam e que gostam de cuidar um do outro. Além disso, percebe-se que há muito carinho, ternura e respeito nas atitudes de ambos, mas principalmente nas do amante que o espera ansiosamente.
No decorrer da narração percebe-se que a personalidade do personagem vai sendo revelada, e é possível identificar um conflito psicológico e emocional, que faz com que ele sinta dúvida em relação a qual decisão tomar. Essa incerteza traz à tona questões mais profundas de sua existência, dentre elas a insegurança e o medo de não ser aceito como realmente é, porque na realidade, aquele homem está sob forte pressão emocional, uma vez que está sem dinheiro e tenta de todas as maneiras ocultar, ou pelo menos disfarçar, a situação decadente e deprimente que está enfrentando. Ele tem receio de que o outro homem, seu suposto parceiro, descubra a sua verdadeira face, a sua identidade e que o rejeite por isso. A insegurança e a dúvida são evidentes, assim como o conflito pessoal pelo qual ele está passando, que prova que ele tem vergonha de assumir o seu “eu”, visto que esse “eu” o decepciona, não só pela aparência, mas também pela descrença, pelo desânimo e pela falta de perspectivas melhores, pois as limitações sociais o obrigam a se sentir excluído e daí advém seu pessimismo e sua melancolia:
não queria chegar meio bêbado na casa dele, hálito ardido, eu não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu andava, todo dia um bom pretexto, e fui pensando também que ele ia pensar que eu andava sem dinheiro, chegando sem táxi naquela chuva toda, e eu andava, estômago dolorido, e eu não queria que ele pensasse que eu andava insone, e eu andava, roxas olheiras, teria que ter cuidado com o lábio inferior ao sorrir, para que ele não visse meu dente quebrado e pensasse que eu andava relaxando, sem ir ao dentista, e eu andava, e tudo que eu andava eu não queria que ele visse nem soubesse (ABREU, 1984, p. 35).O personagem está num estado de completa decadência e sem nenhuma perspectiva de melhorar sua condição de vida, uma vez que o cenário que se apresenta não é dos mais otimistas, pois ele está sem eira nem beira, mas o pior de tudo é que acabou perdendo também, seus sonhos, suas expectativas e suas esperanças em reverter essa situação. Ele é um sujeito que reconhece suas carências, suas falhas, mas que mesmo assim tenta encobri-las, enganando a si próprio por puro medo de assumir quem realmente é, na ilusão de que pode mascarar para si mesmo o que não consegue para os outros: “mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era”(ABREU, 1984, p. 35). Neste fragmento, percebe-se que ele finalmente toma consciência de que quer ocultar algo que não há como esconder: a sua identidade. A chuva serve para representar a “purificação” do personagem, é como se através dela, ele “acordasse” para a vida e se deparasse com a real situação em que se encontra, e passasse a encarar essa realidade de frente, sem medo do que encontraria no caminho. A sua reflexão o faz ver a vida que está levando de uma outra maneira e fica confuso, dividido porque já não tem certeza absoluta se quer seguir ou se quer voltar. Ele entra em conflito consigo mesmo, uma vez que começa a perceber que talvez aquele homem não seja tão ideal e perfeito como parecia ser e passa a se questionar se realmente vale a pena seguir. No entanto, essa reflexão não o impede de ir adiante, de ir ao encontro daquele que ele acreditava estar esperando-o ansiosamente, tanto que ele imagina diferentes situações que ocorreriam após a sua chegada:
eu tinha que continuar indo ao encontro dele, que me abriria a porta, o sax gemido e quem sabe uma lareira, pinhões, vinho quente com canela e cravo, essas coisas do inverno, e mais ainda, eu precisava imaginar o agradável para deter essa vontade de voltar ou ficar, tem um ponto, eu descobria, que você perde o comando sobre suas próprias pernas (ABREU, 1984, p. 35). Contudo, a dúvida acompanha o personagem que, apesar de estar indo ao encontro, ainda permanece sem saber ao certo se é isso que realmente quer fazer. Nesse trecho do conto, o narrador faz menção a um ponto, sobre o qual o sujeito se questiona. Esse ponto é uma metáfora para designar e representar a relação homossexual, visto que o personagem tem muita vontade e curiosidade de viver, ou viver novamente essa experiência, pois a narrativa supõe e revela não ser essa a primeira vez que os dois se encontram. Porém, embora o desejo seja muito intenso, o protagonista sente receio de que alguém descubra esse envolvimento, essa relação homossexual e esse desejo se confronta com o medo de assumir as conseqüências que viriam, caso fosse descoberto: “eu começava a saber que tem um ponto, a chuva na minha cabeça não me deixava ir além desse ponto, que tem um ponto, e eu dividido querendo ver o depois do ponto e também aquele agradável dele me esperando quente” (ABREU, 1984, p. 35).
Mesmo ciente do risco que estava correndo, o sujeito continua imaginando possíveis situações que ocorreriam quando eles se encontrassem, e ele está convicto de que o homem o esperava de braços abertos para lhe amparar, cuidar e proteger: “porque ele me esperava, ele me chamava, eu só ia indo porque ele me chamava, eu me atrevia, eu ia além daquele ponto de estar parado” (ABREU, 1984, p. 36). Só que, enquanto ele segue seu caminho, se depara com situações bem reais que interrompem aquele momento de imaginação, de contemplação de uma situação totalmente irreal, que só possui vida e concretude na sua mente, porque tudo que ele espera encontrar e que espera que aconteça quando chegar ao encontro, não passa de um forte desejo inconsciente, mas que julga e acredita ser verdadeiro. Ele almeja tanto esse encontro a ponto de se desligar momentaneamente do mundo real, das coisas que o rodeiam, e o grau de distração dele é tanto que ele acaba escorregando e caindo, agravando ainda mais o estado lamentável em que se encontra, pois agora, além de sujo e molhado, está fedendo a conhaque, já que a garrafa quebrou com a queda: “e além da água da chuva a minha roupa agora estava também encharcada de conhaque, como um bêbado” (ABREU, 1984, p. 36). O autor menciona esta bebida para mostrar que ela funciona como uma espécie de combustível, de estímulo para que o personagem adquira a coragem necessária para atender aos apelos do seu desejo e bater na porta daquele que o espera. Pode ser vista também, como uma fuga da realidade dura e crua que se apresenta. Dessa forma, pode-se dizer que sem o auxílio do álcool essa aproximação entre eles fosse talvez impossível, ou pelo menos pouco provável, porque a bebida tem o poder de modificar as pessoas, fazendo com que façam coisas que fogem ao bom senso, e que não causam constrangimentos, arrependimentos ou culpa, além de proporcionar um prazer momentâneo e ilusório.
Após a queda, o personagem segue o percurso como se estivesse sendo puxado por uma força oculta e sobrenatural, como se o outro homem o estivesse chamando, com uma voz hipnotizante e encantadora. Eis, por fim, que o homem chega ao seu destino, e qual não foi a sua surpresa ao se deparar com a porta trancada. Esse fato faz com que toda a sua expectativa se dissolva como se fosse pó, e ele se sente profundamente frustrado ao perceber que, mesmo batendo com insistência, ninguém virá atendê-lo, porque na realidade ninguém o espera, tudo não passou de um desejo inconsciente, o qual ele alicerçou de tal maneira, a ponto de confundi-lo com a realidade. Ao constatar esse duro engano, a sua desilusão é tamanha que ele fica completamente perdido, desnorteado e transtornado, a tal ponto de não saber o que fazer, como agir e como resolver aquela situação:
E bati, e bati outra vez, e tornei a bater, e continuei batendo sem me importar que as pessoas parassem para olhar [...] tinha ficado tudo muito confuso, as idéias misturadas, água de chuva e conhaque no meu corpo sujo gasto cansado batendo como um louco naquela porta que não abria, era tudo um engano (ABREU, 1984, p. 37). Infelizmente, o protagonista cai em si da pior maneira possível, sofrendo esse duro golpe que o desestrutura emocionalmente, isso porque até o momento ele acreditava verdadeiramente que o indivíduo o estava esperando, cheio de amor para dar. No entanto, a resposta a ele oferecida foi a de uma porta trancada, sem ninguém para recebê-lo, nem para ouvir os seus insistentes apelos, desejosos de satisfazer seu prazer sexual, e como o próprio personagem afirma, foi tudo um engano. Porém, não se sabe se ele apenas imaginou toda essa situação ou se, de fato, houve anteriormente um relacionamento entre eles, e que agora é desfeito, visto que o conto como um todo não revela o que realmente ocorreu, ficando subentendido o desenlace da história.
O conto As palavras, que integra o livro Que os mortos enterrem seus mortos (1981), de Samuel Rawet mostra uma relação homossexual entre dois homens, porém com o agravante de que um deles é casado e tem dois filhos. O indivíduo que é casado é muito instável e se mostra em constantes conflitos pessoais e identitários, em que confundem-se as duas vidas que possui: a de homem bem-sucedido e de respeitado pai de família e a de homossexual, que tem como amante um outro homem.
Certa vez, ele vai ao cinema e entediado com o filme, sai para fumar. Ao ver sua imagem no espelho, passa a se auto-avaliar e a refletir sobre a vida dupla que leva e, nesse momento, percebe-se que há uma oposição nos seus sentimentos: “Viu a imagem, não sabia se com agrado ou desagrado. Sentia-se pleno e oco, excessivamente perturbado e calmo” (RAWET, 1981, p. 47). Esse fragmento revela que o personagem está muito confuso e sente-se sufocado, possivelmente pelo fato de ter que manter no mais absoluto sigilo essa sua relação, que foge aos padrões convencionais, e manter tal discrição é algo extremamente difícil, tendo em vista as circunstâncias que a envolvem.
O relacionamento entre os amantes, ao que tudo indica, é antigo e percebe-se que há um carinho e um afeto muito intenso entre eles, além de muita cumplicidade, respeito e compreensão. É evidente que ambos gostam de estar juntos e de sentir e dar prazer um ao outro, e nesse momento do conto o personagem lembra de um episódio em que ele e seu amante estão numa sauna, abraçados, e são flagrados por um colega de trabalho, e então os dois se beijam. Quando isso acontece, ele receia que seu segredo seja revelado, mas mesmo assim assume o risco, pois sabe que tem a seu favor um aspecto viril que o classifica e o determina como homem, como macho. Esse respaldo no aspecto físico, no culto ao corpo, foi mencionado por David William Foster, conforme já citado, como um dos conceitos que o movimento queer quer modificar, pois para ele, não importa a beleza de um corpo e sim o prazer que ele pode proporcionar.
No conto, o personagem lembra ainda de sua festa de aniversário e demonstra uma grande frustração por estar ali, completando cinquenta anos, ao lado da esposa, dos filhos, dos amigos, dos familiares e do amante, que aqui interpreta o papel de amigo e nada além disso, ocultando assim, o segredo dos dois. No texto, há referência também à postura que o indivíduo tem, de envolver-se com pessoas fora do seu casamento, o que prova que na realidade ele sempre viveu uma vida dupla. No entanto, inicialmente envolveu-se com uma outra mulher, vizinha sua e essa atitude é muito mais aceitável e compreensível do que envolver-se com alguém do sexo masculino, porque o homem é considerado um “garanhão”, um machão, que supostamente poderia trair a mulher com o respaldo de que a “carne é fraca”, e por essa razão, a sociedade recebe com menos impacto a traição com o sexo oposto, porém, quando se trata do mesmo sexo, a coisa muda de figura e passa a ser algo abominável.
Ao longo da história, há uma descrição de como era a relação entre esses dois homens e mostra que há uma grande afinidade entre eles, como se fossem marido e mulher, mas revela que, como em todo relacionamento, há alguns desentendimentos e falta de diálogo e de carinho:
Estava nu olhando o companheiro nu, adormecido. O rosto de lado, o corpo comum, a mão esquerda em seu ombro, a direita sobre a coxa, o membro tranqüilo.[...] Tenta beijá-lo, mas o gesto não ressoa. Ausência de ternura nos afagos. [...] O membro do amante inicia uma lenta ereção. Em outra ocasião se debruçaria no tapete e lançaria a cabeça entre as coxas do outro (RAWET, 1981, p. 47-48). Nesse fragmento, percebe-se que há um forte sentimento entre eles, que faz com que se satisfaçam juntos. Além disso, o fato de o personagem ficar observando o corpo nu do amante revela que ele gosta do companheiro e que sente atração e desejo por ele, embora o mesmo seja um homem comum, como qualquer outro. Essa afirmação dá a entender que o indivíduo tem consciência de que seu parceiro não possui nenhuma característica que o difira dos demais homens, ou seja, ele não possui nenhum atributo especial que o torne diferente, superior, como por exemplo, um corpo escultural ou algo parecido, visto que a contemplação do corpo é uma constante no homoerotismo, assim como a sua valorização e exploração das zonas de prazer. E a não contemplação do corpo do parceiro prova que esse relacionamento já superou a fase do encantamento, onde tudo é lindo, maravilhoso e perfeito, porque o que se tem, são dois homens se relacionando e encarando momentos bons e ruins, como em toda e qualquer relação amorosa ou não.
O conto termina com o personagem fazendo alguns questionamentos que os levam à conclusão de que muita coisa mudou em sua vida, no sentido de estar se relacionando sexualmente com um homem, mas, no entanto, ao mesmo tempo em que ocorre esse rompimento de paradigmas, ocorre também a impossibilidade de assumir essa nova postura, uma vez que, se for assumida, certamente receberá críticas, discriminações e punições daqueles que não aceitam essa opção sexual. Por essa razão, o personagem sente-se frustrado, porque ele se descobriu sexualmente, mas deve continuar ocultando seu desejo, mascarando a sua outra opção sexual, porque, nesse caso, ele possui duas, muito distintas e que ele consegue equilibrar e gerenciar, sem deixar uma ou outra sobressair, embora pareça satisfazer-se mais e ser mais feliz com a identidade homossexual que possui.
As situações enfrentadas pelos personagens dos dois autores servem para ilustrar o conflito vivido por quem está em dúvida quanto à sua opção sexual e por quem não tem coragem de assumir a sua verdadeira identidade sexual. E o movimento queer busca acabar com a opressão da sociedade embasada nos preceitos do patriarcado, que julga e condena as relações homossexuais, impedindo, assim, que muitas pessoas assumam a sua sexualidade, fazendo com que sejam frustradas, melancólicas, inseguras e recalcadas, o que gera um grande sofrimento. Além disso, surge um sentimento de inferioridade que pode se tornar um trauma carregado pelo indivíduo durante toda a vida, impossibilitando que ele se relacione com as outras pessoas, sejam elas do mesmo sexo ou do sexo oposto. Esses contos mostram claramente a angústia de quem quer se assumir e tem medo. Mostram também que o preconceito para com os homossexuais ainda é intenso, embora muita coisa já se tenha feito e se continua fazendo para mudar essa trajetória, e o movimento queer é um bom exemplo de luta por dignidade, respeito e reconhecimento social.
Referências ABREU, Caio Fernando. Morangos mofados. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984. FOSTER, David William. Producción cultural e identidades homoeróticas: teoría y aplicaciones. San José:Editorial de la Universidad de Costa Rica, 2000. RAWET, Samuel. Que os mortos enterrem seus mortos. Vertente: São Paulo, 1981. http://www.farofadigital.com.br/queer_sapiens.htm Acesso em: 11-02-2010 http://www.gospelprime.com.br/homossexualismo-a-posicao-da-igreja-contra-ele/ Acesso em: 11-02-2010 1 Mestranda em Letras na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – Campus de Frederico Westphalen – RS. E-mail: karine.sk@bol.com.br
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