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Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 8 

JOSÉ CARDOSO PIRES E AS MÚLTIPLAS VOZES DE UMA BALADA DISSONANTE DE SILÊNCIOS1

Inara de Oliveira Rodrigues2


José Cardoso Pires (1925/1998), inscreve-se na literatura portuguesa contemporânea marcada pelos desdobramentos da Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974, mas não há dificuldades em reconhecer suas origens literárias no movimento neo-realista português. Para Eduardo Lourenço, "José Cardoso Pires que nunca teorizou, mesmo através da ficção, a sua visão de mundo, partilhou, no essencial, dos mesmos valores, do mesmo sentimento e das mesmas esperanças que a primeira geração neo-realista. Mas repercuti-os com outro tom e, o que mais importa, com outro estilo".3
Muito visível é o quanto o autor de O Delfim pontuou suas obras, de forma crítica e auto-reflexiva, pelo questionamento dos problemas de seu tempo e sociedade, numa dimensão que se estende à problematização de todo fazer literário enquanto possibilidade de ruptura e transformação - e, nesse sentido, adquirindo uma relevância que ultrapassa tempos e fronteiras.
O primeiro livro, Os caminhoneiros e outros contos, de 1949, foi publicado graças à amizade de Mário Dionísio, Alves Redol, Alexandre O'Neill e Armindo Rodrigues, que pagaram quotas possibilitando a edição. Essa admirável solidariedade foi assim explicada por Cardoso Pires: "Havia uma coisa que nos unia, e é dramático dizer-se isto: justamente, a ditadura. Eram os perseguidos que se juntavam".4
Para além da luta contra um inimigo comum, havia ainda pontos de vista fundamentais que aproximavam o autor do movimento neo-realista, como sua preocupação em narrar o mundo de forma dialética e, nesse sentido, expor conflitos, romper linearidades, admitir vários focos narrativos que impedem uma única visão dos fatos são seus conseguidos objetivos em cada obra, sendo praticamente unânime considerar-se O Delfim (1968) como sua obra-prima.
Balada da praia dos cães,5 de 1982, destaca-se, no entanto e entre outros motivos, por ser seu primeiro romance pós-Revolução, no qual o dialogismo é ponto alto da estratégia narrativa adotada, contando a trajetória de uma investigação policial decorrente do assassinato do major Luis Dantas, encontrado, inicialmente sem identificação, na praia do Mastro, em 03 de abril de 1960. Trata-se de um caso "verídico", no romance enfocado por vozes múltiplas, de múltiplos discursos, intertextos e extra-textos.
No fundamental, são as inter-relações entre História e ficção que principalmente viram alvo de questionamento na obra ou, como o indica seu subtítulo, nessa "Dissertação sobre um crime". Sabendo-se que, do latim dissertatio, dissertação é "discurso, exposição ou exame minucioso de determinado assunto"6 - o assunto cardoseano, aqui, é a inevitável parcialidade de todo discurso, tanto mais nos anos salazaristas de censura e medo.
Tendo recebido um documento de vinte e duas páginas datilografadas, das mãos de uma amiga, em 1961, mas redigido por um dos co-autores de um assassinato bastante comentado na época, Cardoso Pires acabou esperando até 1975 para dar "corpo à idéia de usar a história, uma vez que poderia servir-se de maiores detalhes nas fichas policiais. (...)[Contudo], o que mais interessava era demonstrar como [aquela situação] era o microcosmo do medo instalado à escala nacional".7
Da confluência entre a realidade e a ficção, dá conta o próprio título escolhido: "Balada porque à maneira das baladas inglesas, o que eu pretendi foi escrever sobre um acontecimento real já tocado pela lenda".8 Assim, muito mais do que "utilizar" a História como pano de fundo a corroborar determinados princípios, o que aqui se encontra, mas ainda assim quando do próprio Neo-Realismo, é um questionamento sobre a História oficial, e sobre a "não oficial", pois já se desfaz a diferença: problematizando o passado histórico dá-se uma suspensão da crença em uma verdade, para o questionamento proporcionado pela suspensão da descrença, pela participação no jogo ficcional.
A abertura do romance não poderia ser mais provocativa nesse último sentido levantado. Ela apresenta-se, justamente, como uma ficha "técnica", em estilo policial, que descreve o cadáver encontrado na praia, finalizada por reticências que são seguidas por novas reticências que dão início à narração propriamente dita do romance:
......................... um dos quais, cão de fora e jamais identificado, foi aquele que chamou a atenção dum pescador local e o levou à descoberta do cadáver. (...) Ao alvorecer seguiu jornada rumo ao norte, precisamente na direção mais deserta (...) [e] quando passou pelo pescador ia a trote direito e de focinho baixo a murmurar (...); entrou em corrida e perdeu-se nas dunas. Porém não tardou a aparecer, desta vez esgalgado no cume das areias a uivar para os fumos que vinham do oceano. (...) E o pescador subindo sempre foi-se chegando a ele e já muito próximo parou e viu:
Viu no fundo duma cova uma conspiração de cães à volta do cadáver de um homem; (...) Há aqui uma certa ironia, diz o inspetor Otero, da Polícia Judiciária. Segundo consta, a vítima gostava desvairadamente de cães (p. 7).
Esse procedimento de narração será a tônica de toda obra, seguidamente recortada por sobreposições narrativas, passando do discurso do narrador aos das personagens de forma imbricada.
Segue-se a trama romanesca em que a ironia é recorrente: a descrição da praia deserta "com a bóia de socorros a náufragos sempre à vista, noite e dia..." e "o conhecido cartaz PORTUGAL, Europe's Best Kept Secret, FLY TAP, crucificado num poste solitário" (p. 7),9 parecem descrever o "verão fantasma" daqueles dias, como de resto era, em sentido figurado, a situação de Portugal no início dos anos 60.
Dando seqüência à abertura, temos a divisão do romance em duas partes principais: a primeira, e mais extensa, corresponde à Investigação (datada de 07 de maio de 1960) e a segunda dá conta da Reconstituição do crime (datada de 8 de agosto de 1960); seguem-se um "Apêndice" (com notas de esclarecimento sobre o caso ou sobre o destino posterior das personagens) e uma "Nota final", assinada pelo autor/narrador, datada de setembro de 1982.
Durante toda a narrativa, a "dissertação" é entrecortada por enfoques subjetivos de parte do narrador, quebrando a objetividade que seria esperada do relato. Isso se depreende, entre tantas outras passagens, na apresentação do chefe-de-brigada Elias Cabral Santana, personagem central, membro da polícia judiciária. Quando é mencionado seu apelido "Covas", ou Chefe Covas, as prováveis razões para essa alcunha estariam no seu ofício de "desenterrar mortes trabalhosas e distribuir assassinos pelos vários jazigos gradeados que são as penitenciárias do país" (p. 11-12).
Uma certa dose de humor, no entanto, também perpassa vários trechos da narrativa. Por exemplo, fica-se sabendo que Elias exerce seu trabalho sem paixão, nunca pronunciando termos "como Defunto, finado ou falecido, a propósito de cadáver que lhe é confiado preferindo tratá-lo por "De cujus" que sempre é termo de meritíssimo juiz" (p. 12), o que contrasta com o perfil profissional que procura garantir, de discrição e naturalidade. Aliás, contribui na construção desse perfil aparentemente contraditório, a própria descrição da casa de Elias, onde todos os móveis permanecem envolvidos em lençóis, dando uma sensação de provisoriedade e acentuando o cenário "fantasma" em que vive, como um mundo habitado, mas deserto.
A aridez da rotina do chefe-de-brigada aparece, igualmente, na apresentação, em estilo cinematográfico (que caracteriza a escrita de Cardoso Pires), do bicho de estimação do policial, o lagarto Lizardo:
[Elias] falou na direção de uma caixa de vidro que está por baixo da janela. Areia, é que sê vê lá dentro. Depois, abrindo o jornal: Para já, é o dia do coice do morto, mano. Coice do morto, alguma vez já ouviste falar? Plantada na areia, há uma criatura a escutá-lo no fundo da gaiola vidrada, percebe-se agora. A escutá-lo ou alheada em sono aparente, não se sabe. Um lagarto. Lizardo de seu nome, lagarto de estimação, corpo arenoso (p. 13).
Não são poucas as vezes em que Elias se confunde com o animal: "De tempos em tempos alisa a calva penteada, mas fecha-se logo e fica de olho mortiço, mãozinhas pendentes, da cor do muro. Como um lagarto. Exatamente". (p. 220). A possibilidade de existirem "almas" humanas áridas e tão bem camufladas, por certo até de si mesmas, é o que encarna essa figura de Elias Santana.
Disso resulta que seu antagonismo com a relação à PIDE, a Polícia Interna de Defesa do Estado, força repressora política do regime ditatorial salazarista com quem "divide" o caso (já que o assassinato do major Luis Dantas Castro tem implicações com um abortado golpe militar, por ele liderado) é, tão-somente, de cunho profissional. Quer dizer, a polícia política não suja as mãos com cadáveres, o trabalho "pesado" cabe à Judiciária. Daí a contrariedade de Covas como se estivessem a interferir em seu trabalho. Sabe ele, contudo, que uma das principais atribuições da PIDE é tentar limpar as questões políticas, ou forjá-las quando conveniente, deixando somente a "sujeira" do crime comum para a Judiciária.
De todo modo, o chefe-de-brigada é o condutor do caso, cujo esclarecimento se dá através dos procedimentos usuais da polícia (levantamento de dados nos locais indicados por testemunhas - muitas vezes informantes da PIDE) e, principalmente, nesse caso, pelas informações prestadas por Mena, amante e umas das principais suspeitas da morte do major Dantas, em interrogatórios intermitentes a partir de sua prisão clandestina. Além de Mena, os outros envolvidos são um Cabo (Barroca) e um arquiteto (alferes Fontenova). Somando-se a isso, tem-se todo um jogo de informações fornecidas pelos órgãos da imprensa, cujas notícias são reproduzidas no texto, assim como partes dos autos do processo e fragmentos do dossiê organizado pela PIDE.
Na investigação, o inspetor Otero fica espantado com o tanto de indícios deixados pelos criminosos, como se não pudesse acreditar num crime de "amadores", provavelmente diante do imaginário de uma subversão altamente "qualificada". Certamente, desagradava-lhe o fato de que o Estado não estivesse lidando com inimigos mais à altura.
Ressalte-se que esse personagem, o inspetor Otero, possui relativa importância na trama, assumindo o perfil do burocrata carreirista, conforme consta de sua "folha corrida":
1) Iniciativa e imaginação satisfatórias, boas relações de trabalho. 2) Persistência e sentido promocional: Otero, enquanto agente da PJ, freqüentou a Faculdade de Direito. Licenciatura difícil, prejudicada por diligências na província e por romances com divorciadas, nenhuma das quais com estatuto social apreciável. 3) Desajustamentos, complexos de afirmação: vestuário com pretensionismos de distinção; o cabelo, retintamente ruivo, que na infância lhe causou algum isolamento (tinha a alcunha de Cenoura ou Estás-a-Arder) é um dos atributos que cultiva na sua imagem cosmopolita (p. 27).
Do conjunto de todos esses componentes, vai-se desdobrando a narrativa e, aos poucos, os fatos passam a ter maior clareza, ou o que isso pudesse vir a significar, sabendo-se que, para a elucidação dos acontecimentos, inclusive os destaques feitos pelo cabo no livro de O lobo-do-mar, de Jack London, servem de indícios. Para Elias Santana, diante da assinatura do rapaz no exemplar "aquela inscrição parece-lhe como um adeus deitado ao vento antes duma viagem sem destino" (p. 46). Ora, aí está como, em mais uma dentre tantas outras passagens, interpõe-se constantemente o ficcional, ou pelo menos o figurativo, metafórico e, portanto, sentidos plurisignificativos, com o "real", demonstrando, que são sempre apenas leituras possíveis, as várias formas de estruturação desse quebra-cabeças.
Ao mesmo tempo, a passagem citada acima vem ao encontro de uma certa "humanização" do policial Elias, principalmente por conta de sua fértil imaginação, das associações que faz (no conhecido estilo indireto livre de Cardoso Pires) e é essa força imaginativa de Elias que, em verdade, conduz o inquérito e estrutura a "reconstrução" dos eventos nessa fase. Na organização lógica e verossímil do romance, as associações imaginativas do chefe-de-brigada normalmente ocorrem posteriormente à sua leitura dos Autos, de acordo com o que foi declarado por Mena. De toda forma, ficamos nós, leitores, a imaginar o que Elias Santana imaginou do que aconteceu, de acordo com o que é descrito nos documentos, a partir de uma testemunha clandestinamente presa e submetida a toda ordem de pressão, além da imaginação do próprio narrador/autor. A ficção resta sempre soberana.
Pluralizados os sentidos, através das várias vozes que se embatem, estabelece-se a pluralização discursiva que, em conjunto com os recursos inter e extratextuais, foram um quadro polissêmico. Como já referimos, o texto constrói-se a partir de toda uma rede de informações, como os recortes jornalísticos, o uso de notas de rodapé para explicitação de alguma parte do processo, além da própria referencialidade histórica.
Da soma de todos esses procedimentos revela-se, por fim, a imagem central do crime: o major Luis Dantas, após frustrada tentativa de golpe militar contra o regime, perde o controle da situação e também sobre seu grupo de apoio (Mena, o Cabo e o arquiteto). Descobre-se, assim, um líder tirânico, ameaçador que, por fim, é vítima de sua própria tirania, acabando assassinado por seus três liderados, sob a forte tensão de todo momento político então vivido.
No entanto, essa "revelação" não é tão pontual assim, na medida em que trata-se de uma das possibilidades de leitura, do mesmo modo como, na realidade portuguesa sob a censura da época de Salazar, as entrelinhas podem dizer mais do que o escrito, o que, aliás (e ironicamente) afirma o próprio Elias Santana:
Leu e releu o jornal (...).......................................................................... e nestas entrelinhas Elias está mesmo a ler que é por ali que a Pide vai entrar, não tarda, e então é que vai ser o bonito, duas polícias a desconfiarem uma da outra que como meus olhos te viram.
...............................................................................................................
O pior, pensa, é que há gente que só lê os jornais à contraluz para descobrir a palavra apagada pelos polícias da caneta e quando não a descobre inventa-a. Isso é uma censura segunda, confusão a dobrar, e qualquer dia andamos mas é todos a ler o escrito pelo excrito (se é que essa palavra existe nos dicionários)(p. 15).
Inicialmente, constate-se o mais explícito: o papel da imprensa, não só enquanto conivente, mas como aparelho ideológico a serviço do regime. É o caso de o Diário da Manhã ter noticiado que havia muito dinheiro garantindo as operações do major assassinado, o que não era verdade, como bem sabiam Otero e Elias, mas o que também não adiantava desmentir diante dos interesses da PIDE. Lia-se no jornal: "Dinheiro a rodo no covil do crime. Donde veio? Quais as individualidades, organizações que financiaram o major Dantas, queria saber a indomável imprensa desse país, 14-4-1960."
Aliás, já quando colhiam informações na Casa da Vereda, o local de refúgio dos acusados e onde cometeram o assassinato, um jornalista do mesmo diário estava presente, com a postura muito próxima dos próprios policiais.10
Além disso, o texto não deixar de mencionar, igualmente, as várias versões do crime e dos interesses em jogo, mas de acordo com textos clandestinos da esquerda, artigos de jornais estrangeiros, enfim, as "folhinhas que envenenam o país", no julgamento do inspetor Otero.
O constante viés especular do texto é um dos ingredientes mais fortes na composição dessa dinamicidade da Balada da praia dos cães, pois para além do já mencionado caráter tirânico do major que lutava contra a tirania, deve-se evidenciar a situação da própria Mena, principal personagem a configurar os fatos a partir de seus depoimentos. Na verdade, o que ela viveu na Casa da Vereda era praticamente a mesma angustiante realidade que agora vivia na prisão: cercada pela fumaça de seus cigarros excessivos, no difícil equilíbrio a base de muitos comprimidos "Valium", em uma perpétua insônia torturante. Sem falar na própria tortura física e psicológica imposta tanto pelo líder e amante, quanto pela própria polícia, para quem "repete o repetido [e] ouve-se a custo" (p. 61).
O prosseguimento das investigações mostra-se, desse modo, bastante problemático, dando a entender que Elias prorroga constantemente o encerramento do caso, mesmo já tendo pleno conhecimento do que substancialmente se passou. Parece mesmo que sente prazer em continuar mexendo no seu "baú dos sobrantes", no qual estão as fotos de Mena, as declarações de "figurantes", como é o caso da mãe do arquiteto e de sua mulher, através das quais tem-se um perfil do rapaz: tinha ele "uma necessidade terrível de se pôr à prova" (p. 69). Caso também de uma conversa de bar, transcrita e da qual fica-se a conhecer um excerto, dando conta de que o major era conhecido do pai de Mena, tendo quase a mesma idade dele (p. 68), o que se confirma com uma foto de caçada em que ambos aparecem e com o próprio depoimento do pai de Mena, o engenheiro Francisco Ataíde, declarando o relacionamento distante que mantinha com Dantas Castro (p. 92).
Talvez que o sentido mais veemente desse prazer de Elias por continuar as investigações esteja na ausência de uma vida própria, na sua necessidade de viver através dos outros, sem, contudo, nunca colocar-se efetivamente no lugar do "outro". Aliás, uma das estratégias dos polícias, por seu "instinto (...), ensinava-lhes que para certas ocasiões a ignorância em relação aos valores do semelhante são a grande arma para vencerem sua inferioridade social (Elias Chefe dizia por exemplo: 'Com os inteligentes é que eu me quero', e isto porque aprendera que o escrúpulo, o orgulho e até a vaidade do preso inteligente é que o perdem muitas vezes" (p. 113). Então, sabe que sua força está em sua fraqueza, sua superioridade na sua inferioridade - é a mediocridade reinante.
Durante a segunda parte, a da reconstituição, fica-se sabendo o quanto todos os envolvidos no caso conheciam as artimanhas mútuas, mas viviam o ciclo vicioso do medo. Compreende-se que o Major, por exemplo, não tinha mais "contatos" com o exterior, mas fingia o contrário; e escondia-se nas imediações do lugar em que estavam refugiados. O cabo flagrou-o numa dessas escaramuças, mas não contou nada a ninguém. Daí a afirmação de Elias, dirigida a um outro policial: "(...) esse processo é uma valsa de conspiradores (risada oca). Ora agora mentes tu, ora agora minto eu, mentia tudo, minha gente" (p. 201).
E mente, claro está, a própria polícia - é assim que os autos, o processo, enfim toda documentação oficial omite questões políticas, que ficam para as averiguações secretas - publicamente, os três condenados o são por crime comum: diante da insanidade do major, seus seguidores não viram outro recurso senão assassinar o líder da conjuração mal preparada. Com a ajuda da mãe do arquiteto, conseguiram o necessário automóvel para largarem o cadáver na praia, em meio a uma correria de principiantes diante do inevitável.
Um ponto relevante é a intertextualidade com o romance policial clássico, do tipo "enigma", como proposto por Todorov: "na base do romance de enigma encontramos uma dualidade (...). Esse romance não contém uma, mas duas histórias: a história do crime e a história do inquérito".11 Os outros aspectos que dão base à estrutura desse tipo de gênero literário não se aproximam tanto do romance aqui estudado, mas poderíamos ainda citar a existência necessária de um assassino e de um detetive encarregado de desvendar a trama que, nesse caso, seria o papel do chefe-de-brigada, Elias Santana. De forma paródica, a aproximação com esse gênero da literatura de massa como que põe a nu, expõe e populariza o que sempre foi tão caro aos órgãos da censura política: as ações (tantas vezes ilegais) do regime ditatorial.
A auto-reflexividade, por seu turno, é marcante em toda obra também como resultado de todos os recursos inter e extraliterários, da paródia e da ironia: "reescrevendo" a história portuguesa através do inquérito policial, estabelece-se todo jogo de duplicidade entre o universo diegético e o universo do "real". À ditadura salarazista contrapõem-se as atitudes autoritárias do major assassinado, ao mesmo tempo vítima e reflexo das circunstâncias, numa trama em que se dá o constante diálogo com a "ficha técnica" apresentada em sua abertura e com as novas séries de "fontes de consulta" da investigação policial. Nesse movimento de apontar para si mesmo, o texto tanto amplifica o caráter documental que emoldura a narrativa, quanto questiona a possibilidade de uma visão objetiva dos acontecimentos, baseada nesse próprio caráter. Dessa maneira, a auto-reflexividade acaba intensificando a condição ficcional da obra literária, problematizando as inter-relações entre ficção/realidade extratextual.
Quanto à apropriação dos acontecimentos históricos, trata-se novamente do recurso intertextual que resgata e ao mesmo tempo coloca em xeque o discurso histórico, declarando ilusórias todas as certezas que não se aceitarem como contingentes. Dito de outro modo, se o texto cardoseano, por um lado, não nega o que já foi, revisitando o passado enquanto diálogo com o presente, e nesse sentido permitindo a denúncia social, por outro lado, revela sempre sua posição enquanto um certo e ideologicamente determinado ângulo de possibilidade de conhecimento desse já existido. Não há e nem é possível, assim, nenhum dogmatismo, nenhuma pretensão de "verdade", no que ele se distancia das proposições do neo-realismo em seus primeiros momentos, quando, parafraseando-se Adorno, os neo-realistas entendiam a arte como o significado de "aguçar alternativas, ao invés de entenderem que, por meio simplesmente de sua configuração, significa resistir à roda viva que sempre de novo está a mirar o peito dos homens"
Por esse mesmo viés analítico, do questionamento da realidade histórica por meio da arte literária, também tem-se, em Balada da praia dos cães, a problematização da identidade portuguesa: como se pode pensar o ser português em meio a uma realidade transformada em absurdo, pelos tantos avessos dos avessos que colocam, na esfera da normalidade, o gesto violento, o autoritarismo e a imposição de valores vazios de significado humano? Absurdo que se registra (com maior força) quando Elias Santana, o chefe-de-brigada, sentado em um banco de jardim, é subitamente contemplado com a presença de um pára-quedista que cai, literalmente, dos céus. Fato nenhum pouco espantoso para Elias que, pouco dando atenção à fala intermitente do recém-chegado, continua suas reflexões sobre os mistérios da vida. Um viver sem sentido, traduzido pela passagem de três jaulas rolantes do circo:
São três transportes de circo, gradeados mas sem feras, que avançam na madrugada. Dentro deles viajam os tratadores com um ar estúpido, ensonado. Desfilam pelas ruas desertas, sentados no chão, pernas para fora, caras entre grades. Elias deixa de cantar. Durante o resto do caminho pensa nos tratadores enjaulados a atravessarem a noite sobre rodas: o que mais impressiona é que pareciam vaguear sem destino (p. 223).
Pode-se reler o trecho anterior desdobrando-o em dois momentos: como uma visão da realidade portuguesa dos anos sessenta, tempo em que se passa a trama narrativa, e já como fruto de um questionamento da época pós-revolucionária, quando o romance foi escrito/publicado.
No primeiro caso, revela-se a grande representação, o circo armado pela ditadura que, esvaziado de seu povo/público, deixa transparecer toda sua limitação e estupidez - poder estar fora ou dentro das jaulas montadas não torna menos opressora a certeza das grades. O que, contudo, incomoda a quem assiste o espetáculo (sendo dele cúmplice, como é o caso de Elias Santana) é a impressão de que já não se sabe mais porquê ele ainda é encenado. Nesse vácuo de sentido, ecoa a problemática de um país que, assentado sobre longos anos de despotismo, procura seu destino.
Daí, a proposição para o segundo caso: o período imediatamente seguinte à deflagração do movimento de 1974 também criou um vácuo, mas de expectativas. Extinto o fascismo, não se configurou uma revolução de tradição marxista e o período caracterizou-se pela observação, pela busca de explicar Portugal a si mesmo e aos portugueses.12 Não se vai aqui aprofundar esse aspecto, mas entende-se por busca identitária um processo em permanente movimento de deslocamento, "uma formação descontínua construída por sucessivos processos de reterritorialização e desterritorialização ([concebendo-se] território como um conjunto de representações que um grupo ou indivíduo tem de si próprio)".13 Não se trata, portanto, de nenhuma concepção essencialista de cultura e identidade.
Balada da praia dos cães pode ser lida, enfim, como uma obra que visa, olhando para um passado imediato, compreender o seu presente. Nessa mirada para trás, erige-se a possibilidade de denúncia de um tempo tão impreciso quanto a história transfigurada em realidade. Aliás, são essas as palavras do próprio autor/narrador na Nota final do romance:
Em certas vidas (eu acrescentaria, em todas) há circunstâncias que projetam o indivíduo para significações do domínio geral. Um acaso pode transformá-lo em matéria universal - matéria histórica para uns, matéria de ficção para outros, mas sempre justificativa de abordagem. Interrogamo-la, essa matéria, porque ela nos interroga no fundo de cada um nós - foi assim que pensei esse livro, um romance. (...) De modo que entre o fato e a ficção há distanciamentos e aproximações a cada passo, e tudo se pretende num paralelismo autônomo e numa confluência conflituosa, numa verdade e numa dúvida que não são pura coincidência (p. 230).


1 Texto apresentado na IV Jornada de Literatura e Autoritarismo, evento promovido pelo Grupo de Pesquisa Literatura e Autoritarismo e pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSM, no período de 25 a 28 de outubro de 2005.
2 Profª. Dra. do Centro Universitário Franciscano - UNIFRA
3 LOURENÇO, Eduardo. "O paradigma policial". In: JL, 4/11/98 p. 15.
4 PIRES, José Cardoso. Entrevista ao Expresso, de 20.12.97.
5 PIRES, José Cardoso. Balada da praia dos câes. São Paulo: Círculo do Livro, 1982. Todas as citações subseqüentes procedem dessa edição; portanto, serão indicadas somente as páginas respectivas.
6 Dicionário Aurélio.
7 PIRES, José Cardoso. Entrevista. JL, nº 47, 7 a 20 de dezembro de 1982, p. 2-3.
8 Idem, ibidem.
9 Aceitando-se a tradução livre: "PORTUGAL, o segredo mais bem guardado da Europa", fica explícita a relação com a conhecida frase de Salazar do "orgulhosamente sós", para além da própria situação de censura imposta ao país.
10 Ver, por exemplo, passagens das páginas 22 e 23.
11 TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 96.
12 Essa última proposta de análise segue os nossos apontamentos feitos a partir das colocações do Professor Dr. José Ornelas, no Curso Construção da nação e da identidade portuguesa através do discurso narrativo, por ele ministrado, e promovido pelo Curso de Pós-Graduação em Letras da PUCRS, no período de 11 a 22 de agosto de 1997.
13 BERN, Zilá. Literatura e identidade nacional. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1992. p. 10.

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