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Literatura e Autoritarismo
Dossiê “Escritas da Violência”
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê  

CRÍTICA AO PATRIARCALISMO E AO DISCURSO AUTORITÁRIO EM LAVOURA ARCAICA, DE RADUAN NASSAR1

Ana Carolina Sá Teles2
Resumo: O presente trabalho pretende refletir sobre as proposições de crítica ao patriarcalismo e ao discurso autoritário no romance Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, a partir de uma abordagem interdisciplinar que considere relações entre literatura e sociedade.
Palavras-chave: Lavoura arcaica, patriarcalismo, discurso autoritário, crítica cultural.
Abstract: The purpose of this paper is to reflect on the proposals of criticism against patriarchalism and authoritarian discourse in Raduan Nassar’s novel Lavoura arcaica with a multidisciplinary approach that takes into consideration the associations between literature and society.
Keywords: Lavoura arcaica, patriarchalism, authoritarian discourse, cultural criticism.

Lavoura arcaica foi publicado no período da ditadura militar, em 1975. Entretanto, quando pensamos na crítica ao autoritarismo proposta por este romance não nos é possível alcançar uma perspectiva que estabeleça referências demarcadas a pontos de tempo e espaço na realidade externa, pois Lavoura arcaica é privado desse tipo de coordenada, o que contribui, inclusive, para maiores significações estéticas da obra.
Em O tempo na narrativa, Benedito Nunes já chamara a atenção para o vínculo entre o tempo narrativo e a evocação do mito em romances modernos, inclusive, em Lavoura arcaica. Assim, para Nunes, Lavoura arcaica seria um dos romances modernos que tematizam o tempo em consonância com o mito, abolindo a sucessão temporal para chegar, paradoxalmente, a uma “figuração da eternidade” (Nunes, 1988, p. 68-69).
Contudo, ao lado do tempo espiralado da trama e da fundamental evocação do mito – seja o do paraíso edênico, o do filho pródigo ou o da arquetípica sanção paterna, entre outros –, em Lavoura arcaica, há também a presença de elementos que constituem referências intertextuais à realidade externa da sociedade brasileira como, por exemplo, a insidiosa violência do patriarcalismo e do discurso autoritário.
Dessa forma, ao pensar em proposições críticas ao patriarcalismo em Lavoura arcaica, propõe-se, neste artigo, primeiramente, uma retomada teórica de estudos sobre a família no Brasil. Por outro lado, será desenvolvida, posteriormente, uma reflexão sobre Lavoura arcaica enquanto um romance de linguagem de resistência, que critica e subverte a configuração do discurso autoritário.
Os estudos sobre a família no Brasil possuem um representante pioneiro na obra Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil, de Gilberto Freyre, desenvolvida a partir da década de 1930.
A obra de Freyre sobre a sociedade patriarcal no Brasil constitui-se de vários volumes e não pôde ser concluída. Ao longo desses ensaios, Freyre pretendia reconstituir a história da sociedade patriarcal em seus aspectos íntimos, desde seu nascimento na colônia, até a sua morte, após a implementação do regime de trabalho livre.
O segundo ensaio da série, Sobrados e mucambos, aborda a decadência do patriarcado rural e o desenvolvimento do patriarcado urbano, sobretudo, no século XIX. Freyre passa a analisar, portanto, as contradições advindas de uma manifestação incipiente de urbanização causada pela fuga da família real ao Brasil, com D. João VI, e pela conseqüente abertura dos portos em 1808.
Uma dessas contradições seria a rivalidade entre moços e velhos, historicamente propulsionada, no século XIX, pelo embate entre os preceitos metropolitanos e as oligarquias constituídas pela elite rural. Contudo, Freyre faz notar que a rivalidade entre o homem e o menino já existia muito anteriormente no Brasil colônia.
Assim, o autor explica que o menino era idealizado até a idade de seis anos – sendo cultuado como anjo, se morto nesse período – passando, entretanto, depois dessa idade, a ser visto como um “menino demonizado” (Freyre, 2000, p. 98), que deveria envelhecer forçosamente, tendo vergonha da sua juventude.
Em relação à “demonização” do menino comentada por Freyre, é interessante observar o quanto se revela, nesse ponto, a presença da violência corporal ligada a uma sociedade escravista, na qual o poder do patriarca era ilimitado. Cito Freyre:
E porque se supunha essa criatura estranha [o menino], cheia do instinto de todos os pecados, com a tendência para a preguiça e a malícia, seu corpo era o mais castigado dentro de casa. Depois do corpo do escravo, naturalmente. Depois do corpo do muleque leva-pancada, que às vezes apanhava por ele e pelo menino branco [grifo meu] (Freyre, 2000, p. 98).
O domínio do pai sobre o filho menor – e mesmo maior – fora no Brasil patriarcal aos seus limites ortodoxos: ao direito de matar. O patriarca tornara-se absoluto na administração da justiça de família, repetindo alguns pais, à sombra dos cajueiros de engenho, os gestos mais duros do patriarcalismo clássico: matar e mandar matar, não só os negros como os meninos e as moças brancas, seus filhos (Freyre, 2000, p. 99).
Não podemos deixar de observar, contudo, que apesar de a obra de Freyre constituir uma denúncia da violência propulsionada pela mentalidade e pela prática escravistas no Brasil, o próprio texto apresenta um tom escravocrata, colocando-se, portanto, em controvérsia.
Antonio Candido, em artigo intitulado “The Brazilian Family”, de 1951, cita a clássica representação, na tradição, lenda e literatura, do pater-familias proveniente de Portugal como um “líder autoritário e truculento” (Candido, 1951, p. 291). Candido observa que, nesse contexto medieval, onde as posses e a dignidade do pater-familias dependiam da “energia individual”, a violência fazia-se constantemente necessária para alimentar e ostentar essa característica (Candido, 1951, p. 292).
Em outro ponto do artigo, Candido também afirma que a autoridade paterna era ilimitada no Brasil do século XVI ao XIX (Candido, 1951, p. 295). O autor explica que o irrefreado poder paterno decorria do fato de que os filhos permaneciam submissos aos pais até a morte destes, vivendo em suas casas, já que a impossibilidade de escolha de profissões resultava na passagem de um mesmo ofício entre diversas gerações da linha masculina, o que, conseqüemente, nutria relações de dependência (Candido, 1951, p. 295).
Candido cita exemplos de assassinatos e agressões do século XVII ao XX que partiam da iniciativa paterna contra filhos, filhas e, por vezes, contra os amantes destes, em casos de fuga, rebelião ou amor que representassem uma ruptura da “honra familiar” (Candido, 1951, p. 295). O autor, contudo, faz a ponderação de que exemplos desse tipo constituem exceções, embora, segundo suas próprias palavras: “ilustrem o alcance do poder paterno, na família patriarcal” (Candido, 1951, p. 295).
Se passarmos, por outro lado, aos estudos posteriores sobre a família no Brasil, constataremos que a crítica da nova produção desenvolvida nas décadas de 80 e 90, dirige-se, de certa forma, à historiografia tradicional sobre o tema, em especial, a Gilberto Freyre e às conseqüências provenientes de sua obra como, por exemplo, a generalização da compreensão da “família brasileira” enquanto “família patriarcal ou extensa”.
Assim, Eni Mesquita de Samara, em A família brasileira, questiona lacunas e contradições existentes em torno da generalização da estrutura familiar brasileira como “família patriarcal”. Samara, pela análise de recenseamentos e testamentos do século XIX, observa que a maioria das casas em São Paulo era habitada por poucos integrantes e que apenas 24% das famílias paulistas poderiam ser consideradas famílias de “tipo patriarcal” (Samara, 1984, p. 17).
Por esse fator e por tantos outros apresentados como, por exemplo, a pouca tolerância em relação à ilegitimidade e um índice não muito significativo do número de filhos, a família paulista seria “predominantemente nuclear” e de “poucos integrantes” (Samara, 1984, p. 34), contrariando, portanto, a configuração da família patriarcal, constituída pelo núcleo e seu grande número de agregados pertencentes à periferia.
Samara também vai contra outros estereótipos em torno da família brasileira como, por exemplo, o da mulher submissa e indolente na colônia3, argumentando que as mulheres das camadas pobres eram, muitas vezes, responsáveis pelo sustento econômico familiar (Samara, 1984, p. 61), ou então, compelidas à prostituição, vivendo num outro padrão de moralidade (Samara, 1984, p. 75).
Ademais, Samara dedica um capítulo à análise de documentos relativos ao divórcio, nos quais, os motivos de separação conjugal, bem como o seu desenrolar, apresentam protestos e atitudes de mulheres contrários aos das clássicas imagens femininas veiculadas pela historiografia tradicional (Samara, 1984, p. 80).
Entretanto, ressaltemos que, evidentemente, as contradições apresentadas por fontes históricas aos estudos tradicionais não significam, de forma alguma, como observa a autora, que fosse menor “a limitação da participação feminina frente aos privilégios masculinos” (Samara, 1984, p. 58).
Mary Del Priore, por sua vez, em A mulher na história do Brasil, ao abordar o período de povoamento da colônia, conclui que a representação casta ou pura da mulher não condizia com sua realidade social, na qual, uma considerável quantidade de mulheres era impelida ao trabalho ou à prostituição, além de ignorar a apologia do discurso erudito cristão de sujeição do corpo feminino, criando, assim, uma ética própria de formação familiar como, por exemplo, o concubinato (Priore, 1988, p. 59).
Outros exemplos de diferentes abordagens sobre a família estão presentes na coletânea Amor e família no Brasil, de 1989. Assim, no artigo “O crime do amor”, Fernando Torres Londoño, ao investigar documentos da Visita Pastoral de 1785 a Cuiabá, aponta que um grupo marginalizado constituído por “brancos pobres, mulatos, negros e índios” (Londoño, 1989, p. 24) convivia rotineiramente, antes das Visitas Pastorais, com práticas amorosas e conjugais nas formas de concubinato, incesto e adultério, relevando os discursos oficiais da Igreja e do Estado.
Esses estudos mais recentes opuseram-se, portanto, a uma abordagem tanto generalizada do tema “família brasileira”, quanto ao privilégio concedido ao ponto de vista da estrutura familiar das camadas dominantes, ou seja, a família patriarcal, ampliando, por sua vez, o debate acadêmico sobre a multiplicidade dentro da temática familiar e amorosa no Brasil a diferentes espaços, tempos ou estratos sociais.
Contudo, pensar sobre o questionamento do patriarcalismo em Lavoura arcaica, faz-nos passar pela forma como o romance dialoga com as representações clássicas da família no Brasil, dado que a composição do personagem paterno Iohána dialoga com as imagens de patriarcas assassinos de seus filhos, presentes na historiografia sobre o tema, como visto anteriormente4.
Voltando a Freyre, portanto, é interessante notar que a discussão sobre a generalização do conceito de família patriarcal proposta por sua obra vem de longa data. Mesmo os seus contemporâneos questionaram a validade do método adotado.
Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, em ensaio intitulado “Sociedade patriarcal”, apesar de qualificar a obra de Freyre como “verdadeiramente monumental” (Holand, 1979, p. 98), aponta para o problemático fator de que outras regiões na colônia não apresentavam como elementos predominantes de suas organizações sociais o latifúndio rural, a monocultura, o trabalho escravo e a família patriarcal, sendo essa controvérsia um motivo relevante para a não aceitação da obra freyriana (Holanda, 1979, p. 101-102).
Na Introdução à 2ª edição de Sobrados e Mucambos, de 1956, Freyre defende que a família patriarcal constituiria o principal elemento sociológico de “formação do caráter brasileiro”, sendo, portanto, segundo as palavras do autor, a “chave de interpretação capaz de abrir o maior número de portas” (Freyre, 2000, 752). Ademais, no Prefácio à 2ª edição, Freyre afirmaria que variações na “substância” entre as regiões brasileiras – ou seja, variações de elementos materiais – não significariam que a “forma” da família patriarcal deixasse de ser pertinente à interpretação de toda a sociedade brasileira.
Contudo, Sérgio Buarque de Holanda, no ensaio citado acima, não deixa de observar que o argumento apresentado por Freyre em relação às “diferenças de conteúdo”, mas não “de forma” entre as regiões, seria questionável, já que a própria obra de Freyre demonstrava grande entusiasmo relativo à história de objetos pertencentes ao cotidiano do meio humano, ou seja, a aspectos concernentes ao plano do “conteúdo”, e não da “forma” (Holanda, 1979, p. 102-103).
Mais incisivo ainda é o questionamento de Sérgio Buarque em relação ao fato de que a forma da sociedade brasileira não se encontraria em nenhuma região da colônia, mas seria, ao contrário, proveniente da Europa. Sérgio Buarque, portanto, defende a tese mais provável de que os modelos eurocêntricos foram aqui adaptados às circunstâncias coloniais:
O alfa da constelação de regiões tão claramente diferenciadas entre si, que se formaram nesta América portuguesa, estaria pois, na Europa lusitana e ibérica, não no mundo da casa-grande e senzala ou em alguma outra área regional da colônia (Holanda, 1979, p. 105).
Contudo, para além dessas discussões em torno da obra de Freyre sobre a sociedade patriarcal, interessa-me citar, neste artigo, um excerto em especial da Introdução à 2ª edição de Sobrados e mucambos que, em si, não apresenta qualquer atributo mais relevante em relação à obra geral do sociólogo.
Mas, se tivermos em perspectiva a sociedade patriarcal ou o patriarcalismo enquanto um conjunto de representações pertinentes à história e à sociedade brasileira, torna-se imprescindível o confronto com alguns padrões imaginários de figurações discursivas em torno do tema, questionando-os para, por outro lado, refletir sobre o questionamento desses mesmos padrões em Lavoura arcaica, de Raduan Nassar.
Vimos que se, por um lado, historicamente, os discursos oficiais de formação da sociedade brasileira muito devem à constituição familiar patriarcal enquanto uma instância de poder e de alianças econômicas, desde o passado colonial, por outro lado, podemos pensar ainda nos resquícios de mitos patriarcais, nos dias contemporâneos, revestidos sob outras formas.
Roberto Reis, em artigo intitulado “Representations of family and sexuality in brazilian cultural discourse”, questiona justamente a pertinência de um discurso modernizador em relação ao Brasil no século XX. O autor pensa a família e a sexualidade no país menos por dados empíricos que por representações discursivas freqüentemente reveladoras da presença do conservadorismo e da lógica das articulações do poder nas mencionadas instâncias.
Assim, Reis cita, entre outros exemplos, que produções da indústria cultural, como revistas femininas atuais, reafirmariam, de forma apenas superficialmente moderna, velhas imagens relativas ao casamento (Reis, 1996, p. 81). Por outro lado, atualmente, traços escravocratas seriam mantidos na relação com empregados, na classe média (Reis, 1996, p. 80), além de padrões machistas de comportamento serem internalizados na estrutura familiar e na divisão do trabalho doméstico, especialmente nas camadas pobres do país (Reis, 1996, p. 103).
Se voltarmos a Freyre, encontraremos um interessante excerto com uma amostra sintética de uma figuração imaginária conservadora em relação à família patriarcal no Brasil, em 1956. Cito o autor:
[...] Como família patriarcal, ou poder tutelar, porém a energia da família está quase extinta no Brasil; e sua missão bem ou mal cumprida.
Suas sobrevivências terão, porém, vida longa e talvez eterna não tanto na paisagem quanto no caráter e na própria vida política do brasileiro. O patriarcal tende a prolongar-se no paternal, no paternalista, no culto sentimental ou místico do Pai ainda identificado, entre nós, com as imagens de homem protetor, de homem providencial, de homem necessário ao governo geral da sociedade; o tutelar – que inclui a figura da mãe de família – tende a manifestar-se também no culto, igualmente sentimental e místico, da Mãe, identificado pelo brasileiro com imagens de pessoas e ou instituições protetoras: Maria, Mãe de Deus e Senhora dos Homens; a madrinha; a mãe – figuras que freqüentemente intervêm na vida política ou administrativa do país, para protegerem, a seu modo, filhos, afilhados e genros.
De maternalismo, ou maternismo, se mostra, na verdade, impregnado quase todo brasileiro de formação patriarcal ou tutelar. Era como se no extremo amor à mãe ou à madrinha ou à mãe preta o menino e o próprio adolescente se refugiasse do temor excessivo ao pai, ao patriarca, ao velho – senhor, às vezes sádico, de escravo, de mulheres e de menino (Freyre, 2000, p. 764-765).
Podemos afirmar, portanto, que a projeção da forma da sociedade patriarcal realizada por Freyre não se estendeu apenas a uma generalização espacial, mas também a uma generalização temporal que previa um longo futuro para o paternalismo no Brasil, pois, nesse trecho, Freyre investe numa aposta mítica em relação à permanência de características psicossociais vinculadas à configuração da família patriarcal, mesmo após o período em que esta já tivesse desaparecido materialmente.
Com Reis, em 1996, vemos a crítica e os questionamentos relativos à modernização da sociedade no Brasil justamente pela articulação de exemplos que sugerem a permanência discursiva de modelos conservadores quanto à família e à sexualidade, que entrelaçam, freqüentemente, as instâncias de sexo e de gênero com as de poder.
Com Freyre, em 1956, também vemos a sugestão da continuidade das determinações entre gênero e poder estabelecidas séculos antes no seio da família patriarcal, contudo, a afirmação desenvolve-se em tom afirmativo e sentimental em relação a esse modelo familiar já extinto.
No excerto freyriano, colocam-se em cena o papel do Pai, entidade mística e necessária ao comando do bem geral, e o papel da Mãe, figura política secundária, mas, freqüentemente interventora, além de prioritariamente afetiva, apresentando um contraponto ao sadismo do poder masculino.
Não se poderia deixar de abordar quanto à construção social de representações polarizadas dos gêneros em relação a estruturas de manipulação de poder, o conto Menina a caminho, datado dos anos 60, provavelmente o primeiro conto de Raduan Nassar.
Em Menina a caminho, as representações clássicas do culto do pai como homem necessário ao governo e da mãe enquanto mulher mariana e pura são questionadas numa narrativa em terceira pessoa que desenvolve o trajeto circular ou espiral de uma menina numa cidade interiorana.
O conto de Nassar dialoga, notavelmente, com os resquícios da estrutura do padrão duplo de moralidade, proveniente dos tempos do Brasil colônia, e com as relações autoritárias inerentes à estrutura da família nuclear.
O padrão duplo de moralidade residia na prática de que o homem deveria exibir e afirmar sua virilidade, havendo, portanto, mulheres cuja função era a sexual e, por outro lado, mulheres cujas funções eram as de mãe, esposa ou algum outro papel dentro da família, sendo mantidas à grande distância do exercício da sexualidade. Dessa forma, o homem deveria transitar entre os dois espaços, enquanto as mulheres ficariam confinadas a um dos lados, sem direito a ambigüidades.
Assim, no domínio do texto literário, lemos em Menina a caminho, por exemplo, a atitude do barbeiro de santificar a mãe em resposta à generalização do palavrão “filho-da-puta” por parte de outro personagem no espaço prioritariamente masculino da barbearia. Cito o conto:
“Quem não é filho-da-puta entre os caras que passam o dia na sapataria do Filó? Na verdade, não tem ninguém, ninguém nesta cidade – ou não importa em que outra cidade – que não seja um filho-da-puta. E vocês nem precisam me lembrar o que eu já sei, sei mais do que ninguém que eu também sou um filho-da-puta, mas tudo isso não me impede de dizer que ele, o Américo, este sim é um filho-da-puta, e que ele não perdeu nem um pouco por esperar.” [...]
“Essa não, seu moço, essa não.” [...] “Se você acha que você é um filho-da-puta, isso é lá problema teu, não sou eu que vou te proibir de se achar assim, você pode se achar isso e mais aquilo, e te digo que você pode até mesmo se achar o que o Américo vive dizendo de você, mas daí você partir pr’esse papo...essa não, seu moço, essa não, minha mãe é uma santa!” [...]
“Minha mãe é uma santa!” insiste o barbeiro desbaratando mais a roda cada vez que levanta exaltado o braço com a navalha na mão. “Minha mãe é uma santa!” (Nassar, 1997, p. 21-23).
É interessante notar que o narrador dirige-se a recortes aparentemente banais do cotidiano que, entretanto, apresentam o contraponto de um discurso ascético em relação à figura materna. Ou seja, nas paredes da barbearia, o olhar intruso da menina a caminho alcança também “a loira pelada da folhinha” e o “retrato emoldurado de Getúlio Vargas” (Nassar, 1997, p. 20), que agem, alegoricamente, como complementares à santa figura materna pronunciada pelo barbeiro.
Vargas, ademais, é referido explicitamente, em trecho posterior, como a figura de pai necessário ao governo, quando, no bar, insurge-se uma reação contra o discurso oposicionista proferido pelo personagem insano Zé-das-palhas.
Assim, da porta, alguém dizendo repetidamente “Getúlio é nosso pai!” reage aos protestos contra Vargas que Zé-das-palhas vinha pronunciando a uma roda de pessoas que dele zombava, tratando-lhe como louco (Nassar, 1997, p. 30). O retrato emoldurado de Vargas faz-se presente, aliás, em muitos ambientes da cidade.
A crítica ao mito do pai como figura de autoridade, faz-se presente, sobretudo, na parte final do conto, quando a mãe da menina é chicoteada pelo marido Zeca Cigano. Nessa cena, a vizinha reage com as seguintes súplicas ao chefe de família: “Piedade pra tua mulher, Zeca, piedade!”; “Você está louco Zeca? Piedade! Piedade! Piedade!” (Nassar, 1997, p. 47); palavras estas que retomam, melancólica e ironicamente, a fórmula cristã de oração dirigida a Deus. Esse espancamento, aliás, ocorre em razão de um caso amoroso da mãe, que não se delineia claramente pelo enredo da narrativa.
Portanto, em Menina a caminho, as clássicas representações míticas do pai e da mãe que encontramos como respectivamente necessárias ao governo e à estabilidade da sociedade brasileira, no excerto de Gilberto Freyre citado acima, surgem contrapostas a resquícios do padrão duplo de moralidade, além de aparecerem atreladas, de forma crítica, ao exercício da violência e do autoritarismo, tanto em níveis de micropoder, dentro da família nuclear, quanto em níveis de macropoder referentes à política do país.
O desenvolvimento do foco narrativo nesse conto de Nassar seria, aliás, diferente de sua obra restante, em que temos o romance Lavoura arcaica e a novela Um copo de cólera, bem como os outros contos publicados no Brasil, narrados em primeira pessoa.
Em Ventre seco, por exemplo, o narrador em primeira pessoa dirige-se a uma segunda pessoa, a personagem Paula, constituindo um discurso que se aproxima da configuração epistolar, mas que também se distancia deste gênero pelo explícito exercício retórico de argumentação. Já no conto Aí pelas três da tarde, a presença da função conativa é relevante, havendo grande articulação do apelo sobre o receptor.
Dessa forma, podemos observar que, em Menina a caminho, o narrador constitui uma instância distanciada da protagonista, revelando, contudo, de sua parte, uma adesão consistente à causa da personagem infantil que se encontra na posição mais fraca de uma sociedade patriarcal instituída.
Assim, conhecemos pela articulação incisiva do narrador os desejos cotidianos da menina coloridos de uma curiosidade ativa, mas escondida, bem como suas experiências de exclusão nos espaços da cidade, e os seus choques face à violência no armazém de Américo, em casa, e na visão de seu “sexo emoldurado” no espelho (Nassar, 1997, p. 49).
Em Lavoura arcaica, por outro lado, confrontamo-nos com um narrador em primeira pessoa. Portanto, pensar em como se configuram proposições de crítica no romance leva-nos à abordagem do próprio narrador-protagonista enquanto sujeito crítico de sua história.
Primeiramente, podemos afirmar que as proposições de crítica ao patriarcalismo e ao discurso autoritário estão intrinsecamente vinculadas em Lavoura arcaica, fator decorrente da configuração do personagem paterno que, logicamente, mescla em si o exercício do poder patriarcal e o exercício do discurso autoritário.
Dessa forma, a família é concebida, no romance, como “ordem que gera excluídos”. Ademais, a palavra ordem, poderíamos afirmar, comporta, no caso, a dupla acepção observada pelo personagem chacareiro de Um copo de cólera. Cito o personagem: “‘ordem’, palavra por sinal sagaz que incorpora, a um só tempo, a insuportável voz de comando e o presumível lugar das coisas” (Nassar, 1984, p. 59).
Max Horkheimer, em artigo da Teoria Crítica, realça a predominância da família enquanto instituição formadora do comportamento autoritário para a “sobrevivência na ordem burguesa” (Horkheimer, 1990, p. 214). Horkheimer cita que, no desenvolvimento histórico da família, reforçou-se cada vez mais o uso da razão como um elemento na educação para a autoridade, o que acarretaria no ajustamento da criança aos outros, no curvar-se e obedecer (Horkheimer, 1990, p. 215).
Assim, o indivíduo criado dentro da família patriarcal encara a hierarquia da ordem burguesa, ou seja, a hierarquia exterior à casa, como algo natural, bem como, para ele, seriam naturais, por exemplo, a pobreza e a riqueza (Horkheimer, 1990, p. 216), pois, na infância, o poder paterno paradigmático que é, na verdade, socialmente determinado, aparece-lhe como um fator inato (Horkheimer, 1990, p. 219).
Dessa forma, a criança aprende a se curvar perante o pai, que é a autoridade e o senhor, não porque este mereça ou seja digno, mas sim porque ele possui mais força e o dinheiro e, aparentemente, de forma natural (Horkheimer, 1990, p. 216-219). Obedecer ao “existente” e à “autoridade objetivada” seria, portanto, a primeira escolha “racional” e “mesquinha” desenvolvida pela criança burguesa (Horkheimer, 1990, p. 219-220).
Horkheimer comenta, portanto, que o respeito à “objetivação da autoridade”, na família e sociedade burguesas, não ocorre numa relação em que um sujeito subordina-se a outro em razão da superioridade ou dignidade deste último, pelo contrário, a autoridade institui-se enquanto elemento inexorável e inquestionável do superior (HORKHEIMER: 1990, p. 217).
No narrador-protagonista de Lavoura arcaica, encontramos um personagem que não admite ajustar-se realmente à ordem e que se afirma como excluído e demoníaco. Cito, portanto, André, primeiramente em fala à irmã Ana, e, no segundo trecho, em fala ao primogênito Pedro:
“é um fato corriqueiro, querida Ana, pelo qual sempre passamos feitos sonâmbulos, mas que, silencioso, é ainda o maior e mais antigo escândalo: a vida só se organiza se desmentindo, o que é bom para uns é muitas vezes a morte para outros, sendo que só os tolos, entre os que foram atirados com displicência ao fundo, tomam de empréstimos aos que estão por cima a régua que estes usam para medir o mundo; como vítimas da ordem, insisto que não temos outra escolha, se quisermos escapar deste conflito: forjarmos tranqüilamente nossas máscaras, desenhando uma ponta de escárnio na borra rubra que faz a boca” (Nassar, 2006, p. 133).
“era eu o irmão acometido, eu, o irmão exasperado, eu, o irmão de cheiro virulento, eu, que tinha na pele a gosma de tantas lesmas, a baba derramada do demo, [...]” (Nassar, 2006, p.108).
Portanto, a crítica elaborada por André aos sermões do pai origina-se do ponto de vista daquele que se encontra entre os “atirados com displicência ao fundo” (Nassar, 2006, p. 133), ou seja, aqueles que foram postos à margem por não compartilharem dos valores vigentes impostos pala ordem social.
Deve-se ressaltar, contudo, que não é uma simples oposição ao sermão paterno que se desenvolve “em cada letra” da “história passional” de André (Nassar, 2006, p. 138) e, justamente, nesse sentido, pode-se falar de proposição crítica ao discurso autoritário paterno.
Ou seja, André reflete criticamente sobre as palavras do pai, diferentemente de Pedro, o primogênito, que as reproduz servilmente, ou de Lula, o caçula, que descarta os sermões paternos, com vistas à fuga inconseqüente e libertária.
André, pelo contrário, desenvolve um narrar ambivalente que se propõe à tarefa de implodir os sermões e a parábola enunciados pelo pai. Assim, num acesso de fúria, o personagem diz o seguinte a Pedro sobre as palavras paternas:
“[...] era ele [o pai] sempre dizendo coisas assim na sua sintaxe própria, dura e enrijecida pelo sol e pela chuva, era esse lavrador fibroso catando da terra a pedra amorfa que ele não sabia tão modelável nas mãos de cada um” (Nassar, 2006, p. 42).
Podemos, portanto, desenvolver a leitura de que a pedra monolítica do discurso autoritário paterno apresenta-se como extremamente modelável às mãos do filho pródigo, permitindo a André empreender as mais inusitadas formatações e interpretações dos sermões do pai. Assim, o narrador-protagonista elabora uma enunciação responsiva cuja linguagem é a de resistência, isto é, fragmentária de todo sentido que se queira cristalizado, como ocorre, por exemplo, na atitude dialógica de apropriação crítica da Parábola do faminto.
Dessa forma, observamos textualmente que as palavras de André são freqüentemente retomadas das palavras paternas, sendo empregadas, contudo, com sua semântica solapada, e transtornadas em sua tonalidade expressiva pela transfiguração arquitetada pelo filho.
Dessa forma, ao imperativo da submissão individual por relação ao bem coletivo, no sermão do pai, que afirma – “o amor na família é a suprema forma de paciência; o pai e a mãe, os pais e os filhos, o irmão e a irmã: na união da família está o acabamento dos nossos princípios;” (Nassar, 2006, p. 60) – André responde, por exemplo, com o amor familiar na forma do incesto, prática que contraria a fundação e as bases da civilização humana, conforme defendido tanto pela leitura de Freud a respeito do tema, quanto pela de Lévi-Strauss.
Às ordenações absolutas do sermão – “ninguém ainda em nossa casa há de começar nunca as coisas pelo teto: começar as coisas pelo teto é o mesmo que eliminar o tempo que se levaria para erguer os alicerces e as paredes de uma casa;” (Nassar, 2006, p. 53) –, o narrador-protagonista André responde com a abertura da narrativa, lançando, desde a primeira frase, sua postura lírica – “Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto” (Nassar, 2006, p. 7).
Se recorrermos à filosofia da linguagem proposta por Bakhtin e Volochinov, podemos afirmar que o desenvolvimento do discurso citado, tanto por meio do emprego do discurso indireto quanto do direto, em Lavoura arcaica, encontra-se no domínio dos discursos citados não-lineares. Ou seja, constituem citações que abarcam não apenas o conteúdo, mas também a forma do discurso de outrem, mantendo sua individualidade, “relativizando-o” e “colorindo-o”, simultaneamente, com as próprias réplicas e “entonações” do autor ou narrador, sejam elas de “ironia, humor, ódio ou desprezo” (Bakhtin; Volochinov, 1988, p. 150).
Beatriz Sarlo, ao debater as relações entre literatura e autoritarismo, explica que o discurso autoritário sustenta-se por relações de coerção, ou seja, pelo evidenciamento da autoridade do enunciador e pela instituição de um interlocutor ideal (Sarlo, 1991, p. 32-33). Dessa forma, o discurso autoritário é performático e visa à sujeição ou eliminação de outrem, sendo, portanto, monolítico, fugindo da ambigüidade, ao impor, com a articulação do poder, verdades e sentidos únicos ao campo simbólico (Sarlo, 1991, p. 33).
O discurso literário constitui, por sua vez, o contra-modelo formal do discurso autoritário, por fragmentar, através da exploração polissêmica do signo, a noção identitária, além de romper qualquer relação cristalizada entre discurso e realidade externa (Sarlo, 1991, p.33).
Nos excertos anteriormente citados de Lavoura arcaica, refletimos sobre as réplicas discursivas desenvolvidas pelo narrador-protagonista André num movimento de ambivalência constitutiva em relação ao discurso autoritário paterno – André tanto se aproxima das palavras do pai, quanto delas se afasta por uma mediação crítica, opositora ou irônica.
Contudo, ainda podemos refletir sobre outras perspectivas de proposições críticas na configuração formal de Lavoura arcaica, ao abordar, justamente, as ambivalências do narrador-protagonista na trama do romance.
Ou seja, enquanto é possível a defesa do narrador de Lavoura arcaica como um enunciador de uma linguagem de resistência que desmantela o discurso autoritário patriarcal (levando-se em consideração, por exemplo, a força lírica de sua narração), por outro lado, essa leitura vacila em alguns momentos do romance.
Essa vacilação, poderíamos afirmar, encontra-se, justamente, na hesitação e na incoerência presentes no personagem André. Os momentos de contradição no discurso de André face aos mecanismos de exclusão e injustiça dentro da família vão além de um fator que engrandeça o exercício crítico, revelando, pelo contrário, características antiéticas do narrador-protagonista frente aos outros personagens.
O estudo de André Luis Rodrigues foi um dos primeiros a fazer considerações nesse sentido. Dessa forma, Rodrigues, em Ritos da Paixão em Lavoura arcaica, ressalta as precariedades da fala de André na cena da capela, em que o convencimento da irmã para que esta se torne sua definitiva amante coloca-se como prioridade. Cito o crítico:
Nesses momentos do discurso em que o único objetivo, ou pelo menos o fundamental, é o convencimento da irmã, o distanciamento se amplia ao mesmo tempo que o poder se exerce ou tenta se exercê-lo por meio: do uso distorcido da palavra do pai, palavra que ele [André] sempre recusara; da promessa de transformação vinculada ao amor da irmã; da atribuição antecipada à irmã da culpa pelas conseqüências caso essa transformação não se desse; do apelo à sua piedade, colocando-se como vítima – e sabemos o quanto é freqüente o dominador apresentar-se como vítima; da afirmação da legitimidade da mentira e do cinismo no acobertamento da relação entre eles; da profanação das crenças e devoções da irmã (Rodrigues, 2006, p. 94-95).
Contudo, é importante ressaltar que Rodrigues faz advertências para que não se confunda o discurso autoritário paterno com esses trechos de discurso de André. Cito, novamente, o crítico:
No entanto, associar diretamente o discurso de André ao do pai, afirmando que ele exerce sobre a irmã, o elo mais frágil da corrente familiar, o mesmo poder que o pai exercia sobre ele, seria uma simplificação e redução tão grandes quanto opor diametralmente os dois discursos. Já vimos que André não deixa de revelar suas verdades (Rodrigues, 2006, p. 92).
Portanto, podemos interpretar que a contraposição entre o discurso freqüentemente libertário de André e o emprego de recursos retóricos suspeitos, na cena da capela, para o convencimento da irmã, levanta questões complexas sobre o narrador-protagonista enquanto sujeito crítico.
Dessa forma, lemos na mencionada fala de André o seguinte – “a razão é pródiga, querida irmã, corta em qualquer direção, consente qualquer atalho, bastando que sejamos hábeis no manejo desta lâmina; para vivermos nossa paixão, despojemos nossos olhos de artifícios [...]” (Nassar, 2006, p. 132) – o que sugere o exercício da razão de uma forma irresponsável em que se priorize como objetivo o alcance de interesses individuais, independentemente do posicionamento ético.
Portanto, uma distinção fundamental entre autor-implícito e narrador pode embasar uma perspectiva mais consistente sobre Lavoura arcaica enquanto um romance de linguagem de resistência do que uma mera confiança no pacto entre leitor e narrador-protagonista.
Ou seja, ao revelar as precariedades em termos éticos do narrador-protagonista André que erige uma crítica contra o discurso patriarcal autoritário, o autor-implícito do romance fornece ao leitor um impasse da razão e, por conseqüência, um impasse da crítica e da recepção literárias.
Outros textos de Raduan Nassar revelam, igualmente, a abordagem da temática da esfera da crítica cultural enquanto instância problemática. Em O ventre seco, por exemplo, o narrador em primeira pessoa afirma ser “simplesmente um obscurantista” (Nassar, 1997, p. 62) e questiona as reivindicações de uma juventude engajada:
E já que falo em proselitismo, devo te dizer também que não tenho nada contra esse feixe de reivindicações que você carrega, a tua questão feminista, essa outra do divórcio, e mais aquela do aborto, essas questões todas que “estão varrendo as bestas do caminho”. E quando digo que não tenho nada contra, entenda bem, Paula, quero simplesmente dizer que não tenho nada a ver com isso. Quer saber mais? Acho graça no ruído de jovens como você. Que tanto falam em liberdade? É preciso saber ouvir os gemidos da juventude: em geral, vocês reclamam é pela ausência de uma autoridade forte, mas eu, que nada tenho a impor, entenda isso, Paula, decididamente não quero te governar. (Nassar, 1997, p. 62-63)
Por sua vez, em Mãozinhas de seda, o narrador-protagonista identifica-se com a figura patriarcal do bisavô e, em tom de sátira e deboche, questiona a classe intelectual:
Aqui entre nós, pra que ir tão longe, pra que falar tanto em ética? Ponderando bem as coisas, não devemos ser duros com eles [intelectuais], afinal, se vai uma ponta de bravata naquela jactância toda, vai também uma carrada de candura quando metem sua colher na caldeira dos valores, cutucando a menina-dos-olhos do capeta com vara curta, sem suspeitarem que é nessa mesma caldeira que se cozinham os impostores. Ponderando ainda em outra direção, e é tudo só uma questão de boa vontade, não há por que censurá-los, devemos a eles até gratidão, afinal, aqueles extremados não deixam de contribuir de modo inestimável ao ilustrarem a versão mais acabada do humanissimus humanus. No que pecariam, pecariam?... [grifo meu] (Nassar, 1997, p. 82-82).
O importante a se frisar nesses contos é que se deve lê-los tendo em perspectiva a distância entre autor-implícito e narrador, como sugerido acima em relação Lavoura arcaica. Ou seja, textos literários como os acima citados não pretendem se inserir como enunciação de querela no meio artístico ou intelectual, como vem recorrentemente ocorrendo na recepção de Raduan Nassar nos últimos trinta anos.
A possibilidade de visualizar narradores, por vezes, insuportáveis, que propõem impasses à crítica cultural, seja pela precariedade, como no caso de André, seja pela indiferença ou pelo deboche corrosivo, constitui uma contribuição da breve obra de Raduan Nassar à literatura brasileira.
Por sua vez, essa contribuição orienta-nos a reflexões sobre a própria esfera da crítica cultural na sociedade administrada. Gostaria, portanto, de citar Adorno em “Crítica cultural e sociedade”:
Sua arrogância [do crítico da cultura] provém do fato de que, nas formas da sociedade concorrencial, onde todo ser é meramente um ser para outro, até mesmo o próprio crítico passa a ser medido apenas segundo seu êxito no mercado, ou seja, na medida em que ele exerce a crítica. O conhecimento efetivo dos temas não era primordial, mas sempre um produto secundário, e quanto mais falta ao crítico esse conhecimento, tanto mais essa carência passa a ser cuidadosamente substituída pelo eruditismo e conformismo. Quando os críticos finalmente não entendem mais nada do que julgam em sua arena, a da arte, e deixam-se rebaixar com prazer ao papel de propagandistas ou censores, consuma-se neles a antiga falta de caráter do ofício. As prerrogativas da informação e da posição permitem que eles expressem sua opinião como se fosse a própria objetividade. Mas ela é unicamente a objetividade do espírito dominante. Os críticos da cultura ajudam a tecer o véu (Adorno, 1998, p. 9).
Transpondo o pensamento de Adorno às reflexões presentemente debatidas, pode-se afirmar, portanto, que o papel da crítica ao patriarcalismo e ao discurso autoritário em Lavoura arcaica está articulado a uma consciência da crítica dialética por parte do autor-implícito, já que este último faz revelar o quanto o narrador-protagonista André propõe seu discurso de oposição carregando, contudo, valores da mesma sociedade que critica. Ou seja, o sujeito crítico não pode supor que se encontra em posição privilegiada – ele está inserido na realidade do existente.
Em Lavoura arcaica, o exercício de conscientização das possíveis precariedades do discurso crítico e dos impasses entre razão e ética adquirem, mais do em qualquer outro texto de Nassar, o tom da melancolia.

Referências bibliográficas

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1 Comunicação apresentada no I Colóquio Escritas da Violência (18/10/2007). Trabalho originário de pesquisa em Iniciação Científica, que contou com o financiamento de bolsa IC/CNPq quota, de fevereiro a agosto de 2007, orientada pelo Prof. Dr. Jaime Ginzburg, a partir de 2006, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas.
2 Graduanda em Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP. E-mail: anacarolinateles@yahoo.com.br
3 Nesse ponto, Eni Mesquita de Samara dialoga intensamente com o artigo de Antonio Candido, que desmistifica a representação da “mulher indolente”, na colônia, ao argumentar que a dinâmica da supervisão do trabalho doméstico, tarefa vinculada ao ethos feminino, na sociedade patriarcal, dificilmente permitiria a passividade e a indolência (Candido, 1951, p. 295-297).
4 A referência abrange a maioria dos estudos citados, neste artigo. É recorrente, para além dos exemplos evidenciados, anteriormente, a menção à imagem do homem, sobretudo, no período colonial, como um indivíduo que pode acusar e punir mulheres e filhos, seus subordinados.
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