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Revista Literatura e Autoritarismo
Dossiê Walter Benjamin e a Literatura Brasileira
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê nº 5 

MURILO MENDES: A AURA, O CHOQUE, O SUBLIME

Eduardo Sterzi1
Resumo: Críticos diversos identificaram na obra de Murilo Mendes uma “lírica” ou uma “poética do choque”. Neste ensaio, busca-se verificar, com apoio na estética depreendida dos escritos críticos de Walter Benjamin, como o choque (categoria benjaminiana por excelência) revela-se de fato fundamental para uma leitura renovada de Murilo. Esta leitura passa pelo exame dos modos próprios como, nesta obra, se dá a dialética, bem descrita por Benjamin, entre choque e aura, assim como pelo discernimento da subordinação dessa dialética à exploração do sublime moderno, que define em grande parte a singularidade de Murilo no quadro da literatura brasileira do século XX.
Palavras-chave: Murilo Mendes; poesia; aura; choque; sublime.
Abstract: Different critics have identified in the work of Murilo Mendes a “lyric” or a “poetics of shock”. In this essay, we try to see, with the aid of the aesthetics deduced from the critical writings of Walter Benjamin, how the shock (Benjaminian category par excellence) reveals itself an important element for a renewed reading of Murilo. This reading is based on the examination of the singular ways that dialectics – so well described by Benjamin – between shock and aura takes in his work, as well as on the discernment of the subordination of this dialectics to the exploration of modern sublime, which largely defines the uniqueness of Murilo in the panorama of twentieth century Brazilian literature.
Keywords: Murilo Mendes; poetry; aura; shock; sublime.

Murilo Mendes estava consciente de que, como o passado é, de maneira geral, um tempo de sofrimento, o poeta deve romper com o que chamamos tradição ou patrimônio cultural, para impedir que o sofrimento se perpetue. Porém, esse é um movimento dialético: é ao conservar-se na crista do presente, agarrando-se ao que está prestes a transformar-se em ruínas diante de seus olhos, que ele salva o que merece ser salvo no passado e, sem nenhuma certeza acerca do que virá, contempla, já nos escombros, a possibilidade de um futuro diferente.2
Entrevistado por Jorge Andrade nas ruínas das termas de Diocleciano (atualmente, uma das sedes do Museo Nazionale Romano), Murilo Mendes declarou: “Para mim, é um lugar verdadeiramente inspirante, bom para se pensar nos limites do humano” (Andrade, 1972, p. 81). Sublinhemos esta convergência entre inspirar-se e pensar nos limites do humano. Ela se encontra também na poesia do próprio Murilo. O momento da angústia – da limitação, do esvaziamento do eu, da constrição da fala – é também o momento do êxtase, do arrebatamento, do direcionamento do pathos para metas menos chãs. Murilo não vê as termas romanas apenas como símbolos de uma civilização destruída. Também considera o trabalho artístico e arquitetônico que as recuperou para o presente: no século XVI, Michelangelo converteu as ruínas na Igreja Santa Maria degli Angeli e no Convento dos Cartuxos. Jorge Andrade conta que, de súbito, Murilo fixou-se a admirar as abóbadas projetadas pelo artista italiano e comentou: “Quando penso que isto tem vinte séculos; que Michelangelo tocou nessas paredes, nas colunas, nos capitéis. Aqui, ele passava horas e horas, amando o grandioso, o gigantesco, as proporções perfeitas” (Andrade, 1972, p. 84). Depois, enquanto apontava os muros monumentais ao interlocutor, pediu sua atenção: “Veja que massas colossais” (Andrade, 1972, p. 87). Há, aqui, uma contaminação entre a grandeza do tempo e do espaço e, sobretudo, algo como uma transferência da força de vida de Michelangelo – de seu “gênio”, como diriam os românticos – para a pedra. Não somente os “vinte séculos” redobram a monumentalidade do local. O toque do artista instila, na matéria inerte, aquele misterioso feitiço que Benjamin denominou “aura”, como que redobrando a distância já produzida pela passagem do tempo. Diante do gigantismo das ruínas revigoradas, o homem, por contraste, é levado a conhecer seus limites, sua exata medida. Que esta seja, como diz Murilo num poema de Siciliana, uma “medida desmesurada” (Mendes, 1954-1955, p. 566), é algo que só confirma a coincidência entre o lugar que a ideologia poética de Murilo Mendes reserva para o homem e sua destinação final sob o regime de força do sublime.
Murilo elevou o sublime – que, mesmo no século XVIII, século de seu intempestivo ressurgimento moderno, se restringira aos pontos cegos da beleza, aos desvãos negligenciados, a um só tempo, pelo hedonismo e pelo ascetismo – à condição de categoria estética central de sua poesia e, sobretudo, de instrumento ou método privilegiado de conhecimento da realidade.3 Como diz em texto sobre Henri Michaux: “Não existem provas concretas da realidade total, nem sólidas certezas – exceto as da angústia, da dúvida e do enigma” (Mendes, 1973, p. 1228). É o sublime que lhe permite extrair um significado da configuração angustiante com que a realidade se apresenta aos seus olhos. Murilo não precisava ir às termas de Diocleciano para se inspirar e reconhecer os limites do humano. Naquelas ruínas, ele encontrava, em versão, por assim dizer, inócua (porque domesticada na forma de museu, de patrimônio), o que as ruas lhe ofereciam em maior abundância e intensidade. Veja-se, por exemplo, como Nicolau Sevcenko (1998, p. 516) descreve a desproporção entre o homem e os objetos característicos da vida moderna:
as escalas, potenciais e velocidades envolvidos nos novos equipamentos e instalações excedem em absoluto as proporções e as limitadas possibilidades de percepção, força e deslocamento do corpo humano. Compare-se o símbolo máximo da nova técnica, a Torre Eiffel, com o tamanho de um ser humano médio. Ou a força de uma locomotiva, ou a velocidade de um avião. Ou coteje-se a escala de uma casa familiar de proporções médias com as dimensões de uma usina hidroelétrica ou de um complexo siderúrgico ou de um aeroporto. Ou compare-se a luz de uma vela, acessório milenar da humanidade, com um holofote, ou uma página de livro com uma tela de cinema.
Um homem prático certamente não se assombraria diante de tais objetos; antes, vislumbraria neles sua utilidade; iria compreendê-los como meios pelos quais o homem amplia seu domínio sobre a natureza. João Cabral de Melo Neto, mestre brasileiro do anti-sublime, ou sublime deliberadamente frustrado, elege um ascético “engenheiro” como modelo de percepção: “o engenheiro pensa o mundo justo, / mundo que nenhum véu encobre” (Melo Neto, 1945, p. 70). Porém, como no século XVIII, mais uma vez, o espírito científico exige o contraponto de um espírito romântico. Diante das máquinas fascinantes e monstruosas, das avenidas varadas por automóveis céleres, dos arranha-céus rivalizando com as montanhas, Murilo, como tantos artistas da época, não esconde seu pasmo: comporta-se quase como se fosse um primitivo abandonado, de uma hora para a outra, sem nem as estrelas para orientá-lo, em meio à urbe desvairada.4 Do ponto de vista do homem prático ou “engenheiro”, o ser humano expandiu seus limites físicos e espirituais ao interagir com a nova paisagem: o automóvel é uma extensão de seus pés; o telefone, uma extensão de sua boca; o rádio, uma extensão de seus ouvidos; a tela de cinema, uma extensão de seus olhos (cf. McLuhan, 1964). Murilo não nega tal expansão, mas a compreende, em certa medida, como ilusória, por acarretar, no fim das contas, uma maior limitação – uma maior angústia – ao acentuar a dependência ou submissão do ser humano ao não-humano, ao inumano. Esse brave new world suscita-lhe terror e encantamento, exigindo-lhe reações tão rápidas que ele já não consegue diferenciar sentimentos antitéticos. Eis a origem historicamente determinada da tremenda ambivalência emocional de seus poemas: “Quantas coisas que amo me apavoram” (Mendes, 1946-1948, p. 451). Nos textos em prosa, Murilo confessa, com certa constância, que determinados objetos, personagens ou situações provocam-lhe, simultaneamente, atração e repulsão (binômio fundamental do sublime kantiano), ou atribui tal desconcerto a outrem.5 “Procuramos a forma de uma emoção, surge-nos outra. De que ponto insuspeitado do espaço nos despontam certos pressentimentos, certas intuições, que poderíamos registrar num gráfico oscilante?” (Mendes, 1964-1966, p. 1453).
O homem ainda não desenvolvera defesas contra os novos perigos que o aguardavam a cada passo, mas também não encontrava em si forças para recusar o convite da fourmillante cité. Só submergindo no caos das ruas férvidas, desviando de automóveis e outros veículos, o pedestre podia testar-se como herói-ator moderno; o cenário e os antagonistas são-lhe imprescindíveis. A representação do trânsito, na poesia de Murilo, deixa inequívoca a sensação de estar vivendo num novo mundo: a gravidez é a figura recorrente dessa novidade. No último livro de Murilo (1968, p. 1512), sob o título irônico de “L’esplosione demografica”, a ameaça aparece como algo que está por nascer:
La donna incinta mi fa paura:
nasconde um motociclista
che dopo aver bevuto
il mio bicchiere di vino mangiato il mio pane
subito me investirà6
No poema “Apresentação do recém-nascido”, enfeixado num de seus primeiros livros, Murilo (1941, p. 224) já sugeria que só um jovem criado em plena modernidade estaria preparado para enfrentar e talvez escapar da colisão que surpreendera seus pais:
Um corpo elétrico te espera numa curva do mundo
Para te derrubar quando tiveres dezoito anos,
Como já derrubou teu pai e tua mãe
Que são a fotografia inanimada do que foram.
A expressão “corpo elétrico”, que substitui as denominações literais “automóvel” ou “carro”, pede que confiramos, por assim dizer, valor geral à experiência representada: o tráfego torna-se uma alegoria da vida sob o signo da eletricidade. Além do mais, transforma o automóvel num duplo do homem: ambos reduzidos a corpos, não mais do que corpos, predestinados ao choque (“Talvez eu não exista / Esteja atropelando meninas, poemas, automóveis”, diz em outro poema (Mendes, 1941, p. 242). E em outro anterior: “Homens distraídos atropelam automóveis” (Mendes, 1930, p. 101). Ou nem mesmo corpos: afinal, morrer é transformar-se em “fotografia inanimada” (a fotografia sendo outro índice de modernidade), registro espectral de uma ausência – nem corpo, nem alma – que há de assombrar o porvir.
*
A I Guerra Mundial consumou todas as promessas de catástrofe que se acumularam durante a segunda metade do século XIX e os primeiros anos do século XX. Foi o ponto de exclamação que encerrou um longo e exaltado discurso de força – e abriu outro. Com a conflagração iniciada em 1914, o choque, inerente a todos os momentos da vida moderna, revestiu-se de uma insuportável literalidade. Os recursos mobilizados na primeira guerra tecnológica – aviões, tanques, metralhadoras, gases venenosos, trincheiras – aviltaram o antigo caráter épico das batalhas. Como percebeu Walter Benjamin num ensaio de 1933, os soldados retornaram silenciosos do front: haviam passado por uma experiência que não podia, ou não merecia, ser comunicada de boca em boca. Benjamin cifrou essa experiência desmoralizada numa imagem:
Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano. (Benjamin, 1933, p. 115)7
Murilo Mendes, provavelmente sem jamais ter lido o texto de Benjamin, chegou a uma proposição semelhante, ao referir-se ao “frágil espaço que afinal é o homem, oprimido por forças terríveis, conhecidas ou não” (Mendes, 1973, 1244). Sintomaticamente, ao sugerir tal definição, estava pensando nos traços prenunciadores da pintura moderna encontrados na obra do gótico italiano Simone Martini. Benjamin evocara a desolação posterior à guerra exatamente para justificar as características “bárbaras” dessa arte (tinha em mente tanto a pintura quanto a literatura e a arquitetura) que Martini, segundo Murilo, adivinhava. Em ambos, Benjamin e Murilo, o que interessa é que tal arte existe e constitui uma ultrapassagem da mortificação imposta pela catástrofe: nas obras dos mais radicais dentre os artistas modernos, “a humanidade”, diz Benjamin, “se prepara, se necessário, para sobreviver à cultura” (Benjamin, 1933, p. 119).
Murilo, brasileiro, não teve contato direto com a guerra desenvolvida em território europeu. Contudo, a distância não o tornou menos sensível aos efeitos dela sobre os destinos do homem e, especialmente, da arte de seu tempo. Em seu comentário sobre Magritte, nos Retratos-relâmpago, lê-se: “Naquela hora, imediatamente depois de um conflito universal por excelência desarticulador, seria possível criar algo de ordenado e construído? Dada chegou e dentro em pouco cedeu o passo ao surrealismo” (Mendes, 1973, p. 1255). Podemos, é claro, imaginar o jovem Murilo acompanhando as notícias da guerra pelos jornais e revistas. Mas também podemos imaginá-lo admirando, nos quadros, músicas e poemas dos vanguardistas europeus, os revérberos ainda nítidos dos combates. Podemos visualizá-lo num dia qualquer dos anos 20, talvez em companhia de Ismael Nery, portador das novas do Velho Mundo, passando os olhos sobre as últimas obras de Apollinaire, que esteve nos campos de batalha, a quem Murilo dedicaria um poema escrito em francês no início da década de 1940, durante a II Guerra Mundial (Mendes, 1942b, p. 1567-1568). O cartão que Apollinaire endereçou à sua noiva, Madeleine Pagès, em 18 de março de 1916, um dia depois de ter sido atingido na têmpora por um estilhaço de obus, é um digno prefácio para a poesia do entre-guerras. As letras (informa o editor) são quase ilegíveis:
Não dormi à noite. Não há descrição possível. É inimaginável. Mas faz um belo dia. Penso em ti. A gente deita ao ar livre. Esta manhã vi um esquilinho a subir numa árvore, subir.
Estou cansado e alegre ao mesmo tempo. Tenho areia na boca. Não sei se teremos cartas esta noite. Espero. (Apollinaire, 1916, p. 191)
A sensação de ter vivido algo que foge à representação, que escapa à linguagem, mistura-se às aparições evanescentes de uma vida mais tranqüila, que mais e mais vai parecendo ao poeta prestes a resignar-se ao passado. A súbita descontinuidade entre ontem, quando foi ferido, e hoje, o “belo dia” em que escreve a carta, estimula a ambivalência emocional: “cansado e alegre ao mesmo tempo”. Apollinaire não supunha que, de então em diante, todo poeta historicamente consciente, ao pronunciar seus próprios versos, também sentiria, em sua boca, o gosto de areia dos campos de batalha. Eis aquela “tranqüilidade toldada de horror”, tão contrária à indiferença, que Burke encontrou no sublime: “quando passamos por uma emoção violenta, o espírito naturalmente continua mais ou menos na mesma disposição depois que a causa original deixou de atuar” (Burke, 1757, p. 44). Com acerto, Patrícia Galvão observou, na edição de 21 de dezembro de 1945 do semanário Vanguarda Socialista, ao comentar os poemas de Murilo cujo tema é a II Guerra Mundial: “Não é preciso explicar mais o esmagamento com que o poeta se dá conta que diante dele há um mundo e no mundo um enigma, e esse enigma para ele [...] é a fronteira em sangue, todas as fronteiras em sangue, impedindo a comunicação da poesia [...]” (Galvão, 1945, p. 132). Desse choque que esmaga o poeta e o desperta para o mundo, só pode resultar uma voz esmagada, sufocada, e por isso mesmo eloqüente.
Um crítico recente identificou, na obra de Murilo, uma “poética do ‘choque’” (Moura, 1995, 149). José Guilherme Merquior, anos antes, já falara em “lírica de choque” (Merquior, 1978, p. 16). Em essência, tais expressões não diferem daquela com que Paul Valéry brindou, com intenção de censura, a arte moderna: “rhétorique du choc” (Valéry, 1938, p. 1220). A invectiva do autor de Degas danse dessin pode nos auxiliar a compreender os perigos a que Murilo se expôs:
Quer se trate de política, de economia, de modos de vida, de diversões, de movimento, observo que a atitude da modernidade é bem aquela de uma intoxicação. Precisamos aumentar a dose, ou trocar de veneno. Esta é a lei.
Cada vez mais avançado, cada vez mais intenso, cada vez maior, cada vez mais rápido, e sempre mais novo, tais são as exigências, que correspondem necessariamente a um embrutecimento da sensibilidade. Nós precisamos, para sentir que estamos vivos, de uma intensidade crescente dos agentes físicos e de perpétua diversão... (Valéry, 1938, p. 1221)
Benjamin foi mais sutil ao tratar desse fenômeno. No ensaio “Sobre alguns temas de Baudelaire”, observa que o poeta francês foi o primeiro a inserir a “vivência do choque” – cujo paradigma é o confronto surdo contra a multidão que não mais reconhece sua autoridade – no cerne de sua prática artística (Benjamin, 1939, p. 111). Benjamin refina esta afirmação buscando subsídios em Além do princípio do prazer. Interessa-lhe, na teoria de Freud, sobretudo a constatação de que o consciente, mesmo quando é submetido a estímulos violentos, não sofre nenhuma modificação duradoura, porque faz as vezes somente de escudo protetor, e a conclusão conseqüente de que os resíduos mnemônicos são mais permanentes quando o processo que os imprime ultrapassa o consciente, chegando às camadas subjacentes (cf. Freud, 1920, p. 37-38). No vocabulário de Benjamin, o acontecimento tal como se apresenta ao consciente reduz-se a uma efêmera “vivência” (Erlebnis); por sua vez, as impressões resguardadas além do consciente constituem a “experiência” (Erfahrung). Em outros textos, desarraigada da psicanálise, a oposição entre vivência e experiência apresenta-se em linhas mais nítidas: a vivência é privada, individual; a experiência é idealmente coletiva, transmite-se de geração para geração (cf. Benjamin, 1913, p. 21-25; 1933, p. 114-119; 1936, p. 197-221).8 O declínio da experiência, paralelo ao declínio da aura, é determinado pelas pressões da sociedade capitalista sobre o ser humano e o decorrente enclausuramento deste em si mesmo. Antes de Baudelaire, era a experiência que fornecia a matéria-prima para a poesia lírica. A singularidade do autor das Fleurs du mal consiste em pretender elevar a vivência à condição de verdadeira experiência. Benjamin é claro quanto aos riscos que Baudelaire assumiu ao lançar-se neste vôo de Ícaro: “Ele determinou o preço que é preciso pagar para adquirir a sensação do moderno: a desintegração da aura na vivência do choque [die Zertrümmerung der Aura im Chockerlebnis]” (Benjamin, 1939, p. 145).
Murilo Mendes jamais se negou a pagar essa taxa. É ela que lhe franqueia o ingresso no purgatório do sublime tardio. Com perspicácia, Roberto Alvim Corrêa assinalou, comentando a obra de Murilo: “A linguagem poética supõe um abalo, uma despesa e um impulso íntimo, que nos fazem atravessar o tempo e o espaço” (Corrêa, 1948, p. 19). Essa “despesa” é traduzida pelo próprio poeta em termos muito semelhantes aos de Benjamin, quando discerne, na arte moderna, um conflito entre “ordem” e “aventura”: a ordem implicando uma “vontade de permanência” (a “aura” em seu avatar derradeiro), a aventura exigindo a “desintegração estética do momento” (Mendes, 1960-1970, 1318). O ethos agônico de Murilo não lhe permite optar entre as duas correntes: o ethos é o daimon, caráter é destino, já dizia Heráclito, e o destino de Murilo, sua verdadeira Beatriz, como a de Mallarmé, foi a destruição. Num dístico de Poesia liberdade – livro composto durante os últimos anos da guerra, de 1943 a 1945 –, Murilo indicou a posição vulnerável a partir da qual escreve seus poemas:
Um ouvido resistente poderia perceber
O choque do tempo contra o altar da eternidade. (Mendes, 1947, p. 425)
Aqui, o “tempo” não é outra coisa senão a consciência de ser histórico, a modernidade; e o “altar da eternidade”, com sua reiterada conotação religiosa, é o refúgio da aura no momento do impacto.
Como Benjamin observou, a técnica funcionou como um treinamento para o choque (Benjamin, 1939, p. 125). O ritmo da produção em série nas fábricas antecipou o ritmo da percepção exigido pelo cinema. Acompanhando a hermenêutica do capital proposta por Marx, Benjamin nota que, na linha de montagem, a peça entra no raio de ação do operário independentemente de sua vontade e sai dele do mesmo modo arbitrário. O artesão tinha controle sobre todas as etapas do seu trabalho: elas formavam uma cadeia contínua. O operário só enxerga o que está a sua frente e deve agir com rapidez, antes que o produto inacabado lhe fuja dos dedos, rumo às mãos do próximo operário. É bastante irônico que exatamente o mais “vagabundo” dos poetas brasileiros, inimigo confesso do trabalho, tenha mimetizado, na construção da forma, o aparvalhamento e a submissão do trabalhador moderno. Murilo atribuía sua “contínua necessidade de expulsão” de poesia a uma suposta “natureza impulsiva e romântica” (Mendes, 1959a, p. 55). Se assim fosse, o poeta não seria mais do que um requintado e incontinente órgão excretor. Mesmo para os autênticos românticos, a “natureza impulsiva” não era mais do que uma metáfora, uma máscara, uma resposta ao crescente cerceamento da experiência e uma tentativa de recuperá-la fora das estruturas sociais, políticas e científicas que incitavam ao comedimento e à padronização. Em Murilo, a “contínua necessidade de expulsão” da matéria poética reproduz, criticamente, a alienação do operário frente ao produto de seu trabalho, cuja imagem emblemática ainda é aquela oferecida por Charles Chaplin em Tempos modernos. João Ribeiro, comentando Poemas à época de seu lançamento, confessou a dificuldade para chegar a um juízo correto sobre o livro. Não obstante, foi preciso quando observou acerca de Murilo: “É um poeta vago e impessoal, o que também pode ser uma qualidade estimável” (Ribeiro, 1931, p. 211). Murilo compreendeu que uma certa insensibilidade é necessária para suportar o sublime moderno. É prova disso um poema que, desde o título, assume a experiência do choque, “O poeta nocaute”:
Represento os desânimos espalhados duma geração
Muita coisa sofro pelos outros
Eu mesmo nem sofro às vezes (Mendes, 1941, p. 242)
Murilo desconstrói a escrita automática surrealista mediante a inversão de um pensamento pascaliano: “Pascal escrevera: ‘Nous sommes automate autant qu’esprit’. Os revisionistas poderiam alterar a fórmula e dizer: ‘Nous sommes esprit autant qu’automate’” (Mendes, 1973, p. 1255). A técnica do poema, como a técnica da produção em série, colabora para criar um “ouvido resistente”, um sensorium capaz de auscultar o choque sem nele se extinguir, um espírito-autômato. Isso só é possível porque o eu que fala no poema não é algo dado de antemão, mas sim um elemento da forma. Não se confunde, sem mediações, com o eu empírico do autor.9 Mas são precisamente essas mediações que interessam: são as passagens de mão dupla pelas quais a história penetra no poema e a experiência transfigurada (revivificada) retorna ao poeta. Murilo abreviou esse sortilégio num verso admirável pelo infinito jogo de espelhos que faz supor: “O poema olha para mim e, fascinado, me compõe” (Mendes, 1947, p. 434). Num desses múltiplos reflexos, o poema deixa de ser apenas a representação de um momento sublime para ser ele mesmo um objeto sublime, encaminhado ao encontro do leitor.
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Mário de Andrade, escrevendo sobre A poesia em pânico, atribuiu a Murilo Mendes uma suposta “despreocupação do artesanato” (Andrade, 1939, p. 20). Assim, sintetizou uma reprimenda que já rondava a obra do poeta e haveria de tornar-se costumeira entre os seus críticos. A queixa desdobra-se por algumas linhas, dentre as quais, por ora, convém ressaltar a observação de que os “elementos da perfeição técnica” e os “encantos da beleza formal” teriam sido “abandonados” (Andrade, 1939, p. 20). Assim, Mário retorna, com maior ênfase, a uma advertência esboçada no ensaio “A poesia em 1930”, quando afirmava que, em Murilo, “as belezas valem tanto como os defeitos, as irregularidades tanto como os valores, numa inflexível desapropriação da Arte em favor da integralidade do ser humano” (Andrade, 1931, p. 42). A esse procedimento, Mário denominou, naquela época, mais entusiástico do que depois, “essencialização poética” (Andrade, 1931, p. 43).
Em que medida – devemos nos perguntar – a “essencialização poética” implica não uma verdadeira e involuntária “despreocupação do artesanato”, mas um proposital, ponderado, abandono das noções de “perfeição técnica” e “beleza formal”? Em termos mais precisos: em que medida a “essencialização” (acolhamos a palavra, ainda que sujeita a equívocos) envolve a elaboração de uma nova técnica do poema e a busca de uma nova beleza? Além disso, devemos indagar se o que se esconde sob a máscara dessa nova beleza não é a velha face do sublime...
Não faltou quem fizesse coro a Mário de Andrade em seus reparos a Murilo. Alvaro Lins, por exemplo, formulou para si mesmo a seguinte questão retórica: “E como o Sr. Murilo Mendes se coloca em face do problema da forma?”. De pronto respondeu, sem ocultar a reprovação: “Por enquanto como alguém que não se preocupa muito com este problema” (Lins, 1942, p. 46). (É certo que, contrariando o autor de Macunaíma, Lins elogiou A poesia em pânico, por Murilo ter atingido, neste livro, uma “forma adequada e precisa de expressão”, e até, algumas vezes, a “unidade orgânica de conteúdo e forma”.10 ) Andrade Muricy, alguns anos antes, parecia bem mais indisposto ao reclamar do “palavreado mole, infindável, absolutamente incolor”. Entretanto, apesar do reproche, demonstrava uma rara percepção da técnica renovada perseguida por Murilo quando, na seqüência, descrevia o seu modo de escrita: “A jeito de improviso, tateante, encontrando a expressão como por acaso, coagulando aqui e além, quando calha, em vivas metáforas breves e em notações realizadas” (Muricy, 1936, p. 124). (O que aqui é chamado de coagulação não é mais do que o contraste abrupto entre pontos de tensão e relaxamento; com efeito, Boris Schnaiderman e Elisabet G. Moreira tentaram explicar a “desigualdade” da obra poética de Murilo como efeito da interpenetração de poesia e prosa (Schnaiderman e Moreira, 1976, p. 438).)
A expressão usada por Mário de Andrade – “despreocupação do artesanato” – permanece insuperada. Wilson Martins retomou o que nela é fundamental, ao assinalar em Murilo a “grande sensibilidade pouco artesanal” (Martins, 1960, p. 31). Bilac – ecoando Gautier, escultor do verso – identificava-se com o ourives. Murilo, de modo algum. De fato, como já vimos, sua poesia troca a continuidade e o envolvimento do trabalho do artesão pela descontinuidade e pela alienação comparáveis à do trabalho do operário. Não que Murilo realmente se identificasse com o operário; na verdade, encontrava seus semelhantes, ou antes seus próximos, entre os pequenos funcionários: nos anos passados no Rio de Janeiro, Murilo foi arquivista, escriturário num banco, escrivão num cartório, inspetor de ensino. O operário surge, para o poeta, como alguém que, embora submetido a um trabalho tão ou mais tedioso que o seu, é levado a exercitar a “contínua necessidade de expulsão” – não de poesia, mas de força corporal. A analogia devia agradar Murilo. Afinal, sua poesia foi sempre uma retórica de força (à medida que foi uma retórica do sublime). Ironicamente, o trabalho mais desapaixonado parece ter-lhe fornecido o modelo para a concentração, depuração e adequada vazão do pathos. Cumprindo um percurso messiânico, a “desintegração da aura na vivência do choque” torna-se, deste modo, o prenúncio de uma futura ressurreição da aura; e a tarefa do poema parece ser apressar esse instante vindouro. “Miragens do século”, de O visionário, registra esta profecia:
As máquinas atiram hélices no espaço
Onde os deuses futuros
Nascem num tropel de raios e de ancas.
O anúncio luminoso guia todos
Para adorarem a filha do operário
Morta esta noite. (Mendes, 1941, p. 224)
Quando Manuel Bandeira assinala, na poesia de Murilo, a “constante incorporação do eterno ao contingente”, está chamando a atenção para os instantes em que o poeta, poética ou retoricamente, tenta adiantar esta ressurreição (Bandeira, 1946, p. 631).
Os mais diversos leitores ressaltaram a descontinuidade da técnica de Murilo Mendes. Como observa João Cabral, sua poesia é “essencialmente descontínua”, composta de imagens lançadas “como de diferentes posições contra o alvo” (Melo Neto, 1959, p. 192). Laís Corrêa de Araújo encontra, em Poesia liberdade, “uma estética tática, de soluções e versões em processo” (Araújo, 1972, p. 55). A observação não é menos apropriada para o restante da obra de Murilo. José Guilherme Merquior enaltece a “natureza estilhaçada e fragmentária do seu verso deliberadamente imelódico e inarmônico”, cujo objetivo seria criar “efeitos de distanciamento”; reverencia a forma dotada de “calculada aspereza”, “angulosidade contundente”, “cortes e repentes” (Merquior, 1978, p. 15-16). Lendo sua poesia, somos confrontados pelo “verso-corisco, todo feito de fragmentos órficos” (Merquior, 1971, p. 194). A forma do poema é conseqüência direta do choque vivido e revivido: “fragmento-estilhaço”, na expressão sintética do crítico (Merquior, 1978, p. 18). (Com acuidade, recordemos, Antonio Candido flagra em Murilo, assim como em Drummond, a “superação do verso” como unidade da poesia (Candido, 1965, p. 122).) Merquior refuta Mário de Andrade frontalmente: “O fragmento, forma mentis do texto muriliano, não é produto de descuido”. O fragmento é o “gesto estilístico” que caracteriza a “energia centrífuga” própria à poesia de Murilo; além do mais, comungaria do “eclipse da obra ‘acabada’” que Breton (lembra Merquior) enxergara na obra do jovem Picasso (Merquior, 1975, p. 145-146).
Reduzindo as últimas proposições de Merquior a seus termos básicos, voltamos mais uma vez ao símile da produção industrial: gesto, energia, obra inacabada. De novo, são termos pertencentes igualmente ao vocabulário do romantismo, e sobretudo do culto do gênio. A indecisão (ou confusão) entre os dois modelos aparentemente antitéticos corresponde à indecisão entre a arte desencantada e a arte ritualística, entre “tempo” e “eternidade” – e, no plano biográfico, mas com fundas ressonâncias nos poemas, entre marxismo e cristianismo (a bem dizer, entre sua versão pessoal do marxismo e sua versão pessoal do cristianismo). Murilo não pode, porém, fugir à história, determinante última da forma quando o poema não é falso; e a primazia do choque sobre a estabilidade, da aventura sobre a ordem, do pânico e da angústia sobre a apatia fornecem a chave do conteúdo de verdade de sua poesia.
A obra-prima é uma meta pertencente ao passado e, de certo modo, hoje irrisória. Murilo, desde seu primeiro livro, estava consciente do compromisso de sua poesia com o momento histórico e das conseqüências que isso acarretava, como demonstra em “Noturno resumido”:
A noite suspende na bruta mão
que trabalhou no circo das idades anteriores
as casas que o pessoal dorme comportadinho
atravessado na cama
comprando no turco a prestações.

A lua e os manifestos de arte moderna
brigam no poema em branco.

[...]

As namoradas não namoram mais
porque nós agora somos civilizados,
andamos no automóvel gostoso pensando no cubismo.

A noite é uma soma de sambas
que eu ando ouvindo há muitos anos.

O tinteiro caindo me suja os dedos
e me aborrece tanto:
não posso escrever a obra-prima
que todos esperam do meu talento. (Mendes, 1930, p. 89)
No tempo dos “manifestos de arte moderna”, no tempo do “cubismo”, a poesia não pode ser igual ao “circo das idades anteriores”. Ela deve atrapalhar o sono do “pessoal que dorme comportadinho” e deve incomodar o próprio artista, consciente da impossibilidade de atingir a velha beleza convencional, representada aqui pela “lua”. A arte moderna é uma “noite” sem lua (por isso, o poema continua “em branco”); contudo, é também “uma soma de sambas” que o poeta vem ouvindo há anos. Com esta ressalva em forma de dístico, Murilo registra a predisposição para a irreverência modernista inerente aos traços primitivistas (basicamente, extáticos e estilizantes) da cultura popular brasileira – noção que, duas décadas depois, Antonio Candido resumiria numa ponderação célebre: “no Brasil as culturas primitivas se misturam à vida cotidiana ou são reminiscências ainda vivas de um passado recente. As terríveis ousadias de um Picasso, um Brancusi, um Max Jacob, um Tristan Tzara, eram, no fundo, mais coerentes com a nossa herança cultural do que com a deles. O hábito em que estávamos do fetichismo negro, dos calungas, dos ex-votos, da poesia folclórica, nos predispunha a aceitar e assimilar processos artísticos que na Europa representavam ruptura profunda com o meio social e as tradições espirituais” (Candido, 1950, p. 121).
No “Murilograma a Leopardi”, Murilo reproduz um verso do poema “Scherzo”, do escritor italiano. Consiste na resposta da Musa ao menino que, visitando a oficina do verso e da prosa, pergunta onde está a ferramenta para aparar as arestas:
Quando escreves
“La lima è consumata; or facciam senza”
Nos tangencias. (Mendes, 1970a, p. 671)
Friedrich Schlegel, contemporâneo de Leopardi, certamente pensava nessa poesia feita sem lima – a poesia dos românticos – quando escreveu o seguinte aforismo: “Muitas obras dos antigos acabaram como fragmentos. Muitas obras dos modernos já nascem assim” (Schlegel, 1798, p. 93). Os fragmentários poemas da loucura de Hölderlin, redigidos na mesma época, oferecem ainda como exceção o que depois seria a regra. Uma combinação peculiar de cegueira e vidência molda as rupturas discursivas de The Waste Land: “These fragments I have shored against my ruins” . Italo Calvino, recordando os romances de Robert Musil e de Carlo Emilio Gadda, discorre sobre a “obra que, no anseio de conter todo o possível, não consegue dar a si mesma uma forma nem desenhar seus contornos, permanecendo inconclusa por vocação constitucional” (Calvino, 1988, p. 132). Se retornássemos a Kant, discerniríamos nessa impossibilidade de finalizar os romances um efeito próximo ao que ele chamou de sublime matemático.11 Porém, ainda segundo os termos kantianos, podemos dizer que, em Murilo, lírico e não romancista, é o sublime dinâmico – o sublime suscitado pela força, e não pela quantidade, do objeto: isto é, pela intensidade do real – que determina o fechamento precário do poema, que é também seu princípio de abertura.12 O poeta parece querer encerrar, na unidade estática e limitada que é o poema, as forças caóticas da vida e da morte, máscara negra da história: “Se não se conseguir a anulação absoluta do objeto, ao menos amputemo-lo para atingir o seu núcleo interior. Quantas esculturas antigas provocam fascínio porque chegaram até nós em pedaços – felizmente” (Mendes, 1960-1970, p. 1319).
“A tarefa atual da arte”, disse Adorno, “é introduzir o caos na ordem” (Adorno, 1951, p. 195). Murilo não discordaria: “Pesquiso a forma no caos” (Mendes, 1954-1955, p. 568). A forma, sem a qual não existe o objeto artístico, é sempre imposição de uma figura ao caos. Se nas obras do passado a figura anulava o caos, nas obras modernas ela deve conservar sua cintilação, prova da origem e promessa do fim, garantia de que há o tempo e, portanto, a história. Respondendo a um questionário sobre sua vida e sua obra, Murilo pede atenção para a sua “grande preocupação com a síntese”. Define-se como um “torturado da forma” (Mendes, 1971, p. 50). Para ele, a forma nasce de um embate incessante e férreo com o assunto e com as palavras, embate do qual o próprio eu que fala no poema – e se confunde com este – sai ferido. De resto, quase sempre, o próprio poema resulta engalanado de cicatrizes. “Toda sutileza de forma”, diz Murilo, “esbarra ante um conhecimento imperfeito da matéria.” (Mendes, 1945, p. 849) Ora, naquilo que chamamos de poesia sublime, o conhecimento é sempre imperfeito: no princípio, compreende-se muito pouco, e, no final, compreende-se mais do que se pode suportar. Objeto e espírito permanecem sempre desproporcionados, porque o que há entre eles nunca foi e nunca será um verdadeiro equilíbrio. A balança ora inclina-se para um, ora para o outro lado. Se o poeta quer permanecer fiel ao ethos agônico e ao pathos sublime – couraças contra a modernidade que lhe permitem viver a modernidade – deve preservar algumas marcas de estranheza – as cicatrizes do choque – mesmo quando a forma parece reconciliada. É o que ocorre nos Sonetos brancos e em Contemplação de Ouro Preto. Murilo dispõe com apuro, no estirado tecido verbal, dobras e quase imperceptíveis cortes. Assim, por exemplo, nos tercetos de “Alegoria”:
Tauromáquica dama, astro de rubro presságio,
Do lúcido ódio não vos invoco, surda máquina
De cortantes graças ataviada, talvez

Do purgatório emissária, para martelar
Nosso coração e fazê-lo, duro tímpano,
Recordar seu antigo e amargo exílio. (Mendes, 1946-1948, p. 443-444)
A forma consagrada do soneto afiança que a ordem – tanto no poema quanto no mundo – é ainda possível. Não obstante, o caos se infiltra por entre as palavras. Os sintagmas imprevistos e, à primeira vista, indecifráveis (“Tauromáquica dama”, “astro de rubro presságio”) ameaçam com a interdição do significado. A sintaxe arrevesada (“Do lúcido ódio não vos invoco”, “do purgatório emissária”) trunca a leitura, obriga a reler. A heterometria, acentuada pela extensão inusual de alguns versos (até 14 sílabas), sobressalta a estrutura aparentemente tersa. Os enjambements, especialmente aquele “talvez” suspenso ao final do primeiro terceto – como se fosse um explorador temeroso diante de um abismo –, denunciam o quanto de silêncio a constrição formal impõe. O verso revela-se insuficiente; o que o poeta tem a dizer não cabe mais em suas dimensões e restrições. O soneto parece prestes a implodir. No entanto, o poeta sabe que o caos só pode figurar no poema como forma – de outro modo, permaneceria indistinto, entrópico, insignificante. Seu trabalho consiste em modelar o caos na forma, assim como a forma no caos: o poema é sempre uma janela do caos. Trata-se de um esforço dialético, e seu objetivo, Murilo razoavelmente denominava “síntese”.
O caos é, para o constante revisionista do Gênesis e do Apocalipse que Murilo foi ao longo de toda sua obra, a imagem da origem e do fim, do ainda não formado e do já desintegrado. Mas é também, sobretudo, o signo da história concebida como catástrofe, signo que atrai e repele o poeta. Pesquisar a forma no caos equivale a pesquisar a forma na história. Em seu elogio do compositor espanhol Tomás Luis de Victoria, Murilo identifica o “eco elaborado” da realidade no “centro essencial da forma” (Mendes, 1959b, p. 595). Não diverge de Adorno, guia seguro no exame das relações entre forma e história, para quem a forma é “conteúdo sedimentado” (Adorno, 1970, p. 166). Na poesia de Murilo, a forma registra, acima de tudo, a consciência do tempo: a consciência de que o homem é um ser temporal, histórico, e de que a época em que vive, a modernidade, é a primeira a transformar a historicidade em valor. Em Constantin Guys, peintre de la vie moderne, Baudelaire exaltava a apreensão da “beleza passageira e fugaz da vida presente” (Baudelaire, 1863, p. 212). Como notava o poeta desdobrado em crítico, “há na vida ordinária, na metamorfose incessante das coisas exteriores, um movimento rápido que exige do artista idêntica velocidade de execução” (Baudelaire, 1863, p. 163). Guys, para Baudelaire, corresponde a esse ideal de celeridade do traço: na sua técnica, misturam-se “um esforço de memória ressurrecionista, evocadora, uma memória que diz a cada coisa: ‘Lázaro, levanta-te’” e “um fogo, uma embriaguez de lápis, de pincel, que se assemelha quase a um furor”. O diagnóstico é correto: “É o medo de não agir com suficiente rapidez, de deixar o fantasma escapar antes que sua síntese tenha sido extraída e captada” (Baudelaire, 1863, p. 180). O resultado, admitia Baudelaire, pode parecer a muitos um esboço, mas será um “esboço perfeito” (Baudelaire, 1863, p. 181).
Independentemente de a argumentação de Baudelaire se aplicar de fato à pintura de Constantin Guys, serve, porém, à perfeição para descrever a técnica de Murilo Mendes. Talvez este a tenha decalcado da maneira como trabalhava Ismael Nery. Há alguma afinidade entre a caracterização de Guys por Baudelaire e aquela que Murilo nos dá de seu amigo como artista plástico: “Pintava rapidamente e apagava logo; debaixo dos quadros que deixou existem outros, pois quando não apagava, pintava por cima. Tantas idéias e sugestões lhe vinham à cabeça que não tinha paciência para pousar a mão num trabalho lento: o intelectual sufocou o artesão” (Mendes, 1948, p. 29). É certo, porém, que Murilo não escrevia ao ritmo dos acontecimentos, da “metamorfose incessante” da realidade no mundo moderno. Ele também não buscou simplesmente transpor esse ritmo para seus poemas. Sua estratégia retórico-formal é mais complexa. Não se trata de uma questão de mímese, mas de responsabilidade: capacidade de resposta, e também, etimologicamente, capacidade de defesa. Murilo inscreve, em seus poemas, o sentido de urgência que lhe é despertado pelo momento histórico. Para ele, cada verso funciona como o ponteiro de um relógio a indicar que a hora enfim chegou. Não é o tempo, porém, que move esse relógio. É o pathos, tal como ele eclode numa situação de perigo.
Como observa Michael Hamburger, a poesia lírica “sempre esteve menos preocupada com o tempo contínuo, histórico ou épico, com chronos, do que com kairós e o que Joyce chamava de epifanias, momentos em que a experiência ou a visão se concentram e cristalizam” (Hamburger, 1969, p. 86). Por isso, sustenta o crítico, depende mais da “unidade da experiência interior” do que da sucessão de fatos necessária à narrativa, seja em prosa ou verso. O que chamamos de sentido de urgência não é mais do que uma sensibilidade hiperaguçada em relação ao kairós, conceito fundamental tanto no Peri hypsous de Longino quanto na Teoria estética de Adorno, e que, ademais, Jean-François Lyotard evoca, a partir do grego bíblico de São Paulo e da Septuaginta, para elucidar o sublime kantiano (cf. Longino, p. 44; Adorno, 1970, p. 43; Lyotard, 1991, p. 128). Kairós pode ser traduzido como “ocasião”, “tempo propício” ou “momento crítico”.13 Murilo grava o kairós na forma. Espera, desse modo, acordar o pathos sublime do leitor. Está consciente dos efeitos a aguardar e das operações exigidas para suscitá-los: “Empreguei freqüentemente a forma elíptica, visto ser uma tendência acentuada da poesia moderna; de resto não cria uma ruptura entre o poeta e o leitor, antes obriga este a uma disciplina mental, ensinando-lhe a ler nos intervalos, a encobrir analogias e paralelismos” (Mendes, 1959a, p. 55). Edgar Allan Poe formulou uma das cláusulas pétreas da poética moderna ao condicionar o “efeito” do poema sobre o leitor à “unidade de impressão” (Poe, 1846, p. 261). Os poemas devem ser suficientemente breves para ser lidos de uma só vez. Frisa Poe:
O valor do poema é proporcional a esta excitação sublime [elevating excitement]. Porém, todas as excitações são, por uma necessidade psíquica, efêmeras. Aquele grau de excitação que autorizaria que um poema fosse assim chamado não pode ser mantido ao longo de uma composição de grande extensão. Depois de um intervalo de no máximo meia hora, enfraquece [it flags] e se esgota [fails] – uma reviravolta se produz [a revulsion ensues] – e, então, o poema deixa de ser tal em seus efeitos e em sua realidade [in effect, and in fact]. (Poe, 1850, p. vii)
Para Murilo, não se trata de um problema de extensão, mas de aceleração do tempo da leitura. No mesmo texto em que aponta a “despreocupação do artesanato” característica de Murilo, Mário de Andrade anota sobre A poesia em pânico: “Quem ler ou disser lentamente qualquer poesia do livro, lhe destruirá totalmente o caráter. Às vezes há mesmo uma velocidade vertiginosa de palavras e frases. E estas não morrem, não expiram: acabam de repente”. Mário, irrepreensivelmente, atribui a rapidez à “densidade do diapasão apaixonado” (Andrade, 1939, p. 20). Paixão, aqui, traduz pathos. Com razão, alerta Emil Staiger: “O pathos não se derrama em nosso íntimo; tem muitas vezes que nos ser gravado à força” (Staiger, 1969, p. 122).
*
A dialética entre caos e forma, entre “as colunas da ordem e da desordem” (Mendes, 1930, p. 98), que comporta sempre ambivalência, sem preponderância final de um dos pólos, apresenta-se também como dialética entre desintegração da aura e nostalgia pela aura perdida. Pode parecer estranho que o mesmo poeta, Baudelaire ou Murilo, expresse a alegria da dissolução do substrato religioso da obra de arte e a saudade de uma arte ritualística, capaz de congregar homens e deuses em torno de si. Porém, como argumenta Georges Didi-Huberman, não há contradição entre a crítica da aura e a simultânea nostalgia. Para se superar esse dilema, segundo o filósofo, teremos de considerar, na esteira de Benjamin, a aura como uma “instância dialética” (Didi-Huberman, 1992, p. 154). É preciso, antes de mais nada, secularizar a própria noção de aura. A aura (ou “aparição”), como nota Didi-Huberman, é, já de início, “um conceito da imanência visual e fantasmática dos fenômenos ou dos objetos, não um signo enviado desde sua fictícia região de transcendência” (Didi-Huberman, 1992, p. 157-158). Aura, em grego e em latim, “designa apenas uma exalação sensível – portanto, material, antes de se destacar seu sentido ‘psíquico’ ou ‘espiritual’” (Didi-Huberman, 1992, p. 166). E Didi-Huberman é bem claro ao definir o que está pensando ao sustentar a secularização: a aura, “re-simbolizada”, dá origem a uma “nova dimensão do sublime” (Didi-Huberman, 1992, p. 159).
Todo o ímpeto de restauração da aura, presente em Murilo do início ao fim de sua obra, concomitantemente à sua desabrida desintegração na “vivência do choque” (para falarmos outra vez como Benjamin), está vinculado à exploração do sublime moderno. É claro que o palavreado cristão que permeia toda sua poesia pode complicar um pouco a aceitação do fundamento secular da aura. No entanto, não é difícil verificar como a própria apologia da aura, ao usar extravagantemente os elementos da religião tradicional, pouco a pouco minou sua ordem consolidada.
Foi talvez Heidegger, desembaraçado da dialética materialista que inibia Benjamin tanto quando ainda nos inibe, quem melhor compreendeu a urgência da ressacralização da poesia na modernidade. Ele recorre aos versos de Hölderlin para dizer: “Ser poeta em tempos de penúria significa: cantando, prestar atenção ao rastro dos deuses fugidos [die Spur der entflohenen Götter]”. Como frisa Heidegger, esse rastro é o “éter”, o “único elemento em que os deuses são deuses”. Não podemos esperar que os “deuses” regressem se antes não preparamos uma morada para acolhê-los, se ainda não brilha “um esplendor de divindade” (ein Glanz von Gottheit) em tudo que nos rodeia (Heidegger, 1946, p. 270 e 272). Murilo consentiria com essa ressalva, como podemos depreender da declaração, em O sinal de Deus (“livro [...] publicado em 1936 numa edição do autor e imediatamente retirado do comércio” (Picchio, 1994, p. 1686)), de que seu “ofício” consiste em “sacralizar todas as coisas” (Mendes, 1936, p. 761). Nesse mesmo texto, fica claro o vínculo entre a recuperação da aura e a redenção do sofrimento: “Convidemos os pobres, os famintos, os estropiados, os sem-trabalho, os miseráveis. E seremos todos um” (Mendes, 1936, p. 761). Como Murilo diz de Sócrates, ele próprio, em sua poesia, “Força os deuses à dialética do real” (Mendes, 1973, p. 1197). É só frente a um mundo de relações degradadas, em que o poder político parece ter entre seus objetivos a mecanização e o descarte do humano, que o poeta sente a urgência de reafirmar, segundo a expressão tomada de empréstimo a Ismael Nery, “a vocação transcendente do homem” (Nery apud Mendes, 1948, p. 144).14 Essa vocação só surge, paradoxalmente, à medida que o poeta percebe, como diz em Ipotesi, que “L’uomo è un’esperienza che Iddio ha abbandonato” (Mendes, 1968, p. 1548).15 De resto, é o sentimento desse abandono que nos libera para a “vivência do choque”, sem a qual, e o paradoxo aqui não é menor, a aura não pode ser restaurada. Como bem aponta Murilo, ao rememorar que o templo dedicado pelos romanos a Diana, na cidade portuguesa de Évora, foi durante muitos anos um matadouro, “o ato de dessacralizar vem de tempos remotos; sabemos que a sacralidade sempre foi reversível” (Mendes, 1970b, p. 1382).
É precisamente essa reversibilidade da sacralização que ele assenta no cerne de sua poesia. Dessa forma, ela como que refaz o percurso de toda a poesia moderna e se dirige ao futuro. Na introdução de suas considerações sobre Wordsworth, em O cânone ocidental, Harold Bloom reedita a concepção cíclica da história de Giambattista Vico, profetizando a iminência de uma nova era teocrática posterior ao intervalo caótico em vigor: “[...] presumo que a poesia irá abandonar igualmente a idolatria aristocrática e a memória democrática, e voltar a uma função devocional mais restrita, embora eu me pergunte se o objeto de devoção continuará sendo chamado de Deus” (Bloom, 1994, p. 232). Murilo Mendes concordaria com Bloom. Numa entrevista, no início da década de 70, cogitou ser “possível que nós estejamos entrando numa época profundamente religiosa, que não se conhece”. E esclareceu: “não é uma aderência a uma determinada religião, é uma ânsia de superar os limites humanos” (Ribeiro, 1972, p. 4).16 Alguns anos antes, arriscara uma previsão semelhante, ao supor que “se voltará a acentuar o caráter ‘cósmico’ da poesia” (Mendes, 1959a, p. 54). O ideal dessa futura poesia cósmica é a congregação do “caráter místico” e do caráter “social” (Senna, 1945, p. 254).
Trata-se, portanto, de restaurar a dimensão ritual da arte, mas consciente de que sobre o altar há uma ausência, e não uma presença. A única presença é a da “coisa” sacralizada, seja o poema ou os objetos do mundo aos quais ele se refere; na sua presença morta, ou antes espectral, vige não a fé no regresso dos deuses, mas a esperança na reumanização do homem. Somente à medida que testemunhe sobre o sofrimento do homem, sua anulação na sociedade atual, a poesia atualiza a aura. A teologia negativa é a figuração que, em Murilo, melhor exprime esse sofrimento. Em O infinito íntimo, o poeta fala-nos de um “Deus escondido”, de um “Deus oculto” (Mendes, 1948-1953, p. 784). Isto ainda é pouco. Em “Janela do caos”, escreve: “Só vemos o céu pelo avesso” (Mendes, 1947, p. 437). No “Murilograma ao Criador”, chega à síntese definitiva: exibe em seu corpo, gravado, o timbre do “céu às avessas” (Mendes, 1970a, p. 661). O embate com a transcendência encontra uma apóstrofe invulgar na “Cantiga escura”:
Ó céu de pedra!
?Quem até hoje foi ouvido
Por ti, céu feroz. (Mendes, 1947, p. 416)
A ligação entre a teologia negativa e a retórica do sublime – que é também retórica da catástrofe – fica evidente no “Poema deslocado”:
Perdi-me no labirinto
Para melhor me encontrar.
Os destroços do céu
Desabam sobre mim
                    tremor de pensamento. (Mendes, 1942a, p. 386)
Resenhando Tempo e eternidade, Lúcia Miguel Pereira observou, com acerto, que, enquanto Jorge de Lima louva a piedade e a misericórdia de Deus, Murilo louva a grandeza e a majestade (Pereira, 1935, p. 134). Essa propensão certamente tem a ver com aquela necessidade de “desconforto” que Murilo, conforme admite no poema “Confidência”, buscava na religião (Mendes, 1938-1941, p. 366). Santiago Kovadloff ressalta que Deus aparece para o poeta não como uma certeza indiscutível, mas como “uma necessidade sensual e polêmica” (Kovadloff, 1989, p. 59). (José Paulo Paes, não compreendendo essa necessidade, reprova-lhe o “catolicismo de grand guignol” (Paes, 1961, p. 96).17) Murilo atribui a Deus, em Tempo e eternidade, o que só o sublime verdadeiramente pode lhe dar: “Dilata poderosamente minha alma” (Mendes, 1935b, p. 251). E a Igreja Católica é descrita como “portadora do sentido da catástrofe e, ao mesmo tempo, do sentido da preparação de novas medidas, de novos elementos, de novas alianças” (Mendes, 1948, p. 151).
Conforme os anos passaram, depois do momento mais convencionalmente devocional de Tempo e eternidade, indícios de dúvida começaram a despontar na poesia de Murilo. Em Mundo enigma, Deus é cognominado, algo derrisoriamente, “manequim do absoluto” (Mendes, 1942a, p. 387), No poema “1941”, de Poesia liberdade, sobre a II Guerra Mundial, Murilo reconhece pela primeira vez: “Nunca mais voltará a fé aos nossos corações” (Mendes, 1938-1941, p. 349). É curioso o procedimento adotado na segunda edição de Os quatro elementos, quando, no poema “A Virgem de Lourdes”, envolvem-se com aspas as palavras “implacável”, “infinita” e “absoluto”:
Quem me dera estar em Lourdes
Quando a Virgem desapareceu.
A “implacável” consciência do abandono
A solidão “infinita”
O desespero “absoluto”
E a saudade d’Ela me salvariam para sempre. (Mendes, 1935a, p. 266)
Murilo anotou em seu exemplar do livro: “Conservar as aspas intencionalmente críticas” (Mendes apud Picchio, 1994, p. 1631).
Examinando a poesia de Murilo, Sérgio Milliet especulou: “Deus pode ser a miragem do próprio eu” (Milliet, 1945, p. 266). O soneto “O espelho” corrobora essa suposição:
O céu investe contra o outro céu.
É terrível pensar que a morte está
Não apenas no fim, mas no princípio
Dos elementos vivos da criação.

Um plano superpõe-se a outro plano.
O mundo se balança entre dois olhos,
Ondas de terror que vão e voltam,
Luz amarga filtrando destes cílios.

Mas quem me vê? Eu mesmo me verei?
Correspondo a um arquétipo ideal.
Signo de futura realidade sou.

A manopla levanta-se pesada,
Atacando a armadura inviolável:
Partiu-se o vidro, incendiou-se o céu. (Mendes, 1946-1948, p. 443)
O centro gravitacional do poema encontra-se no primeiro terceto, sobretudo em seu primeiro verso. “Mas quem me vê? Eu mesmo me verei?”: se o olho de Deus não está mais lá para nos vigiar, porque o expulsamos ou ele nos abandonou, finalmente seremos obrigados a olhar para nós mesmos. A inexistência da aura talvez só vigore realmente no ínfimo instante – na escala da história universal, um, dois ou mesmo três séculos podem ser pouco mais que um átimo – em que o olhar divino se fecha e o olhar humano ainda não se descerrou totalmente. A aura restaurada será talvez constituída por aquele vento que sopra do cemitério, o “útil vento humano / Que recorda os vivos / – Os vivos sem metafísica nem refúgios” (Mendes, 1947, p. 421).
Se a aura “re-simbolizada” – “nova dimensão do sublime”, para além do sublime – continuar demandando distância, ela não mais será uma distância opressiva, como aquela exigida por uma catedral ou por uma estátua de Michelangelo, mas uma distância defensiva (embora mesmo a idéia de defesa seja, aqui, por demais agressiva). É Jorge Andrade quem conta o episódio: quando estava entrevistando Murilo no Museo Nazionale Romano, este se deteve por um momento a admirar uma estátua semi-destruída. O poeta então lhe disse: “Se tivesse cabeça ou braços, não teria, talvez, o mesmo mistério que o tempo conferiu” (Andrade, 1972, p. 85). Prosseguindo a conversa, Murilo saiu-se com uma interrogação bem ao seu gosto dramático, e que resume o quanto de vida e sofrimento estão implicadas na aura restaurada: “Sabe que as estátuas sofrem quando são tocadas?” (Andrade, 1972, p. 85).18
Essa aura seguramente não assoma nos poemas ostensivamente sublimes de Murilo, naqueles poemas em que o desconcerto com a era moderna tomou a forma da dramatização de um cancelamento traumático das forças vitais seguido de uma não menos intensa recuperação dessas mesmas forças. Esses poemas, que constituem a parcela mais representativa da obra de Murilo, tanto em quantidade quanto em personalidade (o homem Murilo está decalcado em tais textos), provavelmente não serão lidos no futuro com a mesma deferência e prazer com que leremos, digamos, Drummond ou João Cabral. Nós, que estamos já no futuro em relação a Murilo, hesitamos em lê-lo como um “clássico”, e é quase certo que essa situação não mude. Contudo, isso não se deve a um “defeito” da poesia de Murilo, mas, talvez, ironicamente, à sua virtude mais singular: sua estranheza essencial, que a vincula com tanta intensidade às tensões de seu próprio tempo e estabelece uma barreira com a qual todo leitor terá de se defrontar se quiser percorrê-la. Esse bloqueio é a senha do sublime para o leitor. Mas até quando? Jorge Luis Borges, ao término de uma reflexão sobre os irônicos caprichos da imortalidade literária, constatou que “a literatura é uma arte que sabe profetizar aquele tempo em que terá emudecido, e enfurecer-se com a própria virtude e enamorar-se da própria dissolução e cortejar seu fim” (Borges, 1930, p. 205). Murilo soube encarnar esse furor como poucos, sobretudo entre os escritores brasileiros. À figura precária do homem que emerge da experiência da vida moderna, Murilo respondeu com uma poesia cuja força está exatamente no domínio da forma precária. Seus poemas talvez não tenham um objetivo mais elevado do que se somar às ruínas do século XX.
Todavia, talvez resista ao tempo, em Murilo, o sublime sem ênfase, sublimação concluída em que a imagem da catástrofe só se imprime em marca d’água. Como em “Algo”, de Poesia liberdade:
O que raras vezes a forma
Revela.
O que, sem evidência, vive.
O que a violeta sonha.
O que o cristal contém
Na sua primeira infância. (Mendes, 1947, p. 428)
Ou “Iniciação”, de Parábola:
Constrói-se a linha sem ajuda.
Vive de sua lágrima o cristal,
A asa do anjo não se traduz
Em plástica,
E o som ignora o eco.

O espírito no escuro se levanta
Sem flecha e oriente certo.
Vazio de pássaros não se vela o céu,
E, sem mover-se, a pura chama arde. (Mendes, 1946-1952, p. 550)
Tais poemas rogam aos seus leitores o mesmo tipo de distância reclamada pelas estátuas do museu romano. Que nossas mãos impudentes passem ao largo. Há um fosso de silêncio em torno de cada uma de suas palavras, e talvez não devamos transpô-lo, ou profaná-lo. Nessa poesia, o fosso mesmo converte-se numa espécie de templo. Porém, não estamos mais diante dos “sovrumani silenzi” de Leopardi (1819, p. 219); estes são silêncios demasiadamente humanos, aspirando a uma inumanidade dialeticamente redentora. Murilo parece acreditar, com Paul Celan, que “ainda / há canções a cantar além dos / homens” ( “es sind / noch Lieder zu singen jenseits / der Menschen” ) (Celan, 1963, p. 64).
Há uma estrofe, tão delicada quanto os poemas citados, quiçá mais dolorida, que sintetiza, pelo que nela se diz e pela forma como se diz, a alta exigência dessa música inumana, seu enlace singular de sofrimento e sobrevivência, de catástrofe e salvação. São somente três versos, construídos com palavras correntias, mas talvez guardem a chave secreta da poesia de Murilo:
Buquê da noite,
Ninguém te respira
Com inocência. (Mendes, 1947, p. 416)

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1 Professor convidado do curso de pós-graduação em História da Arte da FAAP. Atualmente, pós-doutorando em Literatura Brasileira na USP, com bolsa da FAPESP. O presente artigo resulta de pesquisa conduzida anteriormente junto à PUCRS, com bolsa do CNPq, e foi revisto no âmbito do projeto apoiado pela FAPESP.
2 Quem melhor resumiu essa atitude dialética frente às ruínas da história – que está longe de ser exclusiva de Murilo Mendes, mas, antes, se encontra, reelaborada segundo a singularidade da obra de cada um, na maioria dos artistas modernos, pelo menos desde Baudelaire – foi Walter Benjamin, em sua célebre leitura alegórica do Angelus Novus de Paul Klee, na nona tese “Sobre o conceito de história” (Benjamin, 1940, p. 87).
3 “Desde muitos anos insisto em que a poesia é uma chave do conhecimento, como a ciência, a arte ou a religião”, frisou Murilo Mendes em depoimento de fins da década de 50, “A poesia e o nosso tempo” (Mendes, 1959a, p. 56).
4 Como se sabe, os temas do primitivismo e do desvario da metrópole foram centrais na obra de um dos patriarcas do modernismo brasileiro, Mário de Andrade, culminando na figura de Macunaíma (cf. Andrade, 1928). Mas, antes, cf. Andrade, 1922, especialmente o “Prefácio interessantíssimo” (p. 59-77), que pode ser lido também, em alguma medida, como uma reflexão modernista sobre o sublime, caracterização de um ambiente estético no qual os sujeitos aparecem como “primitivos duma era nova” (p. 74): “Com o vário alaúde que construí, me parto por essa selva selvagem da cidade. Como o homem primitivo cantarei a princípio só. Mas canto é agente simpático: faz renascer na alma dum outro predisposto ou apenas sinceramente curioso e livre o mesmo estado lírico provocado em nós por alegrias, sofrimentos, ideais” (p. 75-76).
5 Segundo Murilo, André Breton provocava-lhe “atração e repulsa” (Mendes, 1973, p. 1239). Em texto sobre o pintor Giulio Turcato, vincula a obra deste à “força de atração ou repulsão das ídolas passantes” – referência inequívoca ao poema de Baudelaire (Mendes, 1960-1970, p. 1354). Recordando Vila do Conde, em Portugal, confessa: “Creio que os pescadores arrastam-se entre dois pólos – o de atração e repulsa pelo mar. De resto, eu também” (Mendes, 1970, p. 1378). Vergando o português sob o influxo do italiano, define a sibila como “personagem futurível que sempre [lhe] despertou terror e fáscino” (Mendes, 1970, p. 1422). Comenta que os escritores portugueses, quando falam sobre Lisboa, misturam “admiração e repulsa” (Mendes, 1970b, p. 1409). Constata que Giorgio Manganelli cotejava e cortejava as “infra-estruturas”, “num duplo movimento de atração e repulsa” (Mendes, 1973, p. 1293). Detecta em Bernanos “attraction et répulsion simultanées” quanto à figura do padre (Mendes, 1961, p. 1572).
6 Em tradução literal: “A mulher grávida me dá medo: / esconde um motociclista / que depois de ter bebido / o meu copo de vinho comido o meu pão / súbito investirá contra mim”.
7 Benjamin reutilizou esta passagem em outro célebre ensaio, publicado três anos mais tarde, “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” (1936, p. 198).
8 Um bom comentário sobre os conceitos de experiência e vivência encontra-se em Jeanne Marie Gagnebin (1994b, p. 7-19; 1994a, pp. 63-82).
9 Sérgio Milliet, em sua leitura de Mundo enigma, chama a atenção para o engano crítico que consistiria em procurar na personalidade de Murilo o sentido de seus poemas e conclui: “Pois quando houvesse tudo revelado ainda estaria tudo por desvendar” (Milliet, 1945, p. 267). Hugo Friedrich atribui a Baudelaire o pioneirismo na “despersonalização” da lírica moderna: em sua obra, “a palavra lírica já não nasce da unidade de poesia e pessoa empírica” (Friedrich, 1956, p. 36). Observa, porém, em Rimbaud, a separação mais impressionante entre sujeito poético (“eu artificial”) e sujeito empírico: “O eu de Rimbaud – em sua multiplicidade dissonante de vozes – é o produto [de uma] autotransformação operante [...] e, portanto, daquele mesmo estilo imaginativo do qual nascem também os conteúdos de suas poesias” (Friedrich, 1956, p. 69). Michael Hamburger é taxativo quando afirma que “a primeira pessoa num poema lírico jamais deveria ser identificada [...] ao eu empírico do poeta”. Os versos líricos dos poetas modernos devem ser lidos com a mesma espécie de correções que fazemos ao ler poesia dramática: “Quer fundamentalmente confessional quer fundamentalmente dramática, a primeira pessoa na poesia lírica serve para transmitir um gesto, não para documentar a identidade nem estabelecer fatos biográficos” (Hamburger, 1969, p. 115). Jakobson, pensando a questão do ponto de vista da lingüística, assinala que a função poética não torna ambígua apenas a referência, mas também o autor e mesmo o leitor: “Além do autor e do leitor, existe o ‘Eu’ do herói lírico ou do narrador fictício e o ‘tu’ ou ‘vós’ do suposto destinatário dos monólogos dramáticos, das súplicas, das epístolas” (Jakobson, 1960, p. 150). Contudo, uma das proposições mais audaciosas e desconcertantes sobre este tema parece ser a de Hans-Georg Gadamer, que, comentando um poema de Paul Celan, chega à seguinte conclusão: “Nunca se pode dizer com certeza em Celan – e no fundo tampouco em qualquer outro real poeta lírico – quem se tem em vista quando o poema diz ‘eu’. Trata-se de um poema justamente porque o poeta não visa meramente a si mesmo. Eu enquanto leitor não estou de modo algum em condições de me diferenciar dele enquanto falante. É um poema porque todos somos esse eu” (Gadamer, 1990, p. 406. Tradução modificada, sobretudo pelo acréscimo da última frase, que é decisiva e que falta no texto traduzido).
10 Segundo Lins, apenas em A poesia em pânico (“o momento mais alto da [sua] existência poética”) Murilo teria conseguido alcançar “uma forma adequada e precisa de expressão”; mas logo o crítico acrescenta que esse “resultado” provavelmente se deve ao que ele chama de “um milagre”, na medida em que “uma forma tanto pode ser obtida laboriosamente como espontaneamente”: “Tenho a impressão de que a forma de A poesia em pânico britou já com a sua própria poesia. [...] Não se preocupando com o problema da forma, o Sr. Murilo Mendes está vivendo quase sempre no domínio exclusivo da poesia em si mesma” (Lins, 1942, p. 47).
11 O sublime matemático tem ocasião quando o espírito se encontra diante de uma grandeza absolutamente desproporcionada em relação às faculdades sensíveis e, deixando a imaginação à deriva depois de um instante inicial de atordoamento, lança-se rumo ao infinito. Kant oferece uma explicação elegante para essa cena. Distingue entre duas atividades inerentes à imaginação: a apreensão (Auffassung, ou apprehensio) e a compreensão (Zusammenfassung, ou comprehensio aesthetica). A apreensão é potencialmente infinita. Por maior ou mais numeroso que seja um objeto, a intuição sensível (responsável pela apreensão) é capaz de percorrê-lo por inteiro, desmontá-lo em fragmentos menores e trazê-lo para os domínios do espírito. A compreensão, no entanto, torna-se tão mais difícil quanto mais longe vá a apreensão. O sublime surge quando a compreensão atinge “o seu máximo, a saber, a medida fundamental esteticamente-máxima da avaliação das grandezas” (Kant, 1790, p. 97). Há algo de jogo infantil no perde-ganha característico desse momento: a apreensão chega tão longe que as primeiras “representações parciais” fornecidas pela intuição começam já a apagar-se da imaginação, exigindo, portanto, que o espírito retroceda para retomar o que perdeu – o que, mais uma vez, deixa a descoberto o que ele possuía antes desse retorno ao passado. (Vemos, aqui, o quanto o sublime está vinculado com a memória, e sobretudo com uma memória imperfeita, deformadora, transfiguradora.) É então que a imaginação vê despontar uma faculdade supra-sensível, a qual, substituindo a compreensão humilhada, apresenta para o espírito, a partir dos dados oferecidos pela intuição, uma idéia de infinitude. Envaidecido com a capacidade de superar as próprias limitações, o espírito sente-se invadir pelo sublime. Este é, portanto, “um prazer que só é possível mediante um desprazer” (Kant, 1790, p. 106). Murilo Mendes cifrou em duas sentenças os princípios de sua versão moderna do sublime matemático: “O espírito mede o universo” e “Quem não encontrar poesia no infinitamente pequeno jamais a encontrará no infinitamente grande” (Mendes, 1945, p. 887 e 857).
12 Nesta segunda modalidade de sublime, a incapacidade de resistir a uma força da natureza faz o homem, considerando-se como ser natural, reconhecer a própria impotência física. Simultaneamente, porém, ele descobre em si uma faculdade que o permite julgar-se independente da natureza e superior a esta, na qual se funda uma independência ainda mais intensa, que não pode mais ser ameaçada pela natureza – uma independência na qual “a humanidade em nossa pessoa não fica rebaixada, mesmo que o homem tivesse que sucumbir àquela força” (Kant, 1790, p. 108). Sendo assim, a natureza não é julgada sublime somente porque provoca temor, mas porque, ao provocá-lo, excita nossa própria força oposta à dela. Podemos citar um parágrafo especialmente ilustrativo da concepção de Kant: “Rochedos audazes sobressaindo-se por assim dizer ameaçadores, nuvens carregadas acumulando-se no céu, avançando com relâmpagos e estampidos, vulcões em sua inteira força destruidora, furacões com a devastação deixada para trás, o ilimitado oceano revolto, uma alta queda-d’água de um rio poderoso etc. tornam a nossa capacidade de resistência de uma pequenez insignificante em comparação com o seu poder. Mas o seu espetáculo só se torna tanto mais atraente quanto mais terrível ele é, contanto que, somente, nos encontremos em segurança; e de bom grado denominamos estes objetos sublimes, porque eles elevam a fortaleza da alma acima de seu nível médio e permitem descobrir em nós uma faculdade de resistência de espécie totalmente diversa, a qual nos encoraja a medir-nos com a aparente onipotência da natureza” (Kant, 1790, p. 107). Kant insiste em localizar o estímulo para o sublime, e principalmente para o sublime dinâmico, somente na natureza. Essa teimosia está relacionada, ao menos em parte, com o crescente domínio científico sobre o mundo natural em sua época. Porém, no século seguinte, a “Natureza reinterpretada” – para falarmos nos termos de Angus Fletcher (1995, p. 242) – cedeu lugar à natureza subjugada pela industrialização, da qual toda grandeza foi roubada. E a “Mente reinterpretada” do Iluminismo foi substituída por versões menos estáveis, de que a descrição da vida psíquica por Freud é talvez o apogeu. É perante as ruínas da natureza e do espírito que, mais uma vez, o sublime reafirma sua validez como categoria propícia à expressão artística das catástrofes históricas. Porém, agora, o poeta só o alcança através de um tremendo esforço da imaginação, em que, antes de tudo, deve repovoar o mundo com seus próprios deuses e demônios, convertendo os objetos e situações mais enraizados na história em figurações de uma transcendência que ele sabe ser falsa. Quanto mais explícita for essa falsidade, mais a verdade histórica há de se cristalizar no poema.
13 Convém citar um trecho da introdução de Jackie Pigeaud ao Peri hypsous: o kairós “é um aspecto do tempo; o kairós está ligado à natureza das coisas, à urgência, por exemplo na medicina, a estratégia; ela supõe a experiência, o olho clínico, a habilidade do prático. É a urgência reconhecida da necessidade na ação; é o momento de agir e a apreensão do momento” (Pigeaud, 1996, p. 14). Mais além, diz: “De maneira ideal, o encontro entre a natureza e o trabalho, a violência e a figura, encontra-se no tempo, ou antes no instante, aquele da necessidade, da urgência, do kairós tão freqüentemente evocado” (Pigeaud, 1996, p. 38). Olgária Matos, em sua introdução à edição brasileira de Passagem de Walter Benjamin, de Pierre Missac, assinala a presença da idéia de kairós nas teses “Sobre o conceito de história” de Benjamin: “Kairós é a denominação de uma temporalidade capaz de captar o momento oportuno do engajamento em uma determinada ação: entre o ‘ainda não’ e o ‘nunca mais’ há ‘dialética’, dialética entre nostalgia e esperança. Inteligência ‘prática’, o kairós caracteriza-se pela engenhosidade, astúcia e rapidez do golpe de vista” (Matos, 1998, p. 11).
14 O próprio Murilo usa a expressão na p. 36 do mesmo livro. (Cf. Mendes, 1945, p. 871: “Através dos séculos o poeta é encarregado, não só de revelar aos outros, mas de viver praticamente no seu espírito e no seu sangue, a vocação transcendente do homem”. Também usa a expressão num texto sobre Invenção de Orfeu: Mendes, 1952, p. 421).
15 Em tradução literal: “O homem é uma experiência que Deus abandonou”.
16 Grifo meu.
17 Segundo o crítico, em Contemplação de Ouro Preto, Murilo dá adeus ao “pânico” que predominara em sua obra anterior e despede-se das características de sua personalidade que o nutriam – “o egocentrismo, a irreverência, a gratuidade” (Paes, 1961, p. 96). José Paulo Paes revisaria sua avaliação negativa das primeiras obras de Murilo Mendes, a ponto de afirmar que “o Murilo essencial” não está na poesia das últimas obras, como Convergência, mas, ao contrário do que pensam alguns críticos (entre os quais, esquece de dizer, ele mesmo), nos livros que vão de Poemas (1925-1929) a Sonetos brancos. (Cf. Paes, 1997, p. 170.)
18 Também Manuel Bandeira, contemplando uma estátua que sobreviveu ferida à destruição (mas não uma estátua romana, e sim uma “estatuazinha de gesso”, “gessozinho comercial”), chegou à conclusão de que “só é verdadeiramente vivo o que já sofreu” (Bandeira, 1924, pp. 193-194).
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