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Literatura e Autoritarismo
Experiência e Esclarecimento
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 17 

J. M. R. Lenz e a miséria do esclarecimento alemão

Prof. Dr. Leonardo Munk (UNIRIO)
Resumo: Com a comédia O preceptor ou Vantagens da Educação Particular, J. M. R. Lenz apontou como os aspectos emancipatórios de um projeto filosófico que tinha as reflexões de Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant a favor da liberdade e da independência como modelos ideais foram suplantados pelas tendências disciplinadoras e antidemocráticas da Prússia setecentista, produzindo um ambiente favorável aos abusos de poder da monarquia e de uma burguesia ansiosa em reproduzir os privilégios da nobreza. Com a apresentação desse texto de Lenz, pretendo salientar sua relevância para a contemporaneidade, bem como seus ecos no trabalho de dois dos maiores dramaturgos alemães do século XX: Bertolt Brecht e Heiner Müller.
Palavras-chave: teatro; literatura alemã; história e crítica.
Abstract: With the comedy The preceptor or Benefits of Private Education, J. M. R. Lenz pointed out how the emancipatory aspects of a philosophical project that had the reflections of Jean-Jacques Rousseau and Immanuel Kant in favor of freedom and independence as ideal model were supplanted by the disciplinary and anti-democratic tendencies of the eighteenth-century Prussia, producing a favourable environment to power abuses of the monarchy and of a bourgeoisie eager to reproduce the privileges of the nobility. With the presentation of that Lenz' text, I intend to emphasize its relevance to contemporary as well as its echoes in the work of two of the greatest twentieth-century German dramatists, Bertolt Brecht and Heiner Müller.
Keywords: theater; German literature; history and criticism.

Durante o século XVIII o teatro ocupou um lugar de grande importância moralizadora na cena europeia. Quando se diz que a estética iluminista visava à promoção da virtude e da sociabilidade, não se distinguindo de uma filosofia moral, percebe-se o grande abismo que se abriu entre o objetivo da representação teatral setecentista e as experiências dramáticas que surgiriam ao longo dos dois séculos posteriores, haja vista que estas priorizariam um excessivo individualismo e subjetivismo.
Para Denis Diderot, por exemplo, o teatro era considerado uma “instituição moral” que se incumbiria de fortalecer os laços sociais, expondo a verdadeira natureza do ser humano, cada vez mais oculta pela miséria da existência cotidiana; natureza essa que, de acordo com Jean-Jacques Rousseau, seria essencialmente boa. Nesse sentido, ao defender o arrefecimento das paixões humanas, Diderot desejava, na realidade, apresentar o homem, purgado de suas emoções baixas, como um protótipo da bondade e da moralidade.
Imbuídos de suas ilustradas convicções e almejando uma nova utopia social e política, os homens do século XVIII tinham a esperança de que a razão seria capaz de emancipar e libertar os homens, assim como Immanuel Kant o defendeu em O que é a Ilustração? (Was ist die Aufklãrung?) . Em um cenário de valorização da clareza versus a obscuridade, o modelo idealizado por pensadores e artistas que acreditavam na arte enquanto emancipação não poderia alhear a esfera artística de questões cognoscitivas e morais.
Natural, nesse contexto, foi o surgimento de uma estética burguesa comprometida com a progressiva valorização de um modo de vida diametralmente oposto ao mundo dissoluto da decadente realidade aristocrática, acarretando o paulatino exílio da arte cortesã como uma necessária consequência dessa nova tendência. Em um interessante ensaio sobre as transformações da pintura francesa após a ascensão da burguesia, o ensaísta Jorge Coli fez a seguinte observação:
O caráter licencioso dessa arte feria as intenções reformadoras das Luzes. Ele logo ficou sendo, para os filósofos, a marca de uma aristocracia decadente que era necessário reformar. Como se sabe, a propaganda revolucionária não hesitaria em insistir sobre a imoralidade do comportamento dos nobres, enquanto sinal visível de um corpo social corrompido. Diderot milita por uma arte regenerada e a burguesia toma para si o exemplo das virtudes, em oposição aos inimigos sociais que se entregam ao vício (COLI, In: NOVAES, 1996, p. 286).
Naturalmente que a transferência de foco da aristocracia para a burguesia resultou na inevitável construção de uma família burguesa idealizada e, portanto, impermeável a problemas éticos e a vícios morais. A verdade, no entanto, é que a estrutura de poder do estado absolutista foi apenas transferida para esse microcosmo social, onde a figura do pai de família passou a desempenhar o papel do monarca absoluto. Cito a propósito uma observação de Willi Bolle:
Na verdade, se houve no século XVIII um deslocamento do poder, da nobreza para a burguesia, isso ainda não é sinônimo de libertação. Antes de ser derrubada, a aristocracia injetou na sua sucessora burguesa o princípio de autoridade, que esta incorporou plenamente, e que ostenta nos patriarcas de um Kafka a sua terrível ressurreição e longevidade (BOLLE, In: LENZ, 1983, p. 23).
Como observou Max Horkheimer (1983) em um ensaio relevante sobre esse tema, coube à família, com a ascensão da burguesia ao poder, e especialmente ao papel dos patriarcas, o direcionamento moral dos indivíduos em uma sociedade pautada por um idealizado conceito de ordem social, cujos pilares estariam fincados na manutenção da disciplina e da moral como instrumentos de controle.
No caso da Alemanha setecentista em especial, cenário do presente trabalho, essa tendência disciplinadora, como observa o germanista francês Michel Grimberg na citação abaixo transcrita, terminou por dominar todos os aspectos emancipatórios de um projeto educacional que tinha as reflexões de Rousseau e Kant a favor da liberdade e da independência como modelo ideal, produzindo, desse modo, um ambiente favorável aos abusos de poder da monarquia e de uma burguesia ansiosa em reproduzir os privilégios da nobreza.
Se o político enquanto conceito operatório não foi pensado pelos dramaturgos das Luzes alemães antes de 1789, não é menos verdade que a ambição educativa, comum a todos os autores, ressaltava indiretamente um projeto de sociedade. Propondo-se a educar, a moralizar, e mesmo a disciplinar o público, a Aufklärung visava tornar os cidadãos úteis ao Estado, respeitando a hierarquia de condições do Império que não é jamais contestada (GRIMBERG, In: Revue Française d’Histoires des Idées Politiques, 1998, p. 291).
Embora essa proposta de educação conservadora tenha se mostrado perfeitamente eficaz na construção das mentalidades germânicas modernas, o fato é que uma corrente de pensamento contrária a esse servilismo burguês também se desenvolveu na contramão desse processo. Refiro-me ao ceticismo de autores que, por sua vez, já se encontrava subterraneamente presente entre os contemporâneos de Diderot e Friedrich Schiller.
Nesse contexto, a atribuição de um projeto único de modernidade aos pensadores e artistas do século das luzes conduziria ao erro de omissão daqueles que se pautavam pela manutenção de uma arte autônoma que acentuava a lógica interna da dimensão artística não se prendendo necessariamente a idealizações de cunho estético e moral.
Caso, por exemplo, do dramaturgo Jakob Michael Reinhold Lenz, cuja obra radical denunciou, com ironia e desconfiança, a tentativa idealista de harmonizar, por intermédio da educação, uma sociedade desigual marcada pela arbitrariedade absolutista e pela violência contra as classes mais baixas. Esquecido durante muitos anos, o responsável por sua reabilitação foi Bertolt Brecht, que em 1950 encenou uma provocativa releitura da comédia O preceptor (Der Hofmeister) .
Rompendo com um teatro de vertente naturalista e psicológica, Brecht propunha o distanciamento crítico dos espectadores, construindo, para isso, uma encenação comprometida com a exposição das mazelas de uma sociedade marcada pela repressão política e, sobretudo, por uma atitude subserviente, fonte daquilo que ele chamou de “o abc da miséria alemã”. Essa expressão, cunhada para o prólogo adicionado à peça de Lenz, procura sintetizar a hostilidade alemã para com qualquer tipo de mudança social, deixando entrever, deste modo, um profundo desprezo pela reflexão, o qual, traduzindo-se em uma aceitação cega da autoridade, impôs-se como um motivo recorrente da moderna história política alemã já a partir do século XVIII. Lido por Läuffer, o preceptor do título, esse prólogo diz o seguinte.
Honorável público, a peça que hoje aqui me traz
Foi concebida cento e cinqüenta anos atrás.
Nela, abrindo as portas do passado
Eu, o antepassado do mestre alemão, sou ressaltado.
Estou ainda a cargo da nobreza
Ensinando os seus rebentos com escassos proventos.
Ensino a eles a Bíblia e alguns modos:
Torcer o nariz, cagar regras e comandar.
Domino todas as ciências elevadas
Eu mesmo sou de origem rebaixada.
Todavia, os tempos estão mudando:
O burguês agora está mandando.
E eu estou pensando noite e dia
Que vou ser-lhe de serventia.
Ele teria em mim, como se diz
A qualquer hora um espírito servil:
A nobreza treinou-me bem
Aparando-me e exercitando
Para que eu só ensine o que convém
E nada irá mudar nesse sentido.
Vou revelar-lhes o que ensino:
O abc da miséria alemã (BRECHT, 1988, p. 13).
Considerando o atraso social, político e econômico da Alemanha do século XVIII em relação às outras nações da época, onde o processo de condicionamento do homem caminhava em função do avanço técnico-científico, essa identidade “subdesenvolvida”, cuja tendência disciplinadora das necessidades do corpo foi exacerbada pela crença luterana, adequou-se perfeitamente ao princípio de autoridade imposto pela monarquia absolutista, e que, posteriormente, seria absorvido sem culpas pela conservadora e obtusa burguesia alemã.
Contrariando o projeto dramatúrgico de G. E. Lessing, para quem a poética de Aristóteles ainda representava o principal ponto de apoio na construção de um teatro de feições burguesas, Lenz optou por uma dramaturgia provocante que, ao invés de suprimir os conflitos latentes, propunha precisamente a exacerbação destes, eximindo-se da função compensatória inerente ao teatro alemão do período, pois, como salienta Willi Bolle, ele “não visa a purificação das paixões do espectador, mas sua inquietação” (BOLLE, 1983, p.27).
Em defesa de uma linguagem coloquial não submetida às leis da gramática, Lenz acreditava que os autores alemães deveriam escrever obras que, ignorando as delimitações de tragédia e comédia estabelecidas pela poética aristotélica, pudessem açambarcar desse modo as contradições entre os aspectos morais e sensuais da natureza humana. Esse coloquialismo salientado por Lenz, e que seria também posto em cena por Brecht, representou uma estratégia no sentido de atingir todas as camadas da população, tentando, por assim dizer, escapar às amarras das regras inibidoras da fala espontânea.
Naturalmente que essa fala não submissa ao caráter normativo da língua culta não se adequava a uma sociedade ciosa de sua missão moralizadora. No caso da Prússia de então, dada a afinidade entre o puritanismo religioso e a autoridade patriarcal, a presença desse lado “selvagem” foi reiteradamente negada em nome da premência na construção de uma moral burguesa de caráter ascético, para a qual qualquer desvio da norma de conduta, fosse de cunho linguístico ou sexual, deveria ser peremptoriamente reprimido, resultando disso uma sociedade permanentemente assombrada pelos fantasmas da culpa religiosa e pelo peso do dever enquanto único direito.
Em relação à sexualidade, por exemplo, a repressão protestante foi extremamente bem-sucedida, visto que aquela foi desde logo regulada como um ingrediente necessário ao funcionamento do núcleo familiar, sendo despida, nesse sentido, de qualquer conteúdo libertador que pudesse possuir.
Derivado do medo burguês do feminino enquanto um elemento desestabilizador da ordem das coisas, o controle do ato amoroso resultou da submissão do corpo à autoridade institucionalizada, acarretando assim um antifeminismo que excluiria a mulher das esferas religiosa e política, opondo, por conseguinte, o controle racional das paixões, principal moto do patriarcado como condutor do progresso burguês, a uma sensibilidade feminina que em certo sentido ainda se encontrava impregnada da noção medieval de amor romântico.
Em sua leitura do trabalho de Adorno e Horkheimer, o ensaísta Paulo Ghiraldelli Jr. nos chama a atenção para a ênfase na cisão entre amor e sexo ocorrida na modernidade. Cito-o:
(...) se, por um lado, em determinado momento ainda na Idade Média, o amor aparece em íntima ligação ao sexo na medida em que é produto de uma subjetividade que se individualiza, à qual a entrega corporal ao outro é um ato de rebeldia contra a família e contra as instituições vigentes – sendo o amor, portanto, fonte e alimento para o surgimento da resistência e da utopia –, por outro lado, ele se dissocia do sexo na medida em que a entrega passa, na modernidade, a se fazer sem as antigas restrições, pois as famílias se modificam e as relações se tornam mais soltas, não envolvendo mais disposição de enfrentamento e de luta antes necessárias. (GHIRALDELLI JR., 1996, p. 105).
Na peça O preceptor, de Lenz, Läuffer é um jovem professor recém-formado que, na falta de outras opções, visto que o exercício do magistério na escola pública era reservado aos inválidos de guerra, é contratado como professor particular na casa de uma aristocrática família prussiana. Nesse microcosmo da situação político-social da Prússia do século XVIII, onde as relações de dinheiro passaram a reger o comportamento das classes sociais, acarretando inclusive o “emburguesamento” da nobreza, o desprestígio hierárquico do protagonista, submetido a vários tratamentos humilhantes. Este desprezo para com a função do preceptor é exemplificado na cena três do primeiro ato, quando Läuffer se encontra pela primeira vez com a Majora, sua futura empregadora.
LÄUFFER: Espero que V. G. fique satisfeita comigo. Não perdi um baile em Leipzig e tive mais de quinze mestres de dança.
MAJORA: É mesmo? Deixe ver. (Läuffer se levanta) Não se acanhe, Sr. ... Läuffer! Não se acanhe! Meu filho já é encabulado o bastante; se dou a ele um preceptor tímido, está tudo perdido. Experimente arrematar o minueto com uma mesura; só uma amostra, para que eu veja. – Hm, hm, nada mal! Por enquanto meu filho não precisa de mestre de dança (...).
(LENZ, 1983, p. 61)
Da mesma forma que as atribuições intelectuais do preceptor são irrelevantes para a tola Majora, pode-se dizer que também para os representantes de outros setores da sociedade prussiana, o administrativo e o militar, por exemplo, as pretendidas funções acadêmicas de Läuffer são fortemente ridicularizadas. O diálogo a seguir é travado entre o Conselheiro Titular, homem culto e consciente das transformações sociais, e seu irmão, o Major, futuro patrão do preceptor.
CONSELHEIRO TITULAR: (…) O que exige do seu preceptor? MAJOR: Que ele – bem – que ensine a meu filho todas as ciências e cortesias e boas maneiras. Não entendo onde você quer chegar com suas perguntas; tudo vai se ajeitar; direi tudo a ele quando chegar o tempo.
C. T.: Quer dizer que você pretende ser preceptor do seu preceptor; pense bem no que está fazendo, - Diga, o que vai ser seu filho?
M.: O que vai ser... Vai ser soldado; um homem como eu.
C. T: Deixe disso, caro irmão; nossos filhos não devem e não podem ser como nós: os tempos, os costumes, as circunstâncias, tudo muda, e se você tivesse sido nada mais nada menos que a cópia do seu avô...
M.: Com os diabos! Se ao menos ele for Major, e um homem valente como eu, e servir ao Rei tão lealmente quanto eu!
C. T.: Muito bem, mas daqui a cinquenta anos teremos talvez um outro rei e um outro modo de servi-lo. Mas não adianta discutir essas idéias com você, seria uma longa história e não levaria a nada. Você só consegue ver pela linha reta que sua mulher traça diante do seu bico.
(LENZ, idem, p. 60)
A cena acima transcrita é um notável exemplo de como eram tratados historicamente os homens de letras na Alemanha. A respeito dessa tendência, Theodor Adorno, em uma palestra proferida no Instituto de Pesquisas Educacionais de Berlim, referindo-se ao papel das instituições de ensino e do professor na sociedade alemã, apresentou uma interessante análise. Cito-o:
O intelecto encontrava-se separado da força física. É certo que sempre detinha uma determinada função na condução da sociedade, mas tornava-se suspeito em qualquer lugar onde as prerrogativas da força física sobreviveram à divisão do trabalho. Este passado distante na história ressurge permanentemente. O menosprezo pelos professores que certamente existe na Alemanha, e talvez inclusive nos países anglo-germânicos, ao menos na Inglaterra, poderia ser caracterizado como o ressentimento do guerreiro que acaba se impondo ao conjunto da população pela via de um mecanismo interminável de identificações. (...) Movidos pelo rancor, os analfabetos consideram como sendo inferiores todas as pessoas estudadas que se apresentam dotadas de alguma autoridade, desde que não sejam providas de alta posição social ou do exercício de poder, como acontece no caso do alto clero. O professor é o herdeiro do monge; depois que este perde a maior parte de suas funções, o ódio ou a ambiguidade que caracterizava o ofício do monge é transferido para o professor (ADORNO, 1995, p. 102-103).
Em meio a humilhações e dificuldades financeiras, Läuffer encontra alívio para seus tormentos apenas nos braços de sua aluna Gustchen, a única filha do Major. O relacionamento sexual entre os dois, no entanto, não resulta em uma mudança de hierarquia ou em uma promessa de felicidade, haja vista que a postura de Gustchen para com Läuffer nunca escapa ao uso do corpo pelo outro, inserindo-a, por conseguinte, na mesma linhagem de Juliette, a personagem do Marquês de Sade considerada por Adorno e Horkheimer como um modelo de exacerbação da racionalidade. A mercantilização da relação amorosa apenas torna socialmente aceitável o dispor dos outros como se dispõe de objetos.
As pessoas assumem em face das outras aquela relação racional, calculadora, que há muito fora proclamada como uma antiga sabedoria no círculo esclarecido de Juliette. O espírito e o corpo são separados na realidade, como haviam exigido aqueles libertinos, que não passavam de burgueses indiscretos (...) A consequência inevitável, implicitamente colocada com a divisão cartesiana do homem na substância pensante e na substância extensa, é proferida com toda clareza como a destruição do amor romântico (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 102-103)
Descobrindo que o desejo de Gustchen não passava de mera leviandade e que sua condição financeira jamais o habilitaria sequer a se candidatar à sua mão, Läuffer conclui que o amor também é um assunto político, cabendo-lhe, por conseguinte, apenas o gosto de uma aventura amorosa resultante de uma relação escusa. O desapontamento de Läuffer é palpável na cena cinco do segundo ato, quando a lembrança de Abelardo ironicamente prenuncia o resultado da culpa do herói.
LÄUFFER: (...) o seu pai agora me veio com essa: no ano que vem quer me pagar só 40 ducados. Assim não dá. Vou ter que pedir demissão (...)
GUSTCHEN: Ó Romeu! Se esta fosse a tua mão! – Assim me abandonas, ingnóbil Romeu! Não vês que tua Julieta está morrendo por ti – odiada, rejeitada, desprezada por sua família e por todo mundo. (aperta a mão dele contra os olhos) Ó desumano Romeu!
L. (olha para ela): Que fantasias são essas?
G.: É um monólogo de uma tragédia que gosto de recitar, quando estou aborrecida (...).
L. (beija longamente a mão dela e fica algum tempo olhando para ela, em silêncio): Acho que vou acabar como Abelardo.
(LENZ, 1983, p. 79-80)
A punição pelo desregramento, no entanto, é levada ao paroxismo, já que torturado pelos conflitos advindos da contradição entre seus impulsos de natureza sexual e sua condição subalterna na hierarquia social, ele decide castrar-se como meio de autoflageloi. Dissertando sobre essa mesma temática, Adorno (1995) observaria que o poeta Friedrich Hölderlin, se castrado fosse, jamais teria se envolvido com sua aluna Diotima, visto que segundo a perspectiva do patriarcado da época, o preceptor nada mais era do que um lacaio diferenciado.
Em um contexto de sujeição do intelectual alemão ao status quo, a cena da castração, especialmente acentuada na encenação de Brecht, representaria não apenas a aceitação das humilhações impingidas pela classe dominante da época, no caso a monarquia, como, sobretudo, a cumplicidade com um sistema opressor que, no caso de Läuffer, implicaria, por intermédio de uma radical supressão da sexualidade, a total submissão da mente e do corpo perante os órgãos repressores dos poderes constituídos, pois, segundo a irônica lógica do mestre-escola Wenzeslaus, Läuffer, agora castrado, poderia se tornar até mesmo um santo!
Wenzeslaus: Algo está lhe pesando na consciência? Diga o que é, conte tudo sem meias palavras. O Sr. está olhando tão assustado que me dá um frio na espinha (…).
Läuffer: (…) não sei se fiz bem – eu me castrei …
W.: O qu – O sr. se cas – mas queira aceitar os meus parabéns, meu excelente rapaz (…) Deixe-me abraçá-lo, precioso instrumento da vontade divina! (…) assim é que é meu caro amigo! Siga esse caminho e algum dia o sr. será um lumiar da Igreja, uma estrela de primeira grandeza, até mesmo um santo.
(LENZ, idem, p. 111-112)
Exilado de seus “sentimentos” (Regungen) em nome de uma sociedade que o castra, o corpo é aceito apenas como um objeto do qual se pode se servir. Trata-se de uma total institucionalização do controle da subjetividade. É sob esse mesmo prisma que Heiner Müller na década de 1990, ao ressaltar a ignorância de funcionários do partido comunista da então Alemanha Oriental, não estaria acusando a presença desta característica intrínseca ao comunismo, mas sim a reincidência dessa mesma aversão ao intelecto apontada por Adorno. Seguem as palavras de Müller:
Mas a resistência à inteligência não tem nada a ver com a estrutura do comunismo. É exclusivamente alemã. Em nenhum outro país o intelectual é tão odiado quanto na Alemanha. Nessa medida, o Partido Comunista só transporta a bandeira nacional do caráter popular. Isso tem a ver com a encrencada história alemã: a revolução nunca se realizou (...) (MÜLLER, In: Vintém, Companhia do Latão, 2004, p. 27).
Como afirma Müller, essa resistência à inteligência estaria ligada a um sentimento de desprezo do povo alemão com relação ao pensamento libertário, o que explicaria, segundo ele, a ausência de uma revolução burguesa na Alemanha. O final de O preceptor, na versão de Brecht, dispensa sutilezas em relação a sua mensagem final: livrar-se da subserviência. A fala é de Läuffer:
Apresentamos a comédia até o fim.
Na fé de não ter divertido tanto assim.
Assistiram à miséria do povo alemão
E cada qual em sua resignação.
Passaram-se cem anos, coisa e tal.
Mas hoje ainda continua igual.
Viram o professor alemão
Subir ao calvário da gozação.
Um pobre diabo tão desfolado
Para quem frente e trás é o mesmo lado.
Nesta parábola sobrenatural
Caça-se a si próprio no final.
Extermina seu poder de procriação
Que só lhe trouxe tormento e confusão.
Entregando-se aos prazeres da natureza
É mal-visto e desagrada à nobreza.
Por mais que se esforce pelo ganha-pão
Mais os senhores lhe pedem a mão.
E só depois de mutilado e capado
É reconhecido pelo abastado.
Agora sua missão é castrar
Ao pobre aluno que for ensinar.
Saiba sempre: o mestre alemão
É produto e produtor de humilhação!
Alunos e professores da nova era,
Observem a subserviência e livrem-se dela! (BRECHT,1988,p. 70-71)

BIBLIOGRAFIA:

ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Tradução Wolfgang Leo Maar. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1995.
__________; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
BOLLE, Willi. “Uma peça para todos”, In: LENZ, Jakob Michael Reinhold. O preceptor ou vantagens da educação particular: uma comédia. Tradução, estudos críticos e materiais para uma montagem Willi Bolle, Erlon Paschoal e Flávio Quintiliano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. (Coleção Biblioteca Alemã).
BRECHT, Bertolt. Teatro completo. Tradução Wolfgang Bader et al. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. (Coleção Teatro, 11).
COLI, Jorge. Dos libertinos aos estóicos, ou seja, de um erotismo a outro. In: NOVAES, Adauto. (Org.) Libertinos libertários. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 283-302.
GHIRALDELLI JR., Paulo. O corpo de Ulisses: modernidade e materialismo em Adorno e Horkheimer. São Paulo: Editora Escuta, 1996.
GRIMBERG, Michel. Théâtre et politique en Allemagne au XVIIIe siècle. In: Revue Française d’Histoires des Idées Politiques – Théâtre et politique: de la fin du Moyen Age à nos jours. 1998. p. 277-292.
HORKHEIMER, Max. Autoridade e família. Lisboa: Apáginastantas, 1983.
LENZ, Jakob Michael Reinhold. O preceptor ou vantagens da educação particular: uma comédia. Tradução, estudos críticos e materiais para uma montagem Willi Bolle, Erlon Paschoal e Flávio Quintiliano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. (Coleção Biblioteca Alemã).
MÜLLER, Heiner. “Necrofilia é amor ao futuro”, In: VINTÉM: Companhia do latão. Programa municipal de fomento ao teatro para a cidade de São Paulo. São Paulo, 1º sem. 2004.


i No texto de Lenz, a cena da emasculação não é mostrada, sendo o resultado da ação revelado pela boca do próprio Läuffer no último ato da peça.
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