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Literatura e Autoritarismo
Dossiê Literatura de Minorias e Margens da História
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê nº 4 

DISCURSO UTÓPICO E DISTÓPICO NAS PAISAGENS NARRATIVAS DE ADMIRÁVEL MUNDO NOVO, DE ALDOUS HUXLEY

Enéias Farias Tavares1
Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar uma leitura do romance do escritor inglês Aldous Huxley, Admirável mundo novo, à luz dos conceitos de Utopia – visão ideal positiva de uma determinada ordem social, futura ou presente – e de Distopia – caracterização negativa, opressiva de uma ordenação social ideal – como proposições semelhantes, ambas configurando uma determinada visão do cenário futuro. Em comum, os dois termos revelam a tentativa de determinados romancistas de apresentar uma realidade social idealmente organizada, seja ela autoritária ou não. Para nossa análise, buscaremos primeiro contrastar o modo como o narrador de Admirável mundo novo apresenta tanto a realidade urbana quando a selvagem, buscando nas duas caracterizações os pontos dissonantes propostos por Huxley na sua caracterização de um futuro utópico/distópico. Posteriormente, aludiremos às principais personagens do romance, o civilizado Bernard Marx e o selvagem John Savage, para perceber como a realidade social nas quais cada uma delas está inserida altera suas percepções e sua tentativas de alteração dessa realidade. Nosso intento é aprofundar a discussão sobre as relações entre a arte literária e as diferentes caracterizações de utopia ou distopia no romance de Huxley.
Palavras-chave: Crítica Literária. Utopia. Admirável Mundo Novo. Aldous Huxley.
Abstract: The aim of this paper is to present a reading from of Aldoux Huxley’s Brave New World, from the point of view of the concepts of Utopia - an ideal vision of a positive social order, future or present - and Dystopia - negative characterization of an oppressive social order - as similar propositions, both setting a particular vision of the future scenarios. In common, the two terms show the attempt of certain novelists to narrate a social reality ideally organized, whether authoritarian or not. For our analysis, we will seek first to contrast the way the narrator of Brave New World presents the urban and wild reality, seeking perceive the characterization of two dissonant points proposed by Huxley in its depiction of his fictional utopian/dystopian future. Later, we will study the main characters of novel, the civilized Bernard Marx and the savage John Savage, to see how the social reality of them alters their perceptions and their attempts to change their reality. For this, our intent is to analyze the relation between literary art and the different characterizations of utopia or dystopia in Huxley’s novel.
Keywords: Literary Criticism. Utopia. Brave New World. Aldous Huxley

“Quero saber o que é paixão”, ela ouviu Bernard dizer,
“quero sentir alguma coisa com intensidade”.
“Quando o indivíduo sente, a comunidade treme”, declarou Lenina.

Na obra de Tomas Moore, Utopia (1516), o pensador e estadista inglês ficcionalizou o espírito nascente de otimismo e curiosidade para com as terras do novo mundo ao criar a personagem Raphael Huthlodeus. Fascinado pelas riquezas e pela organização social dessa misteriosa ilha chamada “Utopia” – “Não Lugar” ou “Bom Lugar”, ou ainda, “Lugar Ideal” na sua etimologia grega “Ou” e “Topos” –, Huthlodeus permaneceu lá por cinco anos. As descobertas dos navegadores europeus e o texto de Moore, num curioso amálgama, deram origem a vários outros textos, como A Cidade do Sol (1623), de Campanella, e a Nova Atlântida (1627), de Frances Bacon. Nesses e em outros tratados do período, apresentava-se a ideia de um lugar ideal, perdido num passado longínquo, fosse ele o Éden judaico ou a Atlândida do Timeu platônico, ou qualquer paisagem que pudesse descrever tal cenário idílico, um espaço no qual o desenvolvimento civilizatório tivesse sido interrompido e onde seus moradores ainda viveriam numa anterior idade de ouro.
Para Christiane Zschirnt, em Livros, essa primeira noção de utopia havia sido alterada para uma de anti-utopia ou de distopia no último século. Segunda ela, “as utopias dos séculos XVI e XVII eram ilhas distantes, alcançadas por navios. As modernas utopias dos séculos XIX e XX não se situam mais em lugares inexplorados da Terra, mas no futuro, e são alcançadas pelo caminho do progresso” (2006, p. 307). Para dar conta dessa nova maneira de perceber e, sobretudo, imaginar o futuro, cunhou-se o conceito de “anti-utopia” ou de “distopia”. Esta não seria apenas uma antítese da visão utópica anterior, pois igualmente seria uma concepção de ordenação social ideal tendo por diferença a descrição do poder totalitário ou autoritário. Como exemplos principais de narrativas ficcionais distópicas, temos 1984, de George Orwell, e o Admirável mundo novo, de Aldous Huxley.
O objetivo deste artigo é apresentar uma leitura do romance de Huxley, à luz das terminologias de “utopia” e “distopia” como proposições semelhantes, ambas configurando uma determinada visão do cenário futuro. Em comum, os dois termos teriam por marca principal a apresentação ficcional ou imaginária de uma realidade social idealmente organizada, fosse ela autoritária ou não. Para nossa análise, buscaremos primeiro contrastar o modo como o narrador de Admirável mundo novo apresenta tanto a realidade urbana quando a selvagem. Posteriormente, aludiremos às principais personagens do romance, o civilizado Bernard Marx e o selvagem John Savage. Nesse aspecto nosso intento é aprofundar a discussão sobre as relações entre a arte literária e as diferentes caracterizações de utopia ou distopia no romance de Huxley.
Publicado originalmente em 1932 (no Brasil, na década de setenta, com tradução de Lino Vallandro e Vidal Serrano), Admirável mundo novo é até hoje a obra mais conhecida do escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963). Viajante, romancista, ensaísta, místico e roteirista, o autor teve uma vida agitada e profícua. Baseado no famoso verso de A tempestade, de Shakespeare, em que Miranda admira o herói explorador e futuro amante Ferdinando, Admirável mundo novo é uma crítica de Huxley à revolução industrial e tecnológica observada na Inglaterra do século vinte, sobretudo pelo aumento dos períodos de trabalho e pela geral apatia diante dessa situação.
O romance tem por protagonista Bernard Marx, que vive num universo em que a população é condicionada biológica, social e psicologicamente, a seguirem as leis e requisitos do estado no ano de 2540. Ao narrar uma sociedade futura organizada em castas – nomeadas conforme as letras do alfabeto grego alfa, beta, gama, telta e ípsilon, que vão dos líderes e pensadores aos mais baixos servos dessa sociedade – em que valores como moralidade, religiosidade e humanismo inexistem, Huxley parece fazer as vezes de um profeta-romancista que tenta prever o caminho futuro do homem do seu tempo. A relação sexual, completamente dissociada de qualquer valor sentimental ou religioso/familiar é narrada no romance apenas como atividade social coletiva e variada, na qual a população troca de parceiros diariamente, não estando regida por qualquer vínculo familiar ou emotivo. No caso das doenças da mente, como a melancolia ou a psicopatia, todas elas seriam facilmente tratadas por meio de uma droga de consumo diário incentivada pelo estado, chamada Soma.
Nesse contexto de falsa tranquilidade social e individual, o pensamento e as representações de pensadores como Henry Ford, Sigmund Freud, H. G. Wells e Karl Marx, entre outros, substituíram o pensamento humanista e a simbologia dedicada à qualquer personalidade, religiosa ou política. Assim, ao invés de expressões como “Deus” ou “Cristo”, escutamos em diversos momentos da narrativa as personagens sussurrarem "Oh Ford" ou “Nosso Freud”. Na ficção de Huxley, são os três primeiros os mais importantes pensadores que permitiriam ao homem essa organização social ordenada e utópica. Ford deu ao homem a organização da Linha de Montagem industrial e humana, em que os seres transformam-se em ferramentas nas suas atividades profissionais. Freud, por sua vez, possibilitou a compreensão da psique humana, a ponto de descrevê-la e controlá-la coletivamente. Por isso as máximas tranquilizadoras e anestesiantes que os seres da sociedade descrita no romance escutam, literalmente, do berçário ao leito de morte. No caso de Wells, Huxley achava a visão utópica defendida em textos como Homens como Deuses, completamente irreais e deturpadas e, numa certa instância, Admirável mundo novo trata justamente do que aconteceria se a sociedade “ideal” de Wells realmente existisse. Por fim, coube, na visão ficcional de Huxley, a Marx o papel dissonante em contrapartida as ideias de Ford, Freud e Wells, entre outros. Em Admirável mundo novo, a protagonista Bernard Marx seria justamente aquele que questionaria a ordem e os critérios dessa sociedade pretensamente ideal, como o Manifesto Comunista, no aspecto social e político, também o fez.
O romance tem início com Bernard sentindo-se deslocado emocionalmente na sociedade em que vive, inquietação motivada primeiramente por uma característica física contrastante de sua casta: sua baixa estatura. Afastando-se desse universo de relações superficiais e de uma rotina de trabalho diariamente condicionada em que os dias avolumam-se numa rotina maçante e vazia, ele se aproxima de uma reserva histórica na qual mantém contato com Linda, que vive ou deseja viver nos velhos moldes. Bernard descobre que ela também era uma geneticamente produzida, mas que havia optado por conceber um filho como os “selvagens”, não num laboratório de modo geneticamente planejado e seguro e sim de modo natural. No universo “civilizado” de Bernard, os seres são decantados em laboratório já sendo devidamente preparados e moldados para suas determinadas castas. Enquanto os da casta alfa são desde bebês preparados para desenvolver habilidades intelectuais superiores, os bebês das classes telta e ípsilon são mantidos em condições físicas estafantes ou submetidos a temperaturas mais altas para prepará-los fisicamente para suas futuras funções sociais: sejam elas de limpeza sanitária ou de missões em minas de carvão.
No romance de Huxley, a dicotomia entre o civilizado e o bárbaro será primeiramente perceptível na descrição espacial dos dois cenários em que o enredo se passa: o urbano e a reserva dos selvagens. No primeiro, o narrador é extremamente detalhista no que seria a descrição de um meio urbano de linhas rígidas e precisas, de ordem sufocante e de limpeza incomum. O texto abre com uma descrição espacial que dará o tom para a metade do livro, que se passa justamente num cenário urbano no qual o leitor é apresentado às castas, aos centros de produção e educação humana, à rotina dos seus habitantes e ao contraste entre um modo de vida ascético e desinteressado, no qual se analisa uma família primitiva como um núcleo animal incompreensível.
Um edifício cinzento e acachapado, de trinta e quatro andares apenas. Acima da entrada principal, as palavras “Centro de Incubação e Condicionamento de Londres Central” e, num escudo, o lema do Estado Mundial: “Comunidade, Identidade, Estabilidade”. A enorme sala do andar térreo dava para o norte. Apesar do verão que reinava para além das vidraças, apesar do calor tropical da própria sala, era fria e crua a luz tênue que entrava pelas janelas, procurando, faminta, algum manequim coberto de roupagem, algum vulto acadêmico pálido e arrepiado, mas só encontrando o vidro, o níquel e a porcelana de brilho glacial de um laboratório. À algidez hibernal respondia a algidez hibernal. As blusas dos trabalhadores eram brancas, suas mãos estavam revestidas de luvas de borracha pálida, de tonalidade cadavérica. A luz era gelada, morta, espectral. Somente dos cilindros amarelos dos microscópios lhe vinha um pouco de substância rica e viva, que se esparramava como manteiga ao longo dos tubos reluzentes. – E isto – disse o Diretor, abrindo a porta – é a Sala de Fecundação. (s/ data, p. 17)
Na descrição do narrador de Huxley, adjetivos como “cinzento”, “fria”, “crua”, “tênue”, “pálido”, “faminta”, “glacial”, “hibernal”, “borracha pálida”, “cadavérica”, “gelada”, “morta” e “espectral”, unidos a substantivos igualmente rígidos como “vulto”, “luz”, “vidro”, “níquel”, “porcelana”, “brilho”, “algidez” e “borracha”, detalham um cenário frio e distante, no qual os seres que ali trabalham resultam vultos e fantasmas, repetindo dia após dia, entre a luz do sol e o ambiente de temperatura fria e sempre ajustável, que já apresentam a tônica desse admirável mundo novo de aço e luz artificial. Tal perspectiva espacial fria e cuidadosamente planejada e executada também se estende à criação dos seres que ali trabalham e vivem. É uma descrição matemática de ações e pensamentos que constitui tanto a geografia quanto a sociologia desse universo.
Quase cem páginas depois, quando Bernard e Lenina chegam à Reserva dos Selvagens, a descrição é tonal e visualmente oposta. Agora, no lugar do ambiente industrialmente produzido e planejado, configura-se uma descrição de paisagem natural e selvagem, grandiosa e amedrontadora, ao passo que o casal, mesmo protegido pelo som e pelo metal do helicóptero, ainda assombra-se com os “montes”, “vales”, “desertos”, “florestas”, “canyons”, “penhascos”, “picos” e “planícies”. Forçando a visão, uma outra série de imagens se afigura: a imagem de restos de ossadas animais e humanas, de uma desordenação natural que se, por um lado fascina o leitor em sua listagem sublime natural, por outro amedronta a percepção dos protagonistas do romance, tão acostumados que estavam com o mundo aparentemente perfeito e iluminado que deixaram para trás.
Embarcaram no helicóptero e partiram. Dez minutos depois, cruzaram a fronteira que separava a civilização do estado selvagem. Por montes e vales, cortando os desertos de sal ou de areia, atravessando florestas, descendo às profundidades violáceas dos canyons, franqueando penhascos, picos e mesas, a cerca corria irresistivelmente em linha reta, símbolo geométrico do desígnio humano triunfante. E junto a ela, aqui e ali, um mosaico de ossamentas brancas, uma carcaça ainda não apodrecida, escura sobre o solo fulvo, marcava o lugar onde veados ou touros, pumas, porcos-espinhos ou coiotes, ou então urubus vorazes atraídos pelas exalações da carniça e fulminados como por uma justiça poética, se haviam aproximado demais dos fios metálicos destruidores. (s/ data, p. 100)
Essa diferenciação narrativa entre o contexto urbano civilizado e o selvagem não-civilizado é ainda mais profícua quando usada para a leitura das principais personagens do romance: o urbano Bernard e o selvagem John. Quando Bernard e o filho de Linda se encontram tem início no romance de Huxley o principal contraste proposto na narrativa entre a natureza da sensibilidade e do comportamento humano do segundo com a ordenação hiper-estruturada do mundo do primeiro.
O filho de Linda, John, seria um duplo do próprio Bernard, a sua contraparte do antigo mundo e de uma educação espontânea e humanista, diferente da frieza tecnológica do universo de Bernand. Talvez nesse aspecto, tenhamos na caracterização de John um duplo de Bernard: o selvagem em contraste com o socialmente moldado. Possivelmente, Huxley baseou essa oposição na novela de H. G. Wells, A máquina do tempo (1895), que apresentava o futuro como uma utopia aparentemente ideal e posteriormente complexa e aterradora povoada pelo ingênuos e frágeis Elois e pelos canibais subterrâneos Morlocks. Mas no caso do segundo escritor inglês, essa oposição é mais sutil, ocorrendo não apenas na exterioridade física – algo que em Wells é extremadamente marcado entre o delicado corpo dos Eloi e a monstruosidade corpórea dos Morlocks. Em Admirável mundo novo, Bernard e John, fisicamente, são gêmeos. O que os difere são roupas, hábitos e crenças.
No caso de Bernard, sua inquietação é resultante de um desconforto diante do previsível social e urbano, e também emotivo, no qual relacionamentos sempre preenchem a mesma fórmula da “aproximação-cópula-desaproximação”. Diante dos seus pretensos gêmeos de casta, Bernard não é igual. É mais baixo, tem algo do ar infantil da melancolia e da fragilidade física. Nas palavras do narrador de Huxley, essa desconexão urbana e também social torna-se perceptível na própria composição postural da personagem.
Com os olhos quase sempre baixos, e desviando-se imediata e furtivamente quando, por acaso, os pousava em algum de seus semelhantes, Bernard atravessou o terraço às pressas. Dava a impressão de um homem perseguido, mas perseguido por inimigos que não queria ver, temeroso de que lhe parecessem ainda mais hostis do que imaginara, e de que lhe fizessem, em consequência, experimentar uma sensação de maior culpabilidade e de solidão ainda mais irremediável. (s/ data, p. 68)
Apressado e um pouco curvado, Bernard tem a impressão de que algo o persegue ou de que algo o punirá. Talvez pela abstinência de soma ou já pelo esgotamento psicológico de uma existência regrada ao estremo. Ele igualmente desconhece as razões sociais dessa inquietação, a linha de produção industrial e humana. Por outro lado, Bernard nutre um sentimento mais exaltado por Lenina num mundo em que sentimentos são completamente condenados e ainda mais, ridículos, o que é ilustrado pela passagem em que uma das falas de Romeu e Julieta é lida, para a surpresa da personagem feminina, incapaz de imaginar um mundo em pessoas sofriam emocionalmente.
Por outro lado, John Savage é antagonicamente o oposto de Bernard. Educado pela leitura de Shakespeare, John é também um paria entre os seus, estes analfabetos. Com sua imaginação dicotomicamente povoada e complexa, entre as lembranças de Linda sobre o mundo civilizado e as superstições dos moradores da reserva, o personagem tem na leitura das peças de Shakespeare um medidor e um estimulador emotivo que soa incongruente e absurdo para os moradores da Londres moderna. Em John, as palavras aprendidas intensificavam sua própria leitura do real, diferente da percepção de Bernard e Lenina, moradores de um mundo no qual as palavras de teor emotivo foram praticamente abolidas (Huxley, s/ data, p. 121).
O personagem de Huxley está emparedado entre dois tipos de controle social, dois tipos que ele mesmo não compreende e que se recusa a aceitar ou apreender. Diante dele, o controle estatal que experiencia na Londres de Bernard, uma cidade tecnológica angustiante e amoral; atrás dele, o controle da crença espiritual tribal que também não faz sentido para sua sensibilidade intelectiva e emotivamente shakespeariana. Quando é levado para a civilização, não compreende como Lenina pode ser tão desejável e ao mesmo tempo repugnante por uma amoralidade que ele, idealizador como é, não consegue compreender. Não acostumado com os tratos sociais civilizados, segundo os quais todos pertencem sexualmente a todos, John se encontra citando a fascinação de um Romeu para depois incorrer na misoginia de um selvagem e descontrolado Otelo (ibidem, p. 172). Entre tais estados dicotômicos de espírito e percepção, o grito de John, após a morte de Linda, revela justamente o que num mundo distópico como o apresentado pelo narrador de Huxley é inaudível e ofensivo: a noção de liberdade e escolha individual.
- Mas vocês gostam de ser escravos? - dizia o Selvagem quando eles entraram no Hospital. Seu rosto estava rubro, seus olhos chamejavam de ardor e indignação – Gostam de ser bebês? Sim, bebês, choramingas e babões – acrescentou, exasperado com aquela estupidez bestial, a ponto de lançar injúrias contra os que viera salvar. As injúrias escorregavam sobre a crosta de estupidez espessa; eles o encaravam com uma expressão atônita de ressentimento embrutecido e sombrio. - Sim, babões – vociferou o Selvagem. A dor e o remorso, a compaixão e o dever, tudo estava agora esquecido e de algum modo absorvido num ódio intenso e irresistível àqueles monstros menos que humanos. - Vocês não querem ser livres, ser homens? Nem sequer compreendem o que significa ser homem, o que é a liberdade? - A raiva tornava-o um orador fluente, as palavras ocorriam-lhe com facilidade, em catadupas. - Não compreendem? - insistiu, mas não obteve resposta. - Pois bem! Então – prosseguiu em tom feroz -, então eu vou ensiná-los; vou obrigá-los a ser livres, queiram ou não queiram! - E, abrindo uma janela que dava o pátio interno do Hospital, pôs-se a atirar para fora, aos punhados, as caixinhas de comprimidos de soma. (Ibidem, p. 187)
Na cena, surpreende o tom exacerbado de John contra uma multidão apática. Nas palavras do narrador, “as injúrias escorregavam sobre a crosta de estupidez espessa”, um estranho mutismo diante da revolta do selvagem que, linguisticamente fluente, anuncia liberdade para uma audiência que desconhece o significado da palavra. Ao fim de um discurso que causa pouco ou nenhum efeito imediato, o selvagem abre a janela e começa a jogar andares abaixo caixas e caixas de Soma, ação essa que causa sim a inquietação primeiramente pretendida.
No romance de Huxley, John será o pretenso revolucionário que tentará levar a esse mundo intelectualmente vazio algo das percepções e ilusões que aprendeu com a leitura de Shakespeare e de outros autores. Ao término do romance, quando travará um diálogo com a figura do Controlador, do líder estatal e mecânico dessa sociedade, John afirmará desejar “deus”, “perigo”, “poesia”, “liberdade” e “bondade”, mesmo que para isso, tenha ele de aceitar a “infelicidade”, a “velhice”, a “feiúra”, a “impotência”, a “doença” e a “insegurança”.
Nesse aspecto, a escolha de John é a forma encontrada por Huxley de tratar alegoricamente o processo de ordenação autoritária como o Gênesis trata a vontade divina. Como Adão e Eva, John opta pela desobediência à vontade auto-imposta. Perde a perfeição com isso, mas ganha conhecimento e a perspectiva de uma existência não fechada sob a égide da proteção-prisão paternal-divina. Nessa leitura, a inquietação inicial de Bernard é a inquietação de uma sobrevida num mundo utópico e distópico aparentemente perfeito, como o Éden original. Mas num cosmos como esse, onde a perfeição é uma realidade e a rotina uma norma, tudo se torna extático e previsível, justamente o oposto daquilo que configurou-se na arte e na história da humanidade como sua principal característica: a curiosidade e o sentido de mudança.
No prefácio escrito trinta anos depois da publicação de Admirável mundo novo, Huxley apontou o principal defeito de seu livro. Justamente não tratar de uma terceira possibilidade para seu herói. Emparedado entre a sociedade moderna e a antiga, entre o civilizado e o “bárbaro”, Bernard e John ficam ambos presos a essa rede dicotômica. Do ponto de vista do seu autor, haveria ainda de se pensar numa sociedade em que a escolha não visasse o passado ou o futuro, mas o presente.
Se eu reescrevesse o livro agora, ofereceria uma terceira alternativa ao Selvagem. Entre as duas pontas do seu dilema, a utópica e a primitiva, estaria a possibilidade de alcançar a sanidade de espírito – possibilidade já realizada, até certo ponto, numa comunidade de exilados e refugiados do Admirável mundo novo, estabelecidos dentro dos limites da Reserva. Nessa comunidade, a economia seria descentralizada e segundo o georgismo, e a política, lropotkiniana e cooperativista. A ciência e a tecnologia seriam usadas como se, a exemplo do sábado, tivesse de ser adaptado e escravizado a elas. A religião seria a procura consciente e inteligente do Objetivo Final do homem, a busca do conhecimento unitivo do Tao imanente ou Logos, da Divindade transcendente ou Brama. E a filosofia de vida predominantemente seria uma espécie de Utilitarismo Superior, em que o princípio da Maior Felicidade ocuparia posição secundária em relação ao do Objetivo Final (s/ data, p. 8).
Embora deixe um tanto vago sua noção de Objetivo Final, Huxley talvez estivesse mais interessado em evidenciar a capacidade humana de ultrapassar o sentido de realidade ou de organização ideal. Advertindo sobre os perigos do totalitarismo, obrigatório a todo regime ideal e mono-facetado, Admirável mundo novo resulta mais uma fábula em que o velho tema da liberdade de escolha volta a aparecer ficcionalmente.
Numa outra instância, poder-se-ia perguntar se expressões como a usada por Huxley, “Objetivo Final” ou “Ideal”, não encerraria em si outro forma de elaboração ideológica utópica. Com essa última consideração talvez venhamos a futuramente abandonar os termos anti-utópico ou distópico, pois se tornariam inúteis, na medida em que a própria noção de utopia fosse compreendida como lugar outro, lugar imaginável e irrealizável, inter-lugar, lugar além, ironicamente e curiosamente, todas expressões contidas no etimologia original de ou-topos-ia, como empreendida por Moore em 1516. Num tempo assim, poderíamos finalmente aceitar definições mais otimistas para termos como Utópia e Distopia, como a de Freire e Brito.
Como entendemos, então, a utopia que gerou a ideia deste livro? Utopia, para nós, significa esperança. Mas esperança de realizar nossos sonhos de justiça e liberdade social, e, simultaneamente, alcançar a pela e autônoma realização pessoal, aqui e agora. Uma ação revolucionária cotidiana, permanente, corporal, prazerosa, somática, através do encontro e exercício livre da nossa originalidade única. Portanto, para nós, a cidade ideal, o topos, já foi encontrada. É nosso corpo, o soma de cada um. (1991, p. 103)
Sintomático os autores usarem, mesmo numa definição pretensamente positiva e libertária de Utopia, a palavra Soma. Estaria nessa definição inclusa a possibilidade de lermos Utopia ou Mundo Ideal como uma forma de anestésico crítico ou emotivo? Curioso também o fato de usarmos em nosso mundo contemporâneo o termo “Não-Lugar” – um dos múltiplos sentidos do original “Utopia” – para referir ao estado mesmo de nossa sociedade pós-moderna, um estado que desafia definições e conceituações definitivas. Baseado nisso, a utopia seria não apenas o modo como o homem veria um lugar ideal como também o modo como esse mesmo homem poderia pensar seu lugar num mundo sempre em mudança.

Referências

FREIRE, Roberto; Brito, Fausto. Utopia & Paixão. Rio de Janeiro: Guanabara Loogan, 1991.
HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. São Paulo: Círculo do Livro, sem data.
ZSCHIRNT, Christiane. Livros. São Paulo: Globo, 2006.
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979.


1 Doutorando em Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
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