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Literatura e Autoritarismo
Literatura Brasileira: História e Ideologia
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 15 

A BIOGRAFIA COMO REGISTRO DA MEMÓRIA NA OBRA DO VISCONDE DE TAUNAY (1843-1899)

Maria Lídia Lichtscheidl Maretti1
Resumo: O objetivo deste artigo é o de demonstrar que a produção de textos biográficos foi uma atividade constante em toda a carreira intelectual e política do Visconde de Taunay, de maneira a contribuir para tornar célebres personalidades brasileiras e estrangeiras que, a seu ver, desempenharam um papel importante no projeto de constituição da nacionalidade brasileira. Além disso, o texto visa apontar um aspecto característico do método biográfico adotado pelo escritor, já que ele vai além da cronologia tradicional, que considera o nascimento e a morte como marcos identificadores do começo e do fim do relato: outros textos (de autoria alheia ou não) se acrescentam a ele, de modo a torná-lo fragmentário e, portanto, mais próximo da descontinuidade e do caráter aleatório da existência humana.
Palavras-chave: Visconde de Taunay, século XIX, biografia, nacionalidade.
Résumé: Le but de cet article est de démontrer que la production de textes biographiques a été une activité constante pendant toute la carrière intellectuelle et politique du vicomte de Taunay, de façon à contribuer pour rendre célèbres des personnalités brésiliennes et étrangères qui, selon lui-même, ont joué un rôle important dans le projet de constitution de la nationalité brésilienne. Em outre, ce texte vise signaler un aspect caractéristique de la méthode biographique adoptée par l’écrivain, puisqu’il va au-délà de la chronologie tradionnelle qui considère la naissance et la mort comme points de répère identifiant le début et la fin du récit: d’autres textes (écrits ou non par lui) s’y ajoutent toujours, de manière à le rendre fragmentaire et, par conséquent, plus proche de la discontinuité et du caractère aléatoire de l’existence humaine.
Mots Clés: vicomte de Taunay, XIXe siècle, biographie, nationalité.

“Gênero híbrido, a biografia se situa em tensão constante
entre a vontade de reproduzir um vivido real passado,
segundo as regras da mimesis, e o polo imaginativo do
biógrafo, que deve refazer um universo perdido segundo
sua intenção e talento criador.”
(François Dosse, O desafio biográfico)
Dentre os vários textos que escreveu, leu e publicou, o Visconde de Taunay exercitou-se amplamente em um gênero textual muito cultivado desde os famosos cronistas reais: a biografia. Quem leu o famoso romance Inocência, de 1872, há de se lembrar que o seu capítulo 3 é uma verdadeira biografia já que, num movimento analéptico, o narrador procura dar conta dos fatos principais da vida de seu protagonista masculino, o conhecido Cirino, namorado de Inocência (Taunay, 1992, p. 41-46). Ou seja, mesmo na ficção deliberadamente proposta como tal, o pendor pela biografia já se revela neste escritor desde bem cedo. Além disso, as suas Memórias (Taunay, 1948, póstumo) contam com longos trechos em que o escritor também parece se exercitar no gênero, o que nos faz pensar em uma inclinação que não se contém mesmo em um texto em que o objetivo é sobretudo falar de si: o outro, e não “qualquer” outro, está portanto sempre em causa.
Diferentemente do que ocorre hoje, em que o tom apologético adotado pelo biógrafo em relação ao biografado não caracteriza necessária e essencialmente o gênero, parece ser esse o principal traço destes muitos textos de Taunay. Aliás, parece ser este um dos motes para a sua decisão de escrever. Por outro lado, Walnice Nogueira Galvão afirma o seguinte, a propósito das biografias nossas contemporâneas: “Do memorialismo, a experiência pessoal: os autores não estão registrando suas próprias vidas, mas vidas com as quais se identificam, que fazem parte de sua experiência vicariante e que aprovam, de uma maneira ou de outra.” (Galvão, 2005, p. 354) A decisão de escrever uma biografia parece ser, então, e de acordo com esta perspectiva, seja no caso de Taunay, seja no das biografias mais recentes, regida pelo fenômeno da identificação.
Diante disso, propomo-nos, então, à luz de uma bibliografia teórica dedicada ao assunto, a qual inclui Pierre Bourdieu (1996), Giovanni Levi (1996) e François Dosse (2009), dentre outros, relacionar os textos de Taunay que podem ser considerados biografias, procurar reconhecer e descrever o método biográfico adotado por ele, como forma de composição enaltecedora de uma certa elite brasileira e estrangeira com a qual ele parece de uma forma ou de outra se identificar, além de tentar compreender como este gênero foi se inserindo ao longo de sua produção bibliográfica e de sua atuação intelectual e política.
O memorialismo do Visconde de Taunay se constrói a partir de vários fios, ficcionais ou não, sendo o seu livro Memórias apenas um deles. Um outro fio que se pode extrair de sua extensa obra, e que também se inclui na perspectiva do memorialismo, é, pois, a sua farta atuação enquanto biógrafo.
A vocação para a biografia parece ter-se iniciado na vida de Alfredo d’Escragnolle Taunay em 15 de dezembro de 1870, quando ele estava prestes a completar os seus 28 anos, ao assumir interinamente (em substituição a Joaquim Manoel de Macedo, naquele momento orador oficial do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e momentaneamente impossibilitado) um papel há muito desempenhado por outros membros do Instituto: o de prestar uma homenagem, na chamada “Sessão Magna Aniversária” da instituição, aos membros falecidos no ano corrente, de modo a compor uma biografia dos homenageados. (Taunay, 1870, 1871) Esta iniciação no gênero correspondeu também a uma iniciação oral pública de cujos riscos e vantagens ele se revelou muito consciente: para isso, basta considerar as análises que eu faço deste e de outros discursos (Maretti, 2006, p. 185-206), nas quais procuro ressaltar as surpreendentes estratégias retóricas e discursivas adotadas pelo orador.
Alguns anos depois, em 24 de janeiro de 1875, Taunay volta a biografar ao prestar uma homenagem póstuma, e também oral, a um membro do IHGB, à beira de seu túmulo, através de um discurso laudatório enfatizando os feitos realizados em prol da cultura e da nação. (Taunay, 1875). Diante disso, não há como fugir do conceito de “campo literário”, criado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu (1999, 1996) e a partir do qual se pode reconhecer a posição de Taunay dentro de instituições como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a Academia Brasileira de Letras, como alguém capaz e doravante sancionado para enunciar tais discursos.
Ele volta a escrever biografias, ainda sob a forma de orações fúnebres, do Conde de Porto Alegre e de José de Alencar, respectivamente em 18 de julho de 1875 e em 12 de dezembro de 1877. (Taunay, 1943). Também foram objeto deste tipo de homenagem póstuma o Marquês de Herval, mais conhecido como General Osório (em 4 de outubro de 1879), o Duque de Caxias (em 7 de maio de 1880) e o Visconde do Rio Branco (em 1º de novembro de 1880), todas elas feitas à beira dos túmulos destas personalidades da história brasileira (Taunay, 1880).
Invariavelmente denominadas “orações fúnebres”, tais intervenções do então futuro Visconde de Taunay2 contam com algumas características como a relativamente curta extensão, alguns traços de oralidade, marcas indeléveis do sujeito no enunciado e, sobretudo, a consciência de que há um ritual discursivo a ser respeitado e cumprido, tendo sido todas elas publicadas posteriormente seja na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, seja na Revista da Academia Brasileira de Letras, ou mesmo em opúsculos e em obras mais volumosas.
Em 25 de julho de 1880 esta sequência de orações fúnebres é rompida pelo discurso em homenagem a Carlos Gomes, pronunciado no Colégio Militar, com a presença e com a intervenção do homenageado. (Taunay, 1880)
Em 1884, por sua vez, ele publica o livro O Visconde do Rio Branco, com 88 páginas, uma retomada mais extensa de sua oração fúnebre de 1880 ao grande amigo e padrinho político, e que conta com duas reedições póstumas, em 1930 e em 1988.
Em 1887, inicia-se uma prática mais constante do autor como orador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Ele volta a se pronunciar, tal como fez em 1870, em 15 de dezembro de 1887, a respeito dos membros mortos no ano em curso e que merecem uma homenagem póstuma do orador, sob a forma de biografia. Este discurso é publicado na Revista da instituição no mesmo ano (Taunay, 1887a) e é reeditado sob a forma de opúsculo em 1889 (Taunay, 1889a).
No ano de 1888, há que se registrar vários discursos de cunho biográfico, e/ou que vieram a fazer parte de biografias “compostas” e publicadas posterior e postumamente. O primeiro tem como título “Na Sessão Solene do Jubileu do Instituto, a 21 de outubro de 1888” e é publicado na Revista do IHGB (Taunay, 1888b), em opúsculo, no mesmo ano (Taunay, 1888c) e como parte de um livro intitulado O Grande Imperador, organizado e publicado pelo filho em 1932 (Taunay, 1932a). Ainda no ano de 1888, ele volta a se pronunciar numa “Sessão Magna Aniversária do IHGB”, em 15 de dezembro, discurso que se dá nos mesmos moldes do de 1870 (Taunay, 1888e), e que é publicado sob a forma de opúsculo no ano seguinte (Taunay, 1889b).
Em 1889, por sua vez, ele profere o “Discurso na Sessão Solene comemorativa do centenário de Cláudio Manuel da Costa, a 4 de julho de 1889”, publicado na Revista do IHGB de nº 53 e aproveitado pelo filho Affonso no livro O Grande Imperador, de 1932 (Taunay, 1889d, 1932a). Como uma variante daquele gênero oratório fúnebre, outro tipo de biografia desse modo se faz presente em sua obra: aquele que se produz em comemoração aos centenários de nascimento ou de morte de personalidades brasileiras e estrangeiras. Trata-se daquilo que Walnice Nogueira Galvão chama de “efemeridismo”, ou seja, “a mania midiática de festejar datas” (2005, p. 354) É este também o caso do poema denominado “Camões”, a ser comentado adiante. Há, por fim, neste profícuo ano de 1889, o “Discurso saudando o Ministro Argentino D. Enrique B. Moreno, como Sócio Honorário do Instituto”, publicado na mesma Revista, com esta única edição (Taunay, 1889h).
Com a proclamação da República em 1889, e a conseqüente decisão do recém-nomeado Visconde de desistir de toda e qualquer atuação pública como forma de lamentar a extinção da Monarquia, as biografias de sua lavra começam a se multiplicar, como a querer dizer que o passado recente é entrevisto com grande nostalgia. É neste contexto que, em 1892, ele publica “O Coronel Antonio Florêncio do Lago” na Revista do IHGB, o qual é aproveitado pelo filho no momento da publicação do livro Servidores Ilustres do Brasil, em 1930 (Taunay, 1892, 1930a, p. 50-74).
Em 1895, é publicado o “Esboço biográfico do Visconde de Beaurepaire-Rohan” na Revista do IHGB, texto que é incluído pelo filho no livro Servidores Ilustres do Brasil, de 1930 (Taunay, 1895a; 1930a, p. 21-38; 1999). Neste mesmo ano, também sem contar com uma primeira versão exposta oralmente, ocorre a publicação da primeira parte da biografia dedicada a “O Padre José Maurício”, na Revista Brasileira de nº IV, sendo que as duas outras partes são publicadas na mesma Revista nos dois anos subseqüentes, em 1896 e 1897, e o texto integral aparece em forma de livro em 1930, organizado pelo filho com o título José Maurício Nunes Garcia (biografia), cujos últimos cinco capítulos (de um total de dezessete) haviam sido originalmente publicados no Jornal do Comércio, em data ainda não localizada por nós (Taunay, 1895b, 1896a, 1897a, 1930b). Ainda neste mesmo ano de 1895, ele propõe à Revista do IHGB (n° 58) uma “Relação dos Estrangeiros Ilustres que concorreram para o engrandecimento do Brasil, desde princípios do século XIX até 1892”, a qual é inserida por Affonso no livro Estrangeiros ilustres e prestimosos no Brasil, de 1932 (Taunay, 1895c, 1932, p. 9-68). E por fim, ainda no mesmo ano, ele publica na Revista Brasileira o texto “Um literato argentino: D. Martin Garcia Merou”, que não contou com nova publicação. (Taunay, 1895d)
No ano de 1896, aparece o texto “Estrangeiros ilustres e prestimosos no Brasil” na Revista do IHGB, sendo que há, imediatamente depois, uma outra publicação, agora em opúsculo, do mesmo texto (Taunay, 1896b, 1896c), o que revela um interesse particular pela questão.
Em 1897, por sua vez, a Revista do IHGB publica uma primeira parte de sua “Biografia de Augusto Leverger, Barão de Melgaço”, que conta com a continuação em 1898, na Revista Brasileira, além de uma edição em livro, em 1931, organizado pelo filho com o título Augusto Leverger (biografia) e com a colaboração do historiador Virgílio Correia Filho, que escreveu alguns dos capítulos (Taunay, 1897b, 1898a, 1931a). Ainda neste ano, sai na mesma Revista do IHGB o seu “Esboço biográfico do Dr. Luís Couty”, que é inserido pelo filho no livro Estrangeiros ilustres e prestimosos no Brasil, de 1932. (Taunay, 1897c, 1932, p. 42-60)
No ano seguinte, em 1898, aparecem os seus “Singelos apontamentos biográficos sobre o Capitão de Artilharia João Batista Marques da Cruz, o Vauvenargues brasileiro”, que são incluídos por Affonso d’Escragnolle Taunay no livro Servidores ilustres do Brasil, de 1930 (Taunay, 1898b; 1930a, p. 39-49)
Tendo falecido em 1899, as biografias posteriores de Taunay devem obviamente ser consideradas póstumas e, por isso, publicadas a partir de iniciativa alheia. É o caso, por exemplo, do mesmo “João Batista Marques da Cruz”, texto também publicado em 1906 pela Revista do IHGB (Taunay, 1906).
Mais uma publicação póstuma de cunho biográfico aparece em 1908 com o título Reminiscências, que é posteriormente desmembrado em duas partes pelo filho, em 1923 e 1924, respectivamente com os títulos Reminiscências e Homens e coisas do Império (Taunay, 1908; 1923; 1924)
Em 1915 aparece na mesma Revista do IHGB uma publicação híbrida no que diz respeito ao gênero e à autoria: trata-se do texto “Notas de D. Pedro II às Curiosidades naturais do Paraná e a Algumas verdades [são textos de autoria do Visconde] / D. Pedro II e o Barão de Taunay / Na biblioteca do Imperador / A partida da Família Imperial / Notas de D. Pedro II às Japonneries d’automne, de P. Loti / André Rebouças”. O registro deste texto é importante também porque ele foi incluído pelo filho no livro Homens e coisas do Império, de 1924 (Taunay, 1915, 1924)
Em 1930, por iniciativa de Affonso d’Escragnolle Taunay, são publicados dois livros instigantes, além dos já mencionados anteriormente. O primeiro aparece com o título duplamente incisivo: Dois artistas máximos: José Maurício e Carlos Gomes (TAUNAY, 1930c), e o segundo, intitulado O Visconde do Rio Branco: glória do Brasil e da Humanidade, chama a atenção por ser escrito a quatro mãos, já que quatro de seus capítulos são de autoria do filho do Visconde (Taunay, 1930d)
Em 1931, outra surpresa: a publicação, sob a responsabilidade de Affonso, do livro Brasileiros e estrangeiros, que, ao que tudo indica, é um novo título para Filologia e crítica: impressões e estudos, de 1921. (Taunay, 1931)
Em 1941, é publicado na Revista da Academia Brasileira de Letras, um poema denominado “A Camões (poema no terceiro centenário de sua morte)” que sem dúvida deve ter sido publicado originalmente na imprensa, em 1880, ao se completarem os 300 anos da morte do poeta português.
E, finalmente, em 1999, por iniciativa do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, é publicado um pequeno volume dedicado às biografias do Visconde de Beaurepaire-Rohan e do Marquês de Aracaty, já anteriormente dadas à luz (Taunay, 1930a).
Esta longa cronologia das publicações das biografias escritas pelo Visconde de Taunay suscita questionamentos e reflexões. O primeiro deles diz respeito à escolha dos biografados: se originalmente a morte e o fato de pertencer ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro constituíam os únicos critérios para a escolha, eles não permaneceram como tais ao longo do tempo. Biografar pareceu significar, então, a realização de parte do projeto de construção da nacionalidade brasileira que via em algumas personalidades, brasileiras e estrangeiras, o reconhecimento da contribuição para a consecução deste projeto, através do fenômeno, antes mencionado, da identificação. Se a monarquia era o sistema de governo preferido por este biógrafo, são, pois, objeto de seu trabalho o Imperador, o Visconde do Rio Branco, o Visconde de Beaurepaire Rohan etc. Se a Guerra do Paraguai se constituiu em uma experiência decisiva para a vida do biógrafo, e para a vida da nação, não é de estranhar o fato de Augusto Leverger, João Batista Marques da Cruz, Antonio Florêncio do Lago, o General Osório, o Duque de Caxias, entre outros, terem tido suas vidas narradas por Taunay. Se a imigração estrangeira foi uma questão cara à qual ele se dedicou muito, também como uma forma de construir a nação, não é à toa que Luís Couty e tantos outros estrangeiros “ilustres e prestimosos no Brasil” tiveram a vida transformada por ele em relatos dignos de serem (re)conhecidos. Se a música era uma manifestação artística muito cultivada por ele, e se uma nação deve, a seu ver, possuir artistas que a engrandeçam, assim se explica o seu esforço biográfico diante de Carlos Gomes e José Maurício Nunes Garcia.
Uma segunda reflexão diz respeito ao método biográfico adotado pelo Visconde (e por seu filho Affonso). Para além da cronologia que considera o nascimento e a morte do biografado como início e fim de um texto coerente e totalizante, é preciso reconhecer a presença de outros textos, de autoria alheia e mesmo de autoria do biografado, como parte das biografias propostas, como a querer sugerir que a “ilusão biográfica” apontada por Pierre Bourdieu (1996) pode ser de alguma forma amenizada. É nestes termos que ele propõe a sua crítica:
Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação comum da existência que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar. (Bourdieu, 1996, p. 185)
Ao contrário dessa posição, ele nos propõe que pensemos o seguinte:
Eis por que é lógico pedir auxílio àqueles que tiveram que romper com essa tradição no próprio terreno de sua realização exemplar. Como diz Allain Robbe-Grillet, “o advento do romance moderno está ligado precisamente a esta descoberta: o real é descontínuo, formado de elementos justapostos sem razão, todos eles únicos e tanto mais difíceis de serem apreendidos porque surgem de modo incessantemente imprevisto, fora de propósito, aleatório”. (Bourdieu, 1996, p. 185)
É assim que vemos, ao lado do escritor consagrado como o autor de Inocência, tanto o historiador Affonso d’Escragnolle Taunay “contribuir” com capítulos na biografia do Visconde do Rio Branco, além de ser o organizador de várias delas, quanto o também historiador Virgílio Correia Filho ser o autor de outros capítulos da biografia de Augusto Leverger, ambas escritas a quatro mãos e publicadas sob uma única autoria. Neste sentido, apesar de as “escolhas” mencionadas acima não serem de modo algum “inocentes”, as biografias de Taunay parecem ir um pouco além daquela concepção corrente do gênero, descrita por Bourdieu nos seguintes termos: “Falar de história de vida é pelo menos pressupor – e isso não é pouco – que a vida é uma história e que [...] uma vida é inseparavelmente o conjunto dos acontecimentos de uma existência individual concebida como história e o relato dessa história.” (1996, p. 183).

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__________. Reminiscências. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1908, 339 p.
__________. Reminiscências. 2 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves & Cia., 1923, 219 pp.
__________. Servidores ilustres do Brasil. São Paulo, Melhoramentos, 1930a, 142 p.
__________. Singelos apontamentos biográficos sobre o capitão de artilharia João Batista Marques da Cruz, o Vauvenargues brasileiro. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 60, p. II, 293-302, 1898b.
__________. Um literato argentino: D. Martin Garcia Merou. Revista Brasileira, Rio de Janeiro/São Paulo: Laemmert & C., I (I), 280-289, jan/jun; II (I), 32-41, abr/jun. 1895d.
__________.I – Visconde de Beaurepaire Rohan e II – Marquês de Aracaty. Cuiabá: IHGMT, 1999, 30 p. (“Publicações Avulsas” nº 15).


1 Profª. Drª. da Unesp de Assis. E-mail: lidiamaretti@uol.com.br
2 Como se sabe, o título de nobreza lhe foi conferido por D. Pedro II em 1889, meses antes da Proclamação da República.
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